Reflexoes sobre a nova proposta de reforma tributária pec 233 08 - versao final

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Reflexões sobre a Proposta de Reforma Tributária (PEC nº 233/2008)

Marcio Roberto Alabarce1

O sistema constitucional tributário criado pelo constituinte de 1.988 revela um sistema

tributário que aproveitou a experiência acumulada durante a vigência das Constituições

anteriores, especialmente no que se refere aos tributos que oneram o consumo de bens,

serviços e outras utilidades em geral. Desde a promulgação do novo texto constitucional,

porém, não foram poucas as ocasiões em que mudanças no sistema tributário nacional foram

colocadas em debate. Basta dizer que, desde 1.988, a Constituição foi modificada 17 vezes

pela inserção, modificação ou supressão de enunciados no texto da Constituição Federal,

efetivada pela promulgação de emendas constitucionais relativas à tributação.

Todas essas alterações, como se sabe, não foram suficientes para que os diversos

agentes sociais – governos e iniciativa privada – considerassem suas demandas ou

insatisfações satisfeitas. Pelo contrário, cada uma das modificações introduzidas nos

diferentes tributos criou novas insatisfações, novas demandas, e, por conseguinte, novas

regulações, e assim sucessivamente. A história do regime não-cumulativo do PIS e da

COFINS é um bom exemplo de como isso ocorreu. Baseando-se nas pressões particulares

para a instituição de regimes não-cumulativos para a cobrança dessas contribuições, foram

editadas as leis básicas disciplinadoras desses regimes, as Leis nº 10.637/02 e 10.833/03. O

que foi postulado por vários anos, de um momento para outro passou a ser relevante e urgente

a ponto de justificar a edição das Medidas Provisórias, posteriormente convertidas nas

mencionadas leis. E, sem que tenha havido debate mais aprofundado sobre aqueles regimes,

os mesmos logo se mostraram deficientes, justificando a edição de quase duas dezenas de leis

nos anos que se seguiram.

É claro que a estrutura federal adotada no Brasil, por si só, dá origem à complexa

repartição constitucional das rendas e aos conflitos horizontais e verticais de competência

tributária que tem se verificado com tanta freqüência na prática tributária de nosso país. A ela

se aliam a pluralidade e a complexidade socioeconômica dos dias atuais, que tornam

1 Mestre e doutorando em direito tributário pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). É advogado, e sócio de Machado Associados Advogados e Consultores, e professor nos Cursos de Especialização em Direito Tributário da FGV Law – EDESP e do CEU. Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (Presidente da 2ª Câmara Julgadora).

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necessário um sistema tributário altamente diversificado e complexo. Essa complexidade,

porém, seria enfrentada por coerência e lógica na definição da lei tributária, e não pelo

casuísmo e oportunismo que pontilham a nossa legislação.

Ademais, essa complexidade – que seria natural, além de conseqüência da própria

dinâmica moderna – acabou sendo deturpada. Isso se verifica, visivelmente, na disciplina dos

tributos que recaem sobre o consumo – ICMS, IPI, ISS, PIS, COFINS, CIDE, e outros – aos

quais estão direcionadas grande parcela de demandas e insatisfações dos mais diferentes

agentes econômicos (empresas, consumidores) e de diferentes órgãos de governo nas esferas

federal, estadual e municipal.

É que esses tributos incidem diretamente sobre as atividades realizadas pelos

contribuintes: sobre a venda, sobre a prestação de serviços, sobre a importação, sobre o

auferimento de receitas. Em geral, são tributos plurifásicos, que tendem a afetar diretamente o

preço dos bens, serviços e outras utilidades e, por isso mesmo, o resultado, o sucesso ou

insucesso dos empreendimentos empresariais. Por incidirem sobre o produto das atividades

empresariais, e, nessa medida, afetarem diretamente seu resultado, podem criar equilíbrio ou

desequilíbrio entre a carga tributária suportada em cada uma dessas atividades.

Devido a esse efeito direto sobre os preços de bens, serviços e outras utilidades, são

tributos que mais facilmente viabilizam a concessão de incentivos – predatórios ou não – à

economia, à produção e ao consumo, e que permitem ao Estado tratar de outros objetivos de

sua política de governo, além dos objetivos meramente fiscais. As características desses

tributos tornam-nos mais expostos a críticas dos agentes sociais, sendo eles os que mais

despertam a atenção no que se refere à “Reforma Tributária”, tanto em nível constitucional

como meramente legal. E, infelizmente, tem sido eles os maiores alvos da “fúria legislativa”

que tomou conta do país em nossa História tributária recente. Justamente eles são os

principais objetos das propostas apresentadas pelo Governo Federal no seio da PEC nº

233/08. E daí o risco que se avizinha na hipótese de mudanças radicais em nosso sistema

constitucional.

Neste contexto, com o envio de nova Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº

233/08), o tema “Reforma Tributária” volta a ser um assunto na pauta do Congresso. Nessa

nova fase, e a despeito da proposta e justificativa oficiais, inúmeros objetivos serão postos em

debate: aumento ou redução da arrecadação, combate à sonegação, simplificação das leis

fiscais, estímulo do investimento, melhoria das condições de auditoria pública,

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aperfeiçoamento da não-cumulatividade, solução de conflitos de competência, entre outros

que sejam considerados dignos de disciplina constitucional.

Sem antes nos debruçarmos previamente sobre esses objetivos debalde será o nosso

esforço no tocante à análise das diferentes propostas apresentadas pelo Governo Federal e das

alternativas que a sociedade tem a oferecer sobre esse mesmo tema. A respeito disso, vale

citar o seguinte trecho de estudo elaborado por MARCELO COLETTO POHLAMNN e por

SÉRGIO DE IUDÍCIBUS, segundo os quais “a política tributária tem vários objetivos, tais

como elevar a arrecadação, redistribuir a riqueza e estimular a atividade econômica. Dada a

meta estabelecida para a regra tributária, pesquisadores podem avaliar ex post sua

eficácia”2. Inegavelmente, no futuro – se a proposta for convertida em uma Emenda

Constitucional – só poderemos responder à questão acerca dos objetivos que, hoje,

pretendíamos alcançar com a Reforma desde que tenhamos claro qual a meta que se pretendeu

atingir3.

Seja como for, antes de se debater quais são os objetivos a perseguir por meio de nova

proposta de Emenda Constitucional – até porque não há consenso quanto a esses objetivos –,

é preciso compreender qual o conteúdo da proposta do Governo Federal, tecendo as devidas

críticas. Não nos ocuparemos, todavia, de seu aspectos ou objetivos políticos, mas em relação

à coerência das propostas e suas posteriores conseqüências jurídicas. Aqueles são mais

adequados no discurso político; estes, pela análise jurídica.

Vale dizer, de início, que as principais medidas propostas passarão a vigorar no

segundo ano seguinte ao da promulgação de eventual Emenda, exceto em relação ao ICMS,

que passará por um período de transição de oito anos. Esses períodos de transição são virtudes

da proposta, que permitem a readequação dos orçamentos e procedimentos de empresas e

governos às novas realidades tributárias.

Uma das principais medidas inclusas na proposta é a que atribui a competência para a

União cobrar um imposto sobre “operações com bens e prestações de serviços”, ainda que se

iniciem no exterior. É o IVA (imposto sobre valor agregado) a que tem se referido o 2 POHLAMNN, Marcelo Coletto; IUDÍCIBUS, Sérgio. Tributação e política tributária: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2006, p. 32. 3 Abra-se um parêntese para dizer que definir a referida meta é tão ou mais desafiador que responder se a medida implementada atingiu os resultados dela esperados principalmente porque em meio às sucessivas mudanças nas regras tributárias participam diferentes atores ou agentes sociais: a Presidência da República, o Ministério da Fazenda, a Secretaria da Receita Federal, a Secretaria da Receita Previdenciária, Congresso Nacional, os Sindicatos de Auditores Fiscais, as Federações e Confederações de Indústria, Comércio e Serviços, entre outros. São entidades formadas por pessoas com interesses contrapostos – ou sobrepostos – e que participam do processo legislativo, em sua acepção social. Já se disse, ademais, que a história política da lei é diferente da história jurídica da lei.

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Ministério da Fazenda perante a mídia, que, na realidade, assume a feição de um imposto

sobre operações, semelhante ao que é o ICMS e o IPI, com característica não-cumulativa4.

Além do fato de que recairá sobre operações com bens e serviços em geral – e não

sobre operações relativas à circulação, com tal qualificador – não deixa de ser curiosa – por

significar uma ruptura com a jurisprudência atualmente consagrada – a previsão de que, para

os fins desse imposto, será considerado serviço toda e qualquer prestação que não constitua

circulação ou transmissão de bens. Tal definição leva a uma situação singular em nosso

direito constitucional, em que um mesmo termo utilizado no texto constitucional (“serviço”)

poderá vir a ter significados diferentes. Nos campo dos “serviços” que, tecnicamente, não são

“serviços”, a proposta de Reforma acaba por permitir que a União institua um imposto que

poderia ser instituído por meio de lei complementar, no contexto da competência residual da

União.

Somando essa disposição com a referência às “operações com bens” – não nos

limitando às mercadorias –, abre-se a possibilidade para a União tributar transações com ativo

imobilizado, transferências, locações, empréstimos, e sobre tudo aquilo que pode ser tido

como “serviço”. A título de exemplo, debater-se-á, futuramente, se as “cessões de direitos”

são bens objetos de tais operações. É um imposto sobre praticamente todas as transações

empresariais. O fato gerador desse tributo é o mais aberto possível, mais amplo que o fato

gerador de ICMS, IPI, ISS, CIDE-Combustível, PIS e COFINS. Há, aqui, uma nítida atecnia

jurídica, pois a definição constitucional da competência tributária, além de bem definida em

seu escopo, haveria de ser restritiva de tais poderes, e, conforme a proposta, a competência a

ser conferida à União é uma carta aberta à União. Pode ser uma carta perigosa, a depender das

virtudes de nossos futuros legisladores5.

4 Em seu tempo, a Emenda Constitucional nº 18/65 promoveu ampla reforma tributária, representando uma mudança significativa no sistema tributário brasileiro. Essa Reforma criou o imposto federal “sobre produtos industrializados”, com perfil não-cumulativo, introduzindo no plano constitucional um novo conceito na tributação do consumo. Foi essa Emenda que criou o imposto estadual “sobre operações relativas à circulação de mercadorias” (com adicional devido aos Municípios), também não-cumulativo, o imposto federal sobre serviços de transporte e comunicações, salvo os estritamente municipais e o imposto municipal sobre serviços de qualquer natureza. Embora o então ICM não-cumulativo tenha sido criado sob a influência da taxe sur la valeur ajoutée, concebido por financistas franceses para evitar a cumulatividade dos impostos de vendas, isso não quer significar, em absoluto, que o ICM, atual ICMS, é um imposto sobre o valor agregado. Tal figura caracteriza-se por incidir sobre a parcela acrescida, ou seja, sobre a diferença positiva do valor que se verifica entre duas operações seqüenciais, onerando o contribuinte apenas na proporção do que foi adicionado à primeira operação. Pode o ser sob a ótica econômica, mas não sob a ótica jurídica, eis que a técnica desde sempre adotada no Brasil foi a da não-cumulatividade.

5 Nesta proposta, incorremos no mesmo erro cometido pela Emenda Constitucional nº 18/65. Como salientou Rubens Gomes de Souza, aquela Reforma havia avançado só até certo ponto na técnica de discriminação das

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Pela proposta, este imposto integrará a sua própria base de cálculo, não incidirá nas

exportações, e será não-cumulativo, nos termos da lei, mas não se reconhecerá o crédito em

relação às operações e prestações sujeitas à alíquota zero, isenção, não-incidência e imunidade

para compensação com as operações seguintes. Pela experiência acumulada desde há muito

com a não-cumulatividade do IPI, ICMS e PIS/COFINS, é possível prever as inúmeras

restrições ao creditamento oriundas da regulamentação desse tributo. Provavelmente, será

mais uma não-cumulatividade falaciosa, que só traz limitações, incertezas e complicações ao

contribuinte no momento de apropriar seus créditos. E, além de ser calculado sobre si mesmo,

o que mascara a efetiva carga tributária sobre um bem ou serviço, não é preciso muita

reflexão para imaginarmos que esse tributo recairá sobre o ICMS e/ou o IPI, ou o contrário.

Ademais, ao incidir sobre a importação, esse novo imposto – federal – passa a constituir mais

um adicional ao imposto de importação.

Uma regra importante em relação a esse novo imposto envolve previsão quanto à não

aplicabilidade do princípio da anterioridade (anual) para esse novo imposto federal, prevista

na proposta, o que poderá vir a gerar controvérsias, como as que animaram as discussões

iniciais relativas ao IPMF. O argumento do Poder Executivo em defesa dessa regra é

previsível: não se justifica a anterioridade anual, pois o novo imposto é um substituto do PIS e

COFINS, que não estão sujeitos a tal critério, mas sim à anterioridade mitigada. Esse novo

imposto também não poderá ser objeto de alterações por meio de Medida Provisória, como

proposto. Ao menos essa é uma proposta de cunho democrático.

Como se percebe da proposta, não se trata de um imposto sobre valor adicionado

(IVA), como noticiado pelo Governo Federal, mas sim de um imposto não-cumulativo sobre

operações, semelhante ao IPI e ICMS, mas que também abrangerá os fatos hoje tributados

pelo ISS, indo até além destes fatos.

Em sua essência econômica, conforme tem sido divulgado, é um imposto que

substituirá PIS, COFINS, que são tributos sobre as receitas auferidas pelas empresas, e a

COFINS-Importação, exigido nas importações de bens e serviços, além de CIDE-

Combustíveis e a contribuição ao salário-educação. É claro que é salutar a “simplificação” –

rendas tributárias que acolheu, à medida que procurou atribuir a cada ente tributante “não figuras tributárias específicas, mas sim campos de atividade econômica suscetíveis de tributação. Todavia, logo em seguida se desdisse, porque depois de feita esta atribuição de campos (comércio exterior, patrimônio e renda e produção e circulação), ao invés de parar aí, para ficar coerente com a sua linha, a Emenda n. 18, por força de contingências que se impuseram aos pretensos legisladores (e digo pretensos, porque eu era um deles) se contradisse e passou a enumerar os tributos supostamente incluídos dentro de cada um deste campos” (SOUZA, Rubens Gomes et. al. Comentários ao Código Tributário Nacional: Parte Geral. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 21).

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embora a “simplificação” desejada fosse outra, de clareza, coerência, estabilidade das normas

jurídicas e da apuração dos tributos – decorrente da extinção de todas essas rubricas por uma

só. Mas a pergunta que devemos fazer é: valerá a pena? Consideremos o PIS e a COFINS.

São as contribuições que representam a maior arrecadação nesse conjunto, e recaem sobre um

dado objetivo das empresas (suas receitas). Em substituição a elas, pretende-se criar um

tributo novo cuja definição constitucional é vaga e imprecisa (operações). Simplificar, diga-

se, por fim, não é substituir cinco tributos por um, mas sim trazer consistência, clareza,

transparência às regras tributárias. Não precisamos conhecer muito das vicissitudes do sistema

tributário nacional para se antever as inúmeras discussões administrativas e judiciais

envolvendo a incidência ou não desse tributo em transações como transferências, doações,

bonificações, comodato, consignações, entre outras. Será que a insegurança jurídica que se

criará com isso compensa a suposta vantagem de mais um imposto federal sobre operações?

Será que é aceitável ofertar esta carta em branco ao Poder Executivo, que pode ser tão ávido e

eficiente em matéria de arrecadação? E, caso essa competência lhe seja outorgada, é grande o

risco de aumento de carga tributária.

Alega-se, ademais, que o PIS e a COFINS atuais são complexos. É verdade. São

complexos porque são cobrados em mais de dois regimes diferentes – o cumulativo, o não-

cumulativo, além de existirem regras especiais para diferentes setores. Quem conhece o

ICMS, o IPI e o ISS também dirá que impostos sobre operações e serviços também são

complexos. O que assegura que o novo imposto recairá de modo uniforme na economia? E

essa uniformidade não será causa de injustiça fiscal, tratando igualmente empreendimentos

que evidenciam capacidade contributiva desigual? E, além do mais, mencione-se que o

Governo Federal tem parcela considerável de responsabilidade – ou culpa, poderíamos até

dizer – por essa complexidade. Afinal, desde 2002 até agora, foram mais de 17 leis sobre

esses tributos, praticamente todas originadas de Medidas Provisórias. O projeto faz alusão a

um imposto não-cumulativo sobre operações. Basta comparar o ICMS e o IPI atuais, que são

impostos não-cumulativos sobre operações, para identificarmos neles exemplos de tributos

complexos. É, pois, falacioso o argumento da simplificação promovida neste tocante.

Não sejamos acusados de ir contra as boas intenções do Governo, mas promover uma

Emenda Constitucional para a substituição de tributos como o PIS e a COFINS por um

imposto calcado em conceitos tão abertos parece não se justificar sob o ponto de vista

jurídico-fiscal, especialmente sob o rótulo “simplificação”. A simplificação indicada como

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vantagem da proposta é excelente, mas o remédio que irá cuidar dos males atuais em matéria

tributária parece não ser esse novo imposto.

Ainda no que se refere às competências da União, pretende-se permitir a instituição de

adicionais ao imposto de renda por setor de atividade econômica, medida essa que – em seu

sentido valorativo – conflita com a previsão genérica da isonomia tributária prescrita pelo

artigo 150, II, do texto constitucional. Essa é uma medida de constitucionalidade duvidosa,

porque restringe o sentido de cláusula pétrea.

Independentemente dessa proposta, é provável que as alíquotas do imposto de renda,

futuramente, venham a ser majoradas, pois o discurso governamental relativo à proposta

envolve a extinção da contribuição social sobre o lucro líquido a ser substituída por alíquotas

mais elevadas do imposto de renda. Essa última medida até pode ser neutra para as empresas

estrangeiras, à medida em que muitas delas compensam o montante pago a título de imposto

de renda no Brasil em seus próprios países, mas se prejudicam, de imediato, os exportadores,

especialmente em um momento no qual o Poder Judiciário começa a consagrar a tese de que

tais resultados são imunes à CSLL desde o advento da Emenda Constitucional nº 33/2001.

A proposta também pretende afetar as competências dos Estados e Municípios. Uma

novidade importante na proposta de reforma constitucional envolve a possibilidade de a

União, nos tratados internacionais por ela firmados, instituir isenções dos impostos de

competência dos Estados e Municípios. É o retorno das isenções heterônomas, repelidas pelo

constituinte de 1988, e que será, certamente, objeto de controvérsias futuras.

Inequivocamente, essa regra conferirá flexibilidade ao Governo Federal na negociação

de acordos com outros países abrangendo, inclusive, tributos sobre consumo como o ICMS e

o ISS. Por outro lado, ela consagra a possibilidade de o Governo Federal fazer “milagre com o

santo alheio”, reduzindo a competência desses entes políticos, que não costumam deixar de

reagir contra semelhantes investidas. É bem possível que Estados e Municípios exijam

contrapartidas no futuro, e que avancem contra os contribuintes (como, por exemplo, ocorreu

certa vez no Rio de Janeiro, no qual as autoridades fazendárias não aceitavam os créditos de

ICMS decorrentes de exportações). Quem sofrerá mais uma vez será o contribuinte e o Estado

de Direito, pois é difícil dizer que essa regra não fere cláusula pétrea, ao causar desequilíbrio

na Federação.

Quanto ao ICMS, que já é um imposto com características nacionais, e que deve seguir

as linhas gerais da legislação nacional (leis complementares e resoluções do Senado Federal)

mas que é efetivamente regido por leis estaduais, existem muitas alterações. Nada se altera em

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relação aos fatos tributados por esse imposto, mas, pela proposta, pretende-se converter o

ICMS em um imposto de “competência conjunta” dos Estados e do Distrito Federal, a ser

regulado apenas por uma lei complementar, com regulamento editado por um órgão colegiado

presidido por um representante da União (sem direito a voto) e por representantes dos

Estados. Juridicamente, a competência legislativa deixa de ser dos Estados e Distrito Federal,

que só manterão consigo a chamada “capacidade tributária ativa”, aprofundando-se o regime

nacional que rege esse imposto.

É de se notar que a iniciativa da lei complementar que disciplinará o ICMS, de acordo

com a proposta, será reservada ao Presidente da República, a um terço dos membros do

Senado Federal (abrangendo todas as Regiões do país) ou a um terço dos Governadores ou

das Assembléias Legislativas do país. Essa disposição – também de constitucionalidade

duvidosa perante o princípio federativo – cria uma exceção ao princípio geral de que as leis

complementares são de iniciativa de qualquer membro ou comissão da Câmara ou Senado

Federal, entre outros legitimados. A proposta, de todo modo, fortalece notavelmente os

poderes do Presidente da República em relação à disciplina do ICMS.

Em relação à não-cumulatividade do ICMS, a proposta retira do texto constitucional a

forma (metodologia) por meio da qual deve ser alcançado o efeito não-cumulativo, de modo

que esse princípio passa a figurar, mais claramente, como uma regra de eficácia limitada. Na

prática, o entendimento de que esse princípio é amplo já foi sepultado pelo Supremo Tribunal

Federal, mas a medida proposta vai além, e enterra por completo algumas garantias que ainda

derivavam do texto constitucional. Por exemplo, questões controversas envolvendo o

aproveitamento de créditos com base em “documentação inidônea” perderão amparo

constitucional. Os Fiscos Estaduais, nesse sentido, terão suas posições fortalecidas no sentido

de que o crédito fiscal a apropriar tem base no montante pago a cada operação, e não no

montante que incide a cada operação.

À semelhança do regime atual, as operações e prestações sujeitas à alíquota zero,

isenção, não-incidência e imunidade não implicarão crédito para compensação com o

montante devido nas operações ou prestações seguintes, salvo determinação da lei

complementar em contrário. Mas, diferentemente do que consta do texto constitucional em

vigor, a proposta não disciplina o que ocorre com o crédito relativo às operações e prestações

anteriores tributadas, quando as operações subseqüentes estão amparadas por esses benefícios.

Neste particular, a proposta só trata da garantia do crédito relativo às operações anteriores no

caso de exportação, mas não trata das demais hipóteses.

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Ainda a respeito da não-cumulatividade do ICMS, uma competência do legislador

complementar em particular poderá ensejar controvérsias, pois lhe caberá “assegurar o

aproveitamento do crédito do imposto”. Como o “aproveitamento” dos créditos de ICMS – na

terminologia técnica – tem a ver com a definição das hipóteses nas quais o contribuinte tem

direito ao crédito, essa expressão da proposta poderá levar a disputas doutrinárias e judiciais

no sentido de que a proposta irá assegurar um “creditamento amplo” do ICMS. Não sejamos,

todavia, ingênuos, pois a tendência é que as restrições aos créditos sejam mais uma vez

aceitas. Melhor seria, então, que a proposta não trouxesse dispositivos que só dão falsas

esperanças a quem ainda as têm, ou que utilizasse termos menos ambíguos.

Pela proposta, as alíquotas (faixas) do novo imposto serão definidas por meio de

Resolução do Senado Federal, que também poderá aprovar ou rejeitar as propostas de

enquadramento de mercadorias e serviços nas faixas de alíquotas definidas, conforme

proposições daquele órgão colegiado, que teve suas competências ampliadas, se comparadas

com as atuais atribuições do CONFAZ. É uma proposta que, de um lado, atribui aos

representantes dos Estados – os Senadores – a competência para definir as alíquotas de

interesse dos Estados, mas, por outro lado, retira dos representantes do povo – os Deputados –

a competência para deliberar, e consentir com a carga tributária proposta.

A proposta, porém, permite que a Lei Complementar defina mercadorias e serviços

cujas alíquotas poderão ser alteradas pelos Estados. Na prática, essa é uma das poucas

matérias cuja competência legislativa será deliberada pelos representantes do povo, e

permanecerá com os Estados.

O projeto também pretende alterar a base de cálculo do ICMS, pois retira do texto

constitucional a previsão de que o valor do IPI só será incluído na base de cálculo do ICMS

nas vendas realizadas para consumo. Com isso, a base de cálculo do ICMS, em tese, pode vir

a abranger o IPI em todas as situações, ou, no mínimo, podem-se iniciar conflitos com base

no argumento de que o ICMS não mais poderá ser calculado sobre o IPI. O silêncio sobre

matéria que é, hoje, regulada levará à inequívoca controvérsia, baseada na lógica de que um

tributo não pode ser calculada sobre outro, atualmente em debate no tocante à inclusão do

ICMS na base de cálculo de PIS e COFINS.

De modo análogo, o fato de se pretender eliminar previsão de que operações com

telecomunicações, energia elétrica e produtos minerais só serão tributadas pelo ICMS –

pretendendo-se permitir a cobrança do novo imposto federal – poderá levar à cobrança do IPI

sobre algumas dessas atividades. Sem a garantia da imunidade constitucional – cuja

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revogação é questionável – podemos imaginar, em futuro próximo, debates envolvendo a

eventual cobrança de IPI sobre o beneficiamento de minérios.

De acordo com o projeto de reforma, o tratamento fiscal nas operações interestaduais é

acentuadamente modificado. Pelos novos parâmetros, o imposto incidente nas operações

interestaduais pertencerá ao Estado de destino, exceto em relação à 2%, que pertencerá ao

Estado de origem das mercadorias e serviços. Essa regra não será aplicável nas operações

envolvendo petróleo e outros combustíveis e derivados, que continuarão sendo integralmente

tributados no Estado de destino e nas operações e prestações sujeitas à alíquotas inferiores a

2%, caso em que a operação ou prestação só será tributada na origem. Ou seja, substitui-se um

regime misto, que é o atual, por um regime predominantemente de destino.

Para viabilizar a aplicação da nova sistemática, poderá ser estabelecida a exigência

integral do imposto pelo Estado de origem, estabelecendo-se o dever de este transferir a

arrecadação correspondente ao Estado de destino, via câmara de compensação. Inclusive, para

assegurar esse mecanismo de integração arrecadatória, a proposta permite que a União venha

a intervir em Unidade da Federação que retenha parte da arrecadação devida a outra.

No que se refere às isenções e benefícios vinculados ao ICMS, a proposta prevê que

tais incentivos serão definidos pelo órgão de deliberação correspondente, e deverão ser

uniformes em todo o território nacional. A um só tempo, essa proposta tende à eliminação da

guerra fiscal, e prestigia um princípio (não-discriminação) já presente no texto constitucional.

Como o atual ICMS só deverá ser extinto só no 1º dia do oitavo ano subseqüente ao da

eventual edição da nova Emenda, esse é o período de transição a ser observado para os

benefícios atuais.

O novo ICMS deverá ter regulamentação única, editada pelo órgão colegiado, sendo

vedada a adoção de norma estadual, à exceção das poucas exceções previstas na proposta.

Assim, o novo CONFAZ sairá fortalecido caso a proposta venha a ser implementada,

cabendo-lhe a competência para editar o regulamento do ICMS, dispor sobre benefícios

fiscais, entre outras atribuições. Mais uma regra inovadora – além de romper paradigmas

constitucionais – pois é atribuição constitucional dos decretos a regulamentação das leis para

sua fiel execução. Atribuir-se-á, pela proposta, a referido órgão deliberativo a função

subordinadora dos atos das Administrações Públicas Estaduais (em certa medida, havemos de

reconhecer, isso já ocorre com o SimplesNacional).

Nesse particular, considerando o universo de normas de cunho regulamentar e

infraregulamentar que são necessárias para a administração do atual ICMS, será um grande

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desafio, nos oito anos de transição para o novo ICMS, que esse novo regulamento já

contemple todos os procedimentos de escrituração fiscal hoje disciplinados – e necessários ao

dia-a-dia desse imposto – pelas autoridades fazendárias, inclusive os regimes especiais

relativos ao cumprimento de obrigações acessórias, que viabilizam as atividades de tantas

empresas.

Já o processo administrativo fiscal será objeto da Lei Complementar que dispuser

sobre o ICMS, que deverá harmonizar a estrutura que já existe nos Estados e Distrito Federal,

com Tribunais e Conselhos altamente qualificados. Em relação a essa matéria, um dos

desafios será harmonizar as estruturas e filosofias já implantadas nas 27 Unidades da

Federação para o julgamento uniforme das questões do “novo ICMS” em nível nacional, além

de administrar os processos já em andamento ou a serem iniciados em relação ao “antigo

ICMS” mesmo após o início de cobrança do “novo ICMS”.

A Lei Complementar também enfrentará um outro trabalho árduo, que é

estabelecimento de sanções aos Estados e Distrito Federal – sem que isso represente

inconstitucionalidade – caso estes descumpram as normas nacionais pertinentes ao novo perfil

desse imposto. Esta é, porém, uma virtude da proposta, desde que não se continue a apenar os

contribuintes (os adquirentes de bens e serviços) pelos benefícios irregularmente concedidos

por algumas Unidades da Federação.

A fase transição definida pela proposta consiste na manutenção do atual ICMS pelos

sete anos seguintes ao da eventual promulgação da reforma. Durante esse período serão

mantidos o ICMS e os adicionais já instituídos por alguns Estados para o financiamento de

seus programas de combate à pobreza. Nesse período, porém, haverá uma transição gradual

no regime de tributação nas operações interestaduais. Existe também uma proposta segundo a

qual o prazo de aproveitamento dos créditos relativos às aquisições de bens destinados ao

ativo permanente será gradualmente reduzido ao longo de sete anos, dos 48 meses atuais para

8 meses ao cabo desse período.

Ainda em um período de transição do atual para o novo ICMS se pretende afastar a

aplicabilidade dos limites temporais estabelecidos pela anterioridade, pelo prazo de dois anos,

contados do início da exigência desse novo ICMS. Nesse período, a majoração do tributo só

será efetivada após 30 dias, sem o respeito dos limites atuais (anualidade e 90 dias). Pode-se,

é claro, argumentar que isso seria necessário para conferir agilidade às decisões dos Governos

no período de transição, mas, por outro lado, significa abrir mão do único instrumento de

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proteção do contribuinte contra mudanças bruscas da legislação tributária. É politicamente

justificável a medida, mas o será juridicamente?

Avançando no exame das proposições apresentadas pelo Governo Federal, percebe-se

que nada se altera em relação à competência tributária dos Municípios, o que é lamentável

pois uma Reforma Tributária poderia solucionar um dos grandes conflitos em matéria de ISS,

que é a definição clara das regras relativas à identificação do local de ocorrência do respectivo

fato gerador. Bastaria que a Emenda Constitucional introduzisse uma disposição atribuindo,

de modo expresso ao legislador complementar, a competência para este dispor, para fins de

definição do local de ocorrência do fato gerador, onde se considera ocorrido o respectivo fato

gerador. Essa sim seria uma medida de impacto e simplificação no campo tributário,

eliminando as inúmeras disputas e controvérsias envolvendo prestadores de serviço e

Municípios no país, que levam muitos a pagar o ISS em mais de um Município.

Em relação às contribuições sociais, a proposta pretende eliminar a competência da

União para exigir as contribuições sobre o lucro (CSLL), sobre receitas ou faturamento (PIS e

COFINS) e sobre os importadores (COFINS-Importação). Será também eliminada a CIDE-

Combustíveis e a contribuição ao salário-educação. Esta última deverá ser extinta somente no

2º ano subseqüente ao da promulgação da Emenda. Por outro lado, como não há proposta para

alterar ou modificar o artigo 149, pode-se presumir que o PIS-Importação e a CIDE-royalties

serão mantidos.

Especificamente em relação à extinção de PIS, COFINS e CSLL, não é demais

lembrar que a proposta mantém a competência da União para instituir contribuições sociais

residuais por meio de lei complementar. Nada impedirá, portanto, que uma futura

Administração venha a propor a recriação desses tributos, o que deve ser um ponto de atenção

no futuro, tendo em vista o pacto político que eventualmente virá a ser firmado.

Ainda em relação à contribuições sociais, consta da proposta a possibilidade de a

contribuição sobre folha de salários e demais rendimentos do trabalho ser substituída por uma

alíquota adicional ao novo imposto federal sobre operações, assegurando-se que, em tal

hipótese, um percentual da receita arrecadada com esse imposto seja direcionada ao

financiamento da Previdência Social (a proposta é silente quanto aos demais integrantes da

Seguridade Social, a saber, a Saúde e a Assistência Social).

Em relação à contribuição social incidente sobre a folha de salários, a proposta

também atribui à lei a competência para definir reduções gradativas de sua alíquota, a serem

efetuadas do segundo ao sétimo ano subseqüente ao da promulgação da emenda. Não há,

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porém, previsão quanto à extinção completa dessa contribuição, tampouco o patamar mínimo

ou máximo que deverá ser observado por essa lei.

Ainda nesse tocante, existe uma proposição permitindo que a agroindústria, o produtor

rural pessoa física ou jurídica, o consórcio simplificado de produtores rurais, a cooperativa

rural e a associação desportiva fiquem sujeitas à contribuição sobre suas receitas ou

faturamento em substituição à contribuição sobre a folha de salários e demais rendimentos do

trabalho. Nessa hipótese, segue a proposta, não será aplicável o benefício relativo à imunidade

das receitas de exportação em face das contribuições sociais.

É de se comentar que sistemática semelhante à prevista já foi instituída e está sendo

aplicada em relação às entidades já referidas. Não há grandes novidades nesse particular,

portanto. Por outro lado, a proposta incorpora, de certo modo, o reconhecimento – hoje

negado pelas autoridades fazendárias federais – de que as contribuições da agroindústria sobre

suas receitas merecem o benefício da referida imunidade.

Uma última proposição de interesse para os contribuintes em geral constante da

Proposta encaminhada ao Congresso Nacional reside na possibilidade de a lei complementar

estabelecer limites e mecanismos de ajuste de carga tributária em relação ao IPI, ao novo

imposto federal sobre operações e ao novo ICMS. A proposta está carregada de boas

intenções políticas, mas é realmente difícil esperar que tal medida seja implementada. Basta

lembrar que a Lei nº 10.637/02 (artigo 12, parágrafo único), que introduziu a sistemática de

cálculo não-cumulativo do PIS, continha disposição referente ao ajuste de suas alíquotas (a

mudança de regime, à época, não era manifestamente arrecadatória). Com o tempo, o PIS, e,

em seguida, a COFINS passaram a ser os principais responsáveis pelos seguidos recordes de

arrecadação sem que houvesse ajuste, como inicialmente previsto.

Como se vê, em certos aspectos, a proposta é bastante ampla, mas as expectativas

formadas em torno de seus efeitos – especialmente questões relativas à simplificação e

crescimento do país caso ela venha a ser implementada – são dignas de desconfiança.

Ademais, pelas medidas propostas, podem decorrer efeitos indesejados e imprevisíveis, que

devem, por isso mesmo, ser objeto de maior reflexão, não só por parte da sociedade civil, mas

também dos Governos, no âmbito federal, estadual e municipal.

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