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REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA DA PAISAGEM CULTURAL
CASTRO, CLEUSA DE
Universidade Federal do Paraná Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Rua Presidente Taunay, 1241, Ap. 12 –CEP 80.430-000 – Curitiba, Pr. [email protected]
RESUMO
Este artigo procura discutir questões conceituais relativas à Paisagem Cultural, a fim de contribuir para uma delimitação mais segura dos ambientes culturais que podem receber esta chancela. Toma como base a conceituação estabelecida pelo IPHAN, em sua Portaria 187/2009, onde institui mecanismos, estratégias e definições sobre a aplicação da chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Esta discussão deve se iniciar pela exploração do conceito de paisagem, em busca da diferenciação entre paisagem natural e paisagem cultural, com ênfase para as disciplinas aí envolvidas como a geografia, a antropologia e a ecologia para esclarecer as relações possíveis entre humanos e o meio em que habita. Para que se desenvolvam estas conceituações é preciso buscar uma compreensão mais amplamente do termo CULTURA, como dado de separação com a NATUREZA, em busca do limiar onde o homem transforma a natureza em seu suporte de subsistência. Há que se considerar ainda, quando da definição de Paisagem Cultural, a prevalência dos elementos da natureza sobre os culturais. Tal exposição busca avaliar a pertinência de se considerar os aspectos quantitativos e qualitativos dos dados em questão e de como se pode dar a avaliação da relação de equilíbrio entre os dois fatores em análise: a quantidade e a qualidade da sobreposição da natureza pela cultura ou da apropriação do meio pelo homem. A questão temporal é fator preponderante na identificação da Paisagem Cultural, uma vez que a avaliação para a instauração da chancela passa pela permanência duradoura no tempo de uma relação de equilíbrio entre o assentamento humano ou dos vestígios de sua intervenção cultural sobre o meio natural. Assim, outra relevante investigação deve tratar da legitimidade da manutenção ao longo do tempo das características peculiares do espaço em julgamento.
Palavras-chave: paisagem cultural; patrimônio; natureza; cultura
3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
Este artigo procura discutir questões conceituais relativas à Paisagem Cultural a fim de
contribuir para uma delimitação mais segura dos ambientes culturais que podem receber esta
chancela.
A definição, apresentada no artigo 1o da Portaria do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) de número 187/2009, conceitua Paisagem Cultural Brasileira como “uma
porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com
o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores”.
O próprio IPHAN esclarece que se deve atentar para as condicionantes que evidenciam o
caráter de Paisagem Cultural, ressaltando a existência de singularidades materiais de
determinada área, bem como sua relação intrínseca com a natureza e ao caráter dinâmico no
convívio com o homem.
Preservação de Paisagem Cultural refere-se, no entender desta legislação, ao mecanismo
que possa garantir a sobrevivência de determinados cenários urbanos ou rurais que traduzam
tradições culturais da ambientação de grupos sociais em localidade específica. Está implícita
aí a relação harmoniosa entre humanos e a natureza. Esta nova categoria de proteção visa
abarcar situações híbridas não abrangidas pelas definições estanques de patrimônio cultural
ou patrimônio natural.
Esta discussão deve se iniciar pela exploração do conceito de paisagem, em busca da
diferenciação entre paisagem natural e paisagem cultural, com ênfase para as disciplinas aí
envolvidas como a geografia, a antropologia e a ecologia para esclarecer as relações
possíveis entre humanos e o meio em que habita.
Para que se desenvolvam estas conceituações é preciso buscar uma compreensão mais
ampla do termo CULTURA, como dado de separação com a NATUREZA em busca do limiar
onde o homem transforma a natureza em seu suporte de subsistência.
SOBRE NATUREZA E CULTURA
A separação entre cultura, materializada em sua representação de sociedade, e natureza é
antiga. Tal separação tornou-se mais aguda com a ascensão do capitalismo e com os
sistemas de conhecimento que lhe deram suporte principalmente o Positivismo. Os meandros
deste sistema moderno teve como origem a razão que amparou a ciência por métodos
analíticos e propôs a separação entre sujeito e objeto.
Para Claude Lévi-Strauss, a cultura é o que permite uma superação lógica do caos informe do
mundo biológico na direção das estruturas (regras) que subjazem ao pensamento e às
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sociedades humanas e as organizam ou estruturam. Desde tais considerações de cunho
metodológico, concebidas sofisticadamente por Lévi-Strauss, a partir de sua obra As
Estruturas Elementares do Parentesco (1949), onde aponta que a própria origem do
fenômeno social estaria na passagem da natureza para a cultura, a antropologia reflete sobre
o paradigma dualista que permeia a sociedade humana no sentido de seu afastamento da
natureza.
Esta oposição vai ser contestada como premissa conceitual por vários pensadores
contemporâneos, no sentido da relativização de suas definições. Latour (1994) defende que
as fronteiras entre o natural e o cultural tem suas origens ontológicas na Modernidade, onde
respalda sua argumentação sobre a suposta divisão do mundo em entes puri icados de
nature a ou cultura, racionalmente compreensíveis e plenamente di erenci veis. o revisar a
noção de natureza como algo imutável e descritível cientificamente, Latour aponta a
existência da pr tica de “tradução” que trabalha com híbridos de natureza e cultura em
oposição à pr tica de “puri icação” que evidencia a separação em duas onas distintas: a dos
humanos e a dos não humanos.
Já a geografia, enquanto disciplina, também tendeu a defender uma separação entre
sociedade e natureza no pensamento moderno. As insatisfações com os limites explicativos
provocados pela lógica moderna levaram à ascensão das teorias pós-modernas em vários
campos do conhecimento e assim tanto o mundo social como o natural exigiam novas
abordagens que dessem conta das novas aspirações, principalmente referentes a questões
ambientais e de cunho menos pragmático e lógico. Várias facetas da paisagem passaram a
fazer parte das novas abordagens, incorporando reflexões subjetivas e perceptivas que
considerassem o ser e o estar num mundo multifacetado.
A noção de natureza como ente dotado de uma unidade indivisível e impenetrável cede lugar
a interpretações que compreendem, não somente o suporte físico e material onde ocorrem as
atividades humanas, mas como entes partícipes da humanização das paisagens. Neste
sentido, surgem ciências que visam dar conta desta integração entre cultural e natural como a
ecologia histórica (Balée, 1998), que compreende a construção social dos ambientes a partir
das interações entre os grupos sociais e os elementos constituintes do suporte natural do sitio
em questão.
SOBRE OS CONCEITOS DE PAISAGEM
Dentre as inúmeras abordagens acerca do termo paisagem, vale resgatar aquelas que se
referem à apreensão de determinada área e de suas características. Neste sentido, a
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geografia foi a ciência que tratou mais seriamente sua conceituação por ter na paisagem o seu
objeto direto de trabalho.
O conceito de paisagem, em que se baseiam as demais definições utilizadas, atualmente
remonta a 1925, quando oi exposto num artigo intitulado “ Mor ologia da Paisagem” do
geógrafo norte americano Carl Ortwin Sauer, que funda a chamada geografia cultural onde,
segundo Ribeiro (2007, p. 31), tem o mérito de transformar a paisagem em um conceito
científico, valorizando a abordagem a partir de seus aspectos materiais. A paisagem para
Sauer seria composta por uma área distinta de formas, tanto físicas e materiais quanto
culturais. Ainda assim, ele vai propor uma divisão entre as paisagens naturais (virgens) que se
apresentariam intocadas pela humanidade e as culturais que teriam a presença humana
imprimindo suas marcas sobre o suporte natural.
Os contornos conceituais sobre paisagem são pouco nítidos a partir das concepções definidas
pela nova Geografia Cultural, decorrente de posturas pós modernistas que derrubaram as
certezas positivistas da modernidade. Tal inexatidão pode ser justificada pela observação de
Meining (2002, p.35) que entende que um dos problemas principais relaciona-se ao fato da
paisagem ser “composta não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas
também por aquilo que se esconde em nossas mentes”. Neste sentido, questões de frente
subjetiva envolvem a conceituação de paisagem e sua apreensão, bem como reflexões
acerca de seu simbolismo.
Várias indefinições, que cercam o conceito de paisagem, vão oscilar, desde as proposições
mais pragmáticas, passando pelas de cunho antropocêntrico na modernidade, bem como as
posturas relativistas que despontam dentro da pós-modernidade. Considerando tais
premissas sobre as variantes nas definições e compreensões sobre paisagens é pertinente
esclarecer os limites e as sobreposições conceituais sobre paisagem natural e cultural. Uma
paisagem pode conter elementos naturais e humanos quando “humanizada”, enquanto que o
entendimento de uma paisagem natural se aplicaria sobre os ambientes que só contém
elementos estritamente naturais. Tomando-se como base as definições sobre paisagem
tratadas pela geografia, pode-se constatar a relação estreita que este conceito sempre
manteve com o de cultura. Também aí o diferencial vai se dar entre a modernidade e a
pós-modernidade.
A pós-modernidade abarca subjetivamente o período em que a ciência se caracteriza por uma
ausência de paradigmas, aceitando a utilização de abordagens heterogêneas na busca de
conceituações. A premissa que se estabelece, nesta linha de pensamento, é a da
relativização e então a paisagem passa a ser entendida como a resultante de um processo,
permanentemente, inacabado. Ao traçar um perfil evolutivo dos conceitos de paisagem, Name
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(2010, p.18) en ati a seu car ter dinâmico “com diversas escalas de tempo e níveis de
observação. A paisagem possui elasticidade e ambiguidade, necessariamente sendo
impossível se apreendê-la de forma totalizante e encarcer -la em uma definição única. Assim
como a cultura.” Reside aí uma das primeiras di iculdades encontradas ao se estabelecer os
limites da Paisagem Cultural, uma vez que a conceituação de paisagem por si só gera
incertezas.
O entendimento de que paisagem é um constructo mental da sociedade humana apóia-se na
sua vinculação à visualidade e interpretação de determinado espaço. Como observa Sayão
(2011, p.27), a paisagem é considerada uma composição sensível de acesso a cultura, uma
forma de representação carregada de sentimentos, mem rias e conhecimentos.
Bertrand (1971, p.2) conceitua paisagem como uma determinada porção do espaço, resultado
da combinação dinâmica, portanto, inst vel de elementos ísicos, biol gicos e antr picos que,
reagindo dialeticamente uns sobre os outros, a em da paisagem um con unto nico e
indissoci vel, em perpétua evolução. Tal postura aponta para uma homogeneidade entre as
partes constitutivas da paisagem e da incorporação da natureza pela compreensão da cultura,
entendendo-se, em definitivo, que o natural e o humano são intrínsecos à paisagem. A
paisagem é resultante, portanto, de intervenções propostas pela ação humana sobre
elementos físicos e naturais que passam a incorporar assim elementos históricos e culturais.
Para restringir a abrangência do termo paisagem, pode-se então voltar aos conceitos
instituídos por Sauer (1998, p.23), onde “o termo Paisagem é apresentado para definir o
conceito de unidade da geografia, para caracterizar a associação peculiarmente geográfica de
atos.” Desta orma, uma das primeiras considerações acerca da Paisagem Cultural como
abordagem do ponto de vista de preservação de patrimônio, refere-se à identificação de
lugares com características significativas, tanto do ponto de vista cultural como natural que
contribuam para a caracterização da rica diversidade de uma nação. Neste sentido, o estudo
que respalde a apreensão desta paisagem deve se dar quanto à identificação dos elementos
que caracterizem a unidade geográfica que gera a peculiaridade de sua constituição e suas
características que a distinguem das demais.
A Convenção do Patrimônio Mundial de 1992 tornou-se o primeiro instrumento jurídico
internacional a reconhecer e proteger Paisagens Culturais. Em seu artigo 1o, a Comissão
reconheceu que as Paisagens Culturais representam as obras conjugadas da natureza e do
homem.
A referência de Paisagem Cultural, no âmbito de patrimônio cultural, está respaldada na
definição de um dos critérios culturais para a inscrição como Patrimônio Mundial pela
UNESCO, a partir de 2005, que aponta que o sítio deva constituir um exemplo excepcional de
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habitat ou estabelecimento humano tradicional ou do uso da terra, que seja representativo de
uma cultura ou de culturas, especialmente as que se tenham tornado vulner veis por e eitos
de mudanças irreversíveis. Importante ressaltar a premissa de que todos os bens culturais
devem obedecer ao critério de autenticidade para serem assim considerados como patrimônio
cultural e às Paisagens Culturais tal critério incorpora a posse de caráter e componentes
distintivos.
Na concepção de uma paisagem cultural, não deve prevalecer a interpretação de paisagem
descrita pela ótica da ecologia de paisagens que propõe a divisão em unidades, em função de
sua heterogeneidade espacial que repercuta a segregação entre natureza e cultura.
ASPECTOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS
Se a Paisagem Cultural é resultante de um processo de interação do homem com o meio
natural, o pressuposto da existência dos dois elementos – humano e não humano – é um dado
inquestionável. A configuração da paisagem será, portanto, consequência das interações de
diversos devires, entre os quais, os sociais, produtivos e ecológicos. Está já aí implícita a
coexistência de um assentamento humano com uma cultura específica sobre uma área
natural de características relevantes. Entretanto, sobre a chancela de Paisagem Cultural, tem
se observado, nas amostras de sítios assim declarados, uma prevalência dos elementos da
natureza sobre os culturais.
Há que se considerar a pertinência de se distinguir entre os aspectos quantitativos e
qualitativos dos dados em questão e de como se pode dar a avaliação da relação de equilíbrio
entre os dois fatores em análise: a quantidade e a qualidade da sobreposição da natureza
pela cultura ou da apropriação do meio pelo homem.
Partindo-se das orientações estabelecidas pelo IPHAN para que se aplique o conceito de
Paisagem Cultural nos sítios em que são constatadas as singularidades materiais somadas à
sua relação intrínseca com a natureza e ao caráter dinâmico no convívio com o homem,
conclui-se que um equilíbrio entre os dois entes deverá ser a premissa para a configuração a
que se está buscando. Este equilíbrio seria notado quando a subsistência da sociedade
humana quando de sua instalação sobre o sítio não afetasse a prevalência dos elementos
naturais, distinguindo, assim, tal ambiência daquelas que configuram as sociedades
complexas em meio definitivamente urbano.
As práticas sociais e econômicas que viabilizam o assentamento em determinado sítio
precisariam estar beirando o limiar de sustentação do grupo humano sem visar um
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crescimento ilimitado, mas que garanta a permanência do mesmo na área escolhida. Para
que os aspectos naturais sejam significativos como partícipes na construção da Paisagem
Cultural, estes devem apresentar uma representatividade qualitativa e quantitativamente
relevantes, sobressaindo-se aos elementos culturais, caso contrário estariam subjugados ao
assentamento humano em seu caráter exploratório que proporcionariam um risco de
comprometimento do ambiente, no sentido da preservação de seu equilíbrio. A natureza deve,
portanto, transcender ao cultural.
Se ao termo paisagem associa-se o sentido da visão, a percepção visual dos elementos
naturais, bem como dos culturais, deve se dar sem maiores comprometimentos e, antes ainda
de tais apreensões, a percepção da interrelação entre estas duas entidades deve evidenciar o
equilíbrio e a interdependência para se estabelecer a chancela. Paisagem Cultural seria assim
o resultado da identificação e identidade reflexo da quantidade e qualidade de seus atributos.
A relação, buscada como foco das eleições de Paisagens Culturais a serem protegidas, está
na pacífica adaptação do agrupamento humano às condições naturais do sítio em questão. É
sabido que do crescimento demográfico descontrolado resulta uma perda irreversível das
condicionantes naturais que caracterizam o ambiente. Assim, estabelece-se uma lógica
definidora para a Paisagem Cultural de que os elementos naturais preservados devem se
destacar na relação inversa do crescimento populacional da sociedade ali assentada.
A instalação do social na paisagem não deve implicar na destruição do natural na construção
do espaço. Entretanto, não só os aspectos qualitativos balizam a caracterização de Paisagem
Cultural preservável. Mesmo na predominância de uma ambientação devidamente
respaldada em recursos naturais ecologicamente equilibrado, a caracterização da cultura ali
assentada deve destacar-se qualitativamente por seu caráter peculiar que sugira uma
exclusividade de características que identifiquem uma sociedade autêntica.
A questão temporal é fator preponderante na identificação da Paisagem Cultural uma vez que
a avaliação para a instauração da chancela passa pela permanência duradoura no tempo de
uma relação de equilíbrio entre o assentamento humano ou dos vestígios de sua intervenção
cultural sobre o meio natural.
Sauer, em seu já referido artigo, afirma que a paisagem, por sua vinculação direta aos
aspectos da cultura que a fundamenta, está em contínuo processo de desenvolvimento e
mudança no tempo e no espaço. (RIBEIRO, 2007:p. 21).
Não se deve ignorar que a permanência de dada relação de uma sociedade humana sobre a
natureza prescinde de atualizações permanentes que buscam readaptar o sistema de
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coexistência. Tanto as relações sociais quanto culturais possuem dinâmicas próprias e estão
em continuo processo evolutivo por mais que tais relações permaneçam dentro de uma
estabilidade controlada.
No referente à chancela de Paisagem Cultural como mecanismo de preservação das
características e do existir destas localidades, não se pode apenas resguardar um
testemunho que suscite um tipo de nostalgia por um antigo regime de historicidade como
mero deleite da apreciação das classes dominantes. A questão da preservação destas
localidades suscita, assim, preocupações concernentes à estanqueidade do processo de
transformação. É neste quesito que a chancela de Paisagem Cultural parece avançar sobre
as demais instâncias protetoras do patrimônio, uma vez que considera pertinente a dinâmica
da relação entre os entes envolvidos e por entender o fenômeno social como um organismo
vivo entrelaçado à instância natural. O tempo passado é a referência da configuração desta
paisagem, mas cabe à certeza da persistência da dinâmica das relações a preservação da
paisagem ao tempo futuro. Tão somente neste continuum é que se pode dar a valoração da
Paisagem Cultural por permitir coexistências e diversidades em que o desenvolvimento das
atividades humanas se desenvolvam em harmonia com o ecossistema que as abrigam.
O limite temporal vai se dar quando as condicionantes de desenvolvimento da sociedade ali
instaurada permaneçam dentro do admissível sem afetar as características intrínsecas da
relação que trouxe a peculiaridade do sítio. Quando tais características transporem os limites
do reconhecimento de origem, seja devido à falência do sistema social ou ao colapso do
ecossistema, o tempo da paisagem cultural se esgotou. As premissas da preservação da
paisagem implicam, assim, na prorrogação máxima possível do tempo de sua existência com
a manutenção da sua dinâmica.
Segundo Castrogiovanni (apud COST , 2010, p. 5), “paisagem é uma unidade visível do
território, possui uma identidade visual, caracterizada por fatores de ordem social, cultural e
natural, contem espaço e tempo distintos – o passado e o presente -, ou seja, um acúmulo de
tempos desiguais”. O tempo condiciona a construção da Paisagem Cultural por incorporar as
variações acumuladas tanto de ordem social, quanto cultural e natural; as adaptações entre
os diferentes entes que a compõe dão-se no decorrer do tempo e a leitura que é feita da
Paisagem deve se dar num tempo contínuo ao das mudanças.
Assim, outra relevante investigação deve tratar da legitimidade da manutenção ao longo do
tempo das características peculiares do espaço em julgamento. A preservação da Paisagem
Cultural deve implicar na percepção da dinâmica interna do habitat, a fim de não causar danos
à sua identidade com vistas a um congelamento físico e temporal que possam traduzir uma
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poética bucólica ou saudosista. O tempo da Paisagem Cultural é sempre o tempo presente e é
neste tempo que deve se dar o pacto de gestão entre os diversos agentes que atuam no
recinto a ser chancelado, como garantia de preservação de suas características e identidade.
A CONFIGURAÇÃO DE RECINTO
A Paisagem Cultural pode ser entendida como um recinto enquanto lugar delimitado por
características próprias e que não se estendem a outras localidades. Como tal compreende
certo isolamento, ainda que subjetivo, das contaminações de agentes transformadores que
lhe anulem suas peculiaridades. Neste sentido, a associação de um ambiente, relativamente,
hermético vem ao encontro das explicações da permanência de suas características ao longo
do tempo. O hermetismo, entretanto, não deve configurar um ambiente impermeável, uma vez
que a sobrevivência da entidade social, bem como natural, enquanto seres vivos, necessita de
estabelecer trocas que reposicionem a certeza de sua permanência. A decisão de manter o
hermetismo do recinto, mesmo que inconscientemente, é atribuição do grupo social que
compõe a Paisagem Cultural e, uma vez que esta decisão fosse revogada, o
comprometimento do recinto dar-se-ia de maneira irrecuperável.
Os elementos constituintes da Paisagem Cultural podem se relacionar sob a proteção dessas
fronteiras físicas, psicológicas, sociais, ambientais ou temporais enquanto os inumeráveis
agentes do ambiente externo não interfiram na persistência destas relações.
Estas bordas da Paisagem Cultural caracterizam-se por tensões entre a permanência e a
transformação, entre preservar a lógica intrínseca do ambiente interno que o mantém em
equilíbrio ou ceder às mudanças que uniformizam as sociedades contemporâneas volúveis
num capitalismo desenfreado. no curso das relações que os agentes da Paisagem Cultural
se modificam, enquanto entes vivos e unidos por objetivos comuns onde este movimento de
mudança ocorre como adaptações necessárias à sobrevivência da comunidade e do próprio
habitat.
A coesão entre as partes internas do recinto na Paisagem Cultural estabelece os limites
dentro dos quais podem se dar as mudanças sem rupturas que comprometam a estabilidade
da comunidade social e sem distorcer o receptáculo natural que a abriga sob o risco de perda
da sua identidade. Tais restrições sugerem a existência de filtros ocultos que determinam a
constante purificação do recinto nos confins que encerram como medida subjetiva de
proteção das fronteiras contra as ações e reações dos agentes do ambiente externo.
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Vale considerar que a pressão pela manutenção dos limites destes recintos deve ser opção
daqueles que o vivenciam e que contribuem para lhe configurar e não uma imposição externa
à sua natureza. Se a manutenção do recinto se der de maneira artificial e forçada sua ruptura
será inevitável, pois a força de coesão entre os agentes internos estará já abalada. Não se
congela uma Paisagem Cultural tal como se congelou no tempo e no espaço muitos bens
culturais.
SOBRE UTOPIA E O FUTURO DO PASSADO
Uma última reflexão vai se referir à construção da chancela de Paisagem Cultural como uma
busca da desconstrução do paradigma dualista de que a ciência e a tecnologia distanciam os
homens da natureza, e do acercamento dos limites temporais, espaciais e interventivos que
possibilitam a instalação de tais comunidades antrópicas.
Entender a lógica da construção da Paisagem Cultural, em sua dimensão de espaço e tempo,
significa compreender as distintas possibilidades entre as apropriações e transformações
decorrentes das interações entre o meio antrópico e o meio natural. O valor de tal
reconhecimento amplia o sentido de pertencimento no mundo para aqueles que estão fora
dos recintos das Paisagens Culturais. Em tempos de perda das identidades dos povos
perante a descomunal globalização em diversos níveis da existência humana como
possibilidade real de interação entre homem e natureza, saber de persistência de estruturas
harmônicas é reconfortante mesmo que apenas como memória.
Como bem ressaltado no documento do IPHAN (2011), acerca da chancela da Paisagem
Cultural Brasileira, no adjetivo peculiar, no artigo 1o da Portaria, que institui a categoria de
Patrimônio Cultural, reside o discernimento entre o geral e o específico, entre o lugar comum a
que está submetida a grande maioria da humanidade sob o véu do progresso e do
consumismo e o lugar singular com características significativamente diferenciadas. Peculiar,
neste sentido, beiraria a utopia enquanto distanciamento da realidade que predomina o existir
humano; vale lembrar que as utopias embalam o sonho de uma civilização ideal, imaginária e
fantástica, mas ironicamente a utopia da Paisagem Cultural existe para nos lembrar de que o
futuro já existiu.
REFERÊNCIAS
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3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro
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