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647 CAPÍTULO 45 REFLUXO VESICO URETERAL EDSON DA SILVA SALVADOR JUNIOR TASSIA MONTEIRO LOBOUNTCHENKO JOSELITA VIRGINIA SOARES Introdução e aspectos gerais: Refluxo Vésico Ureteral (RVU) é definido como o retorno indevido de urina da bexiga para o trato urinário superior. Fenômeno muito comum em crianças, ocorre em aproximadamente 1% dos nascidos vivos e em, pelo menos, 30 a 45% das crianças com infecção urinária. É geralmente assintomática, embora possa levar a um amplo espectro de repercussões clínicas: Pielonefrite de repetição, déficit de crescimento, Hipertensão arterial secundária, Nefropatia 1,4-6 . A associação entre RVU, especialmente o de baixo grau, e eclâmpsia ainda não é comprovada 7 . Atualmente, acredita-se na premissa de que o RVU seja fator de risco para pielonefrite aguda em crianças. A pielonefrite é um evento que pode ter desfechos graves, especialmente para o lac- tente, e que requer cuidados médicos, internação hospitalar e frequentemente cuidados em terapia intensiva pediátrica. Associado a isso, as infecções recorrentes podem levar à formação de cicatrizes renais. Além do mais, o RVU está associado à displasia renal intrauterina, definida como o desarranjo embriológico arquitetural do parênquima renal, que leva à não funcionalidade total ou parcial do órgão. Essas áreas de displasia renal são diagnosticadas na ultrassonografia como áreas de hiperco- genicidade renal ou microcistos. A Academia Americana de Pediatria (www.aap.org) recomenda a investigação de todos os lactentes com diagnóstico de pielonefrite aguda quanto à presença de mal formações do trato uri- nário, sendo entre elas a mais comum o RVU. Para toda criança que receba diagnóstico de pielone- frite, deve ser feito ainda na internação hospitalar a ultrassonografia do trato urinário, que embora normal, não exclui a presença de RVU (a hidronefrose decorrente do refluxo é alteração dinâmica na US). A presença de sinais sugestivos de alterações morfológicas renais (assimetria, displasia ou hi-

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CAPÍTULO 45

REFLUXO VESICO URETERAL

EDSON DA SILVA SALVADOR JUNIORTASSIA MONTEIRO LOBOUNTCHENKO

JOSELITA VIRGINIA SOARES

Introdução e aspectos gerais:

Re� uxo Vésico Ureteral (RVU) é de� nido como o retorno indevido de urina da bexiga para o trato urinário superior. Fenômeno muito comum em crianças, ocorre em aproximadamente 1% dos nascidos vivos e em, pelo menos, 30 a 45% das crianças com infecção urinária. É geralmente assintomática, embora possa levar a um amplo espectro de repercussões clínicas: Pielonefrite de repetição, dé� cit de crescimento, Hipertensão arterial secundária, Nefropatia1,4-6. A associação entre RVU, especialmente o de baixo grau, e eclâmpsia ainda não é comprovada7.

Atualmente, acredita-se na premissa de que o RVU seja fator de risco para pielonefrite aguda em crianças. A pielonefrite é um evento que pode ter desfechos graves, especialmente para o lac-tente, e que requer cuidados médicos, internação hospitalar e frequentemente cuidados em terapia intensiva pediátrica. Associado a isso, as infecções recorrentes podem levar à formação de cicatrizes renais. Além do mais, o RVU está associado à displasia renal intrauterina, de� nida como o desarranjo embriológico arquitetural do parênquima renal, que leva à não funcionalidade total ou parcial do órgão. Essas áreas de displasia renal são diagnosticadas na ultrassonogra� a como áreas de hiperco-genicidade renal ou microcistos.

A Academia Americana de Pediatria (www.aap.org) recomenda a investigação de todos os lactentes com diagnóstico de pielonefrite aguda quanto à presença de mal formações do trato uri-nário, sendo entre elas a mais comum o RVU. Para toda criança que receba diagnóstico de pielone-frite, deve ser feito ainda na internação hospitalar a ultrassonogra� a do trato urinário, que embora normal, não exclui a presença de RVU (a hidronefrose decorrente do re� uxo é alteração dinâmica na US). A presença de sinais sugestivos de alterações morfológicas renais (assimetria, displasia ou hi-

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dronefrose) deve ser investigada por Uretrocistogra� a Miccional e Retrógrada (UCM) já no primeiro episódio de pielonefrite8.

O RVU normalmente é diagnosticado de duas formas: investigação de hidronefrose neona-tal (etiologia de 15-40% dos casos) ou de pielonefrite em crianças (diagnosticado em 30-50% das vezes). É mais comum em meninas (exceto quando diagnosticado por Hidronefrose Antenatal, mais comum em meninos) e apresenta pior prognóstico também em meninos. É mais comum em cau-casianos e de forte herança poligenética, uma vez que a concordância entre gêmeos monozigóticos chega a 80-100%. O guideline AUA vigente (2017) e o EAU (2019) recomendam, o segundo com forte nível de evidência, o screening com ultrassonogra� a para o gêmeo monozigótico de paciente portador de RVU9-10.

Fisiopatologia e Estadiamento do RVU

Para � ns de tratamento e prognóstico, o RVU é dividido em duas categorias: primário e se-cundário.

RVU primário

É a forma mais comum de RVU. Sua � siopatologia reside na falha do mecanismo anti-re� uxo intrínseco da Junção Uretero-Vesical (JUV) e sua interação com o trígono vesical. Os estudos pio-neiros de Albert J. Paquin na década de 50, concluíram que a proporção entre o maior diâmetro do óstio ureteral e o comprimento do ureter intravesical é, em condições normais, de 1:5, enquanto nos pacientes portadores de RVU é de 1:1.4. Desta observação surgiu então a “regra de Paquin”, utilizada no reimplante ureteral para correção cirúrgica do RVU11.

Figura 1 – A esquerda, ureteral intravesical (submucoso+intramural); À direita, ureter re� uxante. Observe que o comprimen-to do ureter intravesical é menor, comprometendo o mecanismo valvular12.

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A resolução espontânea do RVU primário de baixo grau comumente ocorre com o crescimento do paciente. A quase totalidade dos casos é resolvida até os 5 anos sendo a maior taxa de resolução até os 2 anos.

Figura 2 – Taxas de resolução espontânea do RVU primário em crianças. A maior inclinação da curva é até os 2 anos (maior

taxa de resolução espontânea)13

RVU secundário

O RVU secundário é o resultado de distorções anatômicas provocadas por elevações crônicas na pressão intravesical, geralmente causadas por válvula de uretra posterior, ureterocele ou bexiga neurogênica. Ainda, a síndrome de disfunção de eliminações (Bowel Bladder Syndrome) pode ser causa de RVU secundário. O conceito de McGuire foi estabelecido observando-se que mais de 80% dos pacientes com pressões vesicais maiores que 40cmH2O apresentam RVU secundário14

Diagnóstico e estadiamento

O diagnóstico de RVU baseia-se na demonstração de re� uxo de urina da bexiga para o trato urinário superior por Uretrocistogra� a Miccional (UCM), Cistograma Radionuclídeo (Cistocintilogra-� a) ou Ultrassonogra� a dinâmica das vias urinárias. No entanto, apenas a UCM permite o correto estadiamento do RVU.

Em 1985 o International Re� ux Study Committee propôs um Sistema de estadiamento do RVU, descrito abaixo:

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Tabela 1 – Estadiamento do RVU de acordo com o International Re� ux Study Committee

Figura 3 – Estadiamento do RVU de acordo com o International Re� ux Study Committee15

A gravidade do re� uxo é classi� cada da seguinte forma:

• Leve - graus I e II

• Moderado - grau III

• Grave - graus IV e V

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Figura 4 – Re� uxo Grau V, secundário, em paciente portador de bexiga neurogênica por mielomeningocele. Fonte: Arquivo de imagens Urologia Pediátrica HUPE/UERJ.

Figura 5 – Cintilogra� a renal estática com DMSA. Observe área de fotopenia no polo superior do rim direito, correspondente a cicatriz renal pós pielonefrite. Fonte: Arquivo de imagens Urologia Pediátrica HUPE.

Fatores prognósticos

São fatores prognósticos que predizem a resolução espontânea do RVU: Idade no diagnóstico, forma de apresentação (se hidronefrose antenatal ou pielonefrite), sexo, grau, lateralidade, pre-sença de sistema duplo, presença de áreas de hipocaptação parenquimatosa na cintilogra� a DMSA,

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ocorrência do RVU na fase de enchimento ou esvaziamento da bexiga, e diâmetro do ureter distal. Destes, o grau do re� uxo é considerado o fator prognóstico predominante.

Quanto mais cedo é feito o diagnóstico do RVU, maior a chance de resolução espontânea. Con-forme já mencionado anteriormente, a resolução da maior parte dos casos se dá até 5 anos, sendo a maior taxa de resolução até 5 anos. A explicação para este fenômeno ainda não é de� nida, mas acredita-se que seja devido ao remodelamento vesical que ocorre com o crescimento da criança e às alterações dinâmicas da bexiga provocadas pelo desfralde.

O RVU diagnosticado durante investigação de hidronefrose antenatal apresenta melhor prognóstico do que o RVU diagnosticado durante investigação para pielonefrite. Da mesma forma, pacientes que apresentam áreas de hipocaptação à cintilogra� a com DMSA (correspondentes a ci-catrizes de pielonefrite ou focos de displasia renal) e do sexo masculino também possuem pior prog-nóstico quando comparados aos que não apresentam.

O RVU bilateral possui pior prognóstico que o RVU unilateral. O RVU passivo (observado na fase de enchimento da bexiga com contraste por � uoroscopia) possui pior prognóstico que o RVU ativo (observado na fase de esvaziamento vesical). A presença de re� uxo bilateral e sistema duplo (o pólo inferior é sempre re� uxante) conferem também pior prognóstico.

A medida do ureter distal também é fator prognóstico na predição da resolução espontânea do RVU. Arlen e cols publicaram em 2017 estudo sobre a validação da “taxa de diâmetro ureteral” no prognóstico de pacientes com RVU. A medida do ureter distal padronizada para o tamanho da criança pode predizer também o prognóstico destes casos16.

Algumas ferramentas estão disponíveis na internet para cálculo de probabilidade de resolução espontânea do RVU em crianças. O “VUR Resolution Calculator”, desenvolvido pelo Boston Children’s Hospital, é uma destas ferramentas que utilizamos em nossa rotina para auxiliar a tomada de deci-são.

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Figura 6 – VUR Resolution Calculator, Boston Children`s hospital. Disponível em https://apps.childrenshospital.org/clinical/

vurcalculator/

Abordagem à criança com RVU

Dois tipos de abordagem à criança com suspeita de RVU podem ser feitas: abordagem “top--down”ou “bottom-up”.

Na abordagem “top-down” um paciente com suspeita de RVU deve inicialmente ser subme-tido a cintilogra� a renal com DMSA. Uma vez que sejam diagnosticadas alterações de captação do parênquima renal, o paciente deve então ser submetido a UCM para diagnóstico e estadiamento do RVU; Esta abordagem parte da premissa que apenas o re� uxo de alto grau causa lesão renal. Portan-to, somente estes casos (já com lesões renais) devem ser investigados.

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Na abordagem “bottom-up”, o paciente suspeito é inicialmente submetido à UCM; Uma vez diagnosticado o RVU, o paciente é então submetido a cintilogra� a renal DMSA.

No serviço de Urologia Pediátrica HUPE/UERJ adotamos a rotina de abordagem “bottom-up”, com os seguintes argumentos: 1) pacientes sem re� uxo ou com re� uxo de baixo grau são poupados de cintilogra� a renal, exame custoso e com exposição à radiação; 2) Pacientes com abordagem “top--down” frequentemente possuem RVU de grau intermediário, que podem não apresentar alterações de perfusão renal, mas apresentar outras indicações de tratamento (por exemplo pielonefrites de repetição); 3) Pacientes com RVU de alto grau podem não apresentar lesões renais, como demons-trado por Preda et al17; 4) a abordagem “top-down” pode não diagnosticar até 35% dos casos de RVU18.

Ao se fazer um diagnóstico de RVU, deve-se:

- Medir altura, peso e pressão arterial.

- Avaliação laboratorial, incluindo:

- EAS para avaliar proteinúria (avaliar lesão renal) ou piúria (avaliar ITU).

- Creatinina sérica em acometimento bilateral para avaliar a função renal.

- A avaliação inicial deve identi� car se existem sintomas indicativos de disfunção miccional para crianças pós desfralde, de modo que as intervenções para melhorar o funcionamento da bexiga e do intestino podem ser iniciadas.

Manejo do RVU

O uso de intervenções terapêuticas no tratamento do RVU tem os seguintes objetivos19:

• Identi� cação de crianças com RVU sintomáticas e de risco.

• Prevenção de infecções urinárias recorrentes.

• Prevenção de novas cicatrizes renais resultantes de infecções urinárias.

• Minimização de morbidade do tratamento e acompanhamento.

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• Identi� car e manejar crianças com disfunção miccional e intestinal.

As intervenções incluem a terapia médica (ex: antibioticopro� laxia), o tratamento de comor-bidades e/ou correção cirúrgica / endoscópica.

Tratamento não Cirurgico

Considerações iniciais:

1) RVU representa um fenótipo, uma característica e não uma condição mórbida por si;

2) É um achado que tem alta taxa de resolução espontânea ao longo do desenvolvimento da criança e possui prognóstico variado, desde assintomático até Insu� ciência renal crônica;

3) Existem diferentes grupos de risco para desenvolvimento de infecções, cicatrizes renais e doença renal crônica dentre os pacientes portadores de RVU;

4) Não existem evidências que pequenas cicatrizes renais causem repercussões clinicamente signi� cativas para a criança nem para o adulto;

5) Não existe evidência robusta sobre o prognóstico dos pacientes com re� uxo na idade adulta – não existem ainda evidências fortes o su� ciente para concluir sobre correlação com eclâmpsia na gravidez;

6) Quantos pacientes com re� uxo não são diagnosticados e nunca o serão?

Postectomia

A realização da circuncisão em meninos portadores de RVU, independente de haver � mose ou não, comprovadamente reduz o risco de pielonefrite, especialmente no primeiro ano de vida. Adotamos com prática a circuncisão eletiva, após os 6 meses de vida, para todos os pacientes diag-nosticados com RVU, independente do grau ou forma de apresentação (hidronefrose antenatal ou pielonefrite)20.

Terapia Medicamentosa (antibioticopro� laxia): Consiste na administração pro� lática diária de um agente antibiótico. Fundamenta-se no uso de antibióticos contínuos que resultam na esteriliza-ção da urina até que o RVU se resolva espontaneamente. Os agentes antimicrobianos mais comu-

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mente utilizados para a pro� laxia incluem Sulfametoxazol e Trimetoprima (SMZ-TMP), Nitrofuran-toína, Cefalexina, Ampicilina e Amoxicilina. Seguem as doses únicas diárias normalmente utilizadas:

• SMZ-TMP - dosagem é baseada no TMP a 2 mg/kg.

• Nitrofurantoína - 1 a 2 mg/kg

• Cefalexina - 10 mg/kg

• Ampicilina - 20 mg/kg

• Amoxicilina - 10 mg/kg

A pro� laxia antibiótica é geralmente iniciada ao nascimento ou ao diagnóstico e continuada até que haja resolução espontânea do RVU ou correção cirúrgica.

Hoje existe grande discussão na comunidade cientí� ca acerca das evidências cientí� cas da antibioticopro� laxia e seus benefícios. Muitos estudos tem sido publicados sobre o benefício da pro-� laxia em reduzir novos episódios de pielonefrite e a formação de novas cicatrizes renais. O Estudo RIVUR (Randomized Intervention for Children with Vesicoureteral Re� ux), o mais importante até então publicado para responder esta questão, concluiu que a antibioticopro� laxia reduz o número de episódios de infecção urinária em 50%, mas não reduzia a incidência de novas cicatrizes renais e suas consequências (hipertensão e doença renal crônica). Ainda não está claro porque novas cicatri-zes renais desenvolvem em alguns pacientes sem infecções de repetição. Na análise deste estudo, o grupo que mais se bene� cia da pro� laxia são os que apresentam maior risco: não-circuncisados, desfraldados com síndrome de disfunção de eliminações e re� uxo de alto grau. Existe uma clara correlação entre a presença de Disfunção do Trato Urinário Inferior na criança desfraldada (urgência, urge-incontinência, sintomas de esvaziamento) e RVU, sendo esta uma indicação mandatória do uso de antibioticopro� laxia. Está claro que nem todos os pacientes portadores de RVU necessitam uso de pro� laxia antimicrobiana21-25. Outra pergunta ainda sem resposta é o tempo de duração da pro� laxia quando não há indicação de tratamento cirúrgico. Alguns artigos mais recentes sugerem manutenção por 1 ano após a ultima infecção urinária26-29. Em 2019 foi publicada uma revisão sis-temática Cochrane que concluía que a pro� laxia antimicrobiana reduzia sim o risco de infecções urinárias de repetição, mas com pouco benefício quando comparada a resistência antimicrobiana. Acreditamos que a estrati� cação adequada dos casos seja a melhor forma de selecionar os pacientes que realmente se bene� ciam desta medida30, 31.

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No Serviço de Urologia Pediátrica HUPE/UERJ adotamos a ponderação entre o risco e o benefí-cio do uso da antibioticopro� laxia, e adotamos nas seguintes situações:

- Ureterohidronefrose antenatal (início logo ao nascimento),

- RVU intermediário ou de alto grau em todos os pacientes,

- RVU diagnosticado após pielonefrite, independente do grau.

Não adotamos rotineiramente pro� laxia para RVU de baixo grau assintomático, uni ou bila-teral. Interrompemos a pro� laxia 12 meses após o completo toilet-training, desde que não haja sintomas urinários baixos nem novos episódios infecciosos.

As indicações de intervenção cirúrgica devem ser individualizadas caso a caso, sempre evi-tando o risco de novas infecções e surgimento de áreas de cicatrizes corticais. Atualmente dividimos em indicações absolutas e relativas:

- Indicação absoluta: Infecções na vigência de pro� laxia antimicrobiana;

- Indicações relativas: Re� uxo persistente de alto grau ou intermediário (de baixa resolução espontânea); surgimento de novas cicatrizes renais ou dé� cit de crescimento ne presença de re� uxo de qualquer grau;

Independente da técnica adotada, as indicações permanecem as mesmas.

Tratamento Endoscópico

A injeção de polímeros inabsorvíveis sob visão cistoscópica subureteral permite a modi� -cação da anatomia da JUV e o aumento da extensão do ureter intravesical, impedindo ou fazer o downgrading do RVU. Este procedimento, considerado minimamente invasivo, pode ser indicado em determinados casos com uma taxa de sucesso que varia de 50 a 80%, dependendo do caso, e pode exigir uma ou mais aplicações. O uso dessa técnica foi aprovado pelo FDA nos EUA em 2001. No Brasil, apenas o copolímero poliacrilato-poliálcool (Vantris ®) está disponível.

E metanálise publicada em 2006, Elder et al demonstraram que a taxa de resolução varia conforme o grau do RVU:

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Figura 7 – Taxas de resolução do RVU com tratamento endoscópico. Grau do re� uxo é fator fundamental na tomada da deci-são. (32)

Posteriormente, o surgimento da técnica “double-hit” permitiu e� cácia de mais de 90% no tratamento do RVU. Nesta técnica de injeção, duas aplicações do polímero são feitas: uma proximal (no interior do ureter) e outra distal (subureteral), às 6h.

Figura 8 – Técnica “double-hit”, onde o polímero é injetado proximal (1) e distal (2) na JUV, sempre às 6h, com cistoscópio 8.5Fr e agulha 3.7Fr. (3) Local de posicionamento do cistoscópio com � uxo de soro � siológico para hidrodistensão do óstio da JUV33

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Figura 9 – Correção endoscópica do RVU. (A) Localização cistoscópica do óstio ureteral; (B) Hidrodistensão – “� ush” de soro � siológico permite a abertura da JUV; (C) Injeção do polímero proximal, intra-utereral, às 6h; (D) Injeção de quantidade su� ciente para ocluir o óstio ureteral; (E) Injeção distal do polímero, também as 6h; (F) aspecto � nal da JUV tratada, “buraco de golfe”34

As complicações descritas deste procedimento são devidas geralmente à: má técnica (injeção insu� ciente de material ou local indevido), absorção ou migração do material; injeção muito super-� cial do polímero (submucosa)35, 36.

Tratamento Cirúrgico

O objetivo é corrigir a anatomia na junção ureterovesical e a manutenção da proporção 5:1 entre o túnel de ureter intravesical e o diâmetro do óstio ureteral. Para ureteres dilatados que impos-sibilitem a manutenção desta proporção, utilizamos técnicas de “ureteral tapering”, a saber: Starr, Kalicinsky ou Hendren (esta última preferida por nós).

Diversas podem ser as vias de acesso da abordagem cirúrgica escolhida (técnica convencio-nal, Videolaparoscópica abdominal ou transvesical e Robótica). Não existem estudos que mostrem superioridade da técnica intravesical (Politano-Leadbetter, Cohen) quando comparada à técnica ex-travesical (Lich-Gregoir).

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Figura 10 – Reimplante transvesical intravesical cruzado (Cohen). Aspecto � nal.34

Figura 11 – “Ureteral tapering” – modelagem ureteral para manter a regra de Paquin 1:5. O ureter é remodelado sobre um cateter 6 ou 8Fr, seu excesso é removido (apenas no túnel intravesical) e suturado com � o absorvível37.

Infecções de repetição em crianças menores de 1 ano ou sepse urinária

Recomendamos que crianças menores de 1 ano portadoras de RVU e pielonefrites de re-petição, ou as crianças sépticas em estado grave, sejam submetidas à derivação urinária, e não a tratamento cirúrgico de� nitivo. Ureterostomia cutânea lateral é opção de escolha para estes casos.

Síndrome de Disfunção de Eliminações e RVU

A disfunção miccional e intestinal é um achado comum em pacientes com RVU. Pacientes com disfunção miccional e RVU têm uma maior incidência de ITU, mais tempo para a resolução do RVU e aumento da taxa de falha de correção cirúrgica do que os pacientes apenas com VUR. Os sintomas

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e achados clínicos de disfunção miccional e intestinal incluem incontinência urinária e sintomas de urgência, micção frequente, ITU recorrente, disúria, dor abdominal e constipação. A infecção uriná-ria de repetição e o aumento da pressão intravesical devido à disfunção miccional estão associadas com um aumento da probabilidade de cicatriz renal e insu� ciência renal progressiva. O tratamento agressivo, incluindo o uso de laxantes, micção frequente cronometrada, exercícios do assoalho pél-vico, e modi� cação comportamental, pode melhorar a função da bexiga e levar a resolução do RVU, incluindo em alguns pacientes com RVU grau V. Em alguns casos, a terapia anticolinérgica pode ser útil38-41.

No Serviço de Urologia Pediátrica HUPE/UERJ tratamos empiricamente todos os pacientes com diagnóstico de RVU, independente da conduta clínica ou cirúrgica, com agentes anticonstipan-tes (polietilenoglicol PEG4000 0,5-0,8mg/Kg), uroterapia com orientações comportamentais, � sio-terapia com eletroestimulação TENS, Biofeedback e mais raramente, anticolinérgicos. A orientação quanto a desfralde de crianças portadoras de RVU deve ser enfática, no sentido de não apressar esse marco no desenvolvimento da criança. Orientamos aos responsáveis que deixem a criança adquirir sozinha controle es� ncteriano, sem acelerar o processo ou traumatizar a criança.

REFERÊNCIAS

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