Reflexões sobre a Atuação do(a) Psicólogo(a) em Contextos ... · circulam e estão presentes...

8
68 Este texto apresenta reflexões sobre as relações entre escolas, atuações do(a) psicólogo(a) e comunidades 2 considerando alguns dos seus múltiplos sentidos. Justifica-se sua pertinência na medida em que cada vez mais se constata a necessidade da reflexão sobre saberes e fazeres, principalmente em um contexto econômico e político como o atual. O cenário que se apresenta no campo da Educação é o de valorização, como foco dos processos de ensinar e aprender, de determinadas competências que atendam à lógica do mercado. Desse modo, com a prevalência do modelo de acumulação flexível na organização da economia mundial (Harvey, 1989), o qual pressupõe trabalhadores polivalentes, criativos, capazes de Resumo:Este texto apresenta reflexões sobre a atuação do(a) psicólogo(a) em contextos escolares a partir da análise dos múltiplos sentidos para a relação desse profissional com o contexto e a população com a qual trabalha. Dessas reflexões destaca-se, a partir dos aportes teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, a delimitação de uma perspectiva de atuação profissional ao mesmo tempo ampla e específica, que requer a crítica constante do lugar social assumido pelo(a) psicólogo(a). Palavras-Chave:Psicologia Escolar, Psicologia Comunitária, escola. Abstract:This text presents reflections on the psychologist’s performance within educational contexts from the analysis of multiple senses for the relation of this professional with the context and the population with whom he/she works. With the support of the Historical Cultural theory, it is presented a possibility for the psychologist’s performance to be at the same time ample and specific, and the necessary critics about the social role assumed. Key Words: Educational Psychology, communitary Psychology, school. Reflexões sobre a Atuação do(a) Psicólogo(a) em Contextos de Escolarização Formal Andréa Vieira Zanella Professora-adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina Mestre e Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Bolsista do CNPq PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2003, 23 (3), 68-75 Some considerations on the psychological practice in formal education contexts ArtToday

Transcript of Reflexões sobre a Atuação do(a) Psicólogo(a) em Contextos ... · circulam e estão presentes...

68

Este texto apresenta reflexões sobre as relações entreescolas, atuações do(a) psicólogo(a) ecomunidades

2 considerando alguns dos seus

múltiplos sentidos. Justifica-se sua pertinência namedida em que cada vez mais se constata anecessidade da reflexão sobre saberes e fazeres,principalmente em um contexto econômico epolítico como o atual.

O cenário que se apresenta no campo daEducação é o de valorização, como foco dosprocessos de ensinar e aprender, de determinadascompetências que atendam à lógica do mercado.Desse modo, com a prevalência do modelo deacumulação flexível na organização da economiamundial (Harvey, 1989), o qual pressupõetrabalhadores polivalentes, criativos, capazes de

Resumo:Este texto apresenta reflexões sobre a atuação do(a) psicólogo(a) em contextos escolares a partirda análise dos múltiplos sentidos para a relação desse profissional com o contexto e a população com aqual trabalha. Dessas reflexões destaca-se, a partir dos aportes teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, adelimitação de uma perspectiva de atuação profissional ao mesmo tempo ampla e específica, que requera crítica constante do lugar social assumido pelo(a) psicólogo(a).Palavras-Chave:Psicologia Escolar, Psicologia Comunitária, escola.

Abstract:This text presents reflections on the psychologist’s performance within educational contexts fromthe analysis of multiple senses for the relation of this professional with the context and the population withwhom he/she works. With the support of the Historical Cultural theory, it is presented a possibility for thepsychologist’s performance to be at the same time ample and specific, and the necessary critics about thesocial role assumed.Key Words: Educational Psychology, communitary Psychology, school.

Reflexões sobre a Atuação do(a)Psicólogo(a) em Contextos de

Escolarização Formal

Andréa VieiraZanella

Professora-adjunto doDepartamento de

Psicologia e doPrograma de Pós-

Graduação emPsicologia da

Universidade Federal deSanta Catarina

Mestre e Doutora emPsicologia da

Educação pelaPontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo

Bolsista do CNPq

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2003, 23 (3), 68-75

Some considerations on the psychological practice in formal education contexts

ArtT

oday

69

trabalhar em equipe, enfim, flexíveis, o lemanorteador das práticas pedagógicas é o “aprendera aprender” (Duarte, 2000), cuja ênfase recai sobrea busca desenfreada pela informação muitas vezesindependente da crítica em relação ao que seaprende e ao próprio modelo proposto.

Em outras palavras, embora aparentementedistante da formação dos trabalhadores do iníciodo século XX, voltada para a qualificação de mãode obra, o que se constata hoje é a capacitaçãotécnica mais uma vez se sobrepondo à formaçãogeneralista, ou seja, à formação que se assentasobre a necessidade imperiosa da reflexão sobre arealidade para a produção de condições eferramentas que possibilitem sua superação.

Refazer sentidos é condição sine que non nesseprocesso na medida em que muitos são possíveis,porém alguns se estabilizam – os significados – e,de certo modo, se universalizam, norteandopráticas profissionais nem sempre críticas de seuspróprios resultados. Para explicitar a diferençaentre sentidos e significados, queremos apresentarum trecho do livro Todos os Nomes, de JoséSaramago, que já usamos em outros momentos,mas cuja poesia justifica a repetição:

“... sentido e significado nunca foram a mesmacoisa, o significado fica-se logo por aí, é direto,literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco,por assim dizer, ao passo que o sentido não écapaz de permanecer quieto, fervilha de sentidossegundos, terceiros e quartos, de direçõesirradiantes que se vão subdividindo em ramos eramilhos, até se perderem de vista; o sentido decada palavra parece-me como uma estrela quandose põe a projectar marés vivas pelo espaço fora,ventos cósmicos, perturbações magnéticas,aflições” (Saramago, 1997, p.135).

Por que trazer esse texto? Para demarcar, em umprimeiro momento, a pluralidade de sentidospossíveis para essa parceria que hoje aqui seapresenta como foco de discussão. O significado– sentido que se estabiliza – é somente um dentreum fluxo de sentidos, o que demarca a suacondição histórica e, portanto, sua possibilidadede substituição.

Em segundo lugar, resgatamos Saramago paraexplicitar de que lugar falamos, ou a partir de qualreferencial teórico-metodológico, o que restringecertamente o campo dos sentidos e apresenta-sena contramão de alguns significados que aindacirculam e estão presentes nas mais variadasatuações da Psicologia.

O lugar de onde falamos é o de professorauniversitária, formadora de futuros psicólogos, queacredita, a partir da crítica à Psicologia enquanto

Reflexões sobre a Atuação do(a) Psicólogo(a) em Contextos de Escolarização Formal

ciência e da prática profissional dela derivada, napossibilidade de uma inserção profissional críticae criativa, eticamente comprometida com a lutapela emancipação humana, o que requersuperação das desigualdades sociais e produçãode uma sociedade em que a riqueza econômica ecultural socialmente produzida possa serprerrogativa de todos. A base teórico-metodológicaonde essa prática se assenta, por sua vez, é aPsicologia Histórico-cultural, originada com osescritos de Vygotski, a qual procura explicar aconstituição social e histórica do psiquismohumano ou, em outras palavras, do próprio sujeito

3.

Antes de focar as relações entre escolas, atuaçõesdo(a) psicólogo(a) e comunidades, falaremos, aindaque brevemente, sobre cada um desses pólos, paraque então as relações possam ser explicitadas eproblematizadas.

Breves ConsideraçõesSobre Escolas

Escolas são instituições e, enquanto tais, ligadas“...à cultura local, influenciando e sendoinfluenciadas pelos contextos social, político eeconômico nos quais se inscrevem, atravessadaspelo imaginário social, incluindo aí um sistemasimbólico próprio” (Nasciutti, 1996, p.103). Rituaiscaracterísticos, práticas de dominação/subordinação, relações sociais hierarquizadas,valores, enfim, consonantes com os da sociedadena qual se inserem, compõem o universo escolarcomo ao mesmo tempo social e singular.

Social na medida em que traz as marcas da históriaque o produziu e produz. Em uma perspectivacrítica, porém, apesar do reconhecimento de queatua como agência promotora de exclusão social,a escola é entendida enquanto lócus de produção/socialização/apropriação de conhecimentoshistoricamente produzidos, o que a caracterizacomo instituição singular. Assume, desse modo,importância fundamental em nossa sociedadeporque pode possibilitar aos alunos o acesso aconhecimentos teoricamente sistematizados, osquais se constituem em importantes ferramentasna medida em que possibilitam relações mediadas,com a realidade, por critérios de análisehistoricamente produzidos.

Escolas, no entanto, têm assumido e cristalizadodeterminados sentidos para sua própria existênciaque as distanciam dessa possibilidade de virem ase constituir em lugares de luta, deinstrumentalização teórica que permita a leituracrítica da realidade, o que se objetiva de diferentesformas: nas práticas pedagógicas promotoras defracasso escolar, nos mecanismos dedisciplinamento, na assunção dos conhecimentos

1 Essas reflexões foramapresentadas à comunidadeacadêmica do curso dePsicologia da ULBRA-Torres, noseminário Psicologia eComunidade: (re)Fazendo oSentido da Parceria, em maiode 2001.

2 A utilização do tempo pluralnesses conceitos consiste emrecurso para demarcar suadimensão histórica e contextual,ainda que organizados a partirda lógica da sociedade em quese inserem.

3 Essa questão vem sendodiscutida por vários autores,entre eles Smolka, Góes & Pino(1998), Zanella, Balbinot &Pereira (2000), Zanella (2000).

“... sentido esignificado nuncaforam a mesmacoisa, o significadofica-se logo por aí, édireto, literal, explícito,fechado em simesmo, unívoco, porassim dizer, ao passoque o sentido não écapaz depermanecer quieto,fervilha de sentidossegundos, terceiros equartos, de direçõesirradiantes que sevão subdividindo emramos e ramilhos, atése perderem de vista;o sentido de cadapalavra parece-mecomo uma estrelaquando se põe aprojectar marés vivaspelo espaço fora,ventos cósmicos,perturbaçõesmagnéticas, aflições”

Saramago

70

“um tipo de vida emsociedade ‘onde

todos são chamadospelo nome’. Esse ‘ser

chamado pelonome’ significa uma

vivência emsociedade onde a

pessoa, além depossuir um nome

próprio, isto é, alémde manter sua

identidade esingularidade, tem

possibilidade departicipar, de dizer

sua opinião, demanifestar seu

pensamento, de seralguém”.

Guareschi

veiculados enquanto verdades absolutas e negaçãode outros saberes que ali transitam, entre outras.

Essas questões têm-nos levado a abandonar, aindaque temporariamente, a intervenção eminstituições escolares propriamente ditas – o queentendemos como uma certa forma de resistênciaao institucionalismo (conforme Guareschi, 1996),ou seja, à prática de se entender a escola comoúnico lugar de acesso ao conhecimento - e centraresforços em práticas educativas em diferentescontextos, , por exemplo, grupos de professoresem encontros de capacitação, reuniões de pais,grupos de trabalhadores em cursos de formaçãoem serviço (Zanella e Pereira, 2001), ou entãogrupos outros, como de mães de criançasdesnutridas (Zanella e Antunes, 2002). Apesar dadiversidade de contextos e sujeitos, as atividadesque os congregam são comuns, ou seja, ensinar eaprender saberes e fazeres diversos, razão que nospossibilita afirmar que se tratam de práticaseducativas. Por não acontecerem em instituiçõesescolares, a possibilidade de romper com rituais epráticas cristalizadas é de certa forma facilitada,embora continuem a existir e precisem serigualmente problematizados.

Breves ConsideraçõesSobre Comunidades

Comunidade é um conceito complexo, plural, postoque para essa palavra há diversos significados.Ressaltamos não estarmos falando de sentidos, dedireções irradiantes, como aponta Saramago.Falamos de significados, de sentidos cristalizados eaté mesmo antagônicos que a palavra comunidadeveicula: audiência, grupo social, população de baixarenda, população a partir da referência geográfica.

Para delimitar o significado que adotamos para oconceito de comunidade, resgatamos a perspectiva

marxista do termo, apresentada por Guareschi(1996, p.95): “um tipo de vida em sociedade ‘ondetodos são chamados pelo nome’. Esse ‘serchamado pelo nome’ significa uma vivência emsociedade onde a pessoa, além de possuir umnome próprio, isto é, além de manter suaidentidade e singularidade, tem possibilidade departicipar, de dizer sua opinião, de manifestar seupensamento, de ser alguém”.

Partindo dessa definição e entendendo ainadequação do uso indiscriminado do conceitode comunidade, posto que na maioria das vezesas relações sociais que caracterizam os gruposreferidos enquanto tal se distanciam sobremaneiradessa forma democrática que o conceito veicula,temos feito referência às pessoas com quemtrabalhamos como “população investigada” ou“população com a qual se trabalha” (e não para oqual, seguindo discussão proposta por Freire, 1983),termos, provavelmente, igualmente inadequados,porém mais próximos da realidade, uma vez quese referem a pessoas que estão cada vez maisisoladas, onde laços comunitários têm-se dissolvidoou nem mesmo produzido em razão doacirramento da lógica perversa que pauta o viverem nossa sociedade, ou seja, a lógica dadominação/submissão que se assenta nanecessidade de acumulação desenfreada.

Breves ConsideraçõesSobre a Psicologia

Ciência inaugurada enquanto tal no auge do projetode modernidade, a Psicologia foi profundamentemarcada pelos pressupostos desse projeto. Paracompreender essa relação, é necessário apontarque, “Embora o termo ‘moderno’ tenha uma históriabem mais antiga, o que Habermas (...) chama deprojeto de modernidade entrou em foco durante oséculo XVIII. Esse projeto equivalia a umextraordinário esforço intelectual dos pensadoresiluministas ‘para desenvolver a ciência objetiva, amoralidade e a lei universais e a arte autônoma nostermos da própria lógica interna destas’(...) Odesenvolvimento de formas racionais de organizaçãosocial e de modos racionais de pensamento prometiaa libertação das irracionalidades do mito, dareligião, da superstição, liberação do uso arbitráriodo poder, bem como do lado sombrio da próprianatureza humana. Somente por meio de tal projetopoderiam as qualidades universais, eternas eimutáveis de toda a humanidade ser reveladas”(Harvey, 1989, p.23).

A Psicologia é, portanto, profundamente marcadapor tentativas objetivas de explicação do que seconfigura como fenômeno psicológico. À ciênciaoficial, depositária do ideário moderno,contrapunha-se, no entanto, já em sua origem, outras

Andréa Vieira Zanella

71

possibilidades para a Psicologia (Figueiredo, 1987),cujo reconhecimento resultou na leitura de que háuma “crise” dessa ciência. Entendida enquantonegativa, esforços vêm sendo feitos no sentido desua superação, geralmente sustentados emargumentos de poder. A crise, no entanto, pode serentendida em sua positividade, enquantoindicadora do diálogo necessário entre perspectivasdiferenciadas que, uma vez travado, pode levar aodesvelamento de suas reais diferenças e do que asfundamenta.

A crise, portanto, nada mais é senão a própriapluralidade da Psicologia que, enquanto ciência eprofissão, caracteriza-se pela diversidade deorientações teórico-metodológicas e possibilidadesde intervenção, diversidade essa que se assenta emprojetos políticos que precisam ser explicitados.

Voltando à Temática Principal, aSaber, às Relações entre Escolas,Atuações do(a) Psicólogo(a) eComunidades

Para pensar as possíveis relações entre escolas,atuações do(a) psicólogo(a) e comunidades, umapergunta inevitavelmente precisa ser feita: a quema Psicologia presta serviços? Historicamente, emrazão das orientações teórico-metodológicas quepropõem, direta ou indiretamente, o ajustamentosocial, a Psicologia presta serviços a uma parcelada população, àquela que impõe padrões denormalidade e nestes se enquadra, ainda que suaprática possa estar voltada para pessoas de baixarenda ou grupos denominados minoritários. Issoporque, se não explicitadas em relação aos seusobjetivos últimos, as práticas psicológicas queatuam junto a diferentes grupos sociais podem seconfigurar como práticas assistencialistas, e “Oassistencialismo é sempre uma política de exclusãoque retroalimenta a miséria. Ao adotarmos essemodelo como política de assistência social, nadamais fazemos do que encarnar este trem que jávem, que já vem, que já vem...”

4 (Ramminger, 2001,

p.43).

Possibilidades outras de atuação psicológica,porém, são uma realidade, ainda que a visibilidadedestas possa ser menor. Em outras palavras, sentidosoutros para as relações entre escolas, atuaçõesdo(a) psicólogo(a) e comunidades fervilham aquie acolá, assumem direções irradiantes eestabilizam-se, ainda que às custas de muita lutapara a superação de vários desafios

5. Destacaremos

aqui o que entendemos como uma possibilidadede atuação de profissionais da Psicologia emcontextos educacionais consonante com umaperspectiva social crítica, mais especificamente apartir da Psicologia Histórico-cultural.

Partindo do pressuposto que a constituição do sujeitodecorre da apropriação de significações

6 via

atividades engendradas nas relações sociais (Zanella,2000), as atividades de ensinar e aprender,sistematizadas ou assistemáticas, deliberadas ou não,são compreendidas como fundamentais na medidaem que objetivam e subjetivam os sujeitos que as

empreendem. Via atividade semioticamentemediada, ou seja, atividade que veicula/produzsignificados e sentidos e é portanto significativa paraos sujeitos que a empreendem, estabelece-se arelação inexorável com as gerações precedentes e as

Reflexões sobre a Atuação do(a) Psicólogo(a) em Contextos de Escolarização Formal

4 Nesse final de frase , a autorafaz alusão à música PedroPedreiro, de Chico Buarque deHolanda, a qual aponta umacaracterística de quem convivecom a pobreza, a saber, aespera.

5 Discussão a respeito das lutase desafios enfrentados pelaPsicologia Comunitária no Brasilé apresentada por Freitas(1999).

6 “A significação refere-se a “oque as coisas querem dizer”,aquilo que alguma coisasignifica. Como as coisas nãosignificam por si só e nem tãopouco significam a mesma coisapara indivíduos diferentes,depreende-se que a significaçãoé fenômeno das interações,sendo, pois, social ehistoricamente produzida”

72

ferramentas por estas produzidas, o que caracteriza aespecificidade histórica e social do gênero humano.Isso porque, no processo de apropriação dassignificações da atividade, entendidas enquantoobjetivações, o sujeito na verdade se apropria dahistória humana e nesta imprime sua marca. Comoesclarece Duarte (2000, p.123), “... uma objetivaçãoé sempre síntese da atividade humana. Daí que, aose apropriar de uma objetivação, o indivíduo está serelacionando com a história social, ainda que talrelação nunca venha a ser consciente para ele”.

Relações sociais constituem-se, portanto, em lócusde produção da própria história humana e seusagentes, território em que a forma pela qual oshomens (sujeitos genéricos) organizam o seu viverse expressa e pode ser transformada. Ou seja, asrelações sociais configuram-se como território emque significados e sentidos são produzidos,veiculados, transformados e apropriados.

O contexto social em que vivemos expressa, pois,relações sociais historicamente marcadas, as quais seobjetivam em todas as esferas, e nas escolas nãopoderia ser diferente. Não é à toa que muitos estudosvêm denunciando o caráter excludente das práticaseducativas ali engendradas (Patto, 1983) e osmecanismos de dominação/ submissão adotados(Guimarães, 1985).

Significados históricos, porém, e, enquanto tal,mutáveis. Eis o que entendemos como espaço paraas práticas psicológicas, fundamentalmente as que seassentam em uma perspectiva crítica, ou seja, quetêm como norte de ação/reflexão o compromissocom a transformação da realidade: repensar asrelações sociais entabuladas no contextoeducacional, visando a redimensioná-las.

Várias são as possibilidades de ação que decorremdessa premissa: relações professor/alunos, relaçõesalunos/alunos, relações escola/pais ou responsáveis,relações professores/equipe técnico-pedagógica/direção, relações professores/alunos/faxineiras emerendeiras, e tantas outras. Cada eixo desses émarcado por significados historicamente produzidosque delineiam as posturas e ações dos sujeitos emrelação, porém que podem, uma vezproblematizados, ser ressignificados. Em outraspalavras, é possível produzir espaços de embate,troca, encontro, confronto, enfim, contextosinterpsicológicos em que sentidos outros fluam epossam vir a ser compartilhados, substituindo aquelesque carregam as marcas da sociedade que se quersuperar.

O que estamos apontando aqui é uma perspectivapara a intervenção junto à população com a qual setrabalha, que se apresenta ao mesmo tempo comoampla e específica porque o foco de ação podevariar, em decorrência das possibilidades de diálogoque efetivamente podem se concretizar.Possibilidades são produzidas, é certo, porémnecessário se faz entender os movimentos e tempossingulares dos sujeitos com os quais se trabalha bemcomo os próprios, pois, do contrário, corre-se o riscode obliterar as trocas que sequer foram iniciadas.Nesse sentido, o trabalho em uma instituição é amploporque pode começar com parceiros distintos,localizados, ou com o coletivo de uma forma geral, adepender das condições encontradas e projetos emcurso.

Destacamos também que a intervenção é, ao mesmotempo que ampla (referindo-se aos possíveis lócus deatuação), específica, pois entendemos ser possível, apartir dos pressupostos da Psicologia Histórico-cultural, delimitar um horizonte para a intervençãopsicológica que a singulariza. Psicólogo comoprofissional da escuta, certamente, como há muitovem sendo demarcado, entendendo escuta tal comoapontado por Paulo Freire (1996, p.135), que significa

Andréa Vieira Zanella

(Zanella, 1997, p.58).

7 Sobre essa questão, videZanella, Balbinot e Pereira, 2000,Zanella, 2000, e outros.

8 Ao falar em relações sociaisproduzidas por sujeitos que alise produzem, demarcamos aconstituição do sujeito, de suascaracterísticas singulares, comoinexoravelmente relacional.Nesse sentido, é via relação comoutros que o eu se produz, sendoao mesmo tempo produtor dessesmuitos outros com os quais serelaciona (discussão maisaprofundada a esse respeitoencontra-se em Zanella, 2000).

9 Discussão a respeito dessaquestão encontra-se em Coimbra,1990.

73

“a disponibilidade permanente por parte do sujeitoque escuta para a abertura à fala do outro, ao gestodo outro, às diferenças do outro”. A aproximaçãodas idéias de Paulo Freire com as contribuições deVygotski aqui apresentadas é possível, segundo Bonin(1999), porque, apesar das diferenças, há váriospontos em comum nas reflexões dos dois autores.

Escuta, porém, é somente um aspecto da atuaçãopsicológica junto a grupos sociais. No nosso entender,essa atuação é mais que isso: vemos o psicólogo comoprofissional que, juntamente com os muitos outroscom os quais trabalha, é responsável pela constituiçãode espaços interpsicológicos em que sentidos possamfluir, emergir, transitar livremente, onde significadoscristalizados sejam problematizados e avaliadosquanto à adequação ao projeto político quecoletivamente empreendem para, em conjunto,estabilizarem outros sentidos. É responsável, portanto,pela criação de espaços de troca, de diálogo, emque o direito à voz para todos seja uma realidade,bem como o reconhecimento de constituírem-secomo agentes da História.

Considerando as contribuições de Vygotski, é possívelcompreender assim a intervenção do psicólogo comoconstituindo “zonas de desenvolvimento proximal”,entendendo-se ZDP como “...espaço interpsicológicoem que os sujeitos em relação estão envolvidos comatividades que demandam colaboração; onde há oembate, a troca, a confrontação ativa e cooperativade diferentes compreensões a respeito de uma dadasituação” (Zanella, 2001, p.112).

Em contextos pedagógicos, onde há umconhecimento reconhecido como científico a sersocializado e apropriado, portanto, um significadoestável, ainda que histórico, a intervenção doprofessor consiste em estabilizar sentidos nas relaçõesdialógicas que se aproximem desse significado (Góes,1997). Na atuação do psicólogo, porém, que buscaa reflexão sobre as próprias relações sociais e o queestas produzem/reproduzem, o elemento balizadordas discussões é outro: o projeto de sociedade esujeitos que norteia as ações naquele contexto.Significados, portanto, nesses espaços,necessariamente precisam ser polemizados.

A especificidade da atuação do psicólogo poderiaainda assim ser questionada, posto que outrosprofissionais atuam nessa mesma perspectiva. Apesarde reconhecer essa possibilidade, continuamosdemarcando a atuação psicológica como singular,dada a questão fundamental que norteia a formaçãodesse profissional e lhe garante especificidade, a saber,a constituição do sujeito, entendida como processoem que, via apropriação das significações produzidase veiculadas nas atividades que engendram, sujeitosem relação se produzem enquanto singulares e, aomesmo tempo, coletivos

7.

“a disponibilidadepermanente porparte do sujeito queescuta para aabertura à fala dooutro, ao gesto dooutro, às diferençasdo outro”.

Paulo Freire

Reflexões sobre a Atuação do(a) Psicólogo(a) em Contextos de Escolarização Formal

Para finalizar, queremos pontuar uma última questão,não menos importante que as já apresentadas. Aocontrário, cremos ser a mais complexa e a quedemanda maiores esforços por parte dos profissionaisda Psicologia: o reconhecimento de que quem fala,o faz a partir de um determinado lugar social, sendoseu discurso ouvido pelos muitos outros através daassunção desse lugar. Essa questão é esclarecida porBakhtin ao se referir à palavra: signo fundamental dacomunicação humana, o que se ouve “...variará sese tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ounão, se esta for inferior ou superior na hierarquiasocial, se estiver ligada ao locutor por laços sociaismais ou menos estreitos (pai, mãe, marido etc.)”(Bakhtin, 1995, p.112).

Depreende-se daí que as relações sociais que opsicólogo de certa forma procura “suspender” como objetivo de serem ressignificadas pelos sujeitos quea produzem e ali se produzem

8, precisam igualmente

ser analisadas sob o prisma das próprias relaçõestravadas com as pessoas com as quais esse psicólogopretende dialogar, isso porque o lugar de técnico,que carrega as marcas da História como foi instituído

9

e vem sendo ocupado, demarca possibilidades elimites para os diálogos. A título de exemplo, é possívelafirmar que posturas que legitimam o saber

psicológico e negam outros saberes, originados emvivências cotidianas, apontam para relações desilenciamento da população com a qual se trabalhae, em conseqüência, obliteram as trocas dialógicas.Por outro lado, negar o lugar social diferenciado queo (a) psicólogo (a) ocupa e os saberes que pode, narelação com essas pessoas, socializar, é outrosilenciamento que precisa ser superado, posto adimensão igualmente domesticadora que veicula:

não mais a hierarquia pelo saber, mas a negação aooutro do acesso aos conhecimentos historicamenteproduzidos que, em razão de sua condição social, pôdeo (a) psicólogo (a) destes se apropriar ou estes produzir.Essas questões apontam, portanto, para a necessidadeimperiosa de o próprio lugar social do profissional daPsicologia e seu discurso constituírem-se igualmentecomo foco necessário de reflexão e crítica.

74

Andréa Vieira Zanella

7

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem: ProblemasFundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. 7

a ed.

São Paulo: HUCITEC, 1995.

BONIN, L. F. R. Educação, Consciência e Cidadania. Em A. F. Silveira, C.Gewehr, L. F. Bonin & Y. L. M. Bulgacov (Orgs.), Cidadania e ParticipaçãoSocial. Porto Alegre: Abrapso Sul, 1999, pp.107-118

COIMBRA, C. A Divisão Social do Trabalho e os Especialismos Técnico-Científicos. Revista do Departamento de Psicologia da UniversidadeFederal Fluminense, 2, nº 2, 1990, pp. 10-16.

DUARTE, N. Vygotski e o Aprender a Aprender: Crítica às ApropriaçõesNeoliberais e pós-Modernas da Teoria Vygotskiana. Campinas: AutoresAssociados, 2000 .

FIGUEIREDO, L. C. W. Wundt e alguns Impasses Permanentes daPsicologia: uma Proposta de Interpretação. Em M. C. Guedes (Org.),História da Psicologia. Série Cadernos PUC-SP. São Paulo: EDUC, 1987,pp. 25-49.

FREIRE, P. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1983.

________. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FREITAS, M. F. Q. Psicologia e Intervenção Comunitária: Quadro Atuale Desafios. Psyche, 8, nº1, 1999, pp. 169-178.

GÓES, M. C. As Relações Intersubjetivas na Construção deConhecimentos. In M. C. Góes & A. L. Smolka (Orgs.), A Significação nosEspaços Educacionais: interação Social e Subjetivação. Campinas:Papirus, 1997, pp. 11-28.

GUARESCHI, P. A. Relações Comunitárias – Relações de Dominação. INR. H. de F. Campos (Org.), Psicologia Social Comunitária: Da Solidariedadeà Autonomia. Petrópolis: Vozes, 1996, pp. 81-99.

GUIMARÃES, A. M. Vigilância, Punição e Depredação Escolar. Campinas:Papirus, 1985.

HARVEY, D. A Condição pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origensda Mudança Cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1989 .

NASCIUTTI, J. C. R. A Instituição como Via de Acesso à Comunidade. INR. H. de F. Campos (Org.), Psicologia Social Comunitária: da Solidariedadeà Autonomia. Petrópolis: Vozes, 1996, pp. 100-126.

PATTO M. H. S. Psicologia e Ideologia: uma Introdução Crítica àPsicologia Escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983

RAMMINGER, T. Psicologia Comunitária X Assistencialismo:Possibilidades e Limites. Psicologia: Ciência e Profissão, 21, n

o 1, 2001,

pp. 42-45.

SARAMAGO, J. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia das Letras,1997,

SMOLKA, A. L. B., GÓES, M. C. & PINO, A. A Constituição do Sujeito:uma Questão Recorrente?. IN J. V. Wertsch, P. Rio & A. Alvares (Orgs.),Estudos Socioculturais da Mente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998,pp. 143-158.

ZANELLA, A. V. & ANTUNES, N. Atuação da Psicologia junto àPopulação de Baixa Renda: Relato de Experiência. Psico, 33, n

o 1, 2002,

pp. 207-222.

ZANELLA, A. V. L. S. Vygotski: o Contexto, Contribuições à Psicologiae o Conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Itajaí: UNIVALI,2001.

ZANELLA A. V. & PEREIRA, R. S. Constituir-se enquanto Grupo: A Açãode Sujeitos na Produção do Coletivo. Estudos de Psicologia, 6, n

o 1,

2001, pp. 105-114.

ZANELLA, A. V. Aproximaciones a la Temática de la ̈ Constitución delSujeito en Vygotski y E. Morin. Psykhe, 9, nº 2, 2000, pp. 75-81.

ZANELLA, A. V., BALBINOT, G. & Pereira, R. S. A Renda que Enreda:Analisando o Processo de Constituir-se Rendeira. Educação e Sociedade,21, nº 71, 2000, pp. 235-252.

ZANRLLA, A. V. O Ensinar e o Aprender a Fazer Renda de Bilro: Estudosobre a Apropriação da Atividade na Perspectiva Histórico-Cultural.Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,São Paulo, 1997.

Recebido 19/09/01 Aprovado 23/03/03

Andréa Vieira ZanellaUFSC-CFH- Psicologia

Campus Trindade CEP.: 88010 970 Florianópolis - SC

E-mail: [email protected]

75

Reflexões sobre a Atuação do(a) Psicólogo(a) em Contextos de Escolarização Formal

Referências