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Essa pesquisa buscou analisar comparativamente fotografias antigas e atuais da cidade de Florianópolis, na região do Largo da Alfândega; investigar, nestas fotografias, práticas culturais da população, resultantes da interação com o meio natural; perceber a mudança física na paisagem e por fim identificar e analisar as modificações de usos ocorridas na região.

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Universidade Federal de Santa CatarinaDepartamento de Arquitetura e Urbanismo

Programa de Educação Tutorial [PET]

Vera Helena Moro Bins ElyTutora

Alice VianaOrientadora

Camilla Sbeghen Ghisleni Gabriela Fernandes Favero Marcio Thomasi da Silva

Bolsistas PET | ARQ | UFSC

2011

Reflexões e devaneios sobre a emergência da paisagem como fenômeno social no centro de Florianópolis

Tipografia: Euphemia | Adobe Caslon Pro

UFSC-395
Text Box
Referência: ELY, Vera Helena Moro Bins; VIANA, Alice; GHISLENI, Camilla Sbeghen; FAVERO, Gabriela Fernandes; SILVA, Marcio Thomasi da. Reflexões e devaneios sobre a emergência da paisagem como fenômeno social no centro de Florianópolis. Florianópolis: PET/ARQ/UFSC, 2011. 97 p.
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Sumário1. Introdução

2. Paisagem: uma introdução

3. Histórico da área 3.1. Desterro: uma paisagem insalubre 3.2. A modernidade na paisagem 3.3. O aterro e as conseqüências na paisagem

4. Questões patrimoniais 4.1. A preservação do Mercado Púbico

5. Paisagem Cultural: Definição e conceito

6. Funções atuais da área

7. Considerações finais

8. Referências

9. Apêndices

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Justificativa e relevância da pesquisa

A paisagem da cidade de Florianópolis até o início de 1970 era constituída pelo mar, que nessa época, ainda beirava a antiga alfândega e, além de abastecer a ilha com produtos e alimentos vindos do continente - comercializados no Mercado Público, ao lado da alfândega - trazia a brisa e o aconchego para os moradores da cidade. Através da análise das fotos antigas tiradas nesse contexto, reforça-se a idéia acima, da importância do mar como elemento configurador do espaço central da cidade, sendo um ponto de encontro de onde convergiam as principais atividades comerciais e sociais da região.

Com os indícios de modernidade aportando pelos ares florianopolitanos, foi inevitável a construção do aterro, que concluído em 1975 rompeu com a ligação visual, física e afetiva entre a ilha e a baía sul, levando consigo as características de um centro urbano que sempre esteve em contato direto com o mar e que dele derivavam as práticas e costumes da população. A área, entendida como uma antiga paisagem cultural da ilha, a partir deste aterro, sofreu um gradativo processo de descaracterização, modificando usos e costumes tradicionais. Ressalta-se ainda aqui, através da análise deste processo, a importância de pensar a paisagem cultural como alimentada pelo vínculo entre o meio e as atividades a ele interdependentes.

Metodologia

Os materiais a serem utilizados para a pesquisa serão fotografias antigas e atuais da cidade de Florianópolis, mais especificamente da região do Largo da Alfândega, além de bibliografia pertinente. Deste modo, a metodologia a ser adotada constitui-se de análise comparativa de imagens, tendo como recorte não uma delimitação temporal, mas sim conceitual - compreendendo imagens de antes e depois do aterro da baía sul - uma vez que se têm como pressuposto que o que era uma paisagem cultural da ilha teve sua mudança ocasionada, dentre outros, pelo aterro realizado na região, que mudou a relação das práticas dos habitantes com mar.

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Objetivo específico

Os objetivos específicos pertinentes a essa pesquisa são: analisar comparativamente fotografias antigas e atuais da cidade de Florianópolis, na região do Largo da Alfândega; investigar, nestas fotografias, práticas culturais da população, resultantes da interação com o meio natural; perceber a mudança física na paisagem e por fim identificar e analisar as modificações de usos ocorridas na região.

Objetivo geral

O objetivo geral é analisar as transformações na paisagem na área do antigo largo da Alfândega em Florianópolis-SC, a partir da definição de Paisagem Cultural estabelecida pela Portaria n127, de 30 de abril de 2009 – IPHAN, como “resultante do processo de interação do homem com o meio natural.”

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Figura 01 - Jardim em Giverny de Claude Monet, 1900.h t t p : / / b e k a h t 8 8 . f i l e s . w o r d p r e s s .c o m / 2 0 1 0 / 0 3 / m o n e t - g i v e r n y . j p g

Na mitologia grega, Orfeu era um poeta e músico que a todos encantava com sua música. Apaixonado, sofreu com a morte de sua amada após ser picada por uma cobra. Transtornado, Orfeu viajou até o Mundo dos Mortos para reaver sua amada. Essa história foi levada diversas vezes para o cinema como no filme When Dreams may come (1998), no qual os personagens principais, Annie e Chris, formam um casal intimamente ligado desde o primeiro encontro. Chris, após morrer em um acidente, acorda no paraíso cercado por uma natureza bela, com vistas deslumbrantes e cores que iluminam os olhos, que refletem as pinturas de sua esposa em seus momentos de felicidade. Annie, que não consegue superar a perda, comete suicídio e é condenada a uma existência oposta, em um ambiente estéril, sem vida, desprovido de cor e amor. Ao longo do filme, Chris tenta resgatar sua amada e levá-la para o paraíso. As cenas do paraíso representadas na arte, de um modo geral apresentam uma paisagem tida como ideal, uma natureza edênica, expressada, no caso deste filme, pelo colorido vibrante e sem contorno, enfatizando provavelmente a representação do mundo espiritual, onde a imagem é vista através do contraste de cores, sombras e luzes. No filme, percebe-se ainda os cenários fazendo alusão às representações impressionistas, de certo modo convidando o espectador a imaginar-se inserido em uma tela de Claude Monet (Figura 01).

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No referido filme, na imagem em que Chris observa a vista do éden (Figura 02), pode-se perceber o distanciamento entre o personagem e a paisagem e o posicionamento dele - de costas para o terceiro observador, o espectador - reforça a idéia de contemplação à distância do mundo, que de certa forma caracteriza nossa relação com a paisagem.

Figura 02 – Cena do Filme “Amor Além da Vida” Fonte: http://corpo-ra te . skynet .be/z en/ re incarna t ion .htm

Esta “experiência de ser arrancado do sentimento de pertencer a um Todo (o sentimento da grande natureza), que acompanha inevitavelmente a individualização das formas da vida na cultura das sociedades modernas” (SIMMEL apud BESSE, 2006) é como Jean-Marc Besse, citando Simmel, define paisagem. Besse continua afirmando que “o sentimento de pertencer à generosa presença daquilo que é, é substituído então por uma contemplação à distância do mundo” (2006, p.08). A paisagem, portanto, pode ser interpretada como uma representação de um mundo do qual o homem não é pertencido; para isso, muitas vezes na arte, a paisagem tomou forma de uma natureza ideal, confortando, de certo modo, a busca do homem pelo seu próprio eu.

Na arte, a paisagem desenvolve-se no século XV, expressão dessas primeiras experiências de dessacralização da vida, e a partir das experiências de artistas e arquitetos renascentistas, a perspectiva é utilizada como meio para a representação da paisagem. Essa construção

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de ideal de paisagem consolidaria e materializaria um modo de ver e perceber o mundo.A paisagem natural surgiu em um mundo que se afasta de uma concepção teocêntrica das coisas, onde os objetos e as coisas da vida não mais são entendidos como manifestações divinas e celestiais. Indica uma natureza vista agora como paisagem, o que nos leva a pensar que ela, a paisagem, é um artifício, um modo de olhar.

Logo, a representação figurada tornar-se-ia o único meio organizador de representação da paisagem, o quadro seria o primeiro acesso emoldurado para a “realidade natural”. É nesse momento que a paisagem, agora consolidada como realidade, torna-se “autônoma” e passa a existir por si mesma.

Nesta culturalização da natureza, o olhar é elemento definidor e será ele o responsável por enquadrar um trecho de natureza que se quer mostrar, um enquadramento visto através das percepções de cada pessoa, construído de acordo com a distância, os pontos de vista, situação e a escala de cada um.

A função da paisagem caracteriza-se então pelo comprometimento com a relação entre o homem e a natureza que o envolve imediatamente, “ a paisagem desempenha o papel da mediação que permite à natureza subsistir como mundo para o homem” (BESSE, 2006. p.82). Assim, conforme mostrou Anne Cauquelin (2007), historicamente a paisagem era responsável por um modo de percepção da natureza, ela era uma forma de representação do mundo, meio de ordenar modos de ver e sentir o mundo, e, como a autora coloca, pode-se afirmar que este estatuto ainda persiste, reafirmando o papel da paisagem.

Percebe-se que este ideal de paisagem, ainda hoje, persiste no imaginário de grande parte da população, por meio das artes visuais, literárias e sonoras, sendo assim esse tecido de certezas é ao mesmo tempo frágil e resistente. Frágil, porque pode, a qualquer momento, aparecer como uma mentira; resistente porque as crenças nos nutrem por assim dizer e regulam reflexos e sentimentos... (Cauquelin, 2007, p. 15)

Ao contrário da efemeridade da moda, do design e dos comportamentos sociais, a vista do pôr-do-sol sobre o mar ou uma cachoeira em meio a uma mata virgem ativam o sentimento de contemplação e ainda resistem como cenário ideal há séculos no imaginário ocidental. É justamente essa persistência no imaginário que faz que com que urbanistas e paisagistas criem imagens de vistas que visam colocar o homem em contato com o meio natural. Este sentimento de contemplação e de admiração por esta paisagem intocada reflete, ainda hoje, em políticas e práticas ecológicas que visam a criação e a conservação de um ambiente idealizado.

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Com o forte adensamento que as cidades sofreram, principalmente nos dois últimos séculos, a população urbana deparou-se com a formação de ambientes poluídos e insalubres, congestionados. Surgem, a partir daí, práticas urbanas que visam solucionar estes problemas a fim de restaurar uma suposta harmonia natural e assegurar uma assepsia física e visual, garantindo um modo satisfatório de perceber e de estar no mundo.

A profissão do paisagista, por exemplo, surge como agente fundamental para formar e garantir um enquadramento de uma determinada vista. A partir da utilização dos diferentes atributos que a vegetação apresenta, criam-se volumes e contrastes que, por sua vez, podem destacar determinados elementos naturais ou arquitetônicos, resultando em uma composição paisagística para encantar o espectador. Kate Nesbitt , em “Uma nova agenda para a arquitetura”, citando Tadao Ando reafirma que: “A presença da arquitetura – independentemente do seu caráter autossuficiente – cria inevitavelmente uma paisagem” (NESBITT, 2004, p. 58).

O processo pelo qual as cidades tentaram incorporar a natureza dentro de seus limites físicos desenvolve-se com as leis sanitaristas que determinavam afastamentos entre as edificações, os espaços antes edificados agora são substituídos pela tímida presença da natureza na forma de jardins privados (Figura 03). Concomitantemente, esses alçarão uma escala urbana que se dá com a criação dos parques urbanos, onde o verde corresponderá ao novo componente da cenografia urbana, local de ar puro. É a tentativa do ser humano de domesticar a natureza e trazê-la para próximo das intensas atividades da cidade moderna.

Figura 03 - Exemplo de um Jardim inglês. http://4.bp.blogspot.com/jardimingles

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Os profissionais ligados à arquitetura e ao paisagismo possuem atualmente uma outra maneira de estabelecer relações responsáveis com a natureza pois criam com o trabalho um enquadramento da natureza. O que leva muitos arquitetos contemporâneos a defender o papel principal de sua arquitetura como possibilitadora da presença da natureza na vida das cidades.

É a partir da perda e depredação dos grandes monumentos durante a revolução francesa que os filósofos e pensadores começam a desenvolver críticas sobre o assunto, as mudanças de pensamentos e a aderência de novos valores fazem com que desenvolva-se mais fortemente a idéia de preservar o passado como uma maneira de garantir e salvar modos de perceber o mundo.

Foi a partir desta nova sensibilidade e principalmente ao longo dos séculos XX e XXI, que muitas edificações de importância histórica passaram integrar projetos de preservação e restauro a fim de preservar a paisagem para gerações futuras. Foi o que aconteceu em um pequeno vilarejo no sul do país: Desterro.

A paisagem deste modo, está em constante transformação, reflete valores e sentidos importantes para determinada sociedade, por isto, sofre alterações, bem como permanências a partir dos diferentes modos de ver e perceber o mundo. Esta pesquisa investiga as permanências da paisagem de uma pequena vila do sul do país – Desterro -, apresentado-a e analisando-a a partir dos diferentes modos como foi percebida em diferentes momentos.

Neste trabalho a região do largo da alfândega e do mercado publico foi analisada enquanto paisagem, enquanto portadora de desejos e olhares exteriores que dela visavam garantir modo de ver e perceber o mundo. Seja por fotografias antigas, projetos ou por imagens atuais, as transformações pelas quais esta área passou sempre forma resultado de olhares e discursos diversos que sobre ela incidiram. Investiga-se aqui, não somente as alterações formais do local, mas principalmente as permanências, aquilo que sobrevive aos olhares e discursos externos.

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Desterro: uma paisagem insalubre

Na Desterro de 20 mil habitantes, em meados do séc. XVIII, os primeiros indícios de aglomeração comercial surgiram com vendedores dos mais variados gêneros alimentícios que se situavam em uma das faces da atual Praça XV de Novembro, à beira da praia que havia ali. O historiador Oswaldo Rodrigues Cabral (1979) relata que a praia vinha até o eixo das atuais rua Conselheiro Mafra (antiga rua do Príncipe) e João Pinto (antiga rua Augusta):Fazia ela uma pequena enseada, desde a foz do riacho da Fonte Grande, depois rio da Bulha, atualmente canalizado (Av. Hercílio Luz), ficando justamente junto a ele o forte de Santa Bárbara, situado sôbre uma ilhota ligada à praia, por uma passagem construída sobre arcos de alvenaria de pedra (p.85)

Deste modo, foi ali, nesta “praia central da vila” (CABRAL, 1979, p.85) que se desenvolveram as primeiras atividades comerciais da cidade, atividades decorrentes e dependentes do mar. Era neste local onde abicavam as canoas que dos diversos pontos da Ilha e do continente próximo traziam gêneros para expô-los à venda, em esteiras desdobradas ao longo das areias, enquanto o peixe era vendido nas próprias canoas(...). Ponto de convergência desses produtores, que diretamente vendiam os gêneros que traziam, era para ali que se viam atraídos os moradores, a fim de mais barato adquirir as necessidades de sua mesa – a farinha, os legumes, as frutas, as caças, os peixes (p.85-86)

Com o tempo esses vendedores foram se fixando, construindo pequenas barraquinhas, com a venda de quitutes e “produtos de feitura doméstica” (p.86) e até mesmo bancas para venda de peixe. Entretanto, essa situação, somada às diversas atividades do centro urbano, passou a caracterizar-se, por determinados grupos da cidade, como um espaço insalubre, um “roçado malcuidado e malcheiroso” ¹ (SILVA, 2007). Segundo CABRAL (1979), em 1791, em um ofício dirigido à Câmara, o Secretário de Governo, Antônio José da Costa, pediu que fosse mudado o lugar da tal feira atendendo às irregularidades do terreno e a situação insalubre em que se acham estabelecidas as bancas de peixe que se vendiam ao povo². Além disso, as autoridades locais afirmavam que o lugar tinha sido, desde sua origem, um receptáculo de roubos e um antro de todos os gêneros de prostituição.

As barraquinhas só foram de fato retiradas do local com a ocasião da visita de D. Pedro II em 1845. Elas foram provisoriamente relocadas para que a porta de entrada da cidade se tornasse digna de uma capital de província, livre do caos e da imundice que

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contrariava o pensamento higienista e elitista que se estabelecia na época . (TEIXEIRA, 2002)Após a volta do imperador à corte, os barraquistas queriam voltar ao seu lugar de origem, porém, o novo lugar (imediações da ponte do Vinagre, onde atualmente está localizado o Forte Santa Bárbara) favorecia os “vinagristas” que se uniram para reivindicar a permanência das barraquinhas. Procurando contornar a situação, em 1851, ordena-se a construção do primeiro Mercado Público, com projeto do Engenheiro João de Souza Melo e Alvim localizado entre o extremo sul da Praça XV e o mar, no local da atual Praça Fernando Machado. Teixeira (2002) comenta ainda que as lutas políticas e territoriais continuaram envolvendo diretamente os comerciantes, tanto que os dois primeiros partidos políticos de Santa Catarina surgem com os barraquistas e os vinagristas. Esse novo mercado (Figura 04) não representava um importante centro de abastecimento da cidade, e já que a mudança resultou apenas na construção de um galpão que cobria as antigas barraquinhas, as condições sanitárias continuavam as mesmas, prejudicando a qualidade dos produtos vendidos.

Figura 04 - Frente do mercado velho, dando para a atual Praça XV. Fonte, CABRAL, p.83

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A fotografia abaixo (Figura 05), de autor desconhecido, registra através da paisagem um dos trechos mais característicos da ilha por estes anos. De acordo com o posicionamento do sol, provavelmente trata-se de um fim de tarde entre os anos de 1876 (uma vez que já se percebe o prédio da Alfândega aos fundos) e 1898 (data da demolição do mercado antigo).

Pela imagem pode-se perceber que a beira da água era, além de ponto comercial, local de encontro. Nestas últimas décadas imperiais, onde os discursos higienistas estabeleciam o aspecto das construções, este trecho da orla e sua aglomeração característica persistiam no cotidiano da cidade: ele era ponto comercial e local de encontros, e objeto de paisagem! O enquadramento, pode-se dizer, define uma área de algum modo privilegiada, objeto de olhares e pensamentos.

Figura 05- Movimentação à frente do antigo mercado da cidade, demolido em 1898. Fonte: http://ihgsc.com.br

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Os pescadores, por sua vez, não inclusos na nova edificação, continuavam vendendo peixe ao ar livre, apesar do prédio do mercado. Diante desta situação, foi inaugurada, em 1891, outra edificação: o “Galpão do Peixe” para abrigar os colonos e pescadores, que futuramente será demolido juntamente com o primeiro mercado antes citado. Com o tempo, esse galpão já não comportava a demanda comercial gerando, assim, a discussão para a construção de um novo mercado. Vale ressaltar que, em meio a esse contexto, quando eleito alguns anos depois, Hercílio Luz (1894), iniciam-se em Florianópolis, através do seu novo governador, importantes indícios do desejo de certa modernidade, desejo esse que se materializou nas primeiras reformas urbanas do governo Luz. A cidade foi dotada de uma Repartição de Obras Públicas de maior porte, que teve entre suas principais diretrizes a reforma do casarão colonial, onde era até então o palácio do governo, e a construção de um novo mercado público. Com esses fatos evidenciava-se o estado de espírito reformador das elites que dirigiam o novo governo. Roselane Neckel, em seu livro A República em Santa Catarina (2003), cita Hermetes Reis de Araújo quando este ressalta o poder das classes elitistas quanto ao anseio pelas mudanças, as quais Florianópolis vinha sofrendo, sendo “as formas de intervenção social impostas de cima para baixo, dentro de uma concepção de sociedade que se assemelhava a uma empresa a ser administrada pela racionalidade de uma elite de técnicos” (NECKEL, 2003 apud REIS, 1989, p. 123).

Essa situação proveniente do sistema configurado pelas elites dominadoras é refletida claramente na morfologia espacial da cidade. Ao lado das casinhas de “porta e janela” onde moravam as pessoas desfavorecidas, estavam os imponentes sobrados. Juntas, as diferentes tipologias formavam, no final do século XIX, o panorama da área central de Florianópolis . As diferenças, porém, vão ainda mais além e chegam ao interior das casas, “enquanto as paredes internas das moradias pobres eram revestidas de fuligem, as dos sobrados eram cobertas por papel importado da Inglaterra com motivos e cores variadas” (CABRAL, 1971, p. 249)

Além dessa evidente diferenciação social, se torna perceptível também o crescimento do afastamento cultural entre as classes que formavam a vida social de Desterro. Diante dessa situação faz-se curiosa a constituição de uma sensibilidade olfativa que denunciava o “fedor” em algumas áreas da cidade. O presidente da Província dirigindo-se à Assembléia Legislativa, em 1886 destaca a situação insalubre da cidade:Bem a nosso contra-gosto cumpre-

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nos antes de tudo fazer algumas considerações higiênicas sobre essa capital (...). A edificação, excetuando os arrabaldes, é em geral má e antiga: as casas na grande maioria estão inabitáveis, principalmente as ocupadas pela classe menos favorecida (...). As ruas e as praças estão mais ou menos limpas, (...) não acontecendo o mesmo aos quintais e fundos de muitas casas, que desafiam aos mais poderosos esterquilíneos e exalam nauseabriante cheiro, o que torna incômodo durante a noite o transito pelas ruas (...) bem pouco próprias de uma capital. (Relatório apresentado à Assembléia de Santa Catarina, p. 246)

Essa repulsa olfativa diante às classes desfavorecidas no século XIX contextualiza as idéias higienistas pregadas durante todo esse período. O olfato agora assume melhor que outros sentidos essas novas inquietudes que revelam a precariedade da vida urbana. Surgem então os odores da miséria, o fedor do pobre e de sua habitação. Alain Corbin em seu livro Saberes e Odores (1987) discorre sobre a função que o olfato adquire como definidor da posição social dos indivíduos, posição essa caracterizada através dos odores que cada pessoa emite.A tomada de consciência da diferenciação crescente da sociedade, da compilação constituída pelo escalonamento cultural, convida a análise olfativa ao refinamento. O odor do outro acha-se promovido ao nível de critério decisivo. (p. 184)Nesse contexto, o discurso médico acompanha o crescimento da importância da percepção olfativa. Ao ressaltar o odor fétido das classes proletariadas e os riscos de infecção que sua simples presença traz, induz-se “uma estratégia higienista que assimila simbolicamente a desinfecção à submissão” (CORBIN, 1987, p. 184). As classes elitistas passam a ver o povo estruturado em função da imundície, fazendo com que a vontade burguesa da desodorização torne-se cada vez mais vigente. O fedor do pobre deveria ser denunciado, já que eles (os pobres) trazem o cheiro do proletariado ao seio da família burguesa. Até que as tentativas de moralização e integração do povo se tornem de fato materializadas, o mau cheiro nauseante das classes desfavorecidas continuaria sendo constantemente percebido.Para o rico, o ar, a luz, o horizonte desimpedido, o retiro do jardim; para o pobre o espaço fechado, sombrio, os tetos baixos, a atmosfera pesada, a estagnação dos fedores. (...) No interior da oficina, na ponte do navio, no quarto do doente, o limite de percepção, ou antes, de tolerância olfativa define o pertencimento social. A repulsa burguesa acompanha e justifica a fobia pelo contato tátil. É o fedor do doente que fundamenta o hábito de se usar o estetoscópio, muito mais do que o respeito pelo pudor das mulheres.” (CORBIN, 1987, p.191 – 194) Na cidade, portanto, torna-se de extrema necessidade vencer a sujeira das classes menos favorecidas e eliminar as imundícies dos terrenos. Com isso, em plena virada do século XIX, as idéias

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higienistas vindas da Europa definiram as intervenções urbanas como primordiais para o controle das doenças em território nacional. Porém, mesmo cientes da situação a qual Desterro se encontrava, poucas medidas de fato foram tomadas, resultando em isoladas mudanças na paisagem urbana. Embora os administradores públicos estivessem cientes dos problemas de salubridade e higiene pública, poucas medidas foram concretizadas no final do século XX, período de acomodação dos conflitos, quando as paisagens da cidade modificaram-se significativamente. (NECKEL, 2003, p. 53)Os discursos criados evidenciavam a oposição entre cidade moderna e antiga vila, levando a crer que o requisito básico para que Desterro atingisse a prosperidade era a solução dos problemas públicos de higiene. Sendo assim, torna-se de fato essencial conferir à cidade um aspecto saudável e salubre, centrado nas transformações sociais e urbanas e almejando um distanciamento da Desterro do século XIX. O antigo traçado colonial já não correspondia às imagens de progresso e modernização. A parte central de Florianópolis, que “era, para os olhos dessa elite, a própria encarnação do atraso e de um passado a qual ela ambicionava ultrapassar” (NECKEL, 2003, p. 56) sofreu inúmeras reformas no final do século XIX e inicio do século XX. Foram implantadas melhorias de infraestrutura como: redes de água encanada, esgoto, reforma do Palácio do Governo, aterros, calçamentos, ajardinamentos de praças e por fim a ponte Hercílio Luz.

Nesse mesmo contexto, em 1889, após três anos de construção, é inaugurada a primeira ala do novo mercado, voltada à atual Rua Conselheiro Mafra e próxima à Alfândega, “chamando atenção do centro do país, com a presença de representantes dos maiores jornais da época” (TEIXEIRA, 2002, p.50) O novo mercado representava, junto com o conjunto de melhorias urbanas, o momento de transição entre o passado rural e interiorano, e o futuro progressista digno de uma capital republicana (Figura 06). Também, como sinal de modernidade o mercado irá receber a, ainda desconhecida, iluminação a acetileno.

A foto abaixo diz respeito à primeira ala do mercado público. De acordo com a posição solar, pode-se identificá-la como sendo tirada pelo período da manhã. Nela destaca-se o enquadramento obtido pelo autor, também desconhecido, que relaciona os elementos da paisagem natural – céu e montanha – ao fundo, com os elementos da paisagem construída – mercado e rua – em primeiro plano. Com esse posicionamento pode-se perceber o desejo do autor em destacar a movimentação da área, caracterizando-a como um local de visibilidades públicas, local que satisfazia a necessidade dos moradores ilhéus de verem e serem vistos. É possível notar também que muitos deles estão posando para a foto.

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A presença do mercado público na maioria das fotos da época retrata essa edificação como importante componente da paisagem, constituindo-se também como elemento definidor da vida urbana. É o que Kevin Lynch, em A Imagem da Cidade (1960) caracteriza como elemento marcante, ponto de referência para a população local. “O seu uso implica a sua distinção e evidência, em relação a uma quantidade de outros elementos. (...) Para aqueles que conhecem bastante bem uma cidade, está comprovado que os elementos marcantes funcionam como indicações absolutamente seguras do caminho a seguir” (p. 59-90).

Tanto o simples uso da fotografia, que foi criada em 1839 e chega ao Rio de Janeiro logo depois, em 1840, quanto a fiação elétrica, o calçamento, o uso das carroças, percebidos na imagem abaixo, configuram as mudanças e melhorias que Florianópolis vinha, com o tempo, sofrendo. São vestígios da modernidade que aportava pelo mar da cidade e modificava não somente a paisagem, como também os usos e as práticas.

Figura 06 – Primeira ala do novo mercado público de Florianópolis, meados da década de 1910. Fonte: http://www.ihgsc.com.br

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A imagem abaixo, de autor desconhecido, é datada no final da década de 20. Nota-se, aos fundos da fotografia a presença do cais municipal e seu anexo, o bar e restaurante Miramar (inaugurado em 1928), um importante local de reuniões sociais que também representa a idéia de modernização urbanística da cidade, visto que a área, antes o Trapiche Municipal passa por uma série de reformas para de fato se tornar o conhecido restaurante.

Nessa mesma imagem, pode-se perceber mais uma vez a característica comercial e social do local. A aglomeração no entorno da primeira ala do Mercado Público, provavelmente pelas 10 da manhã (já que as sombras estão pequenas, o que indica que o sol está em cima), quando os pescadores chegavam, caracteriza o lugar não somente pelo seu aspecto comercial da venda de peixes, mas também pela sua importância social, como ponto de encontro significativo para moradores ilhéus.

Ao fundo, no canto direito da fotografia percebe-se os mastros dos barcos ancorados indicando a presença do mar. A foto mostra o ritual iniciado todas as manhãs que incluía o pescar, o descarregar, o comercializar, distinguindo o local pelos seus costumes e usos. Além disso, nota-se a já ditas condição insalubre do local, uma vez que os alimentos, na fotografia principalmente os peixes, eram vendidos ao ar livre.

Figura 07- Venda de peixes em frente à primeira ala do Mercado Público Fonte: http://ihgsc.com.br

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Nesse mesmo contexto, vale ressaltar que, em relação às normas de conduta vigentes, no mercado pode-se notar uma forte tendência do controle do espaço urbano pela elite dominante, sendo proibidos qualquer jogo ou divertimento ruidoso, assim como a circulação de mendigos e bêbados. (TEIXEIRA, 2002, p.50)

O arquiteto Aldo Rossi em seu livro A Arquitetura da Cidade (1966) afirma que “a história da arquitetura e dos fatos urbanos realizados é sempre a história da arquitetura das classes dominantes” (p. 5). A consolidação dessa afirmação torna-se bem clara na história de Florianópolis com a construção do novo mercado público e as outras inúmeras reformas e mudanças pela qual a cidade passou. Essas transformações mostram mais uma vez o poder das classes elitistas da ilha, que não só conseguiram vencer as pressões para remover a capital do estado para alguma cidade interioriana (NECKEL, 2003, p. 56) como também conseguiram recursos para a remodelação da cidade. Através da consolidação dessa dominação imposta pelas elites é que se pode perceber o principal foco dessas melhorias urbanas: o controle sobre população pobre da cidade.

Dessa forma, tentou-se implantar, através de uma nova racionalidade (apoiada nas condições médico-sanitaristas da época), uma política de “reerguimento” físico e moral do homem do litoral, o qual, assim como o cabloco do sertão, foi “cientificamente” caracterizado pelo discurso sanitarista como “indolente”, “doente” e “atrasado”. (NECKEL, 2003, p. 58)

A modernidade na paisagem

A ânsia por uma Florianópolis higienizada em “função do bem público” apresentou-se como peça fundamental na mudança tanto da paisagem urbana como também do cotidiano da população. Apesar de essas mudanças terem se iniciado gradativamente com o governo de Hercílio Luz, no final do século XIX, elas só foram de fato evidenciadas entre 1910 e 1930. Alteravam-se as paisagens da cidade ao mesmo tempo em que eram promovidas interferências nos hábitos e atitudes de seus habitantes que, ultrapassando os limites das práticas repressivas, pretenderam atingir não só os corpos mas também as mentes dos indivíduos, visando modificar modos de vida. (NECKEL, 2003, p. 63)

Foi nesse intervalo de tempo que as alterações na paisagem urbana ganharam mais destaque. Ruas como Padre Roma, Marechal Deodoro foram alongadas e tiveram suas calçadas redefinidas,

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enquanto novas ruas foram criadas (Rio Branco e Curitibanos). Ainda para modernizar Florianópolis muitos prédios tiveram que ser destruídos e muitas desapropriações ocorreram visando suprir a necessidade de edificações de ordem pública, municipal e estadual. (NECKEL, 2003, p. 58)

No contexto de grandes reformas urbanas vale destacar a construção da Avenida Hercílio Luz. Iniciada em 1922 ela foi elevada e teve seu traçado feito junto aos morros, definindo uma região limítrofe central. Anteriormente à construção da Avenida o local era um córrego conhecido como Rio da Bulha, onde as classes menos favorecidas despejavam os dejetos de seus senhores. O entorno do rio era ocupado pela camada mais pobre da população que se aglomerava em casas de péssimas condições higiênicas. No governo de Hercílio Luz, o urbanismo sanitarista instaurado expulsou as classes pobres da região, que passaram a ocupar as primeiras parcelas do Morro da Cruz. Vale ressaltar que esse mesmo critério foi utilizado pelo barão de Haussmann na cidade de Paris no século XIX. O processo de modernização haussamaniano teve um caráter especifico, pois nessa mudança podem-se destacar alguns itens como: paisagem, cenário, arquitetura e perspectiva que dessa forma possibilitou a mudança da capital francesa. Porém, segundo o texto de Walter Benjamim “Paris capital do século XIX”, o que realmente aconteceu foi o que se pode chamar de embelezamento estratégico, onde, através das medidas urbanas tomadas por Haussmann as camadas mais pobres foram empurradas para a periferia, impedindo também a construção de futuras barricadas ou qualquer outro tipo de mobilização social.

Na foto abaixo, datada por volta de 1925, percebem-se as obras de execução do canal do Rio das Bulhas, logo em frente à maternidade Carlos Correia. Nota-se também, como já foram ditas, as péssimas condições de higiene das casas próximas ao canal, o que configurava um local de aspecto sujo e insalubre. Pela proximidade das casas ao rio pode-se supor também, o forte odor que se instaurava já que os dejetos eram despejados ali mesmo.

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Figura 08 – Obras de execução do Rio das Bulhas Fonte :ht tp : / /www.f lor ipanasant igas .c o m . b r / i n d e x _ 4 . h t m l

A construção da Avenida Hercílio Luz, que na época foi conhecida também como a “Avenida do Saneamento”, foi considerada a “pedra angular” do saneamento de Florianópolis, caracterizando um grande passo para a modernidade e salubridade que a capital republicana, representada pelas idéias higienistas das classes elitistas, tanto desejava. Porém, vale ressaltar que as grandes obras públicas e as conseqüentes modificações da paisagem urbana, apesar de encaminharem a cidade para o futuro progressista tão almejado, significaram para a maioria de seus habitantes a perda dos aspectos físicos, afetivos e de seus referenciais interferindo intensamente nas relações sociais com o meio circundante.

A década de 30 é estruturada a partir das modificações viárias resultantes da construção da ponte Hercílio luz (1926) na década anterior. Na figura 09 é possível observar através do olhar do fotógrafo,

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a importância que o autor concede a essa ligação entre ilha e continente, pois o artista ao enquadrar espaço em questão privilegia a perspectiva longitudinal da travessia, convidando o observador a cruzar o mar de um modo diferente, através da nova ponte construída. Os postes de energia elétrica, a grande utilização do ferro e os carros automotores retratados na foto indicam a entrada de novos tempos na antiga Desterro, que, já desde 1894 com o fim da Revolução Federalista, teve seu nome mudado.

É com a facilidade de se chegar à ilha, independente de clima ou maré, que há uma decadência da condição de cidade portuária. A ligação viária por terra, além de integrar o centro com o interior da ilha através de uma nova malha rodoviária e conseqüentemente impulsionar o crescimento populacional e o adensamento da cidade irá “introduzir também valor imobiliário nos bairros centrais – as chácaras – criando novos espaços urbanos para construções”. (TEIXEIRA, 2002, pg. 21)

Figura 09 – Ponte Hercílio Luz na década de 30. Fonte: casa da memória

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Todas essas mudanças refletiram a necessidade de reestruturar a cidade a fim de atender à demanda de um púbico cada vez maior. Dentro deste contexto, para isso, em 1931 foi inaugurada a segunda ala do mercado público, construída sobre um pequeno aterro. As duas partes do mercado foram ligadas através pontes construídas sobre torreões, configurando uma implantação em quadra, com uma rua interna conectada ao tecido da cidade e aberturas voltadas para os corredores internos e externos. O vão do mercado, naquela época, ainda fazia parte da malha viária urbana – situação posteriormente modificada -, era a cidade ocupando espaço dentro do mercado.

Como se pode observar na figura 10 a rua, agora pavimentada, atravessava o mercado e permitia aos ilhéus pararem suas carroças e carros na porta das lojas, facilitando a compra e a interação entre comerciantes e compradores. Essa nova ala fez também com que trocas não acontecessem mais à beira do mar, a compra de peixes e verduras agora era feita entre as paredes do mercado, dando as costas para aquele que representava a doença, o mau cheiro e a sujeira: o mar.

Figura 10 – Vão central do mercado público após 1935. Fonte: Casa da memória

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Esse novo monumento configurava, juntamente com o prédio da Alfândega de Florianópolis- construído em 1874 - e o mar que ali beirava, um espaço de grande movimentação e trocas comerciais, “coração” econômico e social da cidade. Na figura 11 esses três elementos podem ser observados no centro da fotografia, indicando não só o apontamento do olhar do fotógrafo, mas a preocupação em registrar e documentar uma área de grande importância para a cidade. Como plano de fundo podemos observar a ponte Hercílio Luz e, ocupando toda a diagonal esquerda da foto, o mar, esse, ao contrário das imagens anteriores, está vazio, os barcos que ali antes navegavam foram substituídos pelos carros de agora, muito mais do que acesso terrestre a ilha tinham ruas apropriadas para a circulação.

A fotografia (Figura 11) consegue captar em uma única imagem todo o espaço que abrigava as principais atividades ilheis da época: a chegada- por terra ou mar-, o encontro dos que iam e vinham, o registro do que entrava em Florianópolis e o comércio no mercado público. A altura da qual a foto foi tirada mostra mais um evento moderno que acontecia na cidade com a verticalização do crescimento urbano, é o aparecimento dos arranha-céus. Ainda, dominando o primeiro plano da imagem é impossível não notar o antigo Hotel Laporta, um edifício eclético que foi projetado pelos irmãos Corsini, engenheiros que chegaram a Florianópolis da década de 20 para supervisionar a construção da ponte Hercílio Luz, foram eles, também, os responsáveis pelo projeto do Miramar e da ampliação, já mencionada, do Mercado Público (VEIGA, 2004).

Figura 11 – Mercado público, alfândega e mar. Década de 60. Fonte: Casa da Memória

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Embora essas mudanças representassem uma cidade em crescimento, Florianópolis, ainda acanhada, mantinha o seu caráter de vila com uma malha viária que necessitava de urgentes reformas. Mauro Ramos, prefeito da cidade de 1937 a 1940, estava fortemente vinculado à idéia da necessidade de modernização da capital e destacou a urgência da organização de um sistema que permitisse aos poucos sua melhoria e embelezamento. Nesse contexto, algumas reformas urbanas foram feitas no centro da cidade — entre a Praça XV e o local onde foi construído o Departamento de Saúde Pública e próximo à área da cabeceira insular da ponte Hercílio Luz, na antiga entrada da cidade.

Mais tarde, na década de 50, a abertura de novas vias aumentou ainda mais a ocupação da área central da cidade que ocorreu, principalmente, devido à criação de loteamentos em áreas antes ocupadas por chácaras. O intenso crescimento populacional vinculado com o pensamento progressista e rodoviarista em vigor na época farão com que em 1960 seja concluído “o aterramento da área onde hoje é a Assembléia Legislativa Estadual, e o Tribunal de Justiça”(TEIXEIRA, 2002, p.30), um indicativo do que seria feito posteriormente, na década de 70, com o aterro da baía sul (figura 12). Há ainda, na mesma década, a construção da BR-101, e a implantação da Universidade de Santa Catarina que irão “contribuir para o crescimento da cidade e de seus problemas de infra-estrutura, atingindo as regiões continentais vizinhas” (TEIXEIRA, 2002, p.22). A figura 12, é quase um presságio do que viria a representar os aterros na cidade de Florianópolis, a foto registra um grande espaço ermo, inóspito e sem planejamento.

Figura 12 – contrução do aterro do largo 13 de maio, 1947. Fonte: Casa da memória 41

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O aterro e as conseqüências na paisagem

Junto com as questões sanitárias, já discutidas nesse capítulo, os governantes apoiados pelas elites buscavam recorrentemente reverter a imagem interiorana que a cidade ainda pensa carregar, adequando-se às normativas modernas de progresso e expansão que penduravam na década de 70.O crescimento acelerado ocorrido no denominado milagre econômico, entre 1968 e 1974, decorrente das reformas anteriores e das condições internacionais favoráveis, garantiu ao governo militar a manutenção do crescimento em meio à tendência mundial de retração do crescimento.

Este momento otimista possibilitou o progresso e o desenvolvimento industrial do país de um modo geral. Em Florianópolis, refletiu no projeto mais incisivo que o centro da cidade sofreria em sua história (figura 13). Idealizado para abrigar a administração pública de Florianópolis, melhorar o sistema viário da cidade e criar áreas de lazer e esportes, 6000m² de aterro da baía sul lançaram o mar para bem longe (figura 14). Trouxeram “pistas de velocidade que unem, por meio da Ponte Colombo Sales, a ilha ao continente” (TEIXEIRA, 2002).

Figura 13 - Perspectiva do projeto de aterro da baía sul antes da construção. Fonte: http://4.bp.blogspot.com/

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Figura 14 – Vista do aterro recém executado. Á esquerda o mercado público distante do mar. Fonte: http://carlosdamiao.files.wordpress.com/

A localização daquelas pistas, exatamente entre o “centro histórico” e os equipamentos criados no aterro, pode ser interpretada, de acordo com Lynch (1980), como uma limitante espacial. Ou seja, a configuração do aterro do modo que está atualmente deflagra uma quebra da continuidade visual, uma vez que as dimensões dos edifícios e dos espaços são incoerentes entre si e acabam impedindo o trajeto do olhar. Além disso, há uma descontinuidade de acessos, uma vez que só existe uma passarela que dá acesso ao aterro e esta, por sua vez, é considerada longa e cansativa. E, por fim, há uma quebra de usos de ambos os espaços uma vez as atividades de trocas comerciais e sociais que acontecem no “centro histórico” não são as mesmas que ocorrem no aterro. De acordo com Lynch (1980), é importante ter uma boa legibilidade da cidade pois estruturar e identificar o ambiente é uma habilidade essencial para todos os usuários. Esta leitura da imagem da cidade é dada, segundo o autor, de acordo com os caminhos, os marco, os limites, as vias, os bairros e os pontos nodais.

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Esta configuração incoerente dos espaços causa uma fraca legibilidade da cidade. A implantação de equipamentos como a passarela do samba, usada duas vezes por ano, a estação de esgoto, a rodoviária e o terminal de transporte urbano de Florianópolis, combinada aos espaços residuais entre as edificações configura um espaço inadequado à movimentação e, principalmente, à permanência das pessoas (figura 15).

Figura 15 – Esquema da área com principais equipamentos, estacionamentos, e único acesso sobre a barreira de vias.

1. Rodoviaria2. Estacao de Esgoto3. Terminais Urbanos de onibus4. Centro Sul5. Passarela Nego Querido6. Centro Administrativo7. Camelodromo e Direto do Campo.

pistas de alta velocidade

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centro comercial

estacionamentos

passarela

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A imagem abaixo confirma o fato de que o espaço, configurado pela precariedade dos equipamentos dispostos, não exerce uma relação com as demais pessoas. Isto porque “um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar” (AUGÉ, 1994. página 73).

Portanto, o caráter histórico e antropológico, presente nas edificações e na malha urbana do “centro histórico”, é ausente no aterro uma vez que os principais usos são de aspecto transitório, esporádico, intermediados por grandes vias de alta velocidade sem costura urbana e sem o incentivo à permanência e apropriação pelas pessoas; uma paisagem bastante diversa daquela experimentada em séculos anteriores. Ainda segundo Auge, o resultado destes não-lugares é “um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero” (AUGÉ, 1994. página 74).

Figura 16 – Vista de parte do aterro. À extrema esquerda, parte das doze pistas; ao centro, estacionamentos e à direita edifícios públicos. Fonte: http://wp.c l icrbs .c o m . b r / / .

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Ora, neste contexto de grandes mudanças urbanas, ainda persiste a representatividade da antiga orla da cidade. A área do Largo da Alfândega e do Mercado público ainda mantém sua características de permanência e de trocas sociais devido ao seu histórico (figura 17). Isto ainda acontece porque os usuários da cidade têm naturalmente este local como referência comercial e de trocas sociais. “Percebemos que, se o fato arquitetônico que examinamos fosse, por exemplo, construído recentemente, não teria o mesmo valor... não apresentaria aquela riqueza de motivos com que reconhecemos um fato urbano” (ROSSI, 1995, página 16). Ainda segundo o autor, este entendimento coletivo sobre determinado local o transpõe de monumento para instrumento.

Figura 17 – Amanhecer no Largo da Alfândega: Comerciantes preparando suas barracas de artigos populares para mais um dia de feira. Fonte: http://c.photoshelter.com/img-et/I0000d3Je03RWOus/s / 7 5 0 / 7 5 0 / 0 7 0 4 1 9 -FLORIANOPOLIS-0050 . j pg

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A proteção ao patrimônio histórico e artístico do país é datado em 30 de novembro de 1937, onde, através do Decreto-lei nº 25/37, o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ SPHAN, organizou como deveria se dar a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, bem como criou o instituto do tombamento, cuja finalidade era promover em todo país e de modo permanente o tombamento, a conservação, o enriquecimento e conhecimento do patrimônio histórico e artístico. O decreto foi “concebido por intelectuais modernistas, assumiu posturas inovadoras, ao invés da tradicional identificação com concepções historicistas e conversadoras” (ADAMS, 2002, p. 28).

Os primeiros bens tombados pelo SPHAN em Florianópolis foram as fortalezas, que constituíam parte do sistema defensivo da Ilha, em 1938. Em Florianópolis, a valorização e o reconhecimento legal dos bens materiais se deu em 1974 através da Lei Municipal nº 1.202 (que dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico artístico e natural do município e cria órgão competente). A partir dessa lei, constituiu-se como patrimônio histórico e artístico os bens cuja preservação fosse de interesse público por seu valor cultural ou histórico. Essa lei também afirma que “os monumentos naturais bem como os sítios e paisagens que importam conservar e proteger” (FLORIANÓPOLIS, 1974) devem ser tombados. Nesse contexto, tem-se a criação do SEPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Município - que atua como assessoria sobre as questões pertinentes ao patrimônio histórico e cultural da cidade. Vale ressaltar que essa foi uma iniciativa precursora, já que o SEPHAN foi o primeiro órgão municipal do país a garantir a preservação desses bens pois até então as ações de preservação geralmente restringiam-se à atuação federal ou estadual, como é o caso das fortalezas que tiveram sua proteção garantida a nível federal.

Em 1979, quando o SEPHAN foi transferido ao IPUF, a preservação passou a fazer parte do planejamento urbano, através do Decreto Municipal nº 270/86, de 30 de dezembro de 1986, foram tombados 10 conjuntos urbanos no centro da cidade. Posteriormente, por meio do Decreto Municipal nº 521/89, de 21 de dezembro de 1989, todos os prédios integrantes destes conjuntos históricos foram classificados, de acordo com sua importância histórica/arquitetônica, em 3 (três) categorias distintas:

P1 - são aqueles imóveis que, pela sua monumentalidade e valores excepcionais,são totalmente preservados, ou seja, tanto no seu interior como no seu exterior.

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P2 - são aqueles imóveis que fazem parte da imagem urbana da cidade e que não podem ser demolidos, devendo ser preservada sua volumetria externa, ou seja, fachadas e cobertura. São admitidas reformas internas, desde que não interfiram no exterior da edificação.

P3 - constituem-se em unidades de acompanhamento dentro das áreas tombadas, sendo importantes para a harmonia do conjunto. Poderão ser demolidas, mas a reedificação está sujeita à restrições que evitem a descaracterização do conjunto no qual está localizado, ou do qual é vizinho.

Já na década de 80 promulgou-se a Lei Municipal de Uso e Ocupação do Solo dos Balneários, representando um marco para o planejamento da cidade, “pois inseriu aspectos da preservação do patrimônio edificado e do patrimônio natural e ambiental no arcabouço do Plano Diretor” (ADAMS, 2002, p. 64) por meio das Áreas de Preservação Cultural (APC) que propunham a preservar sítios de interesse histórico, antropológico e arqueológico. Essas áreas foram subdividas em APC-1, APC-2 e APC-3 e tinham como objetivo resgatar a identidade urbana através da manutenção dos conjuntos e edificações de arquitetura relevante, sendo assim, qualquer intervenção nesses bens deveria ter prévia autorização do órgão municipal competente.

No final dessa década, os artigos n° 215 e 216 da CARTA MAGNA, a Constituição de 1988, discorrem sobre o patrimônio cultural. É estipulado como “patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.” (BRASIL. Constituição, 1988) Portanto, esta lei, a ênfase sobre o patrimônio modificou-se. Agora é importante não só preservar a matéria e a forma, mas também as atividades que ali acontecem, pois são elas que vinculam as pessoas.

A Preservação do Mercado Público

Neste contexto de preservação do patrimônio histórico e inserido no conjunto 1- Centro Histórico -, encontra-se o Mercado Público, equipamento urbano fundamental para dinâmica social e comercial da cidade. Devido à esta importância, diferentes leis visaram protegê-lo a fim de garantir o seu estado original às próximas gerações. Em 1984, o órgão municipal, SEPHAN, obteve seu tombamento individual pelo decreto n.° 035/84; em 1986 o mesmo órgão tombou parte do conjunto urbano do centro incluindo ruas e sobrados. Já em 1989, o Mercado foi classificado como Edificação tipo P1 a

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partir do decreto municipal n.°521/89, isto é, visa preservá-lo o interior e o exterior; e em 1997, este foi inserido como Área de Preservação Cultural pela lei complementar n.° 001/97 no Plano Diretor.

A última lei vigente, constante no artigo 153 do Plano Diretor da cidade, proíbe “a realização de obras de desmonte, terraplanagem, aterro, desmatamento e corte de árvores de qualquer porte, bem como quaisquer outras modificações do relevo e da paisagem” (FLORIANOPOLIS, 1997. Art. 153 – IPUF,1998). Ainda neste plano, em seu artigo 155, é prevista para o Mercado a preservação tipo P-1, isto é, o imóvel deve “ser totalmente conservado, ou restaurado, tanto interna como externamente pelo excepcional valor histórico, arquitetônico, artístico ou cultural de toda a unidade.” (FLORIANOPOLIS, 1997. Art. 155 – IPUF, 1998).

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O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) estabelece o patrimônio cultural em duas diferentes categorias: os bens materiais, aqueles construídos fisicamente pelo homem ou pela natureza como por exemplo jardins, edifícios, colinas e outros, e bens imateriais, como festas populares, receitas culinárias e entre outros. Recentemente, está se fundando um novo conceito de patrimônio cultural que considera ambos bens materiais e imateriais de forma integrada, a chamada “Paisagem Cultural” acaba atingindo uma maior profundidade no que diz respeito ao conceito de patrimônio cultural.

Em 2007, a carta de Bagé definiu paisagem cultural como uma nova modalidade de patrimônio cultural que considera “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artisticoculturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (CARTA DE BAGÉ ou CARTA DA PAISAGEM CULTURAL, 2007).

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Para que seja facilitada a compreensão deste conceito, observa-se a imagem XXX abaixo que exibe parte da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. A imagem é formada por uma paisagem natural: mar, montanhas, areia, e também por uma paisagem construída pelo homem: os barcos e a fazenda de ostras, que indicam parte do modo de vida da população naquele determinado local. Portanto, paisagem cultural pode ser entendida como “uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram suas marcas ou atribuíram valores” (IPHAN, 2009, p.02). Pode-se afirmar, então, que à paisagem abaixo foi atribuído um determinado valor representativo àquela população e, portanto, digna de ser preservada.

Figura 18 – Vista parcial da Lagoa da Conceição, Flori-anópolis. Fonte: Acervo Pessoal.

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O mercado público de Florianópolis, principal equipamento de encontro do “centro histórico”, exerce uma influência sobre a dinâmica da região. Esta influência pode ser detectada a partir da análise das principais funções para a cidade e para a população que ali habita: a comercial, uma vez que ali ocorrer trocas de produtos; a de lazer, visto o tipo de atividades que ali são cultivadas; e, finalmente, a função simbólica, uma vez que aquela imagem tem grande representatividade na memória do morador local.

Figura 19 – Vista aérea para o Largo da Alfândega. No canto inferior es-querdo, mercado público; no cen-tro o antigo prédio da Alfândega. Fonte: GoogleEarth, 2011.

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Diante das diversas mudanças urbanas e sociais que Florianópolis passou nas décadas de 70 e 80, inicia-se um processo contínuo de modificação dos usos da área em questão, especialmente do Mercado Público, fato urbano pro excelência da cidade. O que originalmente se restringia em comercializar apenas secos e molhados, isto é, frutas, verduras e outros produtos coloniais, hoje é principal referência para bares, calçados e peixes.“Existem, ainda, e talvez aí esteja garantida a identidade do Mercado como lugar de abastecimento, alguns locais, em um total de onze, que vendem pescados e outros frutos do mar. A população ilhoa, do continente e visitantes, aí acorre para compra desses produtos frescos, oriundos hoje de várias procedências, nacionais e até internacionais” (TEIXEIRA, 2002, página 67). Juntamente com este caráter comercial, que originou o Mercado, percebem-se neste espaço atividades culturais e de lazer que estimulam trocas sociais.É no vão central e na ala sul onde as pessoas se reúnem para pedir um petisco, comentar sobre as partidas do Avaí e Figueirense, e ouvir grupos de música popular.Mais fervorosas ainda, são as manhãs de sábado que trazem um aglomerado de pessoas em busca de peixe fresco, uma conversa à toa e um chopp gelado. Atualmente, com a facilidade de deslocamento que a cidade proporciona e com o crescimento do número de supermercado, a principal função que o mercado estabelece para a cidade é a de propiciar o encontro e o convívio social. A partir disto, é possível identificar as atividades de permanência descritas como elementos fundamentais que determinam a vida do espaço público. Como afirma Rossi (1995, página 04), os monumentos de permanência urbanos são sinais da vontade coletiva expressos no espaço por meio da aplicação dos princípios da arquitetura. Estes monumentos colocam-se como peças fundamentais que subsidiam a dinâmica urbana. Da mesma forma, Lynch (1960, página 58) estabelece estes equipamentos como pontos marcantes que auxiliam a orientação do observador, pois cria referenciais mentais. Neste contexto, o Mercado Público faz parte do cotidiano da população não apenas pelos usos ou pelas atividades que acontecem ali, mas também pelo fato deste monumento representar, para estas pessoas, um referencial de orientação no centro da cidade.

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Do mesmo modo, a sobrevivência do mercado por mais de um século simboliza um local mítico do passado, é a “expressão tangível da permanência ou, pelo menos da duração” (AUGÉ, 1994. página 58) permitindo “assim pensar a continuidade das gerações” (AUGÉ, 1994. página 58). Ou seja, a imagem deste monumento ajuda a referenciar e orientar a população na cidade, mas é o seu constante uso por parte dela que possibilita um ritual de continuidade com as gerações anteriores. Neste contexto, Freire (1997, página 129) afirma que o entorno material, os objetos que nos circundam, as ruas, os quarteirões e a casa em que vivemos são os quadros materiais da memória e possibilitam que as pessoas permaneçam unidas enquanto grupo, e mais do que isso, é a permanência das coisas que dão suporte necessário para a memória coletiva e alimentam a tradição: “A permanência das coisas é o fator de saúde mental (...) uma vez que o equilíbrio mental decorre do fato de que o meio material muda pouco e nos oferece uma imagem de permanência e estabilidade” (FREIRE, 1997, página 129). O uso popular dos edifícios antigos, portanto, possibilita que os habitantes reconheçam-se nele, criando assim uma identidade coletiva. Portanto, vale lembrar que com a execução do aterro na década de 70 e o distanciamento do mercado com o mar, as atividades que ali aconteciam se transformaram devido à mudança da paisagem. Do mesmo modo, o reconhecimento do local pelos usuários alterou-se e, como conseqüência, desvalorizou aquele lugar onde a população se identificava.

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Esse trabalho teve como finalidade trazer um panorama da área do Mercado Público de Florianópolis a partir do seu processo de transformação e, com isso, contribuir nas discussões acerca do conceito de paisagem cultural. Acredita-se que, antes de tentarmos garantir modos de ver uma determinada paisagem, em muitos locais, urge assegurar relações, especialmente relações de interdependência, entre as atividades do homem, e o meio em que ele vive. Talvez este seja um caminho para a discussão em torno desse novo conceito.

Buscou-se também direcionar novos olhares sobre área em questão que, atualmente, encontra-se bastante descaracterizada em relação àquela antiga vista do centro da cidade. Hoje, parte do entorno imediato ao Mercado Público e principalmente a parte aterrada tornaram-se inacessíveis por grande parte da população devido a reformas urbanas que visaram exclusivamente o progresso e a modernização em função de veículo automotivo. Logo, o local tão rico em cultura e vida urbana que interagia com a antiga paisagem natural transformou-se em uma área subutilizada e ausente de estrutura que possibilite atividades urbanas relacionadas com a paisagem. Quanto ao objeto arquitetônico estudado, o Mercado Público, importante seria a intervenção da prefeitura ou de outros órgãos públicos no sentido de determinar um limite restrito de usos não ligados às atividades originais do mercado, a fim de, ao menos, garantir que não se rompa com a identificação entre forma e conteúdo tradicionalmente associada àquele espaço. Além disso, é importante garantir uma total reestruturação da área, buscando novos equipamentos que reafirmem a persistência e a permanência do Mercado Público na paisagem urbana da cidade enquanto um local de trocas sociais e simbólicas e, principalmente, enquanto um referencial urbano de Florianópolis.

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CORBIN, Alain. Saberes e Odores. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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FLORIANÓPOLIS. Lei municipal nº1202, de 04 de abril de 1974. Dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico, artístico e natural do município e cria o órgão competente. Diário Oficial, Florianópolis, 21 de abr.1974.

FLORIANÓPOLIS. Decreto-lei nº270, de 30 de dezembro de 1986. Tomba, como patrimônio histórico e artístico do município, conjuntos de edificações existentes na área cen-tral do território municipal. Diário Oficial, Florianópolis, nº13119, nº13.122, 13 de jan.1987.

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FREIRE, Cristina. Além Dos Mapas: Os Monumentos No Imag-inário Urbano Contemporâneo. São Paulo: Editora Annablume, 1997.

INSTITUTO DE PLANEJAMENTO URBANO DE FLORIANÓPO-LIS - IPUF. Florianópolis: plano diretor do distrito sede. Florianópolis: IPUF, 1998

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ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

SILVA, Danísio; SCHMITZ, Paulo Clóvis. Merca-do Público e suas histórias. Florianópolis: Ed. Vitelli Design, 2007.

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TEIXEIRA, Luiz Eduardo Fontoura. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Programa de Pós-Graduação em Geografia. Espaços públicos da orla marítima do centro histórico de Florianóp-olis: o lugar do mercado. Florianópolis, 2002. 95 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Geografia.

VEIGA, Eliane Veras da. . Florianopolis: memoria urba-na. 2. ed. rev. ampl. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2008. 415p.

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Figura 20 - Banner apre-sentado na SEPEX 2010

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PANORAMA DE FLORIANÓPOLIS: PAISAGEM CULTURAL, VERSO E REVERSO

VIANA, Alice de O. (1); GHISLENI, Camilla S. (2); FÁVERO, Gabriela F. (3); SILVA, Marcio T. da (4).

1. Universidade Federal de Santa Catarina. Arquitetura e Urbanismo

Rua Lauro Linhares, 993, sl.03, cx. Postal 6547. Bairro Trindade. CEP 88036970. Florianópolis - SC. [email protected]

2. Universidade Federal de Santa Catarina. Arquitetura e Urbanismo

Rua Delminda Siilveira 740 apto 601. Bairro Agronômica. CEP 88025500 Florianópolis - SC [email protected]

3. Universidade Federal de Santa Catarina. Arquitetura e Urbanismo

Rua Dep. Antonio Edu Vieira 1400, apto 204 bl B, bairro Pantanal, CEP 88040001 Florianópolis- SC [email protected]

4. Universidade Federal de Santa Catarina. Arquitetura e Urbanismo

Rua Felipe Schmidt, 1210, apto 303 CEP 88010002. Florianópolis - SC

[email protected]

RESUMO Na obra Panorama de Florianópolis (1975), o artista catarinense Martinho de Haro retrata a paisagem marítima da Florianópolis de 1950. O mar, naquela época, ainda beirava a antiga alfândega e, além de abastecer a ilha com produtos e alimentos vindos do continente, a partir de então comercializados no Mercado Público ao lado, trazia a brisa e o aconchego para os moradores da cidade. O aterro, concluído em 1975 rompeu com a ligação visual, física e afetiva entre a ilha e a baía sul, levando consigo as características de um centro urbano que sempre esteve em contato direto com o mar e que dele derivavam as práticas e costumes da população. A área, entendida como uma antiga paisagem cultural da ilha, a partir deste aterro sofreu um gradativo processo de descaracterização, modificando usos e costumes tradicionais. Ressalta-se aqui, a partir da análise deste processo, a importância de pensar a paisagem cultural como alimentada pelo vínculo entre o meio e as atividades a ele interdependentes.

Palavras-chave: Florianópolis. Mercado Público. Aterro. Paisagem Cultural.

1. BENFEITORIAS PELA MODERNIDADE Os desejos de modernidade aportaram pelo mar em fins do século XIX na antiga

Desterro. Desejos que não se precipitam sem um quê de destruição e dissolução de antigas estruturas, entraves ao ingresso nas sendas do futuro.

Os esforços de modernização e alcance do progresso na Florianópolis – Desterro até 18941 - dos últimos anos do século XIX resultaram na dissolução do antigo mercado de peixes, o qual, desde a primeira metade deste século, caracterizava um “roçado malcuidado e malcheiroso” (SILVA; SCHMITZ, 2007, p.13), situado na porta de entrada

1 Florianópolis até 1894 era chamada de Nossa Senhora do Desterro. Teve seu nome modificado por homenagem ao Marechal Floriano Peixoto que abafou a Rev. Federalista neste ano.

Artigo apresentado no 1ª Colóquio Ibero Ameri-cano de Paisagem Cul-tural, Patrimônio e Projeto.

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da cidade, onde hoje é a atual Praça xv de Novembro (imagem 01). Um novo edifício deveria ser feito para abrigar esta função e em 1899, é inaugurada a primeira ala do novo mercado (imagem 02), voltada à atual Rua Conselheiro Mafra e próxima à Alfândega. O novo mercado representava, junto com o conjunto de melhorias urbanas realizados nas primeiras décadas do novo século, o momento de transição entre o passado rural e interiorano, e o futuro progressista digno de uma capital republicana.

Imagem 01 – O antigo mercado público da cidade, demolido em 1896. Fonte: http://www.ihgsc.org.br.

Imagem 02 – Primeira ala do Mercado Público de Florianópolis, meados da década de 1910. Fonte:

http://www.ihgsc.org.br.

Durante estas primeiras décadas do século XX, a cidade, como se afirmou, foi abastecida com melhorias como redes de água encanada, esgoto, a reforma do Palácio do Governo, aterros, calçamentos, ajardinamentos de praças e por fim a construção da ponte Hercílio Luz (1926), que faria a conexão entre a ilha e o continente, fato anteriormente realizado somente pelo mar. Tudo isto refletia o “objetivo de melhorar as condições de higiene e o aspecto visual da cidade” (SILVA; SCHMITZ, 2007, p.15).

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Uma segunda ala do mercado, construída sobre um pequeno aterro, foi aberta ao público em 1931 já que ala antiga não mais comportava a demanda de consumidores e vendedores. Ambas foram ligadas por duas pontes construídas sobre torreões, configurando uma implantação em quadra, com uma rua interna conectada ao tecido da cidade e aberturas voltadas para os corredores internos e aberturas externas (imagem 03). Este novo monumento configurava, juntamente com o prédio da Alfândega de Florianópolis- construído em 1874 - e o mar que ali beirava, um espaço de grande movimentação e trocas comerciais, “coração” econômico e social da cidade, vista identificadora por quem aportava pelo mar e ali desembarcava. Será a vista deste espaço que, décadas depois, Martinho de Haro retratará recorrentemente em sua pintura.

Imagem 03 – Mercado Público, já com as duas alas, meados da década de 1930. Fonte:

http://www.ihgsc.org.br.

2.1. Panorama Florianópolis

Martinho de Haro, artista catarinense, nascido em São Joaquim, notabilizou-se por traduzir em óleo sobre tela imagens de Florianópolis a partir da década de 1950. Dentre retratos, nus e cenas carnavalescas, são as paisagens da cidade que se destacam na obra de Martinho, paisagens muitas das quais já se modificaram e que possuíam como ponto de vista o mar. Era a partir do mar que Martinho queria desenhar a cidade.

Um de seus quadros mais reconhecidos é Panorama de Florianópolis, datado de 1975, paisagem onde ele pinta a vista da década de 1950 configurada pelo trecho entre o mercado público, a alfândega e o casario da rua Francisco Tolentino (imagem 04), uma área que, de acordo com Veiga (2008), já desde fins do século XIX, configurava-se como importante local de comércio e serviços. Nesta obra, o mar ocupa quase um dos terços do quadro, dividindo os outros dois com o céu e os edifícios ao meio, massa edificada cujo equilíbrio se rompia com novos prédios em altura que surgiam no horizonte de seu panorama.

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Imagem 04 – Panorama de Florianópolis, Martinho de Haro,

1975. Fonte: AYALA, Walmir; HARO, Rodrigo de. Martinho de Haro. Rio de Janeiro: L. Christiano, 1986.

Importante destacar este título que Martinho deu ao quadro. A palavra “panorama”

indica correntemente uma vista, uma paisagem. Paisagens, Martinho fez várias outras, mas foi esta que ele designou “panorama”, o que indica a importância e o destaque que a região e sua configuração tinham para o pintor. Curioso pensarmos que panorama também designa tipos específicos de dispositivos imersivos ópticos bastante disseminados no século XIX e que consistiam em uma pintura construída em um espaço circular de onde os espectadores teriam uma visão bastante abrangente da paisagem. Possuíam como características a monumentalidade da vista representada, tanto da arquitetura quanto da natureza, e neles o observador deveria se dispor no centro sendo trazido quase que “para dentro”da cena representada (PARENTE, 1999). Ressaltando, podemos com isto pensar na importância desta área para Martinho, tanto em termos de sua arquitetura quanto em termos do meio natural.

Há uma dose de incomodação neste quadro de Martinho, deflagrada pelo fato de que não há pessoas neste quadro. Martinho quase não pintava cenas em suas vistas da cidade. Martinho, através desta obra, parece querer falar desta vista da cidade.

2.2. Modos de ver e perceber Florianópolis

Na arte, a paisagem surge no século XV a partir das primeiras experiências de dessacralização da vida, que Jean-Marc Besse, citando Simmel define como uma “experiência de ser arrancado do sentimento de pertencer a um Todo (o sentimento da grande natureza), que acompanha inevitavelmente a individualização das formas da vida na cultura das sociedades modernas” (SIMMEL apud BESSE, 2006). Besse arremata afirmando que “o sentimento de pertencer à generosa presença daquilo que é, é substituído então por uma contemplação à distância do mundo” (2006, p. 8).

A paisagem surge em um mundo que se afasta de uma concepção teocêntrica das coisas, onde os objetos e as coisas da vida não mais são entendidos como manifestações divinas e celestiais. A paisagem indica uma natureza vista agora como paisagem, o que nos leva a pensar que ela, a paisagem, é um artifício, um modo de olhar.

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Nesta culturalização da natureza, o olhar é elemento definidor e será ele o responsável por enquadrar um trecho de natureza que se quer mostrar. Assim, conforme mostrou Anne Cauquelin (2007), historicamente a paisagem era responsável por um modo de percepção da natureza, ela era uma forma de representação do mundo, meio de ordenar modos de ver e sentir o mundo, e, como a autora coloca, podemos afirmar que este estatuto ainda persiste, reafirmando a função da paisagem.

A paisagem, em grande parte das obras de Martinho, apresenta a vista da orla de Florianópolis como um espaço onde parece só ter lugar a arquitetura e o meio natural, o mar, o céu ainda “grande”. A atenção de Martinho não é para com as pessoas, seus quadros indicam sim cenas, mas cenas criadas por signos simplificados que levemente indicam a vida que se passa ali... é um barco a vela, um carro puxado por animais, um espaço expondo artesanato na beira da orla...A paisagem de Martinho, na acepção de Makowiecky (2008) seria uma “metáfora da saudade”.... saudade desta bela vista, das cenas que ele poderia ter ricamente retratado ali, mas que ele só indica por signos comedidos...

Dentro desta perspectiva, Martinho, em seu panorama, parecia querer retratar esta imagem com vistas a lamentar a fugacidade das coisas, a efemeridade dos espaços de uma cidade que crescia, situação retratada pelos novos arranha-céus que despontavam no horizonte de seu panorama.

Foi no ano de 1975 que Martinho de Haro pintou aquela vista, uma vista referente a uma Florianópolis de anos anteriores. Nesta época o mar já não mais existia ali, beirando o mercado e a alfândega, o que leva-nos a pensar que a iniciativa do pintor de retratar aquela área em última instância reafirma o fundamento da paisagem, ou seja, a atitude de firmar um modo de olhar – mesmo que um olhar direcionado ao passado -, de “reassegurar permanentemente os quadros da percepção do tempo e do espaço” (CAUQUELIN, 2007, p. 08).

3. A PAISAGEM CULTURAL ILHÉU E A NECESSIDADE DO ATERRO

A Portaria n˚127 do IPHAN define como paisagem cultural “uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram suas marcas ou atribuíram valores” (IPHAN, 2009, p.02). Com base nisto, podemos dizer que a paisagem de Martinho delimitava constituía-se em uma anterior paisagem cultural da ilha, uma área responsável, em grande medida, pelos modos de ser e viver da população local – talvez por isto ele tanto retratou aquele trecho da cidade em seus quadros (imagem 05) -, mas que, com o tempo foi sofrendo um processo intenso de modificação tanto do meio natural, quanto dos hábitos da população, mudanças que em grande medida refletem outros processos semelhantes ocorridos em muitas paisagens culturais do país.

Como já se expôs, o cotidiano da vida urbana florianopolitana, até pouco depois da metade do século XX, tinha uma relação muito íntima com o mar (imagem 06). Era através dele que as trocas aconteciam, não apenas trocas comerciais; mas também sociais e culturais, “era somente pelo mar e diante dele que se esperava o chegar e o partir. Era por ele que tudo de bom e tudo de mau chegava na ilha” (SANTOS, 1997, p. 17).

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Imagem 05 – Porto, Martinho de Haro, s/d. Fonte: AYALA, Walmir; HARO, Rodrigo de. Martinho de Haro. Rio de Janeiro: L. Christiano, 1986.

Imagem 06 – Mercado Público ainda ligado ao mar, s/d.

Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina

Esta relação tão familiar, até de desprezo - uma vez que o mau cheiro

característico era justificado pelos despejos de esgoto e lixo -, foi espacializada tanto no traçado urbano quanto nos equipamentos ali presentes. Isto é, as vias se formaram a partir das normais à linha da costa para que as casas tivessem melhor acesso ao mar, os

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equipamentos presentes ressaltavam esta característica como o Restaurante Miramar2(Imagem 07), rampas de acesso à praia, trapiches, portos e mirantes.

Imagem 07- Restaurante Miramar à extrema direita da foto, s/d. Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=916236&page=2

Os governantes, no entanto, a partir de fins do século XIX e ao longo de grande parte do XX, recorrentemente buscavam reverter a imagem interiorana que a cidade tinha e adequá-la às normativas modernas de progresso e expansão. Foi só na década de 1970 que Florianópolis passou por sua grande modificação de acordo com estas premissas.

A cidade moderna pensada para a Florianópolis da década de 1970 deveria ser salubre e estar longe do mar já poluído, ter áreas planas e livres para edifícios com altos gabaritos e ter veículos automotores como principal meio de locomoção. Era a época do “milagre econômico” no Brasil e precisávamos estar dentro do perfil de uma grande capital. Deste pensamento de desenvolvimento urbano resultou a construção, na década de 1970, da nova ponte Colombo Salles (1975) bem como do grande aterro que a Baía Sul sofreu, cujos equipamentos ficaram prontos ao final da década.

Idealizado para abrigar a administração pública de Florianópolis, melhorar o

sistema viário da cidade e criar áreas de lazer e esporte, o aterro da baia sul lançou o mar para bem longe e a antiga ligação com este foi se perdendo. Ligação que não era somente visual, mas principalmente de usos e práticas sociais. O mercado estava ali, à beira da orla e dela recebia diretamente seus produtos para comercialização. Uma série

2 O Miramar foi um bar construído em um cais que servia para o transporte marítimo e representou um grande ponto de encontro da cidade até a década de 70, quando teve que ser demolido para o aterramento da Baía Sul.

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de atividades e trabalhadores eram solicitados nesta empreitada de chegada, desembarque do peixe e encaminhamento aos boxes. Girando em torno disto, estavam, como bem afirmou Nivaldo Silva, outros locais como “o porto, a alfândega, a praça central, o Palácio do Governo e outros importantes logradouros públicos” (1996, p.13).

Com o aterro, inicia-se um processo contínuo de modificação da área, destes hábitos e atividades cotidianas. A questão de melhoria da salubridade urbana impôs diversas alterações, desde a venda correta de peixes no Mercado Público, até a ruptura entre o mar e a cidade.

Importante constatar que, tanto a Portaria n˚127 do IPHAN (2009) quanto a Carta de Bagé da Paisagem Cultural (2007), discorrem acerca da “interação” do homem com o meio natural, mas não especificam, tampouco aprofundam que tipo de interação é esta. Acredita-se que, esta interação com o meio, em uma área de valor cultural, será tanto mais rica quanto for a relação de interdependência entre este meio e as atividades decorrentes dele, ligadas à comunidade. No caso de Florianópolis, ao mudar o meio, mudou todo o caráter desta atividade3, ela passou a ser algo instrumentalizado, higienizado, controlado de acordo com padrões de modernidade e salubridade.

3.1. A apropriação pelo turismo apesar da conscientização da paisagem

O acelerado desenvolvimento que o mundo viveu até a 1ª metade do século XX, onde a extração era um meio e a tecnologia era a solução para os problemas modernos, já indicava o começo de um questionamento sobre este raciocínio progressista. Diante das diversas crises econômicas e ambientais da década de 1970, como a crise do petróleo, e a preocupação com a escassez de recursos naturais; “a paisagem fatalmente viria a se incluir entre os componentes do patrimônio cultural” (MENESES, 2002, p.49). É neste momento que a paisagem, termo que antes se referia à uma prática pictórica, passa a ser vista também como uma preocupação ambiental, ecológica:

A preocupação ecológica, com efeito, vem se enxertar no interesse pela paisagem, e meio ambiente” se torna uma palavra-chave. (...) Uma prática de saneamento veio recobrir a idéia de harmonia natural, pela qual antigamente se definia a “bela paisagem”. Ecologia, ar puro e saúde rimam com natureza verde e animais protegidos. E essa constelação “em forma de paisagem” se estende também às práticas urbanas, pelas quais as lixeiras também são verdes e assépticas. Prática social, ela impõe aos paisagistas um amplo leque de obrigações singulares: despoluição e proteção, o que também significa classificação das espécies naturais e dos sítios(CAUQUELIN, 2007, p.09).

Entretanto, esta ampliação das possibilidades da paisagem, como bem afirmou Cauquelin (2007), vem novamente corroborar seu antigo estatuto, que é o de, como falamos acima, reafirmar modos de ver e perceber o mundo, pois “garantir o domínio das condições de vida equivale a reassegurar permanentemente uma visão de conjunto, composta, enquadrada” (CAUQUELIN, 2007, p. 11). Dentro desta perspectiva, surge na Europa a primeira Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, aprovada pela Assembléia Geral da Unesco em 1972, visando incluir a natureza nas ações de preservação:

O grande avanço foi passar de bens isolados ou simplesmente justapostos para uma integração espacial mais consistente. No entanto, ainda persistia

3 Certamente a descaracterização da área não foi resultado somente do aterro, mas é fato que este teve papel fundamental por alterar o processo tradicional de comercialização na região.

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uma separação antinômica de natureza e cultura. A primeira superação, no domínio oficial dos técnicos, se deu com a famosa Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, aprovada pela Assembléia Geral da Unesco em Paris, 1972 (o Brasil está entre os 149 signatários), de grande repercussão. (MENESES, 2002,p.51)

Este pensamento refletiu no ano de 1974, “em uma das primeiras iniciativas em âmbito municipal no Brasil no sentido de objetivar a instituição de uma legislação de tombamento” (ADAMS, ARAÚJO; 2003). Foi criado em Florianópolis o SEPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do município – grifo nosso), cujo conceito de patrimônio abrangia não somente edifícios e ruas, mas também o acervo natural e paisagístico de Florianópolis a fim de assegurar o modo de percepção da cidade4. No entanto, como vimos, concomitantemente à criação do SEPHAN, o grande aterro da Baía Sul foi executado – também quase contemporâneo a isto Martinho pintou Panorama de Florianópolis -, o que acabou descaracterizando o local, originalmente ligado com o mar, e determinou uma mudança irreversível da paisagem.

A criação do órgão de preservação foi insuficiente para, poucos anos depois, o mercado ir gradativamente alterando seu caráter original de venda de peixes, frutos do mar, frutas e verduras (imagem 08). Já na década de 1980, começam a surgir outras atividades nos boxes do mercado, como bares, e restaurantes, direcionando-se a uma apropriação turística da área “o Mercado Público não ficou de fora deste período de transformações e tem na década de 80 um verdadeiro marco de mudanças que visaram principalmente tornar o local mais atrativo para os milhares de turistas que chegam à cidade anualmente” (SILVA, 1996, p.48).

Se o mar antes era meio estruturador das atividades da área, as vias de circulação criadas com o aterro traziam agora turistas querendo fotografar os monumentos da cidade e comer um pastel no Box 32, restaurante do mercado (imagem 09).

Imagem 08 – Imagem interna do mercado no início do séc. XX. Percebe-se o comércio de secos e molhados. Acervo do

Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina 4 No entanto, a categoria de paisagem cultural ainda não foi introduzida tampouco aprofundada nas discussões municipais acerca do patrimônio.

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Imagem 09 – Vista interna do Mercado Atual do turístico Box

32. Fonte: acervo dos autores

Em contrapartida à recente valorização turística do Mercado Público, na década de 80, o espaço que o circundava abrigava precariamente um comercio informal. A totalidade de 124 camelôs conferia ao local uma grande apropriação do espaço pela população, no entanto, o crescimento espontâneo deste tipo de comércio resultou em tendas improvisadas com fiações expostas e que, em alguns casos, já havia pessoas residindo nas mesmas.

O que se percebe é que não só o aterro propiciou uma descaracterização do espaço, mas a valorização do edifício e a mudança de usos a partir da década de 80, com a implantação de bares e restaurantes inacessíveis às classes populares, resultaram numa certa elitização de parte do Mercado e, conseqüentemente, uma segregação do espaço originalmente de caráter popular. Esta substituição de usos e da utilização da área não mais por seus habitantes está relacionada ao conhecido processo de gentrificação, fenômeno ocorrido em muitas cidades no mundo inteiro que possui dentre as suas características o entendimento da imagem da cidade como mercadoria, não somente para os turistas mas também para seus habitantes. Conforme Ulpiano Meneses: “o que está em primeiro plano nas preocupações – aquilo que se vende – não é a cidade, mas apenas a imagem direcionada que dela se construiu (MENESES, 2002, p.58-59).

4. CONCLUSÕES PRELIMINARES - TENTATIVAS DE RECUPERAÇÃO DA PAISAGEM

A partir de 1991 a Prefeitura Municipal de Florianópolis e o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis – IPUF - procuram desenvolver o “Plano de Reestruturação Urbana da Área Central”, criado com o intuito de propor intervenções urbanísticas a fim de corrigir as disfunções urbanas e ordenar a área central.

Um destes planos voltou-se para o Largo da Alfândega e possuía como pretensão principalmente preservar e valorizar o patrimônio, ordenar o sistema viário e as atividades

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comerciais, padronizar os equipamentos e o mobiliário urbano, e revitalizar as áreas públicas5.

Para isso, os camelôs foram relocados e no Largo da Alfândega foi supostamente implantada uma estrutura que garantiria o lazer, a recreação, a convivência social e a animação cultural. Esta estrutura contaria com cafeteria, floricultura, sanitários, posto policial, palco de apresentações, casas das louças e barros; equipamentos para a contemplação como um chafariz, o monumento às rendeiras e o monumento aos pescadores; e também foi disposto mobiliário e vegetação a fim de comportar a população (imagem 10).

Entretanto, atualmente, algumas partes do Largo da Alfândega encontram-se como um espaço residual inacessível por grande parte da população, isto porque é apropriado, principalmente, por mendigos que ali passam o dia e noite. Fato este decorrente da pouca ou quase inexistente manutenção e da subutilização da área.

A precariedade deste espaço é também percebida na ausência de articulação do novo aterro com o centro antigo, há descontinuidade tanto nos usos quanto nos fluxos, especialmente após a instalação do novo terminal urbano de ônibus da cidade (imagem 11). Atualmente a utilização inadequada do aterro é fato, visto que ele foi feito para o automóvel. “Duas malhas urbanas antagônicas foram confrontadas: a cidade velha que pode (...) combinar a presença dos homens e de máquinas; e a outra, a da área aterrada, criada para as máquinas, que exclui os pedestres.” (SANTOS, 1997, p.76-77).

Imagem 10 – Largo da Alfândega recém inaugurado em 1993, ao fundo o Mercado Público. Fonte: http://www.acafic.com.br/blog/fotos-de-

florianopolis/

5 As informações acerca deste projeto foram fornecidas por Jeanine Tavares, arquiteta do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis – IPUF.

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Mercado Público

Terminal Integrado do centro

Alfândega ( Largo da Alfândega)

Imagem 11 – Foto aérea da área em questão. Fonte: Google Earth, 2010.

O que se constata é uma tentativa de recuperar visualmente a área, transformar a porta de entrada da cidade em cartão postal, buscando conferir ao local característica de paisagem, ideal para fotografias, garantindo novamente uma vista, um modo de percepção do espaço.

A antiga paisagem cultural, em parte retratada por uma lembrança saudosista nos quadros Martinho, já é perdida. Acredita-se que, antes de tentarmos garantir modos de ver, em muitos locais, urge assegurar relações, especialmente relações de interdependência, entre as atividades do homem, e o meio em que ele vive. Talvez este seja um caminho para a discussão em torno da paisagem cultural. Na área em questão, importante seria a intervenção da prefeitura no sentido de determinar um limite restrito de usos não ligados às atividades originais do mercado, a fim de ao menos garantir que não se rompa a identificação forma e conteúdo tradicionalmente associada àquele espaço.

Essa pesquisa ainda está em andamento - é desenvolvida pelo grupo PET/ARQ-UFSC (Programa de Educação Tutorial- Arquitetura e Urbanismo) -, muitas questões ainda devem ser aprofundadas e investigadas, tentou-se trazer aqui um panorama da área a partir de seu processo de transformação, e com isso, tentar contribuir nas discussões acerca da paisagem cultural. Por fim, o que resta é saudade, saudade retratada nos quadros de Martinho, e traduzida por um antigo morador da área, Orestes Mello, administrador do mercado público de Florianópolis: “Essa época era muito mais bonita em Florianópolis. Nos anos 70, com o aterro, acabou esse romantismo, essa glória toda construída pela natureza em milhares de anos. (...) O próprio Miramar não precisava ter sido jogado ao chão (...). Se alguém tivesse pensado nisso, o romantismo seria preservado” (MESQUITA, 2002, p.23)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAMS, Betina; ARAUJO, Suzane Albers. Experiência municipal de preservação do patrimônio ambiental-cultural urbano – Florianópolis/Santa Catarina. Disponível em: <http://www.helsinki.fi/hum/ibero/xaman/articulos/2004_01/experiencia_municipal_preservacao.pdf> Acesso em 05. jul. 2010.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. SP: Martins Fontes, 2007.

BESSE, Jean-Marc. Ver-a-terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. SP: Perspectiva, 2006.

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MESQUITA, Ricardo Moreira de. Mercado: do Mané ao Turista. Ed. do autor, 2002

PARENTE, André. A arte do observador. Famecos, Porto Alegre, n.11, dez.1999. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/3058/2336>. Acesso 05.jul.2010.

SANTOS, Paulo César dos. Espaço e Memória: O Aterro da Baía Sul e o Desencontro Marítimo de Florianópolis. Dissertação de mestrado em História do Brasil, UFSC, 1997.

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