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REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA DA PAISAGEM CULTURAL CASTRO, CLEUSA DE Universidade Federal do Paraná Pontifícia Universidade Católica do Paraná Rua Presidente Taunay, 1241, Ap. 12 CEP 80.430-000 Curitiba, Pr. [email protected] RESUMO Este artigo procura discutir questões conceituais relativas à Paisagem Cultural, a fim de contribuir para uma delimitação mais segura dos ambientes culturais que podem receber esta chancela. Toma como base a conceituação estabelecida pelo IPHAN, em sua Portaria 187/2009, onde institui mecanismos, estratégias e definições sobre a aplicação da chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Esta discussão deve se iniciar pela exploração do conceito de paisagem, em busca da diferenciação entre paisagem natural e paisagem cultural, com ênfase para as disciplinas aí envolvidas como a geografia, a antropologia e a ecologia para esclarecer as relações possíveis entre humanos e o meio em que habita. Para que se desenvolvam estas conceituações é preciso buscar uma compreensão mais amplamente do termo CULTURA, como dado de separação com a NATUREZA, em busca do limiar onde o homem transforma a natureza em seu suporte de subsistência. Há que se considerar ainda, quando da definição de Paisagem Cultural, a prevalência dos elementos da natureza sobre os culturais. Tal exposição busca avaliar a pertinência de se considerar os aspectos quantitativos e qualitativos dos dados em questão e de como se pode dar a avaliação da relação de equilíbrio entre os dois fatores em análise: a quantidade e a qualidade da sobreposição da natureza pela cultura ou da apropriação do meio pelo homem. A questão temporal é fator preponderante na identificação da Paisagem Cultural, uma vez que a avaliação para a instauração da chancela passa pela permanência duradoura no tempo de uma relação de equilíbrio entre o assentamento humano ou dos vestígios de sua intervenção cultural sobre o meio natural. Assim, outra relevante investigação deve tratar da legitimidade da manutenção ao longo do tempo das características peculiares do espaço em julgamento. Palavras-chave: paisagem cultural; patrimônio; natureza; cultura

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REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA DA PAISAGEM CULTURAL

CASTRO, CLEUSA DE

Universidade Federal do Paraná Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Rua Presidente Taunay, 1241, Ap. 12 –CEP 80.430-000 – Curitiba, Pr. [email protected]

RESUMO

Este artigo procura discutir questões conceituais relativas à Paisagem Cultural, a fim de contribuir para uma delimitação mais segura dos ambientes culturais que podem receber esta chancela. Toma como base a conceituação estabelecida pelo IPHAN, em sua Portaria 187/2009, onde institui mecanismos, estratégias e definições sobre a aplicação da chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Esta discussão deve se iniciar pela exploração do conceito de paisagem, em busca da diferenciação entre paisagem natural e paisagem cultural, com ênfase para as disciplinas aí envolvidas como a geografia, a antropologia e a ecologia para esclarecer as relações possíveis entre humanos e o meio em que habita. Para que se desenvolvam estas conceituações é preciso buscar uma compreensão mais amplamente do termo CULTURA, como dado de separação com a NATUREZA, em busca do limiar onde o homem transforma a natureza em seu suporte de subsistência. Há que se considerar ainda, quando da definição de Paisagem Cultural, a prevalência dos elementos da natureza sobre os culturais. Tal exposição busca avaliar a pertinência de se considerar os aspectos quantitativos e qualitativos dos dados em questão e de como se pode dar a avaliação da relação de equilíbrio entre os dois fatores em análise: a quantidade e a qualidade da sobreposição da natureza pela cultura ou da apropriação do meio pelo homem. A questão temporal é fator preponderante na identificação da Paisagem Cultural, uma vez que a avaliação para a instauração da chancela passa pela permanência duradoura no tempo de uma relação de equilíbrio entre o assentamento humano ou dos vestígios de sua intervenção cultural sobre o meio natural. Assim, outra relevante investigação deve tratar da legitimidade da manutenção ao longo do tempo das características peculiares do espaço em julgamento.

Palavras-chave: paisagem cultural; patrimônio; natureza; cultura

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3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Este artigo procura discutir questões conceituais relativas à Paisagem Cultural a fim de

contribuir para uma delimitação mais segura dos ambientes culturais que podem receber esta

chancela.

A definição, apresentada no artigo 1o da Portaria do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional) de número 187/2009, conceitua Paisagem Cultural Brasileira como “uma

porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com

o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores”.

O próprio IPHAN esclarece que se deve atentar para as condicionantes que evidenciam o

caráter de Paisagem Cultural, ressaltando a existência de singularidades materiais de

determinada área, bem como sua relação intrínseca com a natureza e ao caráter dinâmico no

convívio com o homem.

Preservação de Paisagem Cultural refere-se, no entender desta legislação, ao mecanismo

que possa garantir a sobrevivência de determinados cenários urbanos ou rurais que traduzam

tradições culturais da ambientação de grupos sociais em localidade específica. Está implícita

aí a relação harmoniosa entre humanos e a natureza. Esta nova categoria de proteção visa

abarcar situações híbridas não abrangidas pelas definições estanques de patrimônio cultural

ou patrimônio natural.

Esta discussão deve se iniciar pela exploração do conceito de paisagem, em busca da

diferenciação entre paisagem natural e paisagem cultural, com ênfase para as disciplinas aí

envolvidas como a geografia, a antropologia e a ecologia para esclarecer as relações

possíveis entre humanos e o meio em que habita.

Para que se desenvolvam estas conceituações é preciso buscar uma compreensão mais

ampla do termo CULTURA, como dado de separação com a NATUREZA em busca do limiar

onde o homem transforma a natureza em seu suporte de subsistência.

SOBRE NATUREZA E CULTURA

A separação entre cultura, materializada em sua representação de sociedade, e natureza é

antiga. Tal separação tornou-se mais aguda com a ascensão do capitalismo e com os

sistemas de conhecimento que lhe deram suporte principalmente o Positivismo. Os meandros

deste sistema moderno teve como origem a razão que amparou a ciência por métodos

analíticos e propôs a separação entre sujeito e objeto.

Para Claude Lévi-Strauss, a cultura é o que permite uma superação lógica do caos informe do

mundo biológico na direção das estruturas (regras) que subjazem ao pensamento e às

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sociedades humanas e as organizam ou estruturam. Desde tais considerações de cunho

metodológico, concebidas sofisticadamente por Lévi-Strauss, a partir de sua obra As

Estruturas Elementares do Parentesco (1949), onde aponta que a própria origem do

fenômeno social estaria na passagem da natureza para a cultura, a antropologia reflete sobre

o paradigma dualista que permeia a sociedade humana no sentido de seu afastamento da

natureza.

Esta oposição vai ser contestada como premissa conceitual por vários pensadores

contemporâneos, no sentido da relativização de suas definições. Latour (1994) defende que

as fronteiras entre o natural e o cultural tem suas origens ontológicas na Modernidade, onde

respalda sua argumentação sobre a suposta divisão do mundo em entes puri icados de

nature a ou cultura, racionalmente compreensíveis e plenamente di erenci veis. o revisar a

noção de natureza como algo imutável e descritível cientificamente, Latour aponta a

existência da pr tica de “tradução” que trabalha com híbridos de natureza e cultura em

oposição à pr tica de “puri icação” que evidencia a separação em duas onas distintas: a dos

humanos e a dos não humanos.

Já a geografia, enquanto disciplina, também tendeu a defender uma separação entre

sociedade e natureza no pensamento moderno. As insatisfações com os limites explicativos

provocados pela lógica moderna levaram à ascensão das teorias pós-modernas em vários

campos do conhecimento e assim tanto o mundo social como o natural exigiam novas

abordagens que dessem conta das novas aspirações, principalmente referentes a questões

ambientais e de cunho menos pragmático e lógico. Várias facetas da paisagem passaram a

fazer parte das novas abordagens, incorporando reflexões subjetivas e perceptivas que

considerassem o ser e o estar num mundo multifacetado.

A noção de natureza como ente dotado de uma unidade indivisível e impenetrável cede lugar

a interpretações que compreendem, não somente o suporte físico e material onde ocorrem as

atividades humanas, mas como entes partícipes da humanização das paisagens. Neste

sentido, surgem ciências que visam dar conta desta integração entre cultural e natural como a

ecologia histórica (Balée, 1998), que compreende a construção social dos ambientes a partir

das interações entre os grupos sociais e os elementos constituintes do suporte natural do sitio

em questão.

SOBRE OS CONCEITOS DE PAISAGEM

Dentre as inúmeras abordagens acerca do termo paisagem, vale resgatar aquelas que se

referem à apreensão de determinada área e de suas características. Neste sentido, a

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geografia foi a ciência que tratou mais seriamente sua conceituação por ter na paisagem o seu

objeto direto de trabalho.

O conceito de paisagem, em que se baseiam as demais definições utilizadas, atualmente

remonta a 1925, quando oi exposto num artigo intitulado “ Mor ologia da Paisagem” do

geógrafo norte americano Carl Ortwin Sauer, que funda a chamada geografia cultural onde,

segundo Ribeiro (2007, p. 31), tem o mérito de transformar a paisagem em um conceito

científico, valorizando a abordagem a partir de seus aspectos materiais. A paisagem para

Sauer seria composta por uma área distinta de formas, tanto físicas e materiais quanto

culturais. Ainda assim, ele vai propor uma divisão entre as paisagens naturais (virgens) que se

apresentariam intocadas pela humanidade e as culturais que teriam a presença humana

imprimindo suas marcas sobre o suporte natural.

Os contornos conceituais sobre paisagem são pouco nítidos a partir das concepções definidas

pela nova Geografia Cultural, decorrente de posturas pós modernistas que derrubaram as

certezas positivistas da modernidade. Tal inexatidão pode ser justificada pela observação de

Meining (2002, p.35) que entende que um dos problemas principais relaciona-se ao fato da

paisagem ser “composta não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas

também por aquilo que se esconde em nossas mentes”. Neste sentido, questões de frente

subjetiva envolvem a conceituação de paisagem e sua apreensão, bem como reflexões

acerca de seu simbolismo.

Várias indefinições, que cercam o conceito de paisagem, vão oscilar, desde as proposições

mais pragmáticas, passando pelas de cunho antropocêntrico na modernidade, bem como as

posturas relativistas que despontam dentro da pós-modernidade. Considerando tais

premissas sobre as variantes nas definições e compreensões sobre paisagens é pertinente

esclarecer os limites e as sobreposições conceituais sobre paisagem natural e cultural. Uma

paisagem pode conter elementos naturais e humanos quando “humanizada”, enquanto que o

entendimento de uma paisagem natural se aplicaria sobre os ambientes que só contém

elementos estritamente naturais. Tomando-se como base as definições sobre paisagem

tratadas pela geografia, pode-se constatar a relação estreita que este conceito sempre

manteve com o de cultura. Também aí o diferencial vai se dar entre a modernidade e a

pós-modernidade.

A pós-modernidade abarca subjetivamente o período em que a ciência se caracteriza por uma

ausência de paradigmas, aceitando a utilização de abordagens heterogêneas na busca de

conceituações. A premissa que se estabelece, nesta linha de pensamento, é a da

relativização e então a paisagem passa a ser entendida como a resultante de um processo,

permanentemente, inacabado. Ao traçar um perfil evolutivo dos conceitos de paisagem, Name

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3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

(2010, p.18) en ati a seu car ter dinâmico “com diversas escalas de tempo e níveis de

observação. A paisagem possui elasticidade e ambiguidade, necessariamente sendo

impossível se apreendê-la de forma totalizante e encarcer -la em uma definição única. Assim

como a cultura.” Reside aí uma das primeiras di iculdades encontradas ao se estabelecer os

limites da Paisagem Cultural, uma vez que a conceituação de paisagem por si só gera

incertezas.

O entendimento de que paisagem é um constructo mental da sociedade humana apóia-se na

sua vinculação à visualidade e interpretação de determinado espaço. Como observa Sayão

(2011, p.27), a paisagem é considerada uma composição sensível de acesso a cultura, uma

forma de representação carregada de sentimentos, mem rias e conhecimentos.

Bertrand (1971, p.2) conceitua paisagem como uma determinada porção do espaço, resultado

da combinação dinâmica, portanto, inst vel de elementos ísicos, biol gicos e antr picos que,

reagindo dialeticamente uns sobre os outros, a em da paisagem um con unto nico e

indissoci vel, em perpétua evolução. Tal postura aponta para uma homogeneidade entre as

partes constitutivas da paisagem e da incorporação da natureza pela compreensão da cultura,

entendendo-se, em definitivo, que o natural e o humano são intrínsecos à paisagem. A

paisagem é resultante, portanto, de intervenções propostas pela ação humana sobre

elementos físicos e naturais que passam a incorporar assim elementos históricos e culturais.

Para restringir a abrangência do termo paisagem, pode-se então voltar aos conceitos

instituídos por Sauer (1998, p.23), onde “o termo Paisagem é apresentado para definir o

conceito de unidade da geografia, para caracterizar a associação peculiarmente geográfica de

atos.” Desta orma, uma das primeiras considerações acerca da Paisagem Cultural como

abordagem do ponto de vista de preservação de patrimônio, refere-se à identificação de

lugares com características significativas, tanto do ponto de vista cultural como natural que

contribuam para a caracterização da rica diversidade de uma nação. Neste sentido, o estudo

que respalde a apreensão desta paisagem deve se dar quanto à identificação dos elementos

que caracterizem a unidade geográfica que gera a peculiaridade de sua constituição e suas

características que a distinguem das demais.

A Convenção do Patrimônio Mundial de 1992 tornou-se o primeiro instrumento jurídico

internacional a reconhecer e proteger Paisagens Culturais. Em seu artigo 1o, a Comissão

reconheceu que as Paisagens Culturais representam as obras conjugadas da natureza e do

homem.

A referência de Paisagem Cultural, no âmbito de patrimônio cultural, está respaldada na

definição de um dos critérios culturais para a inscrição como Patrimônio Mundial pela

UNESCO, a partir de 2005, que aponta que o sítio deva constituir um exemplo excepcional de

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habitat ou estabelecimento humano tradicional ou do uso da terra, que seja representativo de

uma cultura ou de culturas, especialmente as que se tenham tornado vulner veis por e eitos

de mudanças irreversíveis. Importante ressaltar a premissa de que todos os bens culturais

devem obedecer ao critério de autenticidade para serem assim considerados como patrimônio

cultural e às Paisagens Culturais tal critério incorpora a posse de caráter e componentes

distintivos.

Na concepção de uma paisagem cultural, não deve prevalecer a interpretação de paisagem

descrita pela ótica da ecologia de paisagens que propõe a divisão em unidades, em função de

sua heterogeneidade espacial que repercuta a segregação entre natureza e cultura.

ASPECTOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS

Se a Paisagem Cultural é resultante de um processo de interação do homem com o meio

natural, o pressuposto da existência dos dois elementos – humano e não humano – é um dado

inquestionável. A configuração da paisagem será, portanto, consequência das interações de

diversos devires, entre os quais, os sociais, produtivos e ecológicos. Está já aí implícita a

coexistência de um assentamento humano com uma cultura específica sobre uma área

natural de características relevantes. Entretanto, sobre a chancela de Paisagem Cultural, tem

se observado, nas amostras de sítios assim declarados, uma prevalência dos elementos da

natureza sobre os culturais.

Há que se considerar a pertinência de se distinguir entre os aspectos quantitativos e

qualitativos dos dados em questão e de como se pode dar a avaliação da relação de equilíbrio

entre os dois fatores em análise: a quantidade e a qualidade da sobreposição da natureza

pela cultura ou da apropriação do meio pelo homem.

Partindo-se das orientações estabelecidas pelo IPHAN para que se aplique o conceito de

Paisagem Cultural nos sítios em que são constatadas as singularidades materiais somadas à

sua relação intrínseca com a natureza e ao caráter dinâmico no convívio com o homem,

conclui-se que um equilíbrio entre os dois entes deverá ser a premissa para a configuração a

que se está buscando. Este equilíbrio seria notado quando a subsistência da sociedade

humana quando de sua instalação sobre o sítio não afetasse a prevalência dos elementos

naturais, distinguindo, assim, tal ambiência daquelas que configuram as sociedades

complexas em meio definitivamente urbano.

As práticas sociais e econômicas que viabilizam o assentamento em determinado sítio

precisariam estar beirando o limiar de sustentação do grupo humano sem visar um

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crescimento ilimitado, mas que garanta a permanência do mesmo na área escolhida. Para

que os aspectos naturais sejam significativos como partícipes na construção da Paisagem

Cultural, estes devem apresentar uma representatividade qualitativa e quantitativamente

relevantes, sobressaindo-se aos elementos culturais, caso contrário estariam subjugados ao

assentamento humano em seu caráter exploratório que proporcionariam um risco de

comprometimento do ambiente, no sentido da preservação de seu equilíbrio. A natureza deve,

portanto, transcender ao cultural.

Se ao termo paisagem associa-se o sentido da visão, a percepção visual dos elementos

naturais, bem como dos culturais, deve se dar sem maiores comprometimentos e, antes ainda

de tais apreensões, a percepção da interrelação entre estas duas entidades deve evidenciar o

equilíbrio e a interdependência para se estabelecer a chancela. Paisagem Cultural seria assim

o resultado da identificação e identidade reflexo da quantidade e qualidade de seus atributos.

A relação, buscada como foco das eleições de Paisagens Culturais a serem protegidas, está

na pacífica adaptação do agrupamento humano às condições naturais do sítio em questão. É

sabido que do crescimento demográfico descontrolado resulta uma perda irreversível das

condicionantes naturais que caracterizam o ambiente. Assim, estabelece-se uma lógica

definidora para a Paisagem Cultural de que os elementos naturais preservados devem se

destacar na relação inversa do crescimento populacional da sociedade ali assentada.

A instalação do social na paisagem não deve implicar na destruição do natural na construção

do espaço. Entretanto, não só os aspectos qualitativos balizam a caracterização de Paisagem

Cultural preservável. Mesmo na predominância de uma ambientação devidamente

respaldada em recursos naturais ecologicamente equilibrado, a caracterização da cultura ali

assentada deve destacar-se qualitativamente por seu caráter peculiar que sugira uma

exclusividade de características que identifiquem uma sociedade autêntica.

A questão temporal é fator preponderante na identificação da Paisagem Cultural uma vez que

a avaliação para a instauração da chancela passa pela permanência duradoura no tempo de

uma relação de equilíbrio entre o assentamento humano ou dos vestígios de sua intervenção

cultural sobre o meio natural.

Sauer, em seu já referido artigo, afirma que a paisagem, por sua vinculação direta aos

aspectos da cultura que a fundamenta, está em contínuo processo de desenvolvimento e

mudança no tempo e no espaço. (RIBEIRO, 2007:p. 21).

Não se deve ignorar que a permanência de dada relação de uma sociedade humana sobre a

natureza prescinde de atualizações permanentes que buscam readaptar o sistema de

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coexistência. Tanto as relações sociais quanto culturais possuem dinâmicas próprias e estão

em continuo processo evolutivo por mais que tais relações permaneçam dentro de uma

estabilidade controlada.

No referente à chancela de Paisagem Cultural como mecanismo de preservação das

características e do existir destas localidades, não se pode apenas resguardar um

testemunho que suscite um tipo de nostalgia por um antigo regime de historicidade como

mero deleite da apreciação das classes dominantes. A questão da preservação destas

localidades suscita, assim, preocupações concernentes à estanqueidade do processo de

transformação. É neste quesito que a chancela de Paisagem Cultural parece avançar sobre

as demais instâncias protetoras do patrimônio, uma vez que considera pertinente a dinâmica

da relação entre os entes envolvidos e por entender o fenômeno social como um organismo

vivo entrelaçado à instância natural. O tempo passado é a referência da configuração desta

paisagem, mas cabe à certeza da persistência da dinâmica das relações a preservação da

paisagem ao tempo futuro. Tão somente neste continuum é que se pode dar a valoração da

Paisagem Cultural por permitir coexistências e diversidades em que o desenvolvimento das

atividades humanas se desenvolvam em harmonia com o ecossistema que as abrigam.

O limite temporal vai se dar quando as condicionantes de desenvolvimento da sociedade ali

instaurada permaneçam dentro do admissível sem afetar as características intrínsecas da

relação que trouxe a peculiaridade do sítio. Quando tais características transporem os limites

do reconhecimento de origem, seja devido à falência do sistema social ou ao colapso do

ecossistema, o tempo da paisagem cultural se esgotou. As premissas da preservação da

paisagem implicam, assim, na prorrogação máxima possível do tempo de sua existência com

a manutenção da sua dinâmica.

Segundo Castrogiovanni (apud COST , 2010, p. 5), “paisagem é uma unidade visível do

território, possui uma identidade visual, caracterizada por fatores de ordem social, cultural e

natural, contem espaço e tempo distintos – o passado e o presente -, ou seja, um acúmulo de

tempos desiguais”. O tempo condiciona a construção da Paisagem Cultural por incorporar as

variações acumuladas tanto de ordem social, quanto cultural e natural; as adaptações entre

os diferentes entes que a compõe dão-se no decorrer do tempo e a leitura que é feita da

Paisagem deve se dar num tempo contínuo ao das mudanças.

Assim, outra relevante investigação deve tratar da legitimidade da manutenção ao longo do

tempo das características peculiares do espaço em julgamento. A preservação da Paisagem

Cultural deve implicar na percepção da dinâmica interna do habitat, a fim de não causar danos

à sua identidade com vistas a um congelamento físico e temporal que possam traduzir uma

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poética bucólica ou saudosista. O tempo da Paisagem Cultural é sempre o tempo presente e é

neste tempo que deve se dar o pacto de gestão entre os diversos agentes que atuam no

recinto a ser chancelado, como garantia de preservação de suas características e identidade.

A CONFIGURAÇÃO DE RECINTO

A Paisagem Cultural pode ser entendida como um recinto enquanto lugar delimitado por

características próprias e que não se estendem a outras localidades. Como tal compreende

certo isolamento, ainda que subjetivo, das contaminações de agentes transformadores que

lhe anulem suas peculiaridades. Neste sentido, a associação de um ambiente, relativamente,

hermético vem ao encontro das explicações da permanência de suas características ao longo

do tempo. O hermetismo, entretanto, não deve configurar um ambiente impermeável, uma vez

que a sobrevivência da entidade social, bem como natural, enquanto seres vivos, necessita de

estabelecer trocas que reposicionem a certeza de sua permanência. A decisão de manter o

hermetismo do recinto, mesmo que inconscientemente, é atribuição do grupo social que

compõe a Paisagem Cultural e, uma vez que esta decisão fosse revogada, o

comprometimento do recinto dar-se-ia de maneira irrecuperável.

Os elementos constituintes da Paisagem Cultural podem se relacionar sob a proteção dessas

fronteiras físicas, psicológicas, sociais, ambientais ou temporais enquanto os inumeráveis

agentes do ambiente externo não interfiram na persistência destas relações.

Estas bordas da Paisagem Cultural caracterizam-se por tensões entre a permanência e a

transformação, entre preservar a lógica intrínseca do ambiente interno que o mantém em

equilíbrio ou ceder às mudanças que uniformizam as sociedades contemporâneas volúveis

num capitalismo desenfreado. no curso das relações que os agentes da Paisagem Cultural

se modificam, enquanto entes vivos e unidos por objetivos comuns onde este movimento de

mudança ocorre como adaptações necessárias à sobrevivência da comunidade e do próprio

habitat.

A coesão entre as partes internas do recinto na Paisagem Cultural estabelece os limites

dentro dos quais podem se dar as mudanças sem rupturas que comprometam a estabilidade

da comunidade social e sem distorcer o receptáculo natural que a abriga sob o risco de perda

da sua identidade. Tais restrições sugerem a existência de filtros ocultos que determinam a

constante purificação do recinto nos confins que encerram como medida subjetiva de

proteção das fronteiras contra as ações e reações dos agentes do ambiente externo.

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Vale considerar que a pressão pela manutenção dos limites destes recintos deve ser opção

daqueles que o vivenciam e que contribuem para lhe configurar e não uma imposição externa

à sua natureza. Se a manutenção do recinto se der de maneira artificial e forçada sua ruptura

será inevitável, pois a força de coesão entre os agentes internos estará já abalada. Não se

congela uma Paisagem Cultural tal como se congelou no tempo e no espaço muitos bens

culturais.

SOBRE UTOPIA E O FUTURO DO PASSADO

Uma última reflexão vai se referir à construção da chancela de Paisagem Cultural como uma

busca da desconstrução do paradigma dualista de que a ciência e a tecnologia distanciam os

homens da natureza, e do acercamento dos limites temporais, espaciais e interventivos que

possibilitam a instalação de tais comunidades antrópicas.

Entender a lógica da construção da Paisagem Cultural, em sua dimensão de espaço e tempo,

significa compreender as distintas possibilidades entre as apropriações e transformações

decorrentes das interações entre o meio antrópico e o meio natural. O valor de tal

reconhecimento amplia o sentido de pertencimento no mundo para aqueles que estão fora

dos recintos das Paisagens Culturais. Em tempos de perda das identidades dos povos

perante a descomunal globalização em diversos níveis da existência humana como

possibilidade real de interação entre homem e natureza, saber de persistência de estruturas

harmônicas é reconfortante mesmo que apenas como memória.

Como bem ressaltado no documento do IPHAN (2011), acerca da chancela da Paisagem

Cultural Brasileira, no adjetivo peculiar, no artigo 1o da Portaria, que institui a categoria de

Patrimônio Cultural, reside o discernimento entre o geral e o específico, entre o lugar comum a

que está submetida a grande maioria da humanidade sob o véu do progresso e do

consumismo e o lugar singular com características significativamente diferenciadas. Peculiar,

neste sentido, beiraria a utopia enquanto distanciamento da realidade que predomina o existir

humano; vale lembrar que as utopias embalam o sonho de uma civilização ideal, imaginária e

fantástica, mas ironicamente a utopia da Paisagem Cultural existe para nos lembrar de que o

futuro já existiu.

REFERÊNCIAS

Balée, William & Erickson, Clark (eds.) 2006. Time and Complexity in Historical Ecology:

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