Reflexões Acerca Da Oralidade Como Ferramenta Na Constituição de Uma Etnografia Africana

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Reflexões Acerca Da Oralidade Como Ferramenta Na Constituição de Uma Etnografia Africana

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    An@is Frum FAPA

    REFLEXES ACERCA DA ORALIDADE COMO FERRAMENTA NA

    CONSTITUIO DE UMA ETNOGRAFIA AFRICANA

    Leandro Barbosa1

    Resumo

    Este artigo se constituir em uma anlise da relao controversa entre o uso da histria oral no

    registro da oralidade africana. Destacaremos sua funo como instrumento de resistncia,

    apontando esta interdependncia, que assinala alguns de seus distanciamentos e aproximaes

    no que tange a constituio de uma identidade negra. Ser uma proposta que aportar s

    dificuldades indicadas nesta comunicao, e a importncia dos diversos elementos

    constituintes da oralidade. Abordaremos como se compuseram estas afinidades, e o porqu

    existe esta altercao entre a histria oral e a memria, ambas assinalando a constituio

    identitria dos povos africanos.

    Palavras-chave: Oralidade. Memria. Africanidades. Cultura.

    1 INTRODUO

    A oralidade contida na histria dos povos africanos, em especial no Brasil, pode ser

    observada impressa no inconsciente da vida social, isto , na msica, no cotidiano, nas

    praticas sociais, permeando a cultura em todos os seus aspectos. Neste sentido a oralidade

    africana se constituiu dentro de nossa sociedade, como um elemento efetivo que nos

    transporta para uma anlise profunda das estruturas sociais, restituindo o valor para uma

    sociedade sem escrita, e resgatando a sua histria e valores culturais. Porm, necessitamos

    compreender que a histria e a conscincia histrica nem sempre concordam em questes

    fundamentais, e esta discrdia faz parte das altercaes existentes entre a antropologia e a

    histria. Nas ltimas dcadas no Brasil, tornou-se evidente o aumento do nmero de trabalhos

    que investigam os registros orais de grupos e culturas. Estes so elaborados em campos

    disciplinares distintos, dedicando seu enfoque para os modos pelos quais os indivduos,

    famlias e grupos sociais, em diferentes perodos e espaos, estabelecem e afirmam a suas

    tradies.

    Refletindo sobre a constituio histrica destas populaes africanas J. Vansina (2010)

    destaca que as civilizaes africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande maioria

    civilizaes que se utilizavam da oralidade, mesmo onde havia a escrita. Ele cita o exemplo

    da frica ocidental do sculo XVI, onde poucas pessoas sabiam escrever, permanecendo a

    escrita muitas vezes utilizada em um plano secundrio em relao s inquietaes essenciais

    1 Historiador, Telogo e Mestrando em Antropologia, Universidade Federal de Pelotas, Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia (PPGA) - [email protected]

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    da sociedade. Ele destaca que seria um erro restringir a civilizao da palavra falada

    meramente a uma negativa, ausncia do escrever, e vincular este fato a uma

    desconsiderao preconceituosa dos letrados pelos iletrados. Dar continuidade a esta

    interpretao errnea destas culturas, seria uma total ignorncia sobre a origem e carter

    dessas civilizaes orais.

    Como disse um estudante iniciado em uma tradio esotrica: O poder da palavra

    terrvel. Ela nos une, e a revelao do segredo nos destri (atravs da destruio da

    identidade da sociedade, pois a palavra destri o segredo comum) (VANSINA,

    2010, p.139)

    Contudo ao reconhecermos que cada sociedade possui uma cultura prpria, e que a

    partir desta estabelece a sua histria, torna-se importante compreender que toda esta discusso

    faz parte de um longo processo histrico que precede os princpios da modernidade. Nestas

    ltimas dcadas tornou-se evidente a abrangncia dos debates a respeito do conceito de

    oralidade, patrimnio cultural, identidade e etnicidade, em dimenses que esto alm das

    discusses j estabelecidas. Mas ainda encontramos certa resistncia sobre o seu

    reconhecimento como um ponto de partida e chegada do indivduo, em especial em questes

    que abrangem a sua diversidade, levando em conta a capacidade criativa humana de

    transformar o seu meio. Por vrias razes o tema da oralidade como constituidora de um

    patrimnio intangvel tem permeado os debates nas mais diversas categorias de anlise dentro

    da antropologia contempornea.

    2. SOBRE ORALIDADE COMO FERRAMENTA E MTODO

    Sobre a oralidade enquanto mtodo, Queiroz (2009, p. 53) destaca que a oralidade

    comporta em si, eventos no catalogados por outro tipo de documento, episdios estes cuja

    documentao complementa, ou viabiliza uma viso diversificada da produo histrica. A

    oralidade registra a experincia de vida de um indivduo, ou de vrios indivduos em um

    mesmo grupo. A autora segue afirmando que as fontes orais podem adquirir o formato de

    histrias orais de vida. Estes relatos orais de vida ou narrativas possuem sua referncia na

    individualidade e experincia do narrador, descrevendo em fatos o que presenciou. Pensando

    na utilizao da oralidade, podemos interpreta-la como um fundamental meio de comunicao

    na histria humana, abrindo espaos para as diversas narrativas, promovendo os diversos

    dilogos entre os grupos sociais. Ela torna possvel a comunicao entre diversas culturas,

    tambm a representao e aprimoramento dos meios de subsistncia. Percebe-se que h uma

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    ligao intima entre oralidade e a origem da prpria histria humana. No que tange o

    desenvolvimento de pesquisa, muitos no se apropriaram dos recursos e benefcios que a

    oralidade proporciona ao meio cientfico.

    No sentido do registro das tradies de grupos e culturas, Verena Alberti (2004)

    esclarece que a tradio oral e histria oral possui uma grande proximidade, principalmente se

    caracterizarmos as entrevistas como aes ou narraes, e no apenas relatos do passado. A

    tradio oral conteria narrativas sobre o passado universalmente manifestas em uma cultura,

    enquanto o depoimento ou a entrevista de Histria Oral se diferenciaria por verses que no

    so vastamente conhecidas.

    A tradio oral definida como um testemunho transmitido oralmente de uma

    gerao outra. Suas caractersticas particulares so o verbalismo e sua maneira de

    transmisso, na qual difere das fontes escritas. Devido sua complexidade, no

    fcil encontrar uma definio para tradio oral que d conta de todos os seus

    aspectos (ALBERTI, 2004, p.158).

    Quanto questo da concepo das reminiscncias orais, Vansina (2010) segue

    ressaltando que a tradio oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de

    uma gerao outra. Suas distines individuais so o verbalismo e seu modo de

    comunicao, na qual constitui uma diferena das fontes escritas. Por sua complexidade, no

    uma tarefa fcil elaborar uma definio para tradio oral que venha a abarcar todos os seus

    aspectos.

    Um documento escrito constitui-se em um objeto, um manuscrito. Um documento oral

    pode ser caracterizado de diversas formas, em especial por estar submissa a articulao do

    sujeito e suas reminiscncias. Neste sentido ocorrem na produo do relato uma sucesso de

    interrupes, recomeos, sentimentos e memrias recursivas, estas que emanam do momento

    em que estas so produzidas. O autor destaca que a significao arbitrria de um testemunho

    poderia representar todas as asseveraes feitas por uma pessoa sobre uma mesma sequncia

    de acontecimentos passados, esta premissa se estabelece levando em conta que a pessoa no

    tenha adquirido novas informaes entre as diferentes reminiscncias. Caso acontea o

    acrscimo de novas informaes, haveria uma alterao considervel e a transmisso seria

    transformada, nos levando a estarmos diante de uma nova tradio produzida (VANSINA,

    2010, p.140-1).

    Neste sentido podemos ressaltar que a persuaso que aprova coeso no grupo, esta

    integrao coletiva, idealizada como o espao de conflitos e influncias entre indivduos

    (HALBWACHS, 2004, p.51-2). J as reminiscncias individuais so construdas a partir das

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    menes e lembranas do grupo. Portanto, faz-se uma indicao a um ponto de vista sobre a

    memria coletiva. Percepo esta que deve ser analisada considerando o ambiente ocupado

    pelo sujeito no mago do grupo e suas relaes com outros meios (HALBWACHS, 2004, p.55).

    O autor segue afirmando que a memria individual permanece sempre a partir de uma memria

    coletiva, apontando que todas as reminiscncias so constitudas no interno de um grupo. A

    procedncia de vrios iderios, ponderaes, sentimentos, que atribumos a ns so, na verdade,

    causadas pelo grupo. A proposio de Halbwachs acerca da memria individual refere-se

    existncia de uma intuio sensvel.

    Haveria ento, na base de toda lembrana, o chamado a um estado de conscincia

    puramente individual que - para distingui-lo das percepes onde entram elementos do

    pensamento social - admitiremos que se chame intuio sensvel (HALBWACHS, 2004, p.41).

    J Leda Martins (2001) destaca que a tradio oral africana pode ser observada como

    um depsito de frmulas de conhecimento que auxilia o indivduo na busca por integrao

    com o tempo e espao. Segundo a autora ela no pode ser esquecida ou desvalorizada. Como

    seres humanos, nos constitumos como seres de palavra, nossa voz e fala, necessitam ser

    valorizadas, sendo que estes usos no podem ser empregados para descaracterizar a dignidade

    humana.

    Neste sentido a oralidade se constitui em uma forma de registro, preservao e em

    especial na comunicao dos conhecimentos. Ela possui em si uma complexidade, sendo to

    intricado o quanto a escrita, pois nela se concentra vrios modos de nos expressarmos, por

    vezes ela carregada de corporalidade, musicalidade, gestos, narrativas, danas, etc. Se nos

    permitirmos uma aproximao do assunto, perceberemos que oralidade seria uma adjacncia

    extensa, que recupera os mais variados perfis de relatos alcanados atravs dos relatos. Na

    atualidade o passado e o presente, inclusive o futuro, esto cada vez mais se

    patrimonializando, e junto com estas mudanas, esto os aspectos referentes s novas

    formas de reconhecimento de uma cultura. Na atualidade h uma enormidade de grupos,

    etnias, populaes, prticas e culturas que conquistaram o reconhecimento como patrimnio

    humano. Sendo que estes assumiram o carter e a importncia como constituidores de

    identidade, agregando valor aos mais diversos debates polticos, fortalecendo as

    reivindicaes de grupos que antes no possuam reconhecimento.

    Verena Alberti (2005) destaca que neste sentido o registro da oralidade tornou-se uma

    ferramenta decisiva dentro das mais tradicionais disciplinas antropolgicas, em especial para

    a etnografia, e vem cada vez mais corroborando para a compreenso dos processos culturais

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    na atualidade. Ultimamente o uso do registro da oralidade j se consolidou como uma soluo

    de pesquisa histrica admirvel para a transmitncia das experincias sociais, isso em

    consequncia da preocupao de antroplogos, socilogos e historiadores com o

    conhecimento contido na oralidade das culturas populares. Estes que hoje se destacam na

    produo de uma nova histria social, em que os segmentos excludos da sociedade, cujas

    verses eram ignoradas pela histria tradicional, assumiram espao ativo na construo da

    trama histrica. A autora sugere que um aprofundamento destes elementos por meio de

    conversas com pessoas sobre a experincia a memria individual, e ainda por meio do

    impacto que estas tiveram na vida de cada uma.

    A indicao de uma metodologia de anlise para fonte oral conjetura a compreenso

    do contedo e suas singularidades. Isto significa ter cincia de suas razes, os porque da

    produo e como esta ser utilizada. Destaca-se a necessidade de compreender a fonte oral

    como conhecimento que deve ser tratado e reconstrudo. A fonte oral empregada em uma

    diversidade de reas do conhecimento. Segundo Verena Alberti (2005) pode-se constatar as

    diferentes reas em que a metodologia de Histria oral pode ser aproveitada.

    O trabalho com Histria oral se beneficia de ferramentas tericas de diferentes

    disciplinas das Cincias Humanas, como a Antropologia, a Histria, a Literatura, a

    Sociologia e a Psicologia, por exemplo. Trata-se, pois, de metodologia

    interdisciplinar por excelncia. Alm dos campos mencionados, ela pode ser

    aplicada nas mais diversas reas do conhecimento: na Educao, na Economia, nas

    Engenharias, na Administrao, na Medicina, no Servio Social, no Teatro, na

    Msica... Em todas essas reas j foram desenvolvidas pesquisas que adotaram a

    metodologia da Histria oral para ampliar o conhecimento sobre experincias e

    prticas desenvolvidas, registr-las e difundi-las entre os interessados (Idem, p.52).

    Ressaltando esta afirmao, Alessandro Portelli (1997, p.15) assinala que o mtodo de

    registro da oralidade, em especial o da Histria Oral, destaca-se como uma cincia e arte do

    indivduo. Ele prope que esta possui uma relao direta com a sociologia, antropologia,

    padres culturais, estruturas sociais e processos histricos. Ao refletirmos sobre a oralidade

    africana, trazendo questes relacionadas s perspectivas constitutivas da identidade cultural, e

    sua relao com o conceito de patrimnio, teramos que nos acercar especificamente a alguns

    temas importantes decorrem da compreenso destes conceitos. Nesta perspectiva, destacam-se

    os processos que induziro s alteraes no conceito de identidade na percepo moderna at

    a ps-moderna, bem como os elementos distintos a esta anlise.

    importante destacar que a anlise da fonte oral no implica na descoberta de uma

    verdade essencialista sobre a construo da(s) narrativa(s), mas a possibilidade de acesso a

    este mundo do outro, uma construo que por vezes pode ser imaginada, um recurso utilizado

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    pelo grupo como meio de ordenar a sua realidade trazendo sentido para o seu presente. Nesta

    perspectiva Marco Antnio Gonalves (2007), em sua anlise da obra cinematogrfica do

    antroplogo e cineasta Jean Rouch (1917-2004), compreende que esta construo etnogrfica

    se constitui a este acesso ao mundo do outro, onde muitas vezes o que considerado como

    realidade vem a se fundir com a fico, causando uma fuso entre o que a percepo do real

    em relao ao que constitudo como uma fico. Nesta perspectiva a imaginao apreciada

    enquanto constituidora de realidade.

    Essa condio da etnografia, de se ter acesso ao mundo do outro pela palavra do

    outro sobre si prprio e sobre quem lhe pergunta como o seu mundo, da

    etnografia a confiana de tomar o que as pessoas imaginam como sendo uma

    verdade, isto , a verdade da etnografia (GONALVES, 2008, p. 115).

    Na composio de uma etnografia sobre a oralidade, na implicao desta relao

    entre o eu e o outro que se encontra a construo de sentidos, em especial no que imaginado,

    espao onde surge a realidade construda. H uma tendncia contraditria nas cincias

    humanas em descreditar o que imaginado, acreditando que tal se constituiu em um polo de

    oposio ao que considerado real.

    3. PENSANDO EM UMA ETNOGRAFIA AFRICANA

    Os estudos de Stuart Hall (2003) foram fundamentais na ampliao desta perspectiva,

    em especial em sua conceituao de cultura, e na abordagem sobre Estudos Culturais,

    alcanando reconhecimento como uma das principais referncias no debate sobre cultura,

    identidade e etnicidade. Ele prope um breve conceito de cultura que fundamental na

    concepo de identidade cultural e suas articulaes. Nesse sentido Stuart Hall props uma

    reflexo sobre as mutaes sofridas pelos sujeitos ao decorrer da constituio do pensamento

    moderno, evidenciando que houve uma forte alterao no sentido das antigas identidades que

    davam harmonia e equilbrio aos indivduos. Esta perspectiva moderna carrega consigo um

    universo de possibilidades para a composio da identidade cultural, estas que so elementos

    distintivos de coexistncia dos grupos.

    A cultura uma produo. Tem sua matria-prima, seus recursos, seu "trabalho

    produtivo". Depende de um conhecimento da tradio enquanto "o mesmo em

    mutao" e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse "desvio atravs

    de seus passados" faz e nos Capacitar, atravs da cultura, a nos produzir a nos

    mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, no uma questo do que

    as tradies fazem de ns, mas daquilo que nos fazemos das nossas tradies.

    Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, esto a

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    nossa frente. Estamos sempre em processo de formao Cultural. A cultura no e

    uma questo de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p.44).

    Quanto questo da oralidade africana como instrumento de reconhecimento,

    devemos ter por cincia que estas questes envolvem uma srie de problemas relativos s

    questes tnicas, estas que fazem referncia a um histrico de escravido e resistncia. Paul

    Gilroy (2002) destaca que a constituio da identidade e cultura negra surgiu primeiramente

    nas Amricas como um elemento de resistncia escravido, e ao terror racial imposto por

    ela. O autor associa as culturas e identidades negras, como recorrentes sua experincia com

    a memria da escravido, esta que ocorreu na dispora africana sendo decorrente aos

    processos de racializao que dela brotaram. importante destacar que o processo de

    racializao aparece de forma concreta, mas ainda hoje pouco problematizada. Neste sentido

    a escravido moderna definida por Gilroy de forma integral, como a escravido racial.

    Neste aspecto importante destacar que esta relao de tenso existente na produo de uma

    oralidade negra, permeada de questes que no operam somente em um passado, mas so

    ressaltadas atravs do sentimento diasprico, chegando at o presente como uma problemtica

    tnico-racial.

    Segundo a antropologia social moderna, o sentido de identidade de um sujeito, de um

    grupo ou nao, no se forma apenas pelo conhecimento, ou a aceitao e destaque oferecido

    s suas caractersticas e especificidades, mas tambm em especial, pelo contraste das mesmas

    com as caractersticas em reflexo com o outro. Ou seja, o sujeito se define tanto pelo o que

    acredita ser, como que pelo o que ele julga no ser. Isso cognominado de "identidade

    contrastiva". Roberto C. de Oliveira (1976, p. 42-45), destaca que o carter contrastivo nas

    construes identitrias, constitui-se em um atributo fundamental da elaborao da identidade,

    em principal da identidade tnica. J Clifford Geertz (1997) vem a acrescentar na discusso,

    destacando a relevncia do contraste, proporcionando significados, auxiliando na

    compreenso de ns e dos outros.

    [...] s podemos comparar quando somos capazes de chegar ao corao do assunto,

    me parece pelo menos neste contexto, o exato reverso da verdade: atravs da

    comparao, e de incomparveis, que compreenderemos seja l qual for o corao a

    que conseguirmos chegar (GEERTZ, 1997, p. 354).

    Acentuando a complexidade do tema oralidade negra, tratando sobre a questo da

    dispora africana, Stuart Hall (2003), observa que a as nossas sociedades no so compostas

    somente de um povo, mas de muitos. Ele ressalta a importncia de reconhecermos que nossas

    origens no so nicas, mas passivas de uma diversidade muito abrangente. O conceito de

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    dispora possui embasamento em uma concepo binria de diferena. Em uma esfera se

    encontra a perspectiva de um eu dependente da constituio do outro, firmando um contraste

    rgido que surge do interno para o externo.

    A diferena sabemos essencial ao significado, e o significado e crucial a cultura.

    Mas num movimento profundamente contra intuitivo, a lingustica moderna ps-saussuriana insiste que o significado no pode ser fixado definitivamente. Sempre ha o deslize inevitvel do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente re-apropriado (HALL, 2003,

    p.33).

    Hall destaca que o significado um elemento decisivo para cultura, utilizando-se da

    noo moderna ps-saussiriana, ele incisivo em afirmar que o significado no pode ser

    fixado estaticamente, ele se caracteriza como um elemento de movimento constante. A

    perspectiva diasprica da cultura seria uma percepo subversiva em relao aos modelos

    culturais tradicionais. Neste sentido, poderamos afirmar que no apenas uma oralidade

    africana, mas no sentido mais diasprico de Hall, seriam muitas oralidades africanas, sendo

    que estas oralidades poderiam encontrar nas outras contrastes que seriam elementos essenciais

    de sua constituio identitria. Este elemento das diversas oralidades constitui-se em um

    desafio para a antropologia, em especial no reconhecimento das muitas culturas negras

    provenientes da dispora africana, e as mutaes a que estas foram condicionadas pelo

    sentimento da dispora.

    Durante muitos anos, as questes do reconhecimento da oralidade africana como um

    elemento de caractersticas multifacetadas, foram submissas uma perspectiva colonial, esta

    que reduzia as perspectivas das produes dos estudos africanos a uma unidade cultural

    inexistente. Homi Bhabha (1998) em seu livro O local da cultura prope um debate acerca

    da constituio e a desconstruo da identidade do outro por meio dos estudos Ps-coloniais.

    Ele analisa os processos ao qual o outro colonizado qualificado de forma depreciativa pelo

    discurso do colonialismo Europeu.

    Segundo Bhabha o colonizado seria representado pelo colonizador como uma

    populao selvagem carente de civilidade. Seria um discurso com embasamento em teorias

    raciais, onde o colonizador procuraria justificar o seu predomnio em todos os aspectos sociais

    e culturais. Segundo o autor a mmica estabeleceria um esquema estratgico bem intrincado,

    onde o colonizador estabeleceria o seu domnio, pois convenceria o colonizado de sua suposta

    condio de cultura subalterna. Este processo de submisso cultural, no s atestaria as aes

    do colonizador sobre o colonizado, mas procuraria eliminar os aspectos culturais do

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    subordinado, o lanando em um espao de vcuo identitrio, o condicionando a referenciar-se

    sempre na cultura do colonizador.

    A constituio da conscincia colonial ocorreu atravs de uma propaganda ideolgica

    histrica produzida pelas metrpoles, sendo que indivduo colonial era condicionado a pensar

    o seu lugar no mundo na perspectiva do colonizador. Este espao do colonizador era um lugar

    transmissor de ideias que centralizavam o mundo em si. Mas quando este indivduo colonial

    localiza-se na metrpole, lugar este que ele acredita ser o seu lugar, criando uma comunidade

    imaginada, ele acaba por ter que se deparar com a dualidade da alocuo colonial. Este

    empasse acaba por colocar em conflito a sua constituio identitria, pois se evidencia que na

    metrpole no lhe tolerado qualquer coexistncia, torna-se inexistente a ideia de

    comunidade, no h coletividade. As cidades se constituem em representaes concretas do

    individualismo moderno, elemento este que acaba por criar uma conscincia bidimensional ao

    individuo colonial. O impacto da descoberta do embuste do discurso a que foi alvo ao longo

    de sua existncia produz vazio e instabilidade, uma crise identitria que afeta diretamente a

    articulao de suas reminiscncias.

    importante ressaltar que diante da perspectiva ps-colonial, a cultura diasprica nos

    remete a resistncia por significado vivenciada por comunidades locais em situaes

    histricas de deslocamentos. Estas que foram obrigadas a articular suas memrias em

    conjunto com as tenses propostas pelo terror racial, sempre dialogando com os pavores e

    traumas em busca de sentido, elaborando novas formas de conscincia e identificao. O

    oferece destaque a questo da identidade, ressaltando-a como um posicionamento que cada

    indivduo assume, porm ela se constitui em resultado de formaes histricas, carecendo ser

    vivida por completa.

    Acho que a identidade cultural no fixa, sempre hbrida. Mas justamente por

    resultar de formaes histricas especficas, de histrias e repertrios culturais de

    enunciao muito especficos, que ela pode constituir um posicionamento, ao qual podemos chamar provisoriamente de identidade (HALL, 2003 p. 432-3).

    Paul Gilroy (2007) em seu livro Naes, Culturas e o Fascnio da Raa prope que

    devemos superar o conceito de modernidade para uma ps-modernidade, abrindo-nos para

    uma nova concepo de raciologia, entendendo-a como um processo poltico-econmico,

    proporcionando com isso o rompimento com estas altercaes metodolgicas atuais em

    contidas em ambos os lados. Neste sentido o conceito de multiculturalismo nos ofereceria um

    novo projeto tico como contragolpe aos problemas patolgicos do racismo genmico. Na

    atualidade a identidade pode tambm ser percebida como algo a ser possudo, carregando um

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    status de importncia para os grupos, reforando a coletividade entre eles. importante

    destacar que este conceito pode ser desvirtuado devido s mutaes dos meios sociais e

    tecnologia. Neste sentido, o uso do conceito de dispora ofereceria uma compreenso mais

    ampla da cultura como um elemento enraizado que evidncia uma dinmica de definio

    transcultural.

    Faz-se necessrio aludir, em especial diante das tenses a qual foi sujeita, a cultura

    africana encontrou uma forma de oferecer resistncia modelando elementos culturais de

    maneira a comunicar-se com a prpria cultura. Articulando com a cultura do colonizador,

    estes grupos ordenaram um emprstimo dos elementos africanos por outros proporcionados

    pela dominao colonial, mantendo mesmo assim uma perseverana para com as suas

    caractersticas de origem.

    A respeito do primeiro, aprecivel a capacidade dos colonizados de usar o idioma

    colonial para externar seus desejos. Eis uma caracterstica da cultura imposta que

    tambm pode ser libertadora. Igualmente, a construo das lnguas crioulas, a partir

    do perfil africano, tem o valor de um arquivo que contm a essncia da frica

    imaginria, idealizada na memria. O fator persistncia est ligado a uma instituio

    muito importante, imprescindvel, e s aprofundando em seu estudo, poderemos

    chegar a conhecer a alma africana. Estamos falando no tambor. Raramente, os

    historiadores e os etnologistas ocidentais abordaram o estudo da rtmica percussiva

    como substituta da escritura na frica (MONTIEL, 1999, p.28-32).

    Por um longo tempo, empregou-se de um discurso que carecia elaborar antagonismos

    entre o passado e o presente promissor, entre o que era de conhecimento popular, e a cincia

    classificada como coerente e culta. No entanto, a oralidade africana no foi abandonada como

    forma de transmisso de saberes, principalmente daqueles ligados s reminiscncias

    populares. Estes questionamentos ditos cientficos invalidaram a importncia das narrativas

    individuais, descaracterizando tudo o que no fosse de ordem documental, com isso, no

    levando em conta a oralidade como elemento importante na composio da histria destes

    grupos e populaes da dispora.

    Novamente, Bhabha (1998) destaca como soluo para a constituio de uma

    oralidade africana, a necessidade de articularmos com este conflito, referente perda de

    identidade, a importncia do resgate das reminiscncias. Consistiria em o ato de recordar a

    trajetria do colonizado antes da colonizao, rememorando o seu passado de escravido e

    resistncia. O ato de recordar no pode ser apenas condicionado a uma soluo para conflitos

    identitrios contemporneos, isto somente criaria uma srie de empecilhos na fluncia deste

    passado. preciso que e se componha a constituio de algo novo, distinto do que j foi

    institudo no passado, distante desta percepo proposta pela cultura colonizadora. Este

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    distanciamento no se constituiria em uma proposta de esquecimento destas reminiscncias,

    mas e sim conscientizao sobre este passado. Seria o ato de constituir um novo espao de

    reflexo para este ser hbrido e que est perdido em meio a este entre-lugar. literalmente a

    noo de que ele jamais ser como o colonizador, pois possui em si algo nico.

    O autor se utiliza da expresso fixidez deslizante quando se prope oferecer uma

    distino para a identidade do indivduo colonial. Este perfil identitrio constitudo de

    fixidez justamente por suas caractersticas de imutabilidade e coeso. Isto designa um

    contraste com a construo identitria moderna, esta que se estabelece atravs de processos

    contnuos de construo e desconstruo. Neste sentido, Bhabha prope a constituio de uma

    possibilidade de deslizamento sucessivo entre distintos grupos como forma de elaborar

    possibilidades para que essa nova identidade coletiva possa se desenvolver.

    4 CONCLUSO

    Portanto importante notar a acuidade dos estudos relativos oralidade africana, estes

    que na atualidade so construdos a partir de diversas perspectivas, respeitando os interesses

    que so abordados nas diferentes disciplinas que se concentram no tema. Embora por vezes

    estas memrias sejam abordadas como uma variedade de manifestaes culturais, assinaladas

    como sobrevivncias de tradies esvanecidas, para a antropologia elas surgem como um

    reflexo da sociedade contempornea atual, tornando-se excelente recurso para comunicao

    de significados para a sociedade. Neste sentido a oralidade africana contm em si todos estes

    elementos, sendo que Cada memria que reconhecida e registrada, acaba por oferecer

    mltiplas possibilidades de anlise na identidade, em especial da brasileira.

    Como j foi destacado, estas oralidades se constituem em um elemento essencial para

    a construo das relaes individuais e coletivas. As populaes africanas que foram sujeitas

    a escravizao, transportaram em suas essncias os seus ritos religiosos, suas linguagens,

    vestimentas, corporalidade, comidas, em especial a maneira como estabelecem as suas

    relaes com os animais e a natureza. um universo que se compe, evidenciando a sua

    forma nica de celebrarem as suas muitas culturas. Assim sendo, a produo de um registro

    destas oralidades permite um vislumbre da constituio de uma identidade nova, mas no

    imaginada como um elemento globalizante, totalizante, essencialista, mas sim como um

    componente passvel de um processo de construo, um organismo vivo exalando vivacidade

    e mutao.

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    An@is Frum FAPA

    REFLECTIONS ON USES OF ORALITY AS A TOOL IN THE CONSTITUTION OF

    AFRICAN ETHNOGRAPHY

    Abstract

    This article will constitute an analysis of the contentious relationship between the use of oral

    history in the record of African orality. Will highlight their function as a tool of resistance,

    indicating this interdependence, which marks some of their distances and approximations

    regarding the formation of a black identity. A proposal that will lead to difficulties indicated

    in this communication, and the importance of the various elements that constitute the orality.

    Will approach how to composed these affinities, and the reason there is this altercation

    between oral history and memory, both marking the identity construction of African peoples.

    Keywords: Orality. Memory. Africanities. Culture.

    REFERNCIAS

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