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REFLEXÕES ÉTICAS SOBRE A VIVISSECÇÃO NO BRASIL ETHICAL REFLECTIONS ABOUT VIVISECTION IN BRAZIL Isis Alexandra Pincella Tinoco Mary Lúcia Andrade Correia RESUMO O presente ensaio busca analisar criticamente a Lei nº 11.794/08 à luz dos fundamentos teórico-filosóficos que presidem as diversas posturas éticas (conservadora, bem-estarista e abolicionista) acerca da experimentação animal. Isto porque discussões no campo da Ética e do Direito, referentes à experimentação em animais, têm se tornado cada vez mais constantes e a vivissecção, como meio necessário para obtenção do conhecimento científico, tem sido sumariamente questionada. Neste trabalho serão ainda apresentados o conceito e o histórico desta prática, bem como se fará um paralelo com os demais documentos jurídicos pretéritos e atuais existentes no Brasil relativos ao tema. Pretende-se ao final demonstrar a necessidade de se alterar o paradigma científico, filosófico e cultural atual, buscando-se métodos substitutivos à vivissecção, pois ainda que a legislação brasileira ampare tal prática, a mesma é eticamente injustificável. PALAVRAS-CHAVE: Ética. Vivissecção. Direito dos Animais. ABSTRACT This essay seeks to examine critically the Law nº 11.794/08 on the light of theoretical and philosophical basement governing the various ethical positions on animal experiments, which are the currents conservative, welfarist and abolitionist. This because discussions in the field of the Ethics and the Right, referring to animal testing, have become steadily increasing, and vivisection as a necessary means for obtaining scientific knowledge have been briefly questioned. In this work will be also presented the concept and history of this practice, and will be make a parallel with the other legal documents past and present existing in Brazil on the subject. It is intended to demonstrate, at the end, the need to change the paradigm of scientific, philosophical and cultural current, attempting substitute methods to vivisection, because even though Brazilian law sustain this practice, the same is ethically unjustifiable. KEYWORDS: Ethics. Vivisection. Animals‟ Rights. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6549

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REFLEXÕES ÉTICAS SOBRE A VIVISSECÇÃO NO BRASIL

ETHICAL REFLECTIONS ABOUT VIVISECTION IN BRAZIL

Isis Alexandra Pincella Tinoco

Mary Lúcia Andrade Correia

RESUMO

O presente ensaio busca analisar criticamente a Lei nº 11.794/08 à luz dos fundamentos

teórico-filosóficos que presidem as diversas posturas éticas (conservadora, bem-estarista e

abolicionista) acerca da experimentação animal. Isto porque discussões no campo da Ética e do

Direito, referentes à experimentação em animais, têm se tornado cada vez mais constantes e a

vivissecção, como meio necessário para obtenção do conhecimento científico, tem sido

sumariamente questionada. Neste trabalho serão ainda apresentados o conceito e o histórico desta

prática, bem como se fará um paralelo com os demais documentos jurídicos pretéritos e atuais

existentes no Brasil relativos ao tema. Pretende-se ao final demonstrar a necessidade de se

alterar o paradigma científico, filosófico e cultural atual, buscando-se métodos substitutivos à

vivissecção, pois ainda que a legislação brasileira ampare tal prática, a mesma é eticamente

injustificável.

PALAVRAS-CHAVE: Ética. Vivissecção. Direito dos Animais.

ABSTRACT

This essay seeks to examine critically the Law nº 11.794/08 on the light of theoretical and

philosophical basement governing the various ethical positions on animal experiments, which

are the currents conservative, welfarist and abolitionist. This because discussions in the field

of the Ethics and the Right, referring to animal testing, have become steadily increasing, and

vivisection as a necessary means for obtaining scientific knowledge have been briefly

questioned. In this work will be also presented the concept and history of this practice, and

will be make a parallel with the other legal documents past and present existing in Brazil on

the subject. It is intended to demonstrate, at the end, the need to change the paradigm of

scientific, philosophical and cultural current, attempting substitute methods to vivisection,

because even though Brazilian law sustain this practice, the same is ethically unjustifiable.

KEYWORDS: Ethics. Vivisection. Animals‟ Rights.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6549

INTRODUÇÃO

A utilização de animais vivos em experimentos, seja no âmbito científico ou

acadêmico, é considerada, na visão de muitos, uma prática natural e, para alguns,

indispensável. Contudo, a vivissecção hoje já não é mais um assunto discutido apenas pela

comunidade científica e defensores dos direitos dos animais. Freqüentemente a sociedade

civil tem acesso por meio da mídia, seja ela televisiva, impressa ou virtual, a informações com

relação às práticas de experimentação em animais, e isso traz questionamentos acerca dos

métodos empregados e da real necessidade de tais práticas, demonstrando assim que a ciência,

antes considerada quase como um “dogma” ou uma “verdade incontestável”, não é mais

absoluta. Dentro da própria comunidade científica, há pesquisadores contrários a vivissecção,

havendo também intelectuais de diversas áreas com o mesmo posicionamento.

O papel do ser humano, como detentor do mundo natural e único ser digno de

consideração moral dentre tantas espécies vivas, tem sido questionado, bem como as

alegações de que a experimentação em animais é necessária para assegurar o bem-estar destes

humanos. Será mesmo a vivissecção o único ou o melhor meio para se obter o conhecimento

científico? Será mesmo esta prática necessária e imprescindível? Ainda que as respostas a

estas perguntas sejam afirmativas, há mais uma pergunta a ser feita: será que é ético e justo

submeter à morte bilhões de animais todos os anos em práticas vivisseccionistas de

experimentação e testes para satisfazer “necessidades” humanas?

Com a finalidade de se buscar respostas para estas e tantas outras indagações, se faz

mister estudos no âmbito da bioética (do grego “bios”, vida), ou seja, a ética aplicada a

moralidade da vida e da morte em geral (seja de seres humanos, animais ou vegetais). Para este

ensaio especificamente, espera-se trazer à tona questionamentos éticos no que diz respeito à

consideração moral dos animais, focalizando os animais utilizados para pesquisas científicas.

Apesar da intensa polêmica existente com relação à prática da vivissecção, entrou

em vigor no Brasil em 08 de outubro de 2008 a Lei nº 11.794, também conhecida como Lei

Arouca, estabelecendo novas regras para a criação e utilização de animais em atividades de

ensino e pesquisa científica em todo o País. Para os representantes das principais instituições

científicas do país, a aprovação da lei corrobora com o desenvolvimento da ciência brasileira,

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desenvolvendo a medicina humana e também a medicina veterinária.1 Por outro lado, parte

dos defensores dos animais (especialmente os seguidores da teoria abolicionista), consideram

que a nova lei beneficia apenas a comunidade científica e que o aparente rigor e maior

fiscalização no uso de “cobaias” é mera maquiagem, a qual não trará qualquer benefício aos

animais, que continuarão sendo torturados e mortos nos laboratórios e universidades de todo o

país.

1. CONCEITO E RETROSPECTIVA HISTÓRICA DA VIVISSECÇÃO

A palavra vivissecção (do latim vivu = vivo + seccione = secção), designa a prática

de se realizar intervenções em animais vivos com propósitos científicos, ou em outras

palavras, operação feita em animais vivos para estudos fisiológicos.2 Tal prática tem sua

origem na Grécia antiga através do “pai da medicina”, Hipócrates (500 a.C.), o qual realizava

dissecações (secção e individualização dos elementos anatômicos de um organismo morto)

com finalidade didática. Seguinte a ele, mas ainda na Antiguidade e com o mesmo propósito,

seguiram as práticas de vivissecção com os fisiologistas Alcmaeon (550 a.C.), Herophilus

(300-250 a.C.) e Erasistratus (350-240 a.C.).3

Posteriormente com o advento das religiões judaico-cristãs a exploração dos demais

seres viventes parecia estar legitimada pelos ensinamentos bíblicos, mediante interpretações

(errôneas ou não) as quais colocavam os animais como seres inferiores na escala da criação,

destituídos de alma e com finalidade de servirem aos homens. Eis que foi sedimentada a

concepção antropocêntrica. De acordo com os filósofos Giovanni Reale e Dario Antiseri, “na

Bíblia [...] homem é visto como criatura privilegiada de Deus, feita „à imagem‟ do próprio

Deus e, portanto, dono e senhor de todas as outras coisas criadas por ele”.4 Da mesma forma

assegura o jurista Edis Milaré “A tradição judaico-cristã reforçou esta posição de suposta

supremacia absoluta e incontestável do ser humano sobre todos os demais seres”.5 E ainda à

1 ÉBOLI, Evandro apud SILVA, Tagore Trajano de Almeida. A Lei Arouca: ainda continuamos a realizar

pesquisas com animais. In: Pensata Animal – Revista de Direito dos Animais. Disponível em:

<http://www.pensataanimal.net/artigos/44-tagoretrajano/119-a-lei-arouca-ainda-continuamos>. Acesso em: 09

mar. 2009. 2 LEVAI, Tâmara Bauab. Vítimas da ciência Limites éticos da experimentação animal. 2ªed. São Paulo:

Editora Mantiqueira, 2001, p. 11. 3GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. A Verdadeira Face da Experimentação Animal. (Livro Virtual) Sociedade

Educacional „Fala Bicho‟, 2000, p. 2. Disponível em: < http://www.internichebrasil.org/livro/livro_avfea.pdf>.

Acesso em: 09 mar. 2009. 4REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antigüidade e idade média. 5ªed. São Paulo:

Paulus, 1990, v. 1, p. 380. 5MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5ªed. rev., atual. e ampl. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 98.

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mesma idéia filia-se o Promotor de Justiça Laerte Fernando Levai “A própria visão bíblica, ao

considerar os animais como criaturas brutas e desprovidas de alma ou intelecto, afastou-lhes

da esfera das preocupações morais humanas”. 6

Com o fim da Idade Média, surge então o Renascimento, que manteve o ser humano

no centro das preocupações, sendo este período considerado o alicerce do antropocentrismo

moderno. Portanto “o Paradigma Antropocêntrico sustenta-se em duas características básicas,

ou seja, visa o bem-estar apenas do ser humano, e recomenda a exploração da natureza em seu

benefício”.7 De acordo com os biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz, nos séculos posteriores à

Renascença, a experimentação com animais tornou-se “metodologia padrão de investigação

científica e de ensino da medicina” alicerçada pela filosofia teleológica, a qual sustentava que

todas as coisas existiam para o proveito humano e a vida animal não tinha valor algum. Esses

conceitos foram então “absorvidos pela Igreja Católica e incorporados aos antigos

fundamentos da ciência ocidental”.8

Com o advento do racionalismo moderno, chega-se ao auge da vivissecção no séc.

XVII através das experiências realizadas pelo filósofo e cientista francês René Descartes

(1596-1650), o qual, com base em tais práticas, formula a teoria do animal-máquina. Esta

teoria considerava os animais seres autômatos ou máquinas destituídas de sentimentos,

incapazes, portanto, de experimentar sensações de dor e de prazer. No entender de Descartes,

a natureza agia nos músculos e órgãos dos animais como as molas de um relógio, as quais

faziam com que eles se movimentassem, sem que a vontade ou a razão os conduzisse. O

referido autor ainda afirmava que a linguagem era a prova de que os homens possuíam um

espírito capaz de pensar, sentir e raciocinar, e que mesmo o mais perfeito dentre as espécies

de animais, seria incapaz de realizar tal feito.

[...] pode-se também conhecer a diferença existente entre homens e os animais. Pois

é uma coisa bem notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos,

sem excetuar mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto

diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus

pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal, por mais perfeito e

felizmente engendrado que possa ser, que faça o mesmo. [...] E isso não testemunha apenas que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não

possuem nenhuma razão. [...] É também coisa mui digna de nota que, embora

existam muitos animais que demonstram mais indústria dos que nós em algumas de

suas atividades, vê-se, todavia, que não a demonstram nem um pouco em muitas

6LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. 2ªed. rev., atual e ampl. Campos do Jordão: Editora

Mantiqueira, 2004, p. 18. 7 PRADA, Irvênia Luiza de Santis. Os animais são seres sencientes. In: Instrumento animal: o uso prejudicial

de animais no ensino superior. Org. Thales de A. Tréz. Bauru, SP: Canal 6, 2008, p.17. 8GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op cit. p. 3.

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outras: de modo que aquilo que fazem melhor do que nós não prova que tenham

espírito; pois, por este critério, te-lo-iam (sic) mais do que qualquer de nós e

procederiam melhor em tudo; mas, antes, que não o têm, e que é a natureza que

atua neles segundo a disposição de seus órgãos: assim como um relógio, que é

composto apenas por rodas e molas, pode contar as horas e medir o tempo mais

justamente do que nós, com toda a nossa prudência.9

Assim Descartes declarava que a natureza dos animais era mecânica, sendo

destituídos de alma, razão, linguagem, pensamento e consciência e que os sons que

produziam, muito embora se assemelhassem ao choro, gemido ou grito de dor de um ser

humano, não eram da mesma natureza, assemelhando-se muito mais “[...] a ruídos e sons de

determinados objetos em atrito com outros, por exemplo, às cordas de um violino, que soam

quando sofrem atrito dos fios da cauda de cavalo, do arco que as faz vibrar.”10

Já no séc. XIX, surge o químico francês Gallien, considerado um dos pioneiros na

prática vivissecionista, o qual estudou os efeitos da destruição da medula espinhal, da

perfuração do peito, da secção de nervos e das artérias nos animais os quais utilizava em seus

experimentos, tendo tornado esta prática o método oficial de pesquisa médica. Dentre seus

seguidores está Claude Bernard (1813-1878) o qual afirmava que “faz parte da postura do

cientista a indiferença perante o sofrimento das cobaias”.11

A partir da obra “Introdução à

medicina experimental” de Claude Bernard foram lançadas as bases da moderna

experimentação animal. Seu livro, conhecido como a “bíblia dos vivissectores”, logrou

transformar a fisiologia em um dos intocáveis mitos da ciência médica. Ao repudiar a tese de

que a observação anatômica do doente seria o melhor caminho para a cura, Bernard insistiu na

vivisseção como método analítico de investigação no ser vivo, mediante o auxílio de

instrumentos e processos físico-químicos capazes de isolar determinadas partes do animal. Os

métodos de vivissecção de Claude Bernard inspiraram uma legião de seguidores, no entanto, o

próprio autor reconheceu a fragilidade e a falibilidade dessa prática:

É realmente certo que, para problemas de aplicação imediata à prática médica, as

experiências feitas no homem são sempre as mais concludentes. Nunca ninguém

disse o contrário; somente, como não é permitido pelas leis da moral nem pelas do

Estado realizar no homem experiências imperiosamente exigidas pelo interesse da

ciência, proclamamos bem alto a experimentação em animais [...].12

9DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural

Ltda., 1996, p. 112-113. 10 FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Ed. da

UFSC, 2007, p. 59. 11LEVAI, Tâmara Bauab. Op. cit. p. 26. 12BERNARD, Claude apud LEVAI, Laerte Fernando e DARÓ, Vânia Rall. Experimentação animal: histórico,

implicações éticas e caracterização como crime ambiental. In: Instrumento animal: o uso prejudicial de

animais no ensino superior. Org. Thales de A. Tréz. Bauru, SP: Canal 6, 2008, p. 43.

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Pode-se perceber então que, com o advento do racionalismo e da prática da

vivissecção, os animais não só são considerados diferentes dos seres humanos, mas também

inferiores a estes, sendo rechaçados das considerações éticas e morais, sendo assim justificado

todo tipo de abusos infligidos aos animais até os dias atuais. Nota-se desta forma a

perpetuação da concepção antropocêntrica, como se o homem estivesse à parte da natureza,

ou melhor, acima dela, podendo usufruir, e até mesmo destruir, seus “recursos” ambientais e

seres viventes, de acordo com as suas necessidades e interesses.

2. ANTROPOCENTRISMO X BIOCENTRISMO: MUDANÇAS DE

PARADIGMAS E SUAS IMPLICAÇÕES

Hoje já se sabe, graças ao avanço dos conhecimentos sobre a natureza e os estudos

das ciências, especialmente da biologia e ecologia, que o homem é apenas uma espécie dentre

tantas que integra o universo, através de uma visão holística e interligada. Essa integração

pode ser percebida na medida em que se avalia a que ponto chegou a intervenção antrópica na

natureza, que além de pôr em risco ecossistemas inteiros, extinguir diversas espécies animais

e vegetais, chegou a ameaçar a própria existência humana.

[...] a humanidade alterou a vida na Terra, nos insignificantes 0,000002% do tempo

que está no planeta, mais profundamente do que ela foi alterada em bilhões de anos.

[...] se a história da Terra fosse comparada a um filme com um ano de duração

(apresentando 146 anos por segundo), começando em 1º de janeiro, a vida teria aparecido em março, os organismos multicelulares em novembro, dinossauros em

13 de dezembro, mamíferos em 15 desse mês, Homo sapiens nos 11 minutos finais,

e a civilização humana entraria em cena apenas no último minuto nesse filme

imaginário.13

A partir da constatação de que a sobrevivência humana estava ameaçada em função

destas alterações drásticas no meio ambiente (e após a humanidade sentir diretamente as

conseqüências desta intervenção), passa a surgir uma nova consciência ecológica entre os

anos 60 e 70. A questão ambiental tornou-se um novo fato cultural e movimento político,

gerando uma variedade de linhas de pensamento e ação, todas contendo propostas de um novo

tipo de relação entre os seres humanos e o mundo natural. Uma delas é o ecologismo e,

13 POJMAN, L.P apud NACONECY, Carlos M. Sobre uma Ética da Vida: O Biocentrismo Moral e a Noção

de Bio-Respeito em Ética Ambiental. 2007. 141 f. Dissertação (Doutorado em Filosofia) - Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 6.

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especialmente, a sua vertente biocêntrica, responsável, mais do que qualquer outra, pela

difusão da idéia de direitos da natureza.14

Com a mudança do paradigma antropocêntrico para o biocêntrico, a natureza passa a

ser considerada pelo seu valor “em si” e os animais passam a ser respeitados como seres

sencientes e dignos de consideração moral, não mais vistos sob a ótica utilitarista e capitalista

de meros objetos. O termo senciente (do latim senciens) significa “que sente, que tem

sensações”. Importante salientar que “os animais são seres sencientes porque „sentem‟

sensações e porque são capazes de, cognitivamente, processar os estímulos de maneira a

„convertê-los‟ em sensações.”15

Assim o critério para a consideração moral de um ser-vivo passa a ser a sua

senciência e não mais a sua racionalidade, consciência, linguagem ou mera aparência física.

Não se pode mais justificar decisões e ações que prejudiquem os animais e

favoreçam os humanos, alegando-se que aqueles são destituídos de consciência, e

estes a possuem. Os critérios tradicionais, estabelecidos para traçar a linha divisória

entre interesses que pertencem ao âmbito da moralidade e interesses que não

pertencem, tais como os da consciência e linguagem, considerados isoladamente,

não bastam mais para definir o limite das ações de um agente moral, quando as

mesmas afetam o bem-estar de terceiros, de pacientes morais, mesmo que estes não pertençam à espécie humana. O bem-estar, a integridade física, emocional e

ambiental podendo ser afetados pelas ações de sujeitos morais devem ser levados

em consideração, e não o fato de o indivíduo a ser afetado possuir, ou não, razão,

linguagem, consciência de si ou liberdade. Se assim fosse, incontáveis humanos

ficariam excluídos da consideração moral.16

Convém salientar que não foi apenas nas últimas décadas que vozes insurgiram

trazendo à tona discussões acerca da senciência animal e suas implicações no trato e na

relação de humanos com animais, demonstrando que, apesar do paradigma antropocêntrico ter

sido (e para alguns ainda ser) dominante, o mesmo não era (e tampouco é) unânime. O

filósofo suíço Rousseau (1712-1778) em seu livro “Discurso sobre a origem e os fundamentos

da desigualdade entre os homens”, defendia que aos animais não-humanos, por serem seres

sensíveis, deveria também se estender o Direito Natural, ainda que eles mesmos desconheçam

a existência de tais direitos e que, por este motivo, deveria ser resguardado a eles o direito de

não serem mal-tratados pelas mãos do homem.

14BARBOSA, Lívia Neves de Holanda e DRUMMOND, José Augusto. Os direitos da natureza numa sociedade

relacional: reflexões sobre uma nova ética ambiental. Revista Estudos Históricos, n. 14, 1994. Disponível em:

<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/158.pdf>. Acesso em: 09 mar. 2009. 15 PRADA, Irvênia Luiza de Santis. Op cit. p. 27. 16 FELIPE, Sônia T. Op cit. p. 57-58.

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Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem um filósofo antes de fazer dele

um homem; seus deveres para com o próximo não lhe são unicamente ditados pelas

tardias lições de sabedoria e, enquanto ele não resistir ao impulso interior da

comiseração, jamais há de fazer mal a outro homem nem sequer a nenhum ser

sensível, exceto no caso legítimo em que, estando em jogo sua conservação, é

obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam-se também as

antigas discussões sobre a participação dos animais na lei natural, pois está claro

que, desprovidos de luzes e de liberdade, não podem reconhecer essa lei. Mas,

relacionados de certo modo com nossa natureza pela sensibilidade de que são

dotados, julgar-se-á que também devem participar do direito natural e que o homem

está sujeito a uma certa espécie de deveres para com eles. Parece de fato que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal ao meu semelhante, não é tanto porque ele é um

ser racional quanto porque é um ser sensível; qualidade que, sendo comum ao

animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado

inutilmente pelo outro.17

Contemporâneo de Rousseau, o filósofo francês Voltaire (1694-1778), em sua obra

“Dicionário Filosófico”, se contrapôs diretamente ao pensamento de Descartes: “Que néscio é

afirmar que os animais são máquinas privadas do conhecimento e de sentimento, agindo

sempre de igual modo, e que não aprendem nada, não se aperfeiçoam, etc.!”18

E continua mais

a seguir, fazendo discurso ferrenho contra a referida teoria mecanicista, exemplificando a

experimentação em um cachorro:

Algumas criaturas bárbaras agarram esse cão, que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no numa mesa, dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as

veias mesentéricas. Encontras nele todos os órgãos das sensações que também

existem em ti. Atreve-te agora a argumentar, se és capaz, que a natureza colocou

todos estes instrumentos do sentimento no animal, para que ele não possa sentir?

Dispõe de nervos para manter-se impassível? Que nem te ocorra tão impertinente

contradição da natureza.19

Ressalta-se também a importância para tal mudança de concepção, a partir das

descobertas de Charles Darwin (1809-1882), as quais demonstraram o homem não estar em

um reino distinto, tampouco superior a outros animais. Muito embora haja diferenças nas

faculdades mentais deles, estas não são diferenças essenciais ou específicas, mas sim apenas

uma diferença de grau.20

Porém tal proximidade e semelhança dos humanos com os demais

animais, também possibilitou a extrapolação dos dados obtidos em pesquisas com modelos

17 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 138. 18 VOLTAIRE, [François-Marie Arouet]. Dicionário Filosófico. Trad. Marilena de Souza Chauí. 2ªed. São

Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 96. 19 ____________. Op cit. p. 96. 20 GORDILHO, Heron José de Santana. Darwin e a evolução jurídica:habeas corpus para chimpanzés. In:

Congresso Nacional do CONPEDI, 17, 2008, Brasília. Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI.

Brasília, 2008. Disponível em:<http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/08_701.pdf>. Acesso

em: 10 mar. 2009.

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animais para humanos, dando suporte assim a vivissecção.21

De toda forma, segundo Laerte

Fernando Levai o referido livro:

[...] fez desmoronar crenças e tabus ao mostrar que todos os seres vivos – homens

ou animais – integram a mesma escala evolutiva, possuindo modos peculiares de

exprimir emoções e sentimentos. Tornou-se tal obra o ponto de partida para uma

nova consciência, ensejando as primeiras discussões acadêmicas acerca dos direitos

dos animais.22

Assim, frente a esta nova concepção ética referente aos animais, surge a pergunta:

“Quando experimentos com animais se justificam?” De acordo com Singer a melhor maneira

de responder a esta pergunta, seria com uma segunda pergunta: “os experimentadores

estariam preparados para realizar seus experimentos em um ser humano órfão, com menos de

seis meses de idade, se esta fosse a única maneira de salvar milhares de vidas?” O fato dos

pesquisadores não se sentirem preparados para realizar o experimento em uma criança

humana, mas sentirem o oposto com relação aos animais revela uma forma de discriminação

com base na espécie, por que animais adultos sejam eles primatas, cães, coelhos etc., são mais

conscientes daquilo que ocorre com eles, mais autônomos, e, portanto, até onde podemos

dize, pelo menos tão sensíveis à dor quanto um bebê humano.23

Esse preconceito denomina-se

especismo, neologismo criado por Richard D. Ryder, filósofo e psicólogo clínico do Hospital

Warneford, em Oxford, para descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem

contra as outras espécies (fazendo um paralelo com o racismo). De acordo com Ryder:

[...] Especismo e racismo são ambos formas de preconceito baseados em aparências – se o outro indivíduo parece diferente, considera-se, então, que ele se encontra

além do parâmetro moral. [...] Especismo e racismo (e na verdade sexismo)

ignoram ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e aqueles contra

quem este discrimina e ambas as formas de preconceito revelam indiferença pelos

interesses de outros, e por seu sofrimento. (grifo do autor ). 24

Somada a esta nova concepção ética referente aos animais, estão os argumentos anti-

vivisseccionistas, os quais não estão embasados apenas na filosofia ou no direito natural, mas

também na ciência, que serão vistos a seguir.

3. ARGUMENTOS ANTI-VIVISSECCIONISTAS

Um dos argumentos que os vivisseccionistas mais utilizam é a importância que esta

prática teve para a descoberta e cura de diversas doenças que assolaram a humanidade até

21 PRADA, Irvênia Luiza de Santis. Op cit. p. 20. 22 LEVAI, Laerte Fernando. Op cit. p.20-21. 23 SINGER, Peter. Libertação animal. Trad. Marly Winckler. Porto Alegre: Lugano, 2004, p. 90. 24 RYDER, Richard D. apud FELIPE, Sônia T. Op cit. p.192.

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hoje. De fato, isso é inegável! Mas será que já não está na hora de “rever” esses conceitos?

Será que em tantos séculos, com o avanço do conhecimento que foi adquirido, ainda é

necessário continuar infligindo sofrimento e tirando tantas vidas de animais, repetindo este

método? Para o biólogo e doutor em filosofia, João Epifânio Régis Lima, a experimentação

em animais é apenas um método de pesquisa e não o método de pesquisa. “Já que o homem é

uma criatura inteligente, deveria buscar métodos outros de investigação hábeis a livrar os

animais dos tormentos que lhes são infligidos nos laboratórios”.25

Bernhard Rambeck (1946),

diretor do Departamento Bioquímico da Sociedade de pesquisa em Epilepsia, Bielefeld,

Alemanha, e membro desde 1987 da Associação Alemã de Médicos contra a Experimentação

Animal, por sua vez, diz ser um mito a afirmação de que a pesquisa médica só é possível por

meio da vivissecção. Segundo ele, “experimentos in vitro tem sido levados a efeito [...] com

culturas celulares, microorganismos, etc., cujos resultados superam de longe as provas

fornecidas pelas experiências em animais.26

Pietro Croce, anátomo-patologista e livre-docente

da Universidade de Milão, integrante do movimento do antivivisseccionismo científico na

Itália e membro do Comitato Scientifico Antivivisezionista, critica o reducionismo da ciência à

experimentação, bem como considera um erro metodológico utilizar animais como modelos:

Fala-se tanto de „experimentação‟: experimentação no animal, experimentação nos

voluntários sãos, experimentação nos doentes. Mas a essa altura surge uma questão:

seria a medicina essencialmente uma ciência experimental? E se não for assim, o

que é então a medicina? A medicina é essencialmente ciência da observação, na

qual a experimentação ocupa somente uma parte menor da investigação médica.

Mas aquela „parte menor‟ foi contaminada por um enorme erro grosseiro: aquele de

haver adotado os animais como modelos experimentais do homem. 27

Vale salientar que os progressos da ciência médica foram atribuídos unicamente às

vivissecções, esquecendo-se dos fatores sociais e higiênicos que intervieram nesse meio

tempo. Estudos realizados na Europa e Estados Unidos indicam que noventa por cento dos

fatores que determinaram a longevidade de uma pessoa devem-se ao estilo de vida, ao meio

ambiente e à hereditariedade e só dez por cento dependeriam da assistência médica.28

Tal

argumento também é levantado por Bernhard Rambeck, o qual aduz que “[...] o aumento da

expectativa de vida deve-se principalmente, ao declínio das doenças infecciosas e à

conseqüente diminuição da mortalidade infantil”.29

Ainda segundo o autor, as causas desse

declínio foram: melhores condições de saneamento, melhor alimentação e tomada de

25 LIMA, João Epifânio Régis apud LEVAI, Tâmara Bauab. Op. cit. p. 37. 26 FELIPE, Sônia T. Op cit. p.105. 27CROCE, Pietro apud LEVAI, Laerte Fernando e DARÓ, Vânia Rall. Op cit. p. 52. 28 VERGARA, Rodrigo. A fronteira tênue entre ciência e crueldade na rotina dos laboratórios esquenta no

mundo todo o debate sobre a vivissecção. Revista super interessante. São Paulo, ano 12, n. 74, 2001, p. 81. 29 FELIPE, Sônia T. Op cit. p.105.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6558

consciência em relação à higiene. Desta forma, não se pode atribuir tal benefício à introdução

constante de novos medicamentos e vacinas.

Em geral os vivisseccionistas também costumam formular o mesmo discurso

indagativo: “Se não testarmos remédios em animais, se não fizermos experiências com esses

seres, como poderemos acabar com as doenças que assolam a humanidade?” Cientistas

contrários a tal prática, consideram que inúmeras experiências com animais são

desnecessárias e repetidas, supérfluas e destituídas de sentido. Causam a estes animais

extrema dor e sofrimento tanto físico quanto psicológico, em função do confinamento, do

medo, da ausência de afeto, etc, com o propósito de demonstrar o óbvio. Deve-se esclarecer,

também, que muitos dos experimentos são feitos por motivos fúteis e torpes, como aqueles

em que animais são cegados para a produção de xampus, batons e canetas, ou aqueles em que

são utilizados em testes de colisão pelas indústrias automobilísticas. Outros tipos de

experimentos que evidenciam a não preocupação com o bem-estar da humanidade são aqueles

realizados pela indústria de armamentos, que incluem testes de radiação, testes com gases

letais, testes biológicos, balísticos (onde animais servem de alvo) e provas de explosão, com

cobaias expostas ao efeito de bombas.30

Bernhard Rambeck defende que, insistir no modelo animal para buscar a cura de

doenças que assolam os humanos, traz na verdade o efeito oposto, dando o exemplo do que

ocorre ainda com a pesquisa da AIDS - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Acquired

Immune Deficiency Syndrome). Isto porque tal pesquisa está assentada na experimentação

animal e, até o momento, segundo o referido autor, não houve progresso, pois o mesmo

somente poderá ser alcançado, a partir da epidemiologia e observação clínica dos doentes.31

A

bióloga Tâmara Bauab Levai salienta que na ânsia de se buscar a cura para a AIDS através da

vivisseção de animais, já martirizou milhões de macacos, sem serem obtidas até o momento,

soluções que não apenas paliativas.32

Inclusive o primeiro norte-americano a isolar o HIV

(vírus da AIDS) Robert Gallo disse que uma potencial vacina desenvolvida pelo cientista

francês Daniel Zagury mostrou-se mais eficaz em estimular a produção de anticorpos ao HIV

em seres humanos do que em animais acrescentando ainda que “os resultados em chimpanzés

não foram muito animadores... Talvez devêssemos realizar testes em pessoas de forma mais

30 GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op cit. p. 11. 31 FELIPE, Sônia T. Op cit. p.106. 32 LEVAI, Tâmara Bauab. Op. cit. p. 22.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6559

contundente”.33

Segundo Peter Singer, soropositivos endossaram o apelo, a exemplo do

pedido feito pelo ativista gay Larry Kramer, o qual desejava que os soropositivos fossem

cobaias, desde que o fossem voluntariamente, havendo o cuidado de evitar que sofressem

coação ou pressão para participar de um experimento.34

O mesmo ocorrido com pesquisas

sobre a AIDS aplica-se às pesquisas sobre o câncer. Linus Pauling (1901-1994) químico

americano PhD, por duas vezes ganhador do Prêmio Nobel em 1954 e 1962, no ano de 1986

denunciou como fraudulenta qualquer pesquisa com modelo animal para a cura do câncer.35

Segundo estatísticas, na Suíça, a incidência de câncer na população entre os anos de 1931 e

1978 aumentou 132%; nos EUA no período de 1971 a 1981 aumentou 27% (diante do

crescimento demográfico de 1%) e na Itália a mortabilidade por câncer elevou-se a 130% de

1940 a 1969 (com aumento populacional de 27%)36

, confirmando mais uma vez o erro

metodológico em se buscar a cura para tais doenças em modelos animais.

De acordo com o movimento do antivivisseccionismo científico, a experimentação

animal, em função da tortura infligida aos animais (os quais são criaturas sencientes), não

ofende só a moral, como também prejudica a saúde humana. Formado, especialmente por

médicos (dentre eles o já citado Pietro Croce), esse grupo demonstra que a experimentação

animal baseia-se em um erro metodológico, que é o de querer transferir os resultados de

experiências com uma espécie animal para outra diversa, no caso a espécie humana.37

A

mesma tese defende Dr. G.H.Walker, médico do Royal Hospital e Children's Hospital em

Sunderland, Inglaterra, que afirmou: “Estou convicto de que o estudo da fisiologia humana

através da experimentação animal é o erro mais grotesco e fantástico até hoje cometido pela

atividade intelectual humana”38

. O cientista Dr. Roberto Mendelsohn, professor de medicina

preventiva na Universidade de Illinois, é ainda mais enfático na crítica aos experimentos com

animais:

[...] Não se pode extrapolar resultados obtidos de pesquisas em animais nos

humanos, e todo bom cientista sabe disso [...] Enquanto cientista, devo me opor à

charlatanice; uma vez que os experimentos em animais não têm validade e levam a

medicina à charlatanice, devo opor-me aos experimentos em animais.39

33 SINGER, Peter. Op cit. p. 99. 34 ____________. Op cit. p. 100. 35 FELIPE, Sônia T. Op cit. p. 103. 36 LEVAI, Tâmara Bauab. Op. cit. p. 22. 37 LEVAI, Laerte Fernando e DARÓ, Vânia Rall. Op cit. p. 51. 38 GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op.cit. p. 40. 39 MENDELSOHN, Roberto apud FELIPE, Sônia T. Op cit. p. 102.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6560

Percebe-se também a verdade na alegação dos cientistas relatados acima, ao se

verificar a retirada anual do mercado de centenas de produtos previamente testados em

animais por absoluta ineficácia ao que se propõem, ou o que é pior, pelo aparecimento de

reações adversas nos humanos, as quais não foram observadas durante os referidos testes

realizados em animais. De acordo com estimativas da Associação Médica Americana, a cada

ano, dois milhões de pessoas contraem doenças e outras cento e seis mil morrem devido a

efeitos colaterais de medicamentos, sendo esta a quarta causa de óbitos nos Estados Unidos.

No Brasil, quinto país do mundo em consumo de medicamentos, a Fundação Oswaldo Cruz

estima em vinte e quatro mil o número de mortes anuais por intoxicação medicamentosa.40

Outros fatores que contribuem para a ineficácia na verificação de reações adversas

destas drogas, além das diferenças entre organismos dos humanos e dos animais, consistem

no fato de que os animais não podem descrever efeitos colaterais não evidenciados

externamente, bem como se cita que o tempo de observação da exposição de seus organismos

a essas drogas é muito curto, visto que os efeitos desta (ou os desdobramentos de seus efeitos

colaterais) podem durar anos no organismo. Assim compreende-se que “[...] não é por ter sido

testada em animais que uma droga oferece garantias absolutas para ser ingerida por indivíduos

humanos”.41

Um exemplo muito conhecido de medicamento previamente testado em animais,

que gerou efeitos catastróficos quando usado por humanos, foi a Talidomida. Trata-se de uma

droga usada contra insônia e náuseas, segura para uso em animais, mas que nos humanos

matou mais de três mil fetos humanos e gerou defeitos congênitos em mais de dez mil

outros.42

Vivissectores costumam atribuir como fatalidade o caso da Talidomida e

argumentam que este “único desastre” não invalida a totalidade das boas descobertas,

contudo, como demonstrado no parágrafo supra, não se trata de um caso isolado. Portanto, o

prévio teste em animais gera uma falsa segurança aos consumidores de medicamentos, bem

como gera uma “segurança jurídica” aos laboratórios, que poderão alegar em sua defesa que

todos os seus produtos seguiram exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária –

ANVISA, tendo sido realizados os testes pré-clínicos antes de terem sido postos a venda no

mercado.

Da mesma forma, Stefano Cagno, dirigente médico da Empresa Hospitalar de

Vimercate (Milão-Itália), membro do Comitato Scientifico Antivivisezionista, afirma que do

40 MORAIS, Jomar. A medicina doente. Revista super interessante, São Paulo, ano 12, n. 74, p. 48, 2001. 41 FELIPE, Sônia T. Op cit. p. 96. 42 GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op.cit. p. 35.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6561

ponto de vista ético não existe nenhuma justificativa hábil a redimir o massacre legalizado

feito pela vivissecção. Segundo o referido médico, um dos maiores malefícios da

experimentação animal é o de fazer com que uma descoberta biomédica só seja acreditada

pela medicina oficial, depois de o experimento também ter um resultado positivo sobre os

animais. Esse erro metodológico fez com que os efeitos danosos do álcool, do fumo, do

amianto, do metanol, etc., cujos resultados já tinham sido diagnosticados no homem, mas não

podiam, entretanto, ser reproduzidos nos animais, não pudessem ser considerados

“cientificamente provados” por muitos anos, com grave prejuízo para a saúde humana.43

Argumentam, ainda, os vivisseccionistas, a fim de sustentar a validade científica da

vivissecção, que a lei impõe tal prática, no caso das pesquisas farmacológicas e toxicológicas.

Apesar de verdadeiro, essa situação pode ser mudada se o universo acadêmico e científico se

opuser a essa prática, o que poderá acarretar uma mudança das normas, concomitantemente à

adoção de métodos substitutivos de pesquisa. Isto porque as mudanças na cultura jurídica

dizem respeito também ao processo de formação acadêmica dos operadores do Direito,

“especialmente no que se refere ao enfoque filosófico predominante nas universidades.”44

Por fim, vale ressaltar que a experimentação animal é um dos negócios mais lucrativos do

mundo, envolvendo a construção, instalação e manutenção de laboratórios, fabricantes de aparelhos de

contenção, de gaiolas e de rações, fornecedores de animais, fundações de pesquisas que angariam

fundos, manutenção de conselhos de pesquisas nacionais e a remuneração dos cientistas.45

O xenotransplante (transplantar órgãos de uma espécie animal para outra) é uma

outra questão que envolve, além de questões técnicas e éticas, os interesses de

indústrias farmacêuticas e de biotecnologia. Estas empresas argumentam que não

existem órgãos humanos suficientes para transplantes. Os xenotransplantes estão se

tornando a „galinha dos ovos de ouro‟ para muitos setores biomédicos. Enormes

quantidades de dinheiro estão sendo aplicadas no desenvolvimento deste tipo de transplante, de imunossupressores, etc., quando campanhas sérias de doação e,

principalmente, prevenção, poderiam ser realizadas.46

4. LEGISLAÇÃO REFERENTE AOS DIREITOS DOS ANIMAIS NO BRASIL

Os maus-tratos infligidos aos animais em experimentações e a intensificação da

prática da vivissecção a partir da segunda metade do século XX, causaram comoção e

protestos em todo o mundo, especialmente após a publicação em 1975, da primeira edição do

43LEVAI, Laerte Fernando e DARÓ, Vânia Rall. Op cit. p. 52. 44 LOPES, José Reinaldo de Lima. apud GORDILHO, Heron José de Santana. Op cit. p. 1587. 45 GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op cit. p. 2. 46 _____________. Op cit. p.6.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6562

livro “Libertação animal”, do filósofo australiano Peter Singer, o que fez com que o exercício

da vivissecção, como atividade profissional, viesse a sofrer algumas indagações éticas. O uso

de animais passou a ser alvo de duras críticas de entidades protetoras dos animais e de vários

segmentos da sociedade civil, o que impeliu o legislador, em vários países, a se preocupar

com o tema e discipliná-lo em leis, além do que já havia sido disciplinado com a edição de

atos normativos e normas administrativas.47

Com relação ao Brasil, durante o período colonial, inexistiam no país quaisquer leis

de proteção aos animais, e, dada às circunstâncias históricas de exploração do Brasil por

Portugal, não se poderia esperar algo muito diferente disto. O primeiro documento jurídico de

proteção aos animais que se tem notícia no Brasil data de 06 de outubro de 1886, que foi

Código de Posturas do município de São Paulo, época em que coincidentemente ou não,

estava sendo aos poucos abolida a escravidão no Brasil. No referido Código, em seu artigo

220, proibia os cocheiros, ferradores ou condutores de veículo de tração animal, a maltratá-los

com castigos bárbaros e imoderados. No dizer de Laerte Fernando Levai:

É certo que ao longo de mais de quatro séculos, no Brasil, estiveram os animais à

margem da lei. As espécies selvagens, consideradas coisa de ninguém (res nullius),

ficavam sujeitas á caça ou à apropriação particular. Não menos pior era a situação

dos animais domésticos, vítimas constantes de abusos e crueldades, sem qualquer

amparo jurídico.48

Outras legislações que tratavam da fauna se sucederam como Código Civil de 1916,

Decreto nº 16.590/24 e o antigo Código de Pesca, mas seu exame torna-se desnecessário para

a finalidade deste trabalho, que visa analisar as leis que possam ter relação direta ou indireta

com a prática da vivissecção.

Eis que, durante o governo de Getúlio Vargas, fora promulgado o Decreto nº

24.645/34, que estabelecia medidas de proteção aos animais. Em seu artigo 3º, são definidas

condutas tipificadas como maus-tratos, que incluem além de crueldade, violência e trabalhos

excessivos, a manutenção do animal em condições anti-higiênicas, o abandono e em seu

artigo oitavo consta:

a) A experimentação animal, que implica em um sofrimento físico e psíquico, é

incompatível com os direitos do animal, quer seja uma experiência médica,

científica, comercial ou qualquer outra.

b) As técnicas substitutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas.

47 LEVAI, Tâmara Bauab. Op. cit. p. 55-56. 48 LEVAI, Laerte Fernando. Op. cit. p. 30.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6563

Percebe-se então a preocupação em proteger os animais usados nas experiências e a

necessidade de buscar-se métodos substitutivos a tais práticas. Instituía multa sem prejudicar

a responsabilidade civil, que poderia advir dos maus-tratos infligidos. Outro avanço ocorreu

em seu artigo 17, que assim dispôs: “Art. 17 - A palavra animal, da presente Lei, compreende

todo ser irracional, quadrúpede, ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos.”

Note-se, que o referido Decreto protegia animais inclusive de maus tratos que sobreviessem

de seus donos, colocando assim a vida e os direitos dos animais acima do direito de

propriedade.

Há controvérsias acerca da revogação deste Decreto; alguns aduzem que o Decreto

nº 11/91, o qual aprovou a estrutura do Ministério da Justiça, dentre outras providências, o

teria revogado. Contudo defende-se que este decreto ainda está válido uma vez que este é

equiparado à lei (em função de sua edição ter ocorrido em período de excepcionalidade

política, onde a atividade legislativa havia sido avocada pelo Executivo), assim sendo, apenas

com advento de uma lei posterior é que este Decreto seria revogado, ou seja, o Decreto nº

11/91 não poderia tê-lo revogado. Além desta impossibilidade, o Decreto nº11/91 fora

revogado pelo Decreto nº761/93. Segundo João Marcos Adede y Castro “seria realmente

lamentável que, tal instrumento, tão rico em detalhes e tão representativo de uma preocupação

de proteção dos animais, fosse considerado revogado sem que outro o substituísse”. 49

As

condutas nele descritas hoje seriam consideradas como crimes ambientais, contudo a

importância que se dá ao referido decreto é o fato dele considerar o animal individualmente

como sendo destinatário da tutela jurídica.50

Em 1941 entra em vigor a Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº. 3688/41),

a qual estabelecia no seu art. 64, § 1º, penalidade de prisão simples, de dez dias a um mês, ou

multa, de cem a quinhentos mil réis para todo aquele “que, embora para fins didáticos ou

científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em

animal vivo”. Porém todas essas vedações da lei só eram passíveis de punição no campo

penal, como contravenção, não havendo uma regulamentação para sua autorização ou

49 CASTRO, João Marcos Adede y. Direito dos animais na legislação brasileira. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2006, p. 71. 50 LEVAI, Laerte Fernando. Op. cit. p. 31.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6564

fiscalização.51

Outro ponto a ser destacado é o fato de tais experiências serem proibidas

apenas se realizadas em local público ou exposto ao público, sendo a lei omissa às práticas

realizadas no interior de laboratórios e universidades.

Fazendo um salto no tempo, em 1979 entra em vigor a Lei nº 6.638 que trata

especificamente do tema vivissecção, (a qual foi substituída pela Lei nº 11.794/08), contudo

esta lei não foi regulamentada e possuía poucos artigos auto-aplicáveis. As limitações de

caráter ético a tais práticas, encontram-se no art. 3º da referida lei, que serão mais detalhadas

no próximo subcapítulo.

Posteriormente, em 1988, a proteção jurídica dos animais passou a ter status

constitucional com a promulgação da atual Constituição Federal. De acordo com Laerte

Fernando Levai, a legislação ambiental brasileira é considerada como uma das mais

avançadas do mundo, estando o fundamento jurídico para proteção da fauna esculpido na

própria Constituição. Em seu artigo 225, § 1º, inciso VII restou proibida qualquer prática

cruel contra animais, e tal artigo felizmente fora incorporado a diversas Constituições

Estaduais.52

E finalmente em 1998 entra em vigor a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98),

que reordena a legislação ambiental brasileira no que se refere às infrações e punições. Esta

lei, que possui oitenta e dois artigos, em seu Capítulo V, Seção I, reservou nove artigos que

constituem tipos específicos de crimes contra a fauna (artigo 29 ao 37). Uma grande inovação

foi a responsabilidade da pessoa jurídica como autora ou co-autora da infração ambiental,

ficando sujeita a penalização. Outra importante inovação foi a abrangência dos animais

domésticos e domesticados, em seu artigo 32, o qual transformou as antigas contravenções

(artigo 64 do Decreto-lei nº3688/41), em crimes. Inclusive o referido artigo 32, em seu § 1º,

tipifica como crime ambiental a realização de experiência dolorosa ou cruel em animal vivo,

ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

Ora, recursos alternativos sabe-se que já existem, a exemplo dos diversos métodos

citados ao longo de todo o livro intitulado “Alternativas ao uso de animais vivos na educação

pela ciência responsável”, de autoria do biólogo Sérgio Greif, dos métodos citados no terceiro

capítulo do livro “A verdadeira face da experimentação animal”, também de autoria de Sérgio

51DIAS, Edna Cardozo. Experimentos com animais na legislação brasileira. Disponível em:

<http://www.direitoanimal.org/leis_resu.php?ord=13>. Acesso em: 12 mar. 2009. 52 LEVAI, Laerte Fernando. Op. cit. p. 31.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6565

Greif juntamente com o biólogo Thales Tréz e ainda outros tantos disponibilizados pelo site

da InterNICHE Brasil53

, sem que nestes se esgotem as possibilidades. Nas palavras do Dr.

Stefano Cagno, médico cirurgião italiano e antivivisseccionista “É importante colocar que se

fosse investido mais dinheiro para métodos substitutivos da vivissecção, existiriam até muito

mais possibilidades válidas.”54

No Brasil, a pesquisa vivisseccionista é uma das mais bem financiadas, e pode-se

observar um fenômeno típico: ao passo que muitos alunos de pós-graduação se vêem privados de financiamento dos órgãos públicos, os biotérios das instituições

são submetidos a reformas milionárias. Não há segredo que todo este dinheiro

provém de verbas públicas, geradas pelo pagamento de impostos da população, no

entanto, poucos cidadãos têm conhecimento do que é realizado às suas custas nas

instituições, e de quem estas pesquisas visam realmente beneficiar. É difícil,

entretanto, avaliar com exatidão quanto dinheiro é gasto com a experimentação

animal, parte devido ao caráter confidencial das pesquisas, e parte porque o

financiamento provém de agências variadas. 55

4.1 Considerações sobre a Lei 6.638/79 e a Lei 11.794/08

Como foi visto no capítulo supra, percebe-se que existe uma vasta legislação no

Brasil que visa proteger os animais da crueldade, inclusive havendo proteção constitucional,

bem como lei específica que trata do tema vivissecção, (antes a Lei nº 6.638/79, revogada pela

Lei nº 11.794/08). Porém, com relação a leis brasileiras em geral, algumas acabam por não

serem eficazes pela dificuldade de sua fiscalização e, com relação à Lei nº 6.638/79, não é

difícil de se imaginar a dificuldade de se fiscalizar o seu cumprimento, especialmente no

interior dos laboratórios. Tal atribuição é conferida aos Comitês de Ética no Uso de Animais -

CEUA, órgãos que deveriam existir em cada instituição que faça uso de animais para

experimentação. Segundo o biólogo Sérgio Greif, esses comitês, na prática, não têm o

propósito de fiscalizar ou regular experimentos com animais, mas apenas subsidiar o

pesquisador com um aval, certificando que todos os procedimentos realizados foram

conduzidos de forma ética56

. Nas palavras da veterinária e doutora em zootecnia, Danielle

Maria Azevêdo, "No Brasil, no entanto, muitos pesquisadores ainda desconhecem a existência

de Comitês de Ética em Pesquisa com Uso de Animais, que realmente ainda são em número

incipiente".57

53 Vide http://www.internichebrasil.org 54 CAGNO, Stefano apud GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op cit. p.16. 55 GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op cit. p. 8. 56 GREIF, Sérgio. Alternativas ao uso de animais vivos na educação pela ciência responsável. São Paulo:

Instituto Nina Rosa, 2003, p. 19-20. 57 AZEVÊDO, Danielle Maria Machado R. Experimentação animal: aspectos bioéticos e normativos.

Disponível em: <http://www.portalbioetica.com.br/artigos/Danielle11.07.06.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2009.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6566

Os vivissectores mantêm o discurso de que os (poucos) Comitês de Ética no Uso de

Animais existentes são eficientes, a exemplo do pesquisador da Fiocruz - Fundação Oswaldo

Cruz, Renato Sérgio Cordeiro, o qual aduz que, para que as pesquisas com cobaias sejam

aprovadas e desenvolvidas, o pesquisador tem que submeter seus protocolos e projetos a

rígidos processos de análise dos Comitês de Ética no Uso de Animais. Segundo o referido

autor “esses colegiados têm princípios básicos bem explicitados, verdadeiros dogmas, que

dizem que a dor e o sofrimento desnecessários são inaceitáveis.”58

Será mesmo que existem esses “rígidos processos de análise” dos Comitês de Ética

no Uso de Animais? Segundo o filósofo Tom Regan, o critério utilizado por esses comitês é a

sorte! De acordo com ele, um estudo publicado em 2001 no periódico Science comprovou que

propostas foram aceitas por um comitê (nos EUA existem os IACUCs – Institucional Animal

Care and Use Committes) e rejeitadas por outro, não dando assim, real credibilidade às

revisões destes comitês. Nas palavras de Regan “Para os animais, tudo depende de eles

estarem ou não no lugar errado, no momento errado. Se estiverem então „cara‟, a pesquisa

ganha; „coroa‟, os animais perdem.”59

Outro trecho do discurso do pesquisador da Fiocruz a

ser questionado é: “a dor e o sofrimento desnecessários são inaceitáveis” (grifo nosso). Desde

quando o sofrimento é algo necessário? A única possibilidade aceita eticamente, seria o de se

violar temporariamente a integridade física do animal, quando essa dor se fizer necessária

para lhes devolver o bem-estar, ou mesmo para garantir sua vida.60

Exemplifica-se na hipótese

de se utilizar este animal, numa experiência em que se busca a cura para sua doença pré-

existente, neste caso seria justificável eticamente. Mas o mesmo não se aplica no caso de um

animal saudável, no qual se introduz determinada doença, com a finalidade de trazer (quem

sabe) algum benefício aos humanos exclusivamente. Isto porque um dos princípios da ética é

o da não-maleficiência, e assim sendo, só seria aceitável infligir dor, para atender um interesse

maior do próprio ser que a sofre. Em outras palavras os benefícios desta intervenção, para o

ser que a sofre, devem ser maiores que o mal ou sofrimento, a ele causado.

Fazendo agora um paralelo entre a Lei 6.638/79 e a recém-aprovada Lei nº

11.794/08 (que substitui a primeira), muitos pontos controversos são levantados. A antiga lei

só permitia a prática da vivissecção em instituições de ensino superior. Já na Lei nº 11.794/08

58 CORDEIRO, Renato Sérgio Balão. Reflexões sobre o uso de animais de laboratório. Disponível em:

<http://www.ufmg.br/boletim/bol1595/2.shtml>. Acesso em: 12 mar. 2009. 59 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio do direito dos animais. Trad. Regina Rheda. Porto

Alegre: Lugano, 2006, p. 217. 60 FELIPE, Sônia T. Op cit. p. 318.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6567

permitiu-se a vivissecção em estabelecimentos de ensino técnico de segundo grau da área

biomédica. De acordo com o entendimento da advogada Geuza Leitão, tal mudança “significa

um retrocesso moral e científico, tendo em vista que a experimentação animal no ensino já foi

proibida em vários países” 61

Ora, se o intuito do legislador, em tese, com o advento desta

nova lei, foi aplicar o conhecido princípio dos 3R´s (replacement, reduction e refinement)62

,

ao permitir a vivissecção em ensino técnico de segundo grau (prática antes proibida pela Lei

6.638/79), está sendo feito justamente o oposto, ou seja, a quantidade destas práticas agora

tende a aumentar e não reduzir.

Outra falácia que tem sido divulgada, é que a Lei nº 11.794/08 visa minimizar o

sofrimento das cobaias, conforme pode ser visto na notícia veiculada no site do senado, ao se

referir à aprovação do correspondente Projeto de Lei, pela Comissão de Constituição, Justiça

e Cidadania.63

Se esta lei de fato minimizasse o sofrimento de animais, mais do que a

legislação anterior já prescrevia, ela reforçaria o uso de métodos substitutivos à vivissecção.

Porém, o assunto somente é tratado uma única vez, numa lei bastante extensa, e ainda assim,

sob o termo “técnicas alternativas”, ao invés de técnicas ou métodos substitutivos.

Inicialmente pode-se pensar que tais termos são sinônimos, contudo, as palavras diferem entre

si, podendo ensejar em interpretação que não favorecerá a eliminação ou diminuição das

experimentações em animais. Por “alternativa” tem-se a opção entre duas coisas, ou seja, o

cientista escolhe se deseja utilizar um novo método ou a vivissecção. Substituição, porém

significa pôr uma coisa em lugar de outra, ou seja, significa neste caso, verdadeiramente

substituir o modelo animal por outro método científico, mas tal termo não é citado na Lei nº

11.794/08. Aliado a este fato, outra crítica se faz, pois, quando aparece na referida lei, o

termo “técnicas alternativas”, este não se refere a investir em alternativas, mas em controlar

alternativas. Para melhor compreensão, transcreve-se o artigo 5º da Lei nº 11.794/08: “Art. 5º

Compete ao Concea: [...] III - monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que

substituam a utilização de animais em ensino e pesquisa.” Tal redação da lei traz o

61 LEITÃO, Geuza. Lei Arouca. Disponível em: <http://www.olaonline.com.br/arquivos/texto_geuza.doc>. Acesso em: 12 mar. 2009. 62 O principio dos 3R´s foi divulgado em 1959 por W.M.S. Russel e R.L. Burch, no livro intitulado “The

Principle of Humane Experimental Technique” o qual refere-se às siglas de três palavras em inglês:

Substituição (Replacement) de animais vertebrados vivos e conscientes por qualquer método científico que

empregue material sem sensibilidade; Redução (Reduction) do número de animais usados para se obter a

informação de uma amostra com precisão; e Refinamento (Refinement) dos procedimentos desumanos

aplicados àqueles animais que devem ser usados. 63 Vide <http://www.senado.gov.br/agencia/verNoticia.aspx?codNoticia=77280&codAplicativo=2>. Acesso em:

12 mar. 2009.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6568

questionamento se, de fato, o legislador pretendia que a prática da vivissecção fosse

diminuída e substituída conforme o Princípio dos 3R´s (replacement, reduction e refinement).

Apensado ao Projeto de Lei nº 1.153/95 o qual ensejou na aprovação da Lei nº

11.794/08, tramitava o Projeto de Lei nº 1691/03 elaborado pela deputada Iara Bernardi -

PT/SP, o qual também dispunha sobre o uso de animais para fins científicos e didáticos. O

referido PL nº 1691/03 parecia ter menos contradições em seu texto que o PL nº 1.153/95,

contudo seu apensamento, infelizmente em nada contribuiu para a melhoria na redação da Lei

nº 11.794/08. O PL nº 1691/03, por exemplo, estabelecia a escusa de consciência64

à

experimentação animal, instrumento importantíssimo para os estudantes que não desejam

participar de práticas de vivissecção e que tem sido utilizado, já havendo decisões judiciais

favoráveis.65

Porém, a escusa de consciência não foi recepcionada pela Lei Arouca (Lei nº

11.794/08).

Dispunha ainda o PL nº 1691/03 que, para fins didáticos, somente poderiam ser

utilizados animais que tivessem morte natural, ou que estivessem realmente necessitando da

intervenção cirúrgica a ser demonstrada. Eis aqui outra importante inovação, que inclusive

pactua com fundamentos éticos já colocados anteriormente (sob os quais se justificaria a

experimentação no animal) que infelizmente também não foi recepcionada pela Lei nº

11.794/08.

A questão do uso de cobaias para fins didáticos, inclusive, é também muito delicada.

Defensores da prática argumentam que, pelo conhecimento adquirido, os estudantes

aprendem a preservar a vida. Porém, ao serem induzidos a “matar para salvar”, ou

“desrespeitar para respeitar”, estes são expostos a contradições e ao realizarem a tarefa

por imposição (como ocorre na maioria das vezes), abrem mão de princípios éticos de

não-violência adquiridos anteriormente e/ou minimizam suas condições emocionais, o que

gera uma dessensibilização estudantil, definida por Alice Heim como uma diminuição da

sensibilidade devido à familiaridade. Uma pessoa insensível é alguém indiferente ao

64 Comportamento individual e não violento de rechaço ao cumprimento de dever legal por motivo de

consciência, com intenção imediata de alcançar isenção pessoal, a qual pode, ou não, vir a ser reconhecida pela

ordem jurídica mediante a conciliação das normas jurídicas em conflito. 65 Vide Ação Ordinária nº 2007.71.00.019882- 0/RS

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6569

sofrimento animal e que crê, entre outras coisas, que ele esteja abaixo dos objetivos de

uma aula.66

Por fim, o PL nº 1691/03 também proibia os testes de Draize e de DL 50, famosos

por sua extrema crueldade, os quais são empregados nas indústrias cosméticas e alimentícias,

utilizando-se, em seu lugar, os métodos substitutivos disponíveis e, novamente, tal redação

não foi recepcionada pela Lei Arouca.

Outro ponto relevante a ser analisado é o uso do termo “eutanásia” para designar a

eliminação da vida dos animais utilizados na experimentação. Para melhor compreensão,

transcreve-se o artigo 14 da Lei nº 11.794/08:

Art. 14. O animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de

aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber cuidados

especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA.

§ 1o O animal será submetido à eutanásia, sob estrita obediência às prescrições

pertinentes a cada espécie, conforme as diretrizes do Ministério da Ciência e

Tecnologia sempre que, encerrado o experimento ou em qualquer de suas fases, for

tecnicamente recomendado aquele procedimento ou quando ocorrer intenso

sofrimento.

§ 2o Excepcionalmente, quando os animais utilizados em experiências ou

demonstrações não forem submetidos a eutanásia, poderão sair do biotério após a

intervenção, ouvida a respectiva CEUA quanto aos critérios vigentes de segurança,

desde que destinados a pessoas idôneas ou entidades protetoras de animais devidamente legalizadas, que por eles queiram responsabilizar-se. (grifo nosso)

A origem etimológica do termo eutanásia (eu = boa + tanatos = morte) indica a

impropriedade de seu uso para o caso dos animais submetidos à vivissecção, pois nenhuma

morte infligida a outrem, isto é, imposta sem seu consentimento, deveria ser denominada

eutanásia. Tal afirmação com relação aos humanos é facilmente compreendida, posto que tirar

a vida de um homem, ainda que de forma indolor, configura homicídio, tipificado penalmente

no art. 121 do Código Penal Brasileiro. Ainda de acordo com a filósofa Sônia T. Felipe, o

mesmo critério deveria ser aplicado a animais usados em experimentos, posto que a morte

intempestiva não é do interesse de nenhum ser-vivo. Só poder-se-ia admitir o emprego do

termo eutanásia para um animal, caso ele estivesse em estado natural de agonia física

(causado por eventos naturais, ambientais ou biológicos), do qual não houvesse cura

tampouco possibilidade de cessar a dor e, como forma de propiciar o alívio de seu sofrimento,

seria retirada sua vida de forma indolor. Isto porque “o emprego indiscriminado desse termo

66 GREIF, Sérgio. Alternativas ao uso de animais vivos na educação pela ciência responsável. São Paulo:

Instituto Nina Rosa, 2003, p. 26.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6570

para designar a execução sumária de animais de laboratório pode mascarar a natureza

antiética daqueles procedimentos.67

Ou seja, todos estes argumentos comprovam que medidas bem-estaristas aos

animais, como criação dos Comitês de Ética no Uso de Animais, aplicação do princípio dos

3R´s, melhoria das condições de higiene e “conforto” em biotérios, morte “humanitária” das

cobaias, etc., de fato, não ajudam à abolição destas práticas. Muito pelo contrário, pois se cria

uma máscara de que todas estas medidas estão sendo feitas em benefício dos animais de

laboratório, e, aliado ao discurso de que a “ciência necessita da vivissecção para progredir”,

acaba gerando uma aceitação popular desta prática cruel e desnecessária.

Interessante é analisar que, apesar de ser um grande retrocesso no que se refere aos

direitos dos animais, como pode ser verificado nos parágrafos acima, a elaboração do projeto

da Lei nº 11.794/08 contou com a participação de entidades bem-estaristas protetoras dos

animais, tendo inclusive recebido parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça da

Câmara. Comprova-se este fato, em artigo da veterinária e vice-diretora do Centro de Criação

de Animais de Laboratório/Cecal – Fiocruz, Celia Virginia Pereira Cardoso, no qual a mesma

faz um relato dos acontecimentos para elaboração do anteprojeto da referida lei. Segundo ela,

a Academia Brasileira de Ciência/ABC criou uma Comissão Mista para elaborar o

anteprojeto, tendo contado “[...] com a participação da Sociedade Mundial para Proteção dos

Animais/WSPA e com a Sociedade Zoófila Educativa/Sozed que, enquanto representantes das

entidades defensoras dos animais, em muito contribuíram para o texto final do anteprojeto de

lei.”68

Inclusive este fato também é muito citado pelos cientistas adeptos a vivissecção,

visando convencer a sociedade civil de que a aprovação desta lei é um avanço para a proteção

dos animais de laboratório e uma vitória da ciência.

Ora, então como puderam estas entidades “protetoras” terem sido favoráveis a uma

lei que, de fato, em nada protege os animais usados em experiências? A resposta a esta

indagação será melhor compreendida após considerações acerca das duas correntes existentes

na luta pelos direitos dos animais: o bem-estarismo e o abolicionismo.

67 FELIPE, Sônia T. Op cit. p.81. 68CARDOSO, Célia Virginia Pereira. Leis e regulamentos locais. Disponível em:

<http://www.cobea.org.br/include/download/LeiseRegulamentosCeliaCardoso.doc>. Acesso em: 13 mar. 2009.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6571

5. ANÁLISE DAS TEORIAS BEM ESTARISTA E ABOLICIONISTA

Argumentos da teoria conservacionista foram apresentados nos capítulos anteriores,

podendo ser resumida como àquela argumentação que segue a tradição moral sem questioná-

la, negando-se a fazer qualquer mudança na concepção do lugar dos animais no âmbito da

moralidade humana, não reconhecendo que humanos têm quaisquer deveres para com os

animais. São considerados como conservadores, filósofos especistas no sentido já apontado

neste ensaio, os quais defendem o uso e exploração dos animais para beneficiar interesses

humanos, justificando tal abuso pelo fato de que animais não pertencem à espécie humana.69

Por sua vez a teoria abolicionista opõe-se diretamente à conservacionista, criticando

a filosofia moral tradicional, por esta discriminar animais de outras espécies, propondo o fim

de todas as formas de exploração animal e reconhecendo que os humanos têm deveres tanto

negativos (não-maleficiência) como positivos (beneficiência) para com os animais sencientes.

Já a teoria bem-estarista (também chamada de reformista), seria um meio termo, pois

não reconhece deveres morais diretos para com os animais, contudo, reconhecem os deveres

negativos, por compreenderem que humanos são beneficiados com o uso dos animais (para

vários fins outros que não apenas a experimentação) e, portanto, não se deve infligir

desnecessariamente danos a estes animais, reconhecendo a senciência destes. O bem-

estarismo com relação à vivissecção critica as formas tradicionais de manejo dos animais,

defendendo reformas no sistema de captura e confinamento, e nos objetivos da pesquisa

experimental em animais (que devem atender àquele princípio já citado dos 3R´s).

Numa análise superficial, pode-se entender que as duas linhas existentes na defesa

dos animais, quais sejam o bem-estarismo e o abolicionismo, visam o mesmo objetivo

(proteger os animais), utilizando-se apenas de meios distintos para tanto. Porém, na verdade,

analisando-se a base ideológica, organizacional e de atuação de cada uma dessas correntes,

ficam notórias as diferenças de objetivos, conceitos e práticas. Abolicionistas e bem-estaristas

reconhecem que animais são seres sencientes, ou seja, capazes de sentir dor e sofrer e que

devem ser respeitados. Mas as semelhanças acabam por aqui, pois com essa informação em

mãos, ambos os grupos tomam caminhos opostos.

69 FELIPE, Sônia T. Op cit. p.30.

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Os bem-estaristas ao reconhecerem que animais são sencientes, consideram que os

mesmos não devem jamais sofrer desnecessariamente. Mas, quando o sofrimento for

necessário, ainda que este sofrimento seja necessário apenas com o fim de atender interesses

humanos, se não houver comprovadamente outro meio para satisfação da emergente

necessidade humana70

, animais podem ser usados. Assim sendo, os bem-estaristas crêem que

existem formas éticas de utilização de animais, ou seja, o chamado “tratamento humanitário”,

onde o sofrimento daquele animal é minimizado ao máximo. Bem-estaristas defendem ainda,

que a prevenção da crueldade contra animais deve ser regulamentada por leis, a exemplo da já

citada Lei nº 11.794/08. De acordo com os biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz tal

posicionamento bem-estarista, acaba por não livrar o animal da exploração, mas sim legitimá-

la:

Aqueles que se subscrevem em grupos de bem-estar animal e não questionam o

jogo político de seus líderes são instrumentos, por outro lado, que prolongam,

morosam e impedem a abolição da vivissecção. Alguns grupos são desviados

habilmente para apoiar a continuidade da vivisseção, camuflados debaixo da

promoção da vida „cruelty –free‟ ( a adoção de um estilo de vida que promova a

recusa em se servir de qualquer item de origem animal, ou que tenha sido testado

nestes) e o comprimento de outros assuntos. Os jornalistas, repórteres e editores que, agindo segundo os interesses de seus anunciantes, perpetuam o mito de que a

vivisseção é benéfica, ainda suprimem, desacreditam e censuram as opiniões

daqueles que fazem campanha contra ela.71

Já os abolicionistas compreendem que, pelo fato dos animais serem sencientes,

teriam interesse em não sofrer, em não sentir dor, em continuarem vivos. Portanto, fazê-los

sofrer ou matá-los é moralmente injustificável. Animais, portanto, teriam valor inerente, não

podendo ser tratados como bens.

A diferença crucial entre bem-estaristas e abolicionistas, consiste então, no fato de

que os bem-estaristas não se opõem, de fato, ao uso de animais, lutando pela sua

regulamentação, a fim de evitar sofrimento deles. Já os abolicionistas querem extinguir toda e

qualquer forma de exploração animal. Portanto, são movimentos que trabalham por causas

opostas, pois regulamentar determinado uso ou prática significa torná-la aceitável, e isso, sob

a ótica dos abolicionistas, dificulta a extinção da prática.

De acordo com o biólogo Sérgio Greif, “o bem-estarismo em verdade conduz a um

lugar bastante diverso do que se desejaria para os animais.”72

Isto porque ao se falar de

70 FELIPE, Sônia T. Op cit. p.35. 71 GREIF, Sérgio e TRÉZ, Thales. Op cit. p. 79. 72GREIF, Sérgio. Direitos animais e o caminho a seguir. Disponível em:

<http://www.sentiens.net/pensata/PA_ENS_sergiogreif_12.html>. Acesso em: 13 mar. 2009.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6573

tratamento ético aos “animais de consumo”, ou aos “animais de laboratório” (note-se a

nomenclatura utilitarista), lutando por abates ou tratamentos “humanitários”, baias ou gaiolas

maiores, etc., cria-se uma sensação de conforto com relação à exploração animal. A mesma

idéia filia-se o advogado e professor da Rutgers University – EUA, Gary Francione, em artigo

traduzido pela escritora Regina Rheda , defendendo que:

Já temos leis de bem-estar animal há 200 anos e não há absolutamente qualquer

evidência de que as reformas bem-estaristas levem à abolição da exploração animal. Na verdade, hoje exploramos mais animais, e de maneiras ainda mais

horrendas, do que jamais o fizemos em qualquer época da história humana. Além

disso, até onde o público acredita que os animais estão sendo tratados mais

„humanitariamente‟, isto tende a incentivar a continuação da exploração.73

Analisando as teorias bem-estarista e abolicionista, ficou demonstrado que para os

bem-estaristas, o erro não está na exploração de animais, mas na forma como esta exploração

é realizada.

CONCLUSÃO

Ao longo do trabalho ficou evidenciado que, a prática de vivissecção é

extremamente antiga e arraigada a nossa cultura, tendo sido considerada por séculos como

metodologia padrão de investigação científica e de ensino. Contudo, cada vez mais

argumentos têm surgido questionando tal prática, seja em função das suas comprovadas falhas

para obtenção de um fidedigno avanço científico, seja em função da evolução do pensamento

ético com relação aos animais, utilizados como meros objetos em tais experimentos.

Cientistas antivivisseccionistas argumentam que se trata de um método falho, que

muitas vezes acaba por prejudicar os avanços científicos ao invés de possibilitá-los, gerando

desde perdas financeiras (dos financiamentos destas pesquisas que acabam por não gerar

resultados significativos) até perdas de vidas, não só dos animais utilizados nos experimentos,

como também dos humanos que acreditam numa pseudo-segurança dos medicamentos, pelo

fato destes terem sido testados previamente em animais. Levanta-se também o fato de que

talvez tal prática ainda seja tão utilizada e defendida, não por sua imprescindibilidade para a

ciência, mas sim, pela manutenção de interesses da indústria detentora de imenso poder

econômico que há por trás da vivissecção.

73 FRANCIONE, Gary L. Uma “abordagem novíssima” ou simplesmente mais neobem-estarismo?

Disponível em: <http://www.anima.org.ar/libertacao/abordagens/uma-abordagem-novissima-ou-mais-

neobemestarismo.html>. Acesso em: 13 mar. 2009.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6574

Percebe-se também que, aos poucos, está havendo uma mudança de paradigma e o

antropocentrismo, que sempre esteve (e ainda persiste) tão presente na sociedade, está sendo

substituído pelo biocentrismo, trazendo consigo uma nova forma de pensar e agir em relação à

natureza e aos animais, os quais passam a ter valor inerente, não sendo mais vistos sob a ótica

utilitarista e capitalista de meras coisas. Assim, o critério para a consideração moral de um

ser-vivo não mais se justifica, senão, pela sua capacidade de experimentar sensações de

dor/prazer, recepcionando em definitivo, os animais na esfera da consideração moral.

A legislação embora reconheça a senciência animal e o proteja da crueldade,

inclusive constitucionalmente, parece não acompanhar da mesma forma, a evolução do

pensamento com relação à consideração moral dos animais, haja vista a existência de leis

como a dos rodeios (Lei nº 10.519/2002) e a da vivissecção (Lei nº 11.794/08), que permitem

a manutenção de sua exploração, restringindo tão somente o que considera “crueldade

desnecessária”. Para alguns defensores dos direitos dos animais, proteger os animais do

sofrimento seria o suficiente, mas neste ponto, estes parecem ignorar os questionamentos

éticos referentes à exploração destes animais.

Assim sendo a Lei Arouca, ao contrário do que aduzem os vivissectores e alguns

protetores dos animais adeptos da corrente bem-estarista, não foi um avanço nem para a

sociedade, tampouco para os animais, sendo, portanto, um instrumento que vem legitimar a

perpetuação da exploração dos animais para fins experimentais. Acaba-se por concluir que o

discurso e as práticas bem-estaristas são falhas, permitindo que os animais ainda sejam

considerados pela ótica utilitarista, em nada contribuindo, de fato, para a abolição da

exploração dos mesmos.

Sob o ponto de vista ético, a partir do momento que há o respeito pelos animais,

conferindo-lhes a dignidade e a consideração moral que lhes é devida, não têm sentido algum

explorá-los de nenhuma forma. Em a lei permitindo tal exploração, sem dúvida não há de se

falar em ilicitude, mas não se pode afirmar que, a partir da permissibilidade da lei, que tal

exploração é ética.

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