Reflexões em torno da Dimensão...

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Seminário 1 A Cultura entre Os Maias e o Big Brother: dúvidas e certezas de um professor Luis Miguel Duarte Doutor em História. Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Presidente do Instituto de Documentação Histórica da Universidade do Porto. Tem cerca de duas centenas de trabalhos científicos publicados, sobretudo nas áreas da história da justiça e da criminalidade, da história municipal e urbana, da his- tória da cidade do Porto. Reflexão de Adriana Gonçalves A intervenção do Professor Luís Miguel Duarte procu- rou suscitar a reflexão sobre a escola de hoje – e os seus paradoxos – a cultura – e o seu lugar nas sociedades actuais – e, finalmente, a articulação entre escola e cul- tura, ou, se quisermos, a grande questão: que papel está reservado à escola de hoje no que diz respeito à forma- ção dos jovens e à transmissão da cultura? Expõem-se em seguida, sem quaisquer preocupações de ordem ou sequência, temas e problemas ouvidos durante a sessão e apontamentos pessoais motivados por esses mesmos temas e problemas. Como sempre sucede nestes casos, a reflexão aconteceu no momento, sobre as palavras ouvidas e, posteriormente, quando se passava ao papel o eco deixado por essas mesmas pala- vras. Destrinçar as duas coisas – matéria ouvida e pro- duto de reflexão – constituiria pois tarefa espinhosa, se não mesmo impraticável. A escola de hoje: paradoxos da instituição escolar À massificação do acesso à escola não correspondeu a sua democratização: a escola abriu-se a todos, mas não permite ainda o sucesso de todos. A universalização do sistema de ensino e a subida progressiva dos anos de escolaridade obrigatória têm vindo a contribuir para o aumento das oportunidades, permitindo mesmo alguma ascendência social, mas é inegável que o princípio da igualdade de todas as crianças face à escola continua a ser meramente formal e que, na realidade, o insucesso continua a atingir particularmente os mais desfavoreci- dos socialmente. Saliente-se, porém, que o problema não está na massifi- cação, que é, em si, condição de justiça social e, pode dizer-se, um dos grandes triunfos da democracia. Quando terminei a 4ª classe, iniciei, com mais cinco colegas da minha turma da primária, a frequência do ciclo preparatório. De um total de cerca de trinta alunas, apenas seis prosseguiram os estu- dos… As restantes vinte e tal tiveram destino igual ao da maior parte das meninas nessa década de sessenta e nas anteriores: ajudar as famí- lias em casa ou no campo, olhar pelos irmãos, aprender um ofício (havia as mestras que ensinavam a costura, por exemplo) quando não mesmo integrar o corpo assalariado de uma fábrica. Data desta época a reforma Veiga Simão, início do processo de massificação que culminaria mais tarde, com o 25 de Abril. Mas as meninas que, em 1968, comigo terminaram a 4ª classe na escola primária n.º 88, na rua da Constituição, não puderam colher ainda os seus frutos… O problema não está pois, dizia, na massificação do acesso ao ensino, está antes na forma como a instituição escolar lidou e lida com a invasão, pelas classes populares, de um espaço que até há pouco lhes estava vedado. A geografia escolar mostra-nos um país em grande parte ainda dividido entre as «escolas dos ricos» e «as escolas dos pobres», ou as dos que podem e as dos que não Reflexões em torno da Dimensão Cultural Adriana Gonçalves, Fátima Monteiro, Daniela Gonçalves Escola Secundária / 3 de Alfena; ESE de Paula Frassinetti 39

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Seminário 1

A Cultura entre Os Maias e o Big Brother:dúvidas e certezas de um professor

Luis Miguel Duarte

Doutor em História. Professor da Faculdade de Letrasda Universidade do Porto. Presidente do Instituto deDocumentação Histórica da Universidade do Porto.Tem cerca de duas centenas de trabalhos científicospublicados, sobretudo nas áreas da história da justiça eda criminalidade, da história municipal e urbana, da his-tória da cidade do Porto.

Reflexão de Adriana Gonçalves

A intervenção do Professor Luís Miguel Duarte procu-rou suscitar a reflexão sobre a escola de hoje – e os seusparadoxos – a cultura – e o seu lugar nas sociedadesactuais – e, finalmente, a articulação entre escola e cul-tura, ou, se quisermos, a grande questão: que papel estáreservado à escola de hoje no que diz respeito à forma-ção dos jovens e à transmissão da cultura?Expõem-se em seguida, sem quaisquer preocupações deordem ou sequência, temas e problemas ouvidosdurante a sessão e apontamentos pessoais motivadospor esses mesmos temas e problemas. Como sempresucede nestes casos, a reflexão aconteceu no momento,sobre as palavras ouvidas e, posteriormente, quando sepassava ao papel o eco deixado por essas mesmas pala-vras. Destrinçar as duas coisas – matéria ouvida e pro-duto de reflexão – constituiria pois tarefa espinhosa, senão mesmo impraticável.

A escola de hoje: paradoxos da instituição escolar

À massificação do acesso à escola não correspondeu asua democratização: a escola abriu-se a todos, mas nãopermite ainda o sucesso de todos. A universalização dosistema de ensino e a subida progressiva dos anos deescolaridade obrigatória têm vindo a contribuir para oaumento das oportunidades, permitindo mesmo algumaascendência social, mas é inegável que o princípio daigualdade de todas as crianças face à escola continua aser meramente formal e que, na realidade, o insucessocontinua a atingir particularmente os mais desfavoreci-dos socialmente.Saliente-se, porém, que o problema não está na massifi-cação, que é, em si, condição de justiça social e, podedizer-se, um dos grandes triunfos da democracia.

Quando terminei a 4ª classe, iniciei, com mais cinco colegas daminha turma da primária, a frequência do ciclo preparatório. Deum total de cerca de trinta alunas, apenas seis prosseguiram os estu-dos… As restantes vinte e tal tiveram destino igual ao da maior partedas meninas nessa década de sessenta e nas anteriores: ajudar as famí-lias em casa ou no campo, olhar pelos irmãos, aprender um ofício(havia as mestras que ensinavam a costura, por exemplo) quandonão mesmo integrar o corpo assalariado de uma fábrica. Data destaépoca a reforma Veiga Simão, início do processo de massificação queculminaria mais tarde, com o 25 de Abril. Mas as meninas que, em1968, comigo terminaram a 4ª classe na escola primária n.º 88, narua da Constituição, não puderam colher ainda os seus frutos…

O problema não está pois, dizia, na massificação do acessoao ensino, está antes na forma como a instituição escolarlidou e lida com a invasão, pelas classes populares, de umespaço que até há pouco lhes estava vedado.A geografia escolar mostra-nos um país em grande parteainda dividido entre as «escolas dos ricos» e «as escolasdos pobres», ou as dos que podem e as dos que não

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Adriana Gonçalves, Fátima Monteiro, Daniela GonçalvesEscola Secundária / 3 de Alfena; ESE de Paula Frassinetti

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podem escolher. De facto, e de forma particularmentenítida nos contextos urbanos, a escola reflecte a profundadiversidade social que marca a cidade moderna: lá estãoos bairros populares, «ghettizados» e com péssimas con-dições de vida, cujas escolas, consideradas problemáticas,raramente são encaradas pelos professores como defini-tivas. São escolas que reproduzem o meio ambiente emque se encontram, normalmente degradadas, e onde osmétodos são muitas vezes inadequados aos alunos que asfrequentam. E temos também, no extremo oposto, asescolas das zonas habitacionais mais favorecidas, bemequipadas, compostas por um público que a própria zonaresidencial em que se inserem restringe.

Como todos sabemos, mas alguns persistem em não querer admitir,a publicação dos famosos «rankings das melhores escolas», estudopretensamente rigoroso e científico, teve a respeito da dicotomia«boas escolas / más escolas» as consequências perversas que se conhe-cem …

A medida que deu lugar à criação do ensino técnico noperíodo do pós-guerra fez divergir o ensino secundárioem duas vias – a académica e a técnica – e foi acusada dediscriminatória sob o ponto de vista social, sendo subs-tituída, nos anos setenta, pela unificação do ensinosecundário, cujo objectivo era democratizar a escola epôr fim à selecção social que o antigo liceu operava. Pen-sou-se superar a divisão social produzida pela escola,mas deslizou-se rapidamente para a cultura mais presti-giada socialmente – a académica – ignorando-se que oseu carácter altamente selectivo se encarregaria de man-ter, ou mesmo aumentar o fosso social criado pela escola.A unificação do ensino secundário acabou pois porresultar na valorização da cultura académica e na «licea-lização» do ensino secundário, tornando o sistema esco-lar potencialmente mais selectivo.O quadro apresentado parece pois traçado a negro epermite as conjecturas mais pessimistas. Mas, apesar dos

dilemas que enfrenta, a escola que temos hoje estámelhor, mais inclusiva e democrática e com melhoresresultados. Que se desiludam os saudosistas do passado,(e eles encontram-se surpreendentemente entre as pes-soas mais bem informadas!) cuja nostalgia do velho«liceu», da sua ordem e disciplina incontestadas, só podeatribuir-se a falta de memória democrática ou ignorân-cia. Os lugares-comuns, tantas vezes lidos e ouvidos, dogénero «no meu tempo o ensino é que era», «dantes osprofessores eram respeitados», «antigamente, nas esco-las, não se passava de ano sem se saberem as matérias»,etc, etc, caem por terra diante do desfiar das memóriasdo orador sobre a sua própria experiência como alunonos anos sessenta/setenta. Se a alguém ainda restavamdúvidas sobre o que era a escola nesses tempos…

Cultura: que cultura?

Nas sociedades industriais avançadas, direitos dos traba-lhadores como o direito a férias remuneradas, o descansosemanal ou a diminuição do horário de trabalho permiti-ram a libertação do tempo individual para actividades delazer, que, não sendo novas para as classes dirigentes,eram de facto impensáveis para os outros níveis da hie-rarquia social há não muitas décadas atrás. A procura debens e serviços culturais está em grande parte ligada àutilização dos tempos livres e não pode ser também dis-sociada do fenómeno recente da cultura de massas. Estamos hoje perante um fenómeno de industrializaçãodas produções culturais, cujo objectivo é antes de mais ode serem vendidas num mercado alargado. Certas áreas,como o cinema, a música, ou a TV foram mais permeá-veis a esta mercantilização da cultura e vieram tornarmenos nítida a distinção entre cultura popular e culturaerudita. É hoje incontestável o papel democratizantedos grandes meios de comunicação na difusão da cul-

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tura, mas é também indiscutível que o alargamento doacesso à cultura conduziu à necessidade de aproximar aobra dos receptores, tornando-a mais acessível aos seusgostos e competências e afastando-a muitas vezes dospadrões mínimos de qualidade que no seio dessa culturaerudita se tinham estabelecido. Certos programas tele-visivos são um exemplo claro de como a cedência ao pre-tenso gosto do grande público resulta tantas vezes emalarvidade e mau gosto. Por outro lado, a hegemonia dasindústrias culturais e, logo, a massificação de uma deter-minada oferta cultural, tendeu a limitar o espaço da cul-tura popular e mesmo a invadir o seu terreno próprio. Éo conhecido fenómeno do pop a invadir o folk…

Com frequência, as festas organizadas ao nível local são interessantepalco deste cruzamento entre os vários níveis culturais: lá está o can-tor «pimba» do momento, seguido do rancho folclórico local, oucerto cantor pop ao lado da estrela da telenovela mais em voga…

Quanto à cultura erudita, caracterizada como produtoda criação pessoal, destinada à fruição estética de umpúblico restrito, funciona sobretudo por demarcação,por distinção, e, apesar de manter o seu lugar e o seupúblico, não deixa também de ser permeável aos fenó-menos da cultura de massas.

Um exemplo curioso é a massificação de um certo tipo de música,antigamente considerada reduto de um grupo diminuto: é o caso decertos cantores líricos, cujos espectáculos são hoje rodeados de grandeaparato comercial e publicitário. Quem não se lembra da grandecantora lírica Monserrat Caballé, lado a lado, na abertura dos JogosOlímpicos de Barcelona, com Freddie Mercury, numa simbiose per-feita e altamente mediática entre cultura erudita e cultura pop?

Digamos então que se esbatem hoje, mais do que nunca,as fronteiras entre cultura erudita/cultura popular/cul-tura de massas, fenómeno determinado, em grandeparte, pelo poder esmagador dos media e pelas tendências

do processo de globalização. O que parece inegável éque, nas sociedades desenvolvidas actuais, a massificaçãoda escolarização e a universalização da TV e da Internetpermitem, ainda que com formas de apropriação dife-renciadas, o acesso dos indivíduos a determinados bensculturais, o qual escapa ao determinismo classicista:hoje, pode afirmar-se que nas novas gerações oriundasde famílias operárias ou da classe média se terá estabele-cido um «mínimo cultural comum». (O. Donnat, cit.Silva, 2002:155)

Cultura e Escola

Numa sociedade onde impera a multi-aprendizagem(Costa, 2000:10), a escola perdeu o monopólio, quedetinha com a instituição familiar, da socialização, «opapel do professor dessacralizou-se» (L. M. Duarte) eassiste-se ao desencanto da sociedade, relativamente àsinstituições em geral e à escolar em particular. As ins-tâncias socializadoras tradicionais (escola e família)contam agora com a fortíssima concorrência dos media,como a TV, que, no entanto, como todos sabemos, nãotem como meta fundamental a formação moral e cultu-ral do público. Assiste-se, segundo Tedesco, a um «déficede socialização que se pode definir também como umfenómeno de ausência de sentido» (Tedesco, 2000: 38).Que papel resta então à escola de hoje? Como aprendera lidar com o poder dos media e com os novos modelospor eles impostos e, em simultâneo, com o enfraqueci-mento da sua própria capacidade socializadora? Por um lado, não se pode ignorar que «o acesso à culturapatrimonial continua a ser dado em grande parte pelasescolas» (L.M.Duarte), isto é, que apesar do afasta-mento entre a cultura escolar e a cultura social e das con-sequentes dificuldades da instituição escolar emtransmitir os seus próprios valores e modelos, resta

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ainda à escola um papel não negligenciável na formaçãocultural das camadas jovens da população e, acima detudo, na democratização do acesso aos bens culturais.

É algo a que tenho assistido ao longo dos anos: muitos alunos dosecundário têm a sua primeira experiência como espectadores de umespectáculo teatral, numa visita de estudo da escola que frequentam.Surpreendentemente, isto sucede com alunos provenientes tanto deescolas privadas de elite, como de escolas públicas inseridas em comu-nidades socialmente desfavorecidas… E o mesmo se poderá dizer davisita a museus, dos primeiros contactos com os clássicos, do desper-tar do gosto pelo livro e da frequência regular das bibliotecas…

Tedesco refere um espaço de manobra fundamentalreservado à instituição escolar: trata-se da «busca daarticulação entre racionalidade instrumental e subjectivi-dade, entre a lógica do sistema e as exigências do desen-volvimento da personalidade» (ibidem: 39). Nestaperspectiva, «a função da escola em relação à formação dapersonalidade consiste em formar os padrões de referên-cia que permitirão a cada um escolher e construir a sua ouas suas múltiplas identidades.» (ibidem: 39) A grandeexigência colocada nos dias de hoje à instituição escolarserá a delicada tarefa de contribuir para a formação dapersonalidade dos alunos, configurando-se naquilo queo autor designa como instituição total. Trata-se na reali-dade de encarar o desenvolvimento cognitivo comoparte integrante do desenvolvimento da personalidade enão como mera acumulação de conhecimentos mais oumenos úteis; trata-se de «promover o desejo de saber,face à sobre-informação que existe na sociedade, e (…)constituir os padrões de referência para processar ainformação disponível.» (ibidem: 41); trata-se de valori-zar o esforço e contrariar o facilitismo, numa altura emque a indústria do entretenimento e a expansão dostempos livres tendem a constituir-se como factores dedesmotivação face à escola; trata-se, em suma, de apren-der a aprender e de ser capaz de o fazer ao longo da vida,

numa época em que os padrões de desempenho cívico,social e produtivo exigem, cada vez mais, a posse decompetências como «o pensamento sistémico, a solida-riedade, a responsabilidade, a criatividade, a capacidadede resolver problemas, a capacidade de trabalhar emequipa» (ibidem: 40).O grande desafio colocado à escola actual é pois o derecuperar a sua função formativa e socializadora, rom-pendo com a rigidez imobilista que a tem caracterizado,aprendendo a dialogar com a sociedade em que se insereao invés de a ignorar, estabelecendo compromissos comos diversos actores, implementando as práticas pedagó-gicas capazes de articular os currículos, os alunos e osseus projectos pessoais de desenvolvimento…

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Seminário 2

Da Democratização à DemocraciaCultural

João Teixeira Lopes

Doutor em Sociologia da Cultura e da Educação. Pro-fessor da Faculdade de Letras da Universidade do Portoe coordenador do respectivo instituto de investigação.Representou entre 2002 e 2006 o Bloco de Esquerdacomo deputado à Assembleia da República. É autor daimportante bibliografia na área da sociologia da cultura.

Reflexão de Adriana Gonçalves

O orador procurou enunciar criticamente as caracterís-ticas fundamentais dos dois paradigmas principais quedominam e orientam, nos países europeus, as políticasculturais das últimas décadas, para em seguida apontaralgumas vias possíveis que, em seu entender, deverãoconstituir a base do caminho a empreender na imple-mentação de uma verdadeira democracia cultural. Dadaa enorme complexidade e abrangência do tema cultura eo seu carácter multidimensional, que permite múltiplase multiplicadoras abordagens, tratarei apenas de utilizaros aspectos centrais da comunicação do Professor Tei-xeira Lopes como ponto de partida para a reflexão emtorno de algumas questões com as quais, na minha con-dição de educadora, me venho confrontando desde hámuito. Como é natural, terei como referência a minhaexperiência e observação pessoais, esclarecidas e funda-mentadas pelo recurso a instrumentos teóricos e con-ceptuais provenientes da leitura de alguma bibliografia.

Democratização cultural

A partir dos anos sessenta, em França, o tema «PolíticasCulturais» está no centro do debate público e ocupa aagenda política. Partindo do pressuposto de que culturae civilização são conceitos indissociáveis e de que a edu-cação cultural do povo é decisiva na promoção de umaidentidade nacional, o poder político empreende umasérie de medidas destinadas a «levar» a cultura às popu-lações. Se o povo não acede aos bens culturais é porqueeles se encontram longe do seu alcance, tornando-sepois indispensável criar condições para que sejam colo-cados ao seu serviço. É a época da construção das casasda cultura nas periferias e no interior, dos teatros e doscinemas de província, etc. As críticas a este modelo não tardam a surgir: a ideia deque é necessário cultivar as massas, levando para o interiordas suas práticas quotidianas aquilo que é considerado averdadeira cultura, é acusada de suportar uma visão pater-nalista, hierárquica e hierarquizante da acção cultural, emque um grupo de «eleitos» decidirá, arbitrariamente,quais os padrões de qualidade da cultura que importatransmitir. O sociólogo Pierre Bourdieu destaca-se entreos críticos, apontando justamente a este modelo o grandeequívoco de considerar a cultura como algo exterior aosindivíduos, a que podem todos aceder igualmente, desdeque as barreiras objectivas sejam eliminadas. Para o autor,«a herança de bens de cultura, acumulados e legados pelasgerações anteriores, só pertence realmente (embora sejaformalmente pertença de todos) a quem possuir os meiosde se apropriar dela.» (Bourdieu, 1982:329). Não serápor conseguinte a impossibilidade física ou económicaque trava o acesso do povo aos bens culturais, mas sim aausência de capital cultural, isto é, das disposições e com-petências que permitem aos indivíduos a descodificaçãoda realidade. Bourdieu coloca pois a tónica na questãoda apropriação, considerando que a clivagem culturalentre classes populares e dirigentes tem origem nos pro-

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cessos de socialização incorporados de forma impercep-tível, o habitus, os quais conduzirão inevitavelmente adiferentes formas de apropriação da realidade e, logo, daprópria cultura. É claro que o aumento da escolarizaçãodas populações e a massificação do ensino contribuíramem larga escala para o alargamento das possibilidadesculturais dos indivíduos, permitindo mesmo uma certaascendência social, mas sabemos que, na maior parte doscasos, o capital escolar não se converte automaticamenteem capital cultural, em consequência, entre outros fac-tores, do facto de que «a acção dos sistemas de ensino sópode ser plenamente eficaz se exercida sobre indivíduosjá bastante familiarizados com o mundo da arte atravésda educação familiar» (Bourdieu, 1982:331).

Democracia Cultural

O reconhecimento da importância que assumem, dolado da recepção cultural, as múltiplas formas de apro-priação pelos indivíduos, condicionadas fortementepelas suas próprias posições, percursos, códigos e pro-cessos de socialização, põe em causa o conceito de exte-rioridade do objecto cultural, sublinhando o papel dossujeitos na própria (re)construção da obra cultural. Poroutro lado, a consideração do esbatimento das tradicio-nais fronteiras entre os diversos níveis de cultura, resul-tante, em grande parte, no quadro actual daglobalização, da mediatização dos fenómenos culturais eda mercantilização que lhe está subjacente, impõe arejeição de uma concepção compartimentada e reducio-nista das diferentes «culturas» e a necessidade de seimplementarem políticas culturais «de baixo para cima»e «de dentro para fora», que privilegiem as práticas ecódigos dos sujeitos e dos grupos. A democracia cultural que, nas últimas décadas, nos paí-ses desenvolvidos, se estabeleceu como uma importante

meta do poder político, privilegia políticas de animaçãocomunitária e desenvolvimento local que valorizam, porconseguinte, os recursos endógenos das comunidades,procurando escapar ao carácter arbitrário que umaimposição de códigos e práticas culturais exógenas e desentido descendente acarretava e tratando de mobilizarrecursos e actores em torno da animação local. Estaacção consubstancia-se frequentemente na valorizaçãoda cultura popular, privilegiando actividades como aprática desportiva, o artesanato, o folclore ou o teatroamador. No caso português, muitas destas iniciativassurgem ligadas à dinamização cultural associada ao pro-cesso revolucionário iniciado com o 25 de Abril, a qualradica na crença de que o progresso das mentalidades sefará pela educação cultural do povo5. O voluntarismo ea concepção doutrinária subjacentes a estas medidas deanimação cultural de cariz comunitário não deixam, éclaro, de impor uma visão hierárquica e descendente dacultura. Mais recentemente, tentativas de, por exemplo, levar aarte às zonas rurais, procurando conjugar o produtoartístico de feição urbana com manifestações culturaisde raiz popular e rural, têm redundado em situações,caricatas por vezes, de incompreensão mútua entre gru-pos social e culturalmente distantes, os quais, não obs-tante as boas intenções dos promotores das iniciativas,permanecem frequentemente de costas voltadas. Evi-dentemente, o entendimento dos gostos, acessos e com-petências em matéria cultural passa forçosamente pelaanálise dos meios onde se vive, círculos de pertença,redes de afinidade, isto é, pelos contextos de inserçãodos indivíduos: o pressuposto de que códigos e univer-

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5 | A propósito das experiências de dinamização cultural que tiveram lugar no nosso paísdurante este período, encontrei material interessante num CD editado por ocasião dascomemorações dos vinte e cinco anos sobre o 25 de Abril. Algumas situações nele retra-tadas roçam mesmo a caricatura. Mas, ao mesmo tempo, como ficarmos indiferentes aoidealismo um tanto ingénuo que se desprende das imagens que nos mostram um ele-mento do MFA ensinando ao povo que a «herança fascista do machismo» deve agora darlugar ao respeito pelas «nossas companheiras»? Ver também, a respeito do mesmoassunto, a nota final a este texto.

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sos de referência diferentes originam necessariamentediferentes formas de apropriação da realidade não podeser ignorado quando se pensa, numa perspectiva demo-crática, a promoção de práticas culturais.

Cultura escolar: da multiculturalidade àinterculturalidade

As críticas apontadas a estes dois paradigmas conduzema algumas questões que não podem deixar de ser tidasem conta quando se pensa o papel da escola actual e suafunção educativa, logo, cultural. Tratarei aqui daquelaque me parece ser a questão-chave quando se pensa acultura em termos de educação escolar.

Em primeiro lugar, a latitude do conceito de culturaimpõe a necessidade de alguma clarificação, sobretudo se,como é o caso presente, a encaramos numa perspectiva,não propriamente analítica, mas de acção. Por outras pala-vras, é necessário que, como educadores, saibamos reco-nhecer os diferentes sentidos que se podem atribuir aoconceito e percebamos, exactamente, de que falamos quandofalamos de cultura.Neste ponto, parece-me importante assu-mir desde logo como incontestável a recusa da hierarquiade legitimidades que a dominação simbólica instaura nouniverso socialmente assimétrico da(s cultura(s), isto é,julgo que importa perceber que a escola não pode, nemdeve impor como única e legítima uma certa representa-ção do mundo, sob pena de, com isso, excluir irremedia-velmente do seu seio um vastíssimo segmento dapopulação, condenado à incapacidade de se integrar numuniverso cultural que não é o seu. Contudo, ainda quealargando antropologicamente o conceito de cultura,estendendo-o a toda e qualquer forma de acção humana esocial, isto é, estabelecendo que todos os grupos e seg-mentos sociais têm cultura e que todas as culturas são

igualmente válidas, há que não deixar de ter em conta oprincípio escolar da promoção educativa, que impõe o desen-volvimento de competências e de disposições e coloca exi-gências de qualificação e promoção cultural segundo umahierarquização que toma por referência a modernidadeeuropeia e o racionalismo que a informa. Por conseguinte,manifestações superiores do espírito humano, como aarte, a ciência, a literatura, ou seja, a cultura dita erudita,terão de ser consideradas algo mais do que mero instru-mento de distinção elitista. É bom não esquecer que ademissão da escola face a propósitos de aquisição intelec-tual e comportamental conduziria ao esvaziamento do seupapel como instância educativa e à perpetuação das injus-tiças, pois que consistiria, no limite, em não apetrechar osdesapossados de capital cultural dos instrumentos que lhepossibilitarão a descodificação dos códigos culturais hege-mónicos, aumentando consideravelmente, por essa via, ofosso entre dominados e dominadores, para usar a terminologiade Bourdieu. Mas, se nos parece claro que pensar a escolaem termos culturais impõe a definição de padrões de qua-lidade, quem os define? E como defini-los, e aplicá-los,num espaço em que está presente a tensão permanenteentre individualismo e universalismo, entre diversidadecultural e necessidade de coesão, como «lidar com a dife-rença e a heterogeneidade, promovendo ao mesmo tempouma cultura comum e partilhada» (Nóvoa, 2007: 122)?Como, em suma, encontrar as formas e os modos pedagó-gicos de proporcionar aos jovens, a todos os jovens – inde-pendentemente das diferentes competências, projectos etrajectórias de vida, – a aprendizagem e interiorização dasbases de uma vida em comum, que sustentarão a sua inte-gração plena na complexidade do mundo actual?Como primeiro passo, julgo que importa compreenderque qualquer forma de captação, interpretação e expres-são do mundo constitui manifestação cultural e que,nesse sentido, cabe à escola, como a qualquer outra ins-tância promotora de cultura, a dignificação de todas asformas de expressão cultural, particularmente a de todas

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as práticas e representações que, sujeitas aos códigossocialmente dominantes, não dispõem de condiçõespara impor os seus próprios referenciais. Significa isto,antes de mais, uma noção de escola como espaço plural,marcado pela heterogeneidade, aberto à diferençasocial, cultural, linguística, – não se coadunando, pois,com a imposição de uma lógica hegemónica. Significatambém, por outro lado, a consciência de que, para sepromoverem efectivamente práticas culturais, na escolae fora dela, e para que tal se faça de forma socialmentejusta e democrática, há que considerar os códigos, hábi-tos e práticas culturais daqueles a quem se destinam,porque é no diálogo entre culturas que a apropriação seproduz. A este respeito, vale a pena recordar o conceitode educação dialógica, «baseada nos conhecimentos e napraxis dos educandos e fortemente enraizada nos seuscontextos culturais» (Nóvoa, 1998: 177), tal como oenunciou Paulo Freire: para o pedagogo brasileiro, con-trariamente à visão bancária da educação, em que os«educandos, meras incidências, recebem pacientemente,memorizam, repetem conhecimentos» (Freire, 1972: 82,cit. Nóvoa, 1998: 176), deve opor-se uma perspectiva«libertadora e conscientizante», em que a dialogicidadese constitui como essência da educação. (op. cit. 176).Ora, no mundo contraditório de hoje, marcado pela glo-balização e pelo etnocentrismo, em que a proximidadeentre povos e indivíduos, possibilitada pela tecnologia,convive de perto com a distância, a intolerância e a segre-gação, esta perspectiva dialógica do acto educativo torna --se, mais do que nunca, um imperativo. Vivemos de factotempos em que, «quanto mais as culturas do mundo seaproximam, mais são sensíveis as diferenças entre elas»(Jameson, 1984, cit. Stoer, 2001:245). A riqueza de umaeducação intercultural reside precisamente na considera-ção destas diferenças, na medida em que não só ela abrecaminho, nos sujeitos, à compreensão dos sentidos dassuas próprias acções no contexto dos seus padrões cultu-rais, como fomenta neles a disponibilidade para se deixa-

rem interpelar por outras acções e culturas. Neste vaivémentre o indivíduo e o(s) outro(s) se forja o caminho queconduz do local ao universal. É o enraizamento numa rea-lidade local que catapulta o indivíduo para uma dimensãouniversal. Vale a pena recordar de novo Paulo Freire:«Ninguém se torna local a partir do universal. O caminhoexistencial é inverso. (…) Minha terra não é apenas o con-torno geográfico que tenho claro na memória e possoreproduzir de olhos fechados, mas é sobretudo um espaçotemporalizado, geografia, história, cultura.» (Freire, 1995:25,26, cit. Nóvoa, 1998: 177).A consideração da escola como espaço multicultural,onde se cruzam diferentes origens sociais, códigos lin-guísticos e expressões culturais que importa respeitar econsiderar na sua riqueza e diversidade, impõe pois odiálogo entre as culturas como meio para fazer emergira compreensão mútua e a integração no complexomundo de hoje. Só uma cultura de escola que funcioneem inclusão, que não oponha individualismo e universa-lismo, mas que permita aos indivíduos participaremnum verdadeiro diálogo de culturas, permitirá a suacompreensão do universal. Quanto mais atenta à dife-rença e à singularidade, mais a escola se mostrará apta aformar para a tolerância, para o respeito pela plurali-dade, para a universalidade.O que a escola tem que ser capaz de fazer é, então, aoinvés de fornecer uma visão única e pré-formatada domundo, criar condições de aprendizagem que, pela mul-tiplicação dos dispositivos, das estratégias, das ocorrên-cias e das situações, permitam aos jovens a pluralidade depontos de vista e interpretações próprias da realidade, norespeito pelo lugar do outro e pela sua alteridade. Trata-se, em suma, de abrir o caminho e possibilitar a escolha.Não esquecendo, enfim, que só pode verdadeiramenteescolher quem do mundo conhece e domina a maiorvariedade possível.

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Nota final (muito) pessoal:

Em Setembro de 1974, permaneci um mês numa pequena aldeia dointerior transmontano, tomando parte nas « campanhas de alfabeti-zação.»Mais de trinta anos passados sobre essa experiência marcantee irrepetível, vasculho na memória imagens esbatidas de um tempo ede um lugar vividos sob o signo do idealismo e da utopia: o trabalhoárduo e interminável do campo, o cheiro quente da terra, a apanha dabatata sob um sol inclemente, o céu muito negro e imenso, coalhadode estrelas, quando à noite nos dirigíamos ao edifício da pequenaescola primária para as «lições»… E o sorriso triste nos rostos cavadosde rugas: «Eu, menina? Eu não sei nada, nunca daqui saí… (de nadaadianta que nos digam que sabemos coisas importantes, o saber estános livros, na palavra escrita, não no que fazemos, semear, lavrar,colher, conhecer o ciclo das estações…») E as questões, que persistemsem resposta, assaltam-me ainda, hoje como então: alguma coisamudou na vida das pessoas depois daquele mês em que reaprenderama intrincada arte de decifrar as palavras? O que farão elas com o queaprenderam? A realidade apresentar-se-lhes-á sob novos relevos ecores? Será a descodificação da palavra escrita a varinha mágica quelhes permite descodificar o mundo, abrindo caminho para que se tor-nem «sujeitos de seus próprios destinos»? (Gadotti, 1996:157, 158, cit,Nóvoa: 175)

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Seminário 3

A arte como Apropriação da Cultura: ou a cultura como apropriação da arte

Mónica Oliveira

Escultora.Doutora em Artes Plásticas pela Faculdade de BelasArtes da Universidade de Salamanca;Professora na Escola Superior de Educação Paula Frassi-netti; Professora no Curso de Doutoramento em ArtesPlásticas da Universidade de Vigo. É autora de váriosartigos científicos. Expõe a sua obra escultórica comregularidade, individual e colectivamente, em Portugal eno estrangeiro.

Reflexão de Maria de Fátima Monteiro

A utilidade da arte

O Homem, ao longo da História, e ainda antes dela pro-curou descobrir-se e interrogar-se. Muito antes de ofazer pela escrita – com a qual iniciou a História – fê-lopela Arte. Disso mesmo são exemplo, ainda que inci-piente, as gravuras de Altamira, Lascaux ou de Foz-Côa. Estas gravuras primitivas mostram que as preocupaçõeshumanas, desde cedo evoluíram da simples satisfaçãodas necessidades da existência, para as tentativas decompreensão da realidade e sua posterior representação.Ao fixarem-se nas paredes das cavernas de Lascaux,Altamira ou Foz-Côa, essas gravuras não só representa-vam a realidade quotidiana da caça ou da guerra, comose vieram a transformar num veículo de informação e

educação para gerações vindouras até serem o que sãohoje: o primeiro testemunho da criação do espíritohumano.No entanto, bem vistas as coisas, se nos colocássemoshoje no papel desses nossos antepassados cavernícolas,poderíamos perguntar-nos para que serviriam aquelasingénuas representações. É uma interrogação perti-nente, porque estamos na presença de homens que ver-dadeiramente ainda não o eram e que – mostram-no asgravuras – sabem distinguir entre arte e o arte factum,isto é, entre a criação e o artefacto, o objecto feito comarte para servir para alguma coisa.A constatação deste facto permite-nos perceber a inten-cionalidade da criação artística desligada de outrasmanifestações da criação humana mas que concorremigualmente para a definição do seu génio inventivo. A criação artística, entendida sobretudo nas artes plásti-cas e na arquitectura, reflecte pois aquilo que faz doHomem, humano – as suas preocupações, as suas inter-rogações, as suas necessidades de expressão e mesmo decomunicação. E fá-lo em todas as épocas e todos os tem-pos, orientado sempre pelas mais diversas funções: parase relacionar com a divindade, para se representar, parase recrear, para criar modelos de beleza ou simplesmentepara a representar. A arte é sempre testemunho da pre-sença e da acção humanas e das superiores possibilida-des criadoras do seu espírito. Daí que para o ser, elatenha essa contínua capacidade de nos interpelar e nosforçar ao conhecimento que essa interpelação suscita.Um «Ronda Nocturna» de Rembrandt interrogar-nos --á de uma forma diferente da Capela Sistina decerto,mas se nesta nos poderemos sentir esmagados poraquele imenso céu na terra, na obra do pintor neerlan-dês desceremos a uma cena burguesa algures naHolanda do século xvii tentando perceber as cores, ostrajes, as expressões faciais dos homens que pegam emarmas, ao mesmo tempo que nos intrigaremos com apresença daquela frágil figura feminina que branqueja

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bem no centro da tela. Do mesmo modo, uma Pietá deMiguel Ângelo, as «Demoiselles d’Avignon de Picassoou o «déjeuner sur l’herbe», de Manet, far-nos-ãoreflectir tanto na intemporalidade do sofrimento deuma mãe que perde o filho morto, como na banalidadequotidiana de um grupo de mulheres que se junta, ouainda nas sugestões eróticas de um nada inocente pique-nique de burgueses.Interpelando-nos ou suscitando-nos indiferença, as pro-duções artísticas humanas mostram-nos sempre que têmuma função ou uma utilidade, nem que essa utilidade seresuma à existência, enquanto tal, do objecto criado. Éum pouco o que acontece hoje com as gravuras rupestres.Elas estão lá não para ombrearem com a exuberância bar-roca das igrejas e palácios seiscentistas, cuja utilidadenunca contestámos, mas para estarem lá a educar-nos.A função ou utilidade da arte não pode, portanto, limi-tar-nos, como fazia o marxismo, a dividi-la entre arteútil – comprometida política e socialmente – e arte«inútil», ou não útil, isto é, não utilizável nos propósitospolíticos desta corrente política. A arte é «útil» mesmoquando o objecto artístico é sujeito de si mesmo, depoisde despojado de contaminações temporais. Mesmo quesubmetido a uma leitura histórica que o condicione ouprojectado num futuro onde se encontrem os códigosque permitirão a sua leitura, um objecto de arte vale porsi mesmo através da sua capacidade de readaptar ao con-tínuo devir da evolução humana, como o provam osexemplos acima referidos.Como expressão do seu tempo, a arte contemporânea viveum período de deriva ou de ecletismo. Estabelecendo rup-turas com os códigos estéticos do passado, assume-se emdiversas manifestações formais (performances, happe-nings, instalações...) e através de conteúdos/temas queretratam as preocupações das sociedades actuais. Estas manifestações, ao nível formal, utilizam tantomateriais que simbolizam o desperdício do consumismoocidental, como se servem tematicamente do corpo (um

dos temas fundamentais da arte contemporânea) parametaforizarem, por vezes de forma extrema, as contra-dições do corpo social. Fazem-no tanto através deexpressões artísticas que consideraríamos não-aristoté-licas, no sentido em que recusam os princípios estéticosdo classicismo greco-latino que estrutura toda a culturaartística ocidental, trazendo para a arte a expressão dogrotesco e do inumano. Estão neste caso expressõesartísticas (instalações ou performances) que utilizam ovídeo como técnica e o corpo como conteúdo, em que amanipulação – por vezes a rondar excessos masoquistasou sado-masoquistas – do próprio corpo do artista,quase se reduz a uma inútil arte pela arte ou, se preferir-mos, a um significante sem significado. Outros artistas,optando por mensagens (a arte é também comunicação)mais ou menos subliminares, utilizam nas suas manifes-tações artísticas pele humana ou vestuário feito de carnecomo forma de intervenção ou protesto cívico.A forma que muitas das expressões da arte contemporâ-nea têm encontrado para exprimir o estado do mundo ouo estado dos mundos confunde-se com a própria efeme-ridade com que esse mesmo mundo se faz, se desfaz e serefaz. Por isso muita dessa arte é efémera ou cria sentidoatravés do efémero, não apenas a efemeridade que serepresenta pela fugacidade do queimar de um fósforo,mas também pela fugacidade da beleza que leva a que setransforme o próprio corpo em objecto de transforma-ção artística. Submetê-lo a operações plásticas sucessivasé não só uma manifestação de recusa da ordem naturaldas coisas e das leis que regem a genética, mas tambémuma afirmação de autonomia criativa (na arte) e criadora(na vida). A arte enfrenta-se também no palco da vida nasua totalidade, ao assumir – como o Romantismo o tinhajá feito – o horrível como expressão do belo, invertendoas referências dos paradigmas estéticos do classicismoaristotélico. O homem enfrenta-se hoje tanto na suafealdade como na sua beleza, fazendo dessa fealdade aexpressão de uma beleza-outra.

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Arte e intervenção pedagógica

É também assim que a arte é pedagógica. Testemu-nhando as manifestações do espírito humano, ela cede àsgerações futuras uma herança contínua. Assim, osmuseus, depositários (como outras instituições) degrande parte da nossa memória artística têm-se tornadoprogressivamente entidades mais activas na promoçãoda educação artística, criando programas pedagógicostanto de natureza lúdica como didáctica destinados aosjovens, tanto em períodos lectivos como de pausas peda-gógicas. Há mesmo museus naturais que tambémrepõem parte da história humana para poderem ser visi-tados e «fruídos».Enquanto professora de Matemática, percebo a artecom uma dupla finalidade: a que me permite usufruí-laenquanto membro de equipas educativas pedagógicasmultidisciplinares, e a que me ajuda a motivar os meusalunos para um problema mais difícil, ou mostrar comomatemática/geometria e arte se interligam.

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Seminário 4

O Homem Espiritual: reptos a uma educaçãopara a transcendência

José Luís Gonçalves

Mestre e Doutorando em Filosofia da Educação.Professor na Escola Superior de Educação de Paula Fras-sinetti; Professor na Universidade Católica do Porto.Investigador e Membro do Gabinete de Filosofia deEducação (GFE) da Faculdade de Letras da Universi-dade do Porto. Autor de numerosas publicações cientí-ficas em artigo e em livro.

Reflexão de Adriana Gonçalves

Só se é homem assumindo tudo o que fale em nós Aparição, Vergílio Ferreira

Na noite de sábado, noite de S. João, debaixo do imensofogo de artifício sobre o rio Douro, acudiram-me àmemória, como de resto já acontecera durante a exposi-ção da manhã, ecos distantes deixados pela leitura de«Aparição», esse romance que, nas palavras do próprioautor, tenta fixar «o que há de novo e perturbante nesseuniverso que nos habita», esse livro fantástico que nosfala do projecto grandioso que é a vida humana, e cujoúltimo capítulo decorre também, curiosamente, em noitede S. João. (Não é o paganismo, também, uma forma de relaçãocom o absoluto?) Olho a multidão em redor, silenciosa e muda, de olhospresos no céu, fascinada como eu pela imensa explosão

de luz, e encontro, nessa subjugação comum do olharvoltado para o céu tingido de cor, de que os olhos pare-cem não querer soltar-se, uma estranha comunhão, umrasto de espiritualidade que nos perpassa a todos, irma-nados no mesmo destino humano de viver, na mesmabusca de um sentido para a nossa existência. O que nosune, ainda que muitos de nós talvez o ignorem, é a nossacondição humana e a necessidade de absoluto que subli-mamos de modos diferentes. Neste ritual de luz e fogoque arde e purifica, julgo ver inscrita a linguagemcomum e primordial da condição humana, a sua buscaincessante do sentido último da vida.Desde manhã que não me abandona este sentimento decomunhão com o(s) outro(s), esta consciência de umdestino comum, o de seres humanos que se cruzam, nasua existência, buscando cada um o sentido para as suasvidas, tentando encontrar nelas a necessária lucidez queos liberte dos gestos mecânicos do quotidiano e lhes ilu-mine a vida com o milagre da transcendência.Comecemos então pelo princípio: quando me sentei, namanhã de sábado, para ouvir o Dr. José Luís Gonçalves,confesso que me dominava algum cepticismo. Ao con-trário do que sucedeu com os temas dos outros seminá-rios para os quais, ainda que aberta à surpresa e ànovidade, partia com algumas ideias e convicções, sentiaagora a estranheza e o desconforto de enfrentar umtema que toca um campo incerto, obscuro, um solomovediço onde me afundo em dúvidas e do qualnenhuma certeza parece emergir para me «salvar»… Era,talvez, confusa e indistintamente, a necessidade nãoconfessada de uma ou duas verdades securizantes, aque-las certezas em que nos refugiamos como em portosseguros quando as dúvidas insistem em nos expor, frá-geis, angustiados, vulneráveis…Depois, o discurso normalmente vago, tão propenso aovazio e ao lugar-comum, da espiritualidade, deixava-mede sobreaviso e com verdadeiro receio de que o que iaouvir não traria, muito provavelmente, algo de novo,

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nada acrescentaria ao pouco que sei e ao muito que busco.Mas não foi preciso muito tempo para perceber que asminhas apreensões não tinham qualquer fundamento.Em primeiro lugar, tínhamos diante de nós alguém quenos falava de forma serena e desassombrada sobre a con-dição humana e as suas perplexidades. Insistia na ideiade que todo o discurso deve ser «filosoficamente expli-citado», de que nenhum discurso é neutro ou asséptico,expondo, com abertura e liberdade, diferentes paradig-mas e diferentes concepções de transcendência. Criou --se naquela sala – assim me pareceu – um estranhoclima de comunhão, humildade e tolerância. O que alitínhamos não era a imposição de uma certa perspectivade espiritualidade, mas uma partilha humilde de conhe-cimento e de incertezas.Foi sem qualquer esforço que me concentrei no quedizia, na sua pessoa. O resultado foi sobressalto, revela-ção, empatia, transformação. E foi por isso, pela riquezahumana e académica da sua intervenção, que as suaspalavras ficaram ainda a pairar na minha cabeça durantetodo o dia, acudindo-me ao espírito, imprevistamente,por entre as actividades e tarefas prosaicas do dia-a-dia.Então sentei-me ao computador e escrevi, de forma caó-tica, sem preocupações de nexo ou ligação alguma,ideias, fragmentos, interrogações que fervilhavam desdemanhã na minha cabeça…A nossa essência resulta do que somos, da nossa existên-cia? Onde se encontra o fundamento da existência?Existir é estar fora do próprio centro, é descentrar-se.Conseguiremos ver-nos de dentro e de fora, como inte-rioridade e exterioridade? Podemos compreender acomplexidade da nossa condição humana sem recursoao sobrenatural? Podemos negar o desejo e a necessi-dade de transcendência do ser humano? Transcendênciaimplica saída de si, elevando-se, significa movimentopara fora em sentido ascendente. Como sublimar estedesejo de transcendência? Podemos dar um nome a estenosso desejo de absoluto? Que fulgor é este que nos

habita e nos impele para a vida? Existir é ser-se dotadode vontade e paixão. Pode conceber-se uma vida semvontade e sem paixão? O que fica de cada um de nósquando morremos? A morte é o nada do tudo quesomos? O reconhecimento de um Eu implica o reconhe-cimento de um Tu. Somos capazes de transformar o Euisolado, voltado para si próprio, no Eu solidário, que sevolta para os outros? O homem é um animal dialógico,existe em função dos outros e para os outros. Que movi-mento fazemos, como educadores, na direcção dooutro? Onde paira a nossa essência, o que somos, não aparte visível e material, mas o todo que somos? Comovemos a realidade que somos? Imanência e transcen-dência, corpo e alma, realidades separáveis como duasfaces distintas da mesma moeda, ou realidade una einseparável, em que se funda a existência? É na con-quista ou no despojamento que nos encontramos? Cadaum de nós tem um destino e uma responsabilidade acumprir. O que fazemos das nossas vidas?E agora, domingo, apaziguada por uma noite semsonhos em que um sono profundo sobreveio ao enormecansaço, sentei-me de novo a escrever e lembrei-me deduas metáforas surgidas durante a manhã de sábado queme pareceram então e me parecem mais ainda, agoraque sobre elas reflicto, carregadas de sentido:A primeira é a casa, metáfora do Eu.Falou-se de facto em «abrir portas», em «ficar-se àentrada», em «arrumar a casa»… Reduto pessoal, lugar depaz e protecção, de reencontro com o Eu, a casa é o lugarque construímos, que edificamos, e que nos protege dasagressões. Mas este local de refúgio é também um localcom aberturas para o exterior que nos permite ver paraalém dele. É a partir da nossa casa que olhamos, «pro-nunciamos o mundo», para usar a belíssima expressão dePaulo Freire. É necessário arrumá-la, sim, mas aceitarnela a existência de compartimentos, recantos ondeconstantemente os objectos se desordenam e reagrupam,como se se movessem sozinhos. Dessa desordem apa-

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rente, desse caos em que por vezes mergulhamos na nossacasa, emerge frequentemente um sentido, um significado,um desejo de caminhar numa determinada direcção. E énecessário que ela seja suficientemente ampla para nospermitir acolher o outro, recebê-lo na sua diferença,abrindo-nos às suas interpelações. «Esta é a minha casamas podes trazer para ela o que quiseres.» Não podemosviver a nossa vida permanecendo no limiar da nossa casa.Não podemos vivê-la, fechando a nossa casa à entrada dooutro. Não podemos, enfim, vivê-la sem olhar e apreen-der, através das suas janelas, o mundo à nossa volta.Seremos capazes, como educadores, de aceitar o outrona sua diversidade e de o entender na sua complexi-dade? Educamos para a consciência de um Eu com osoutros?Também a metáfora do amor surgiu frequentementedurante a manhã de sábado. Falou-se de paixão pelavida, de paixão pela educação. Paixão: movimento impe-tuoso da alma para o bem ou para o mal, martírio, sofri-mento, envolvimento veemente nas coisas e nos seres. Falou-se do desejo como motor da vida humana queimpele o homem na sua busca de transcendência. Edu-car significa suscitar o desejo, seduzir. Apaixonamo-nospor algo que nos mostram ser desejável. Neste processo,o sedutor seduz e é seduzido, é sujeito e objecto. Comono amor, há na educação um processo de desencadea-mento, de disponibilidade, de perturbação, de fascínio,de transformação. Mas a paixão na educação não é cega,não lhe retira lucidez. Ao contrário, é paixão possuída derazão, sonho carregado de realidade e compromisso.Como no amor, há dar e receber e a possibilidade deuma satisfação plena. Mas essa demonstração do que ébelo e desejável, essa sedução permanente no acto edu-cativo, em que os papéis de sedutor e seduzido conti-nuamente se tocam e se trocam, tem que permitir aliberdade. Como se nos dissessem: «Mostra-me o que ébelo, mas mantém-te um pouco afastado, deixando-melivre para decidir.»

Conseguiremos, como educadores, seduzir para oconhecimento, para a busca pessoal de transcendência?Seremos capazes de nos empenharmos com paixão naconquista da liberdade pessoal dos nossos alunos?Não por acaso, a personagem central de «Aparição» éum professor, que se incumbe a si próprio a missão deacordar as consciências dos outros, lançando neles adúvida, interpelando-os, acordando-os para a responsa-bilidade de estarem vivos, de existirem, fazendo-osdesejar, seduzindo-os pela palavra, pelos actos. Fá-locom paixão, com sofrimento, com dúvidas e angústias;busca a sua espiritualidade, tenta que os outros encon-trem também a sua. Quem somos nós? Para onde vamos? O que buscamos ecomo o fazemos?Esta busca de espiritualidade é uma busca de si mesmo,em que cada um traz à superfície o que possui em si desingular, é a construção de um projecto pessoal de vidacom sentido, e faz-se, necessariamente, no encontro coma alteridade. Cito de memória o Padre António Vieira,orador, escritor, homem de acção profundamente empe-nhado na educação dos homens do seu tempo: «Até ospenhascos respondem e para as vozes têm eco». Ouvimossomente a nossa própria voz, ou conseguiremos escutar oeco deixado pelas nossas palavras?Educar é um processo de descentração e centração cons-tantes, é ajudar a desvendar sentidos, apontar caminhospossíveis, conhecer o outro e percebê-lo na sua comple-xidade, interpelar e deixar-se interpelar. Nesta construção de um sentido comum, cada um, pelaimaginação, pela decisão e pela vontade, se apropriarálivremente dos significados, cada um fará a sua escolha,projectando-se no futuro.· O que somos como educadores?· Que pessoalidade construímos dentro da nossa profis-sionalidade?· Que pessoalidades(s) ajudamos a forjar?

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Não seremos educadores se não soubermos estar aten-tos aos outros, se não soubermos despertar os nossosalunos para a sua busca pessoal de sentido para a exis-tência.Seremos, em suma, aquilo que formos capazes de fazerdas nossas vidas. Do sentido que, em cada gesto, confe-rirmos à nossa existência humana, restará a substânciado que fomos. Seremos capazes de tomar nas nossasmãos o nosso próprio destino, dando-lhe um rumo e umsentido?

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Seminário 5

Da Música e da Cultura:

um minúsculo concerto composto em dois andamentos para profes-sores e educadores esgrimirem ideias sobre Música e Cultura emcontexto escolar

Mário Azevedo

Diplomado pelo Sthichting Orff-Werkgroep de Delft/Holanda. Professor de Reportório, de Análise de Fono-gramas e Eventos, de História do Jazz e de Músicas doMundo na Escola Superior de Música e Artes do Espec-táculo do Porto. Director pedagógico, co-fundador doInstituto Orff do Porto e Maestro da Orquestra Orff doPorto. Autor de numerosas publicações, especializadas,em artigo e em livro.

Reflexão de Maria de Fátima Monteiro

A música, como as artes em geral, nunca foi objecto departicular atenção dos poderes públicos. Podemos atédizer que, salvo as excepções devidas, os poderes e asinstituições sempre menosprezaram o papel da música edos músicos tanto na educação como na cultura. Umbreve recuo no tempo prova que, ao invés da literatura –e em particular da poesia e do teatro – nenhuma outraexpressão artística se projectou, em qualquer tempo,para fora das nossas fronteiras tanto em obras de vultocomo em criadores de mérito reconhecido. Mesmo nosperíodos de maior fulgor artístico, como nos séculos xvi,xvii e a espaços, o xviii, as nossas maiores realizações no

campo das artes – e por consequência no da música –eram com frequência obra de estrangeiros. Ainda hoje,nomes como Nazoni, João Frederico Ludovice , VitorioGregotti ou Kolhaas na arquitectura, nos soam muitomais familiares que Afonso Domingues, Carrilho daGraça ou Manuel Salgado. Em contraponto quem selembra de compositores como João Domingos Bom-tempo ou Carlos Seixas ou, mais contemporaneamente,de Luís de Freitas Branco ou Fernando Lopes-Graça?Não é arriscado afirmar que, uns mais que outros, fazemparte da galeria dos esquecidos ou dos desfavorecidos dacultura e sobretudo do poder que a rege.A este nível, o de uma arte destinada a consumo de eli-tes, a música (como de resto a maioria das expressõesartísticas) constituía-se como uma espécie de «enfeite»do Poder. Rodear-se de músicos, pedagogos, pintores oude outros artistas capazes de abrilhantar um períodopolítico ou um reinado, foi tentação comum a muitossoberanos europeus, como o é ainda hoje de governosmuito modernamente democráticos. Embora a posteri-dade se encarregue de separar a arte de outras expres-sões menores, a verdade é que as obras de vulto não selimitam a honrar quem as criou ou produziu, mas teste-munham também a maior ou menor valia da época dasua criação. A mestria de Carlos Seixas na composiçãopara instrumentos de tecla não se resume apenas às suashabilidades técnicas, mas inscreve-se também emmodelos rítmicos, harmónicos e composicionais pró-prios da época. A linha melódica das composições desteautor assemelha-se às de Domenico Scarlatti (comquem certamente conviveu na corte portuguesa) e às deoutros compositores da escola italiana e francesa quedominavam o gosto musical erudito no século xviii.Não admira portanto que o Poder se queira ver asso-ciado a produções artísticas de relevo que lhe ampliem oprestígio e o ajude a impor um gosto ou uma tendência.O mesmo sucede hoje com os grandes nomes da músicaerudita contemporânea a quem o poder lisboeta não

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deixa de cortejar para as temporadas de ópera no S. Car-los ou para produções gigantescas destinadas mais àcuriosidade que ao consumo populares, como aconteceurecentemente com a Aida de Verdi.

Políticas culturais e ensino da música

As políticas culturais no domínio da música, sobretudono que respeita à divulgação da música clássica, quase nãoexistem na actualidade. Sem que se possa dizer que hajauma intenção deliberada de acabar com o ensino damúsica, a verdade é que têm sido múltiplos os sinais deque é isso que está acontecer. Os primeiros ocorreramquando, há alguns anos se viveu a euforia da criação deefémeras orquestras nacionais e regionais para se ampliardepois com a requalificação dos conservatórios (passa-ram a escolas de música subsidiárias da componente«vocacional» dos cursos do ensino básico e secundário) eagora por nova «reconversão» destes estabelecimentosem escolas «vocacionais» com currículos próprios.Apesar de não se questionar a importância das orques-tras tanto na promoção e realização de espectáculoscomo na educação e formação do gosto musical, os seusmodelos de financiamento e políticas de contratação depessoal tendem a colocá-las num «ghetto» cultural,sabendo-se quão escasso é o público disponível paraconsumir o tipo de espectáculos que elas oferecem – oque acontece por, a montante, não ter havido ao longode décadas, uma política educativa que fomentasse oensino da música nos ensinos básico e secundário. Asconsequências serão a asfixia financeira (os mecenasvão-se desinteressando de orquestras que têm poucopúblico) ou o abandono das orquestras pelos músicos.Pior ainda: desencorajam-se todos os jovens que dese-jam seguir carreiras na música por falta de horizontesprofissionais.

Torna-se claro que o Estado não pode demitir-se da suafunção de promoção da cultura alijando responsabilida-des através de subterfúgios como a criação de Fundaçõesou daquilo a que eufemisticamente chama «parceriaspúblico-privadas». As Fundações tanto de direitopúblico como privado têm sido encaradas como modosmais ou menos encapotados de poupança fiscal porparte de entidades empresariais muito mais interessadasem pagar menos impostos que a envolverem-se em áreasde negócio que desconhecem ou de cuja rentabilidadeduvidam. Estão, por isso mesmo, muito mais expostas àscondições de mercado que as entidades empresariaiscomuns, o que as leva a estabelecerem vínculos precáriosde trabalho com quem nelas exerce funções gerando, poressa via, um tipo de instabilidade pouco consentâneocom a criação musical que é, como se sabe, tecnicamentemuito exigente. Não admira portanto que muitas destas«fundações» vejam o seu trabalho esvaziado tanto porescassez de fundos como por inadequação de público,ficando assim por fazer aquilo para que foram criadas.Penso que neste domínio da música erudita se deverepensar o produto cultural a oferecer. Como não é pos-sível «reconverter» de um dia para o outro uma imensamassa humana que pouco se interessa pela música clás-sica, a solução terá de passar por formas de acesso ao«grande» público que sejam capazes de popularizar amúsica clássica. Não me refiro naturalmente a orques-trações aligeiradas de clássicos da música erudita talcomo o faziam Waldo de los Rios ou James Last, mas agrandes eventos populares sem concessões a nenhumtipo de hibridismo musical nem a plebeizações condes-cendentes, que fossem capazes de captar o mesmo tipode público que frequenta o Royal Albert Hall para ouvira London Philharmonic Orchestra nos inesquecíveisconcertos promenade.Aí quando ouvimos uma multidão indiferenciada a can-tar em uníssono land of hope and glory (de Pump and Cir-cumstance, de Elgar) perguntamo-nos como é possível

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ainda não se ter feito nada disto em Portugal quando,afinal, possuímos todas as condições para o fazer: temos«fundações», orquestras, grandes espaços e público. Por outro lado, abundam exemplos de que é possívelconverter as grandes massas a este tipo de espectáculos,servidos com elegância, humor e... pedagogia. Quem nãose lembra do tremendo sucesso do Maestro LeonardBernstein com os seus Concertos para Jovens, ou não serecorda do prazer de assistir aos concertos pedagógicosdo Maestro José Atalaya? Num tempo, como este, emque o primado do económico se sobrepõe ao intrinseca-mente cultural, este tipo de abordagens do fenómenomusical mostra que é possível conciliar o resguardo e aseriedade deste tipo de expressões musicais com os inte-resses de exploração comercial. Afinal, se o produto temqualidade, por que não há-de vender-se?Já quanto ao ensino, como acima ficou dito, o problematem necessariamente uma dimensão diferente. A ques-tão a colocar já não tem tanto que ver com a formaçãode públicos ou de gostos, mas do direccionamento daspolíticas. Os sucessivos downgrades dos conservatórios demúsica irão provavelmente colocá-los ao mesmo níveldo ensino da música praticado em pequenas associaçõesou nas filarmónicas. Sem questionar o labor e dedicaçãode todos quantos nelas trabalham, muitas vezes semnenhuma recompensa, a verdade é que o ensino minis-trado não se orienta por critérios curriculares devida-mente organizados e enquadrados no SE Português, jáque o seu objectivo assenta na renovação de efectivosdessas mesmas filarmónicas. Os conservatórios, noentanto, despojados na sua supletividade anterior, ver --se-ão forçados à construção sequenciada de currículoscuja frequência, presume-se, se destinará a alunos quevisam enveredar por uma carreira na música e que, pre-sume-se uma vez mais, não serão em número suficientepara garantir a autonomia financeira das instituições.Remetidos a um ensino «vocacional» e/ou profissionalda música é de temer que muitas não consigam sobrevi-

ver se, como é previsível, tiverem de se transformar emautênticas escolas secundárias com o consequenteaumento de pessoal docente bem como investimentoem equipamentos. Por outro lado, o Estado continua apenas a oferecer, no2º ciclo do ensino básico, uma disciplina de educaçãomusical, com escassa dotação horária semanal, e onde osalunos apenas tomam contacto com um instrumentomusical: a flauta. Findo o 6º ano de escolaridade cessamos contactos com a música enquanto disciplina curricu-lar cuja oferta nem sequer ocorre em nenhum dos cur-sos/agrupamentos do Ensino Secundário. O facto deexistir em algumas escolas secundárias (no 3º ciclo) adisciplina de educação musical enquanto oferta daescola, não chega para mitigar o problema.Talvez se possa argumentar que o ensino vocacionalpossa resolver o problema, se as escolas artísticas se mol-darem pelo figurino curricular das escolas secundárias,mas a verdade é que um músico não se começa a «fazer»aos 12 ou 13 anos que é a altura em que um aluno poderáingressar nas escolas vocacionais artísticas.

Importância do ensino da música – a música na escola

A música tem, na escola, uma importância fundamental.Desde a infância que a criança mantém uma relaçãoespontânea com ritmos e sons próprios de lengalengas oude mnemónicas a par de canções com as quais a ajudamosa interpretar e a interagir com o mundo. O mesmo sepassa em ciclos posteriores de ensino, onde a música seconstitui como um elemento essencial da aprendizagem,nomeadamente nas línguas estrangeiras. Aí é possíveldesenvolver numerosas actividades didáctico-pedagógicasrelacionadas com tarefas de repetição e associação lexicaisfacilitadas quer pelo ritmo quer pela expressividade da

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função poética presentes em numerosas letras de canções.Também no ensino da língua materna é possível utilizarletras de canções para actividades de pré-escuta ou escutaactiva para apreensão sequenciada dos múltiplos sentidosdos textos ou explorar o conteúdo expressivo de muitasdas suas letras.Em outras disciplinas diversas actividades são igual-mente possíveis como na Matemática nos primeirosanos do ensino básico em que se pode recorrer a marca-ções rítmicas ou cadências para treino da memorizaçãode algumas operações matemáticas simples. Do mesmomodo, o mercado musical encontra-se pejado de títulosde canções de conteúdo didáctico-pedagógico, dirigidotanto a conteúdos didáctico-pedagógicos de naturezadisciplinar, como a outros mais relacionados com aspec-tos da formação integrada do aluno (alimentação, a«mesada» familiar, etc) ou com aspectos relativos àsocialização juvenil (namoro...) – que se torna relativa-mente fácil proceder à sua utilização na sala de aula.No entanto, a formação musical não se pode limitar àsdidácticas específicas, em especial no ensino secundário.Mais que o conhecimento dos géneros musicais própriosdos jovens que frequentam a escola secundária (Rock,pop e géneros específicos de música ligeira) importa queaos jovens seja proporcionado um conhecimento siste-matizado dos diversos géneros e formas musicais, deforma a entender a música como um fenómeno culturalno seu conjunto, e não apenas como um modo mais oumenos frequente de se aturdir em decibéis. Hoje, com a panóplia instrumental a que se pode recor-rer, é fácil aos jovens reduzir o que entendem por músicaao som que sai (com ou sem phones) do iPod ou do mp3depois de feito o download mais ou menos ilegal da Net.Cavalgando a «onda» do momento, consomem a efeme-ridade do mito mais recente ou mergulham, à noite, emrituais mais ou menos iniciáticos nos grandes hipermer-cados da dança e do consumo de álcool, ouvindo aosberros as escolhas dos DJ da moda. O seu conhecimento

musical (que é verdadeiramente uma nova iliteraciamusical) assenta num hedonismo juvenil alimentado avideoclips e a decibéis, que se consome a si mesmo nessasgrandes sessões de aturdimento colectivo. As músicassão tocadas ao ritmo do momento, pelo DJ domomento, na discoteca do momento, com as pessoas docostume, no dia do costume. Não passam, portanto, demanifestações rituais ou ritualizadas, muito semelhan-tes, aliás, às que outros jovens desenvolviam em geraçõesanteriores, descontando-se, claro, o tempo e o lugar.Estes comportamentos (próprios do tempo e da cir-cunstância) não conduzem à acumulação de um maior(e melhor) capital cultural e musical porque se circuns-crevem a actos próprios de «tribos», urbanas ou urbani-zadas, unidas pela globalização do consumo À músicaouvida ou debitada prendem-se um sem número de gad-gets e de produtos de merchandising que prolongam acadeia de valor ao mesmo tempo que fixam (ou fideli-zam) o consumidor.Neste contexto, se perguntarmos a um jovem do ESquais as suas músicas favoritas, muito provavelmenteouviremos uma não muito longa enumeração dos «sons»ou géneros da moda, necessariamente diferentes dos dopróximo verão – o que não admirará. Mas se a questãoincidir sobre as motivações, escolhas, causas ou ideologiasde uma banda ou sobre as causas do aparecimento de umgénero musical (hip-hop, rap...) as respostas tenderão areproduzir o estereótipo (fome, guerra, ambiente) ou –e não sei o que é pior – revelarão as marcas de coloniza-ção da cultura anglo-saxónica. A hipótese mais provável,no entanto, será o desconhecimento. Enquanto produtode consumo cultural de massas, os géneros musicaisanglo-saxónicos chegam-nos associados a manifestaçõesde rebeldia de grupos juvenis oriundos de minorias étni-cas, daí que a música se imponha mais facilmente pelosritmos inovadores mas também pelos gestos, pelo vestuá-rio e por atitudes por vezes agressivas que são, por tudoisto, objecto de imitação e de admiração.

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Torna-se indispensável que a escola, cumprindo aliás asua missão, dote os jovens de uma formação culturalartística (e musical também) que amorteça a aculturaçãoanglo-saxónica. A música inglesa ou em inglês não temde ser uma fatalidade sempre que ligamos o rádio ou atelevisão. Mas sê-lo-á se a escola não perceber que teráde valorizar (e de oferecer) desde cedo uma formaçãoartística que ajude não somente a compreender os fenó-menos artísticos a uma escala global, mas que tambémajude a formar e a consolidar uma consciência identitá-ria nacional, através do conhecimento e valorização donosso património musical comum. Duvido que estavalorização se possa fazer de forma transdisciplinar, emdisciplinas curriculares, sobretudo a História ou a Filo-sofia, visto que a perspectiva de abordagem se subordinaao objecto próprio dessas disciplinas ou de outras, even-tualmente. Na ausência de um tempo curricular próprio(não se pode, naturalmente, criar disciplinas por tudo epor nada) que só existe, como referido, no 2ºciclo, pode-ria ter o seu espaço na disciplina de educação cívica oudesenvolver-se através de actividades não curriculares,nomeadamente através da criação de grupos de pesquisaem etnomusicologia, etc. A Área de Projecto pode sertambém uma excelente alternativa para este tipo deactividades.

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Seminário 6

A Utopia da Paz Universal

Daniel Serrão

Doutor em Medicina. Professor Jubilado da Faculdadede Medicina do Porto. Membro, em representação dePortugal, do Comité Ad. Hoc de Bioéthique, logo aseguir Comité Director de Bioética (CDBI) desde1989. Presidente (Chair) do Working Party on TheProtection of the Human Embryo and Foetus (CDBICO-GT3) desde 1997.Membro do Conselho Científicodas Ciências da Saúde do Instituto Nacional de Investi-gação Científica (INIC) desde 1980 até à sua extinçãopelo Decreto-Lei 188/92, ou seja durante 12 anos. Presi-dente da Comissão de Fomento da Investigação emCuidados de Saúde, do Ministério da Saúde, desde 1991.Autor de abundante e influente bibliografia especiali-zada e de opinião.

Reflexão de Maria de Fátima Monteiro

Desde que a revolução francesa triunfou, em finais doséc. xix, na base dos princípios para nós hoje inquestio-náveis da liberté, fraternité e égalité, que o progressohumano não tem cessado de aumentar. A crença nosvalores positivos do conhecimento e da sua colocação aoserviço das sociedades fez com que a ciência, a técnica sefossem transformando em poderosos instrumentos decriação de riqueza e bem-estar social por todos usu-fruído. Hoje, no mundo ocidental, acreditamos que vivemos emsociedades mais justas, onde todos beneficiamos de con-

dições dignas de trabalho, de acesso à justiça e à educa-ção, bem como a cuidados de saúde e a outros benssociais e económicos de que não abdicamos. No entanto,a história da Europa ensina-nos que uma parte destedesenvolvimento, essencialmente económico, foi conse-guido à custa da subjugação militar e económica exer-cida sobre outros povos e culturas. Os Descobrimentos,que a revisão pós-moderna prefere designar por«encontros civilizacionais», mostram que a par da impo-sição cultural dos valores religiosos do cristianismo, Por-tugueses e Espanhóis (e mais tarde Ingleses, Holandesese Franceses) retiraram vantagens económicas do comér-cio estabelecido com os povos do Oriente (Índia)socorrendo-se da sua efectiva superioridade militar.Mesmo hoje, na era pós-colonial, o modelo económicocom que a Europa financia o seu modelo social está for-temente dependente de matérias-primas, como o petróleoou o gás natural, existentes em países subdesenvolvidoscuja extracção em pouco beneficia os respectivos povos.O mesmo tem, desde há décadas, acontecido com osEUA cujo neocolonialismo se faz sentir através da ins-trumentalização das UN concretizada em ameaças ouinvasões militares de países ou regiões ricas em recursosnaturais, ou então através de ajudas económicas nadadesinteressadas.No entanto, a consciência de que o mundo é cada vezmais a «aldeia global» de McLuhan tem conduzido àemergência de movimentos e ou grupos de pressão que,no seio das sociedades americana e europeia, ou mesmoatravés de organismos da ONU têm vindo a erguer avoz em favor de políticas mais humanistas, de respeitopelos direitos do homem, pela defesa da natureza e doambiente.De facto, o mundo globalizado de hoje impõe-nos a per-cepção de que a Terra é uma «casa comum» de que todosteremos de cuidar independentemente da cor da pele,religião ou crença. Importa pois que o homem redescu-bra um novo humanismo assente numa ética prática

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capaz de unir as pessoas em torno de causas e princípioscomuns. Trata-se aqui de entender que não podemosacomodar o mundo a um ponto de vista «ocidental»,mas antes abordá-lo através da teoria da complexidadeem que tudo é causa de tudo. Não são portanto admis-síveis modelos de desenvolvimento económico-socialou «american ways of life» que, para se sustentarem,desequilibrem (empobreçam) outras regiões do globo.Do mesmo modo, jamais se poderá afirmar que osrecentes derrames de petróleo na costa galega ou a quaseeliminação da fauna marinha do Alasca causada peloExxon Valdez afectem apenas os locais onde tiveramlugar. Mesmo as manifestações, muitas de carácter vio-lento, que se verificam sempre que o G8 se reúne, mos-tram nesta sua aparência de violência gratuita, umaaguda consciência (política, social, ambiental) de que énecessário repensar não apenas as relações geopolíticasque tanto desequilibram o mundo, mas questionar tam-bém o (re)posicionamento ético do homem.

Uma nova ética social

De facto, num mundo em mudança global, em que tudodiz respeito a todos, os novos desafios que se colocam aohomem ocorrem no interior das sociedades. Muito maisque o confronto dos mundos islâmico ou cristão àsuperfície, as linhas de fractura situam-se transversal-mente no interior das diversas culturas.As questões que se nos colocam, neste domínio, é se élícito ou não recorrer ao terrorismo, em nome de prin-cípios religiosos ou em defesa de causas políticas de cariznacionalista; ou se é legítimo desenvolver culturas damorte (o martírio islâmico) para destruir inimigos secu-lares, em nome de uma vida celestial como recompensa.Quando ouvimos as declarações incendiárias de Mah-moud Ahmadinejad preconizando a destruição de Israel

ou olhamos as imagens de peregrinos xiitas e sunitas quese matam mutuamente em nome de Alá, no Iraque, per-cebemos que a distância que nos separa do mundo islâ-mico reside basicamente no conceito de vida e da suadefesa.

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Seminário 7

Supervisão e Complexidade: transgressõesdo olhar

Idália Sá-Chaves

Doutora em Didáctica na especialidade de Supervisão eFormação. Professora na Universidade de Aveiro. ComoProfessora convidada tem colaborado com múltiplasuniversidades portuguesas e brasileiras, no âmbito doscursos de pós-graduação nas áreas da Supervisão da For-mação em Educação e em Saúde. No âmbito da inter-venção cultural e cívica é membro da SociedadePortuguesa de Autores, da Associação de Jornalistas eEscritores da Bairrada e integra o conselho Consultivoda Comissão Nacional da UNESCO. É autora de múl-tiplos artigos e de várias publicações, em livro, sobre aespecialidade e literárias.

Reflexão de Daniela Gonçalves

Carta à Professora Idália Sá-Chaves

Ah se não fosse a bruma da manhãnem a velhinha janela onde me voudebruçar para ouvir a voz das coisaseu não era o que sou.

Teixeira de Pascoaes, As Sombras

Professora Idália, permita-me que inicie esta reflexão apartir da citação de um trecho de um poema de Teixeirade Pascoaes que servirá de mote à tentativa de com-preensão da complexidade da educação...

Assim, o que somos ou em quem nos tornámos, os pro-jectos desenvolvidos não teriam sido possíveis se nãotivéssemos encontrado ou reparado nas janelas, umasmais utilizadas e «gastas», se não se tivéssemos a dispo-nibilidade, o tempo, a possibilidade, a oportunidade deabrir as janelas e se não tivéssemos tido a curiosidadenecessária para olhar, parar e escutar, através delas, ooutro ou outros que naturalmente passavam e comquem se partilharam caminhos, conversas, experiências,a quem, outros, chamavam de desvios, mas constituintesde potencialidades que, mais tarde, se tornaram em sig-nificado ou ideias ou na possibilidade do(s) mesmo(s)para outros. Assim, o que somos ou em quem nos torná-mos, os projectos desenvolvidos não teriam sido possí-veis se não nos tivéssemos debruçado para o exterior denós mesmos. Portanto, não deixa de ser uma forma modesta, ou dequalquer modo diferente, de escrever sobre assuntoscomplexos como os que se referem às finalidades, possi-bilidades ou oportunidades de concretização do actoeducativo ou formas de conhecer, escrever, sentir, cres-cer e educar. Espero que esta carta manifeste uma maiorconsciência das possibilidades educativas, estéticas emesmo éticas que diferentes formas de escrever ou demostrar ideias e conceitos potenciam. Também porqueas palavras, o conteúdo do poema, ajustadas metáforas ànossa compreensão do que e como se conhece, de qual-quer maneira, constituem temas, referências, pontos departida ou «transgressões» para contextualizar a refle-xão em educação, neste caso concreto, a reflexão sobre aSupervisão, Complexidade e Desenvolvimento.Desde sempre que o homem sentiu a necessidade deprocurar as coisas para as entender ou de construir o seupróprio caminho, conhecimento e compreensão. Acre-dito que desde cedo que crescemos aprendendo a parti-lhar várias formas de conhecer e estar nas coisas ou navida e, assim, crescer. Sempre estivemos conscientes dasdiferenças, mas sempre se construiu o necessário res-

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peito pela diversidade de caminhos. Ora, a procura deentendimento (outros entendimentos), ou o nossocaminho, leva-nos à possibilidade de encontrar a nossaprópria voz, actuação e, também, a voz das coisas... dosoutros. A valorização da voz das coisas, da voz dos outros e danossa própria voz aproxima-nos da ideia de complexi-dade. Este tem sido um dos argumentos partilhadospelas diferentes epistemologias construtivistas. Aceita --se o pressuposto de que o conhecimento da realidade éconstruído pelo sujeito a partir da experiência que temdessa mesma realidade e a riqueza desta aprendizagem(ou construção) dependerá da disponibilidade, da opor-tunidade do sujeito escutar a voz... a sua, a das coisas, ados outros! Na medida do valor atribuído à experiência,o conhecimento acontece e torna-se acessível ao sujeitoque conhece, através de um processo de construção derepresentações diversas em que esse sujeito se implica. Énesta relação (autêntica) entre o conhecimento e a suarepresentação (ou construção) que se fundamentam, noâmbito de uma epistemologia construtivista, os conheci-mentos passíveis de serem comunicados ou ensinados.Daqui decorre a importância de se escutarem as taisvozes... e a partir delas desenvolver disponibilidadespara ouvir outras e outras vozes ou, por outras palavras,possibilitar a construção e a aprendizagem. Foi isso quetentei fazer. A minha voz ficou muitas vezes silenciadaao escutar, sentir, viver e presenciar a sua lição. Até por-que o silêncio das primeiras horas é necessário comodistância necessária que faz nascer o pensamento ou aminha (a nossa) amiga reflexão. Não basta ter acesso àexperiência, seja ela a sua voz, a voz das coisas, a palavrado outro a sua palavra, para que haja aprendizagem ouconstrução. É fundamental ter tempo para reflectirsobre as experiências. A necessária pausa e distânciarelativa às experiências, isto é, o tempo, condição neces-sária ou inerente ao desenvolvimento reflexivo, ganhaespecial relevo na medida em que representa a possibili-

dade de procurar outros pontos de vista necessários àconstrução. Tenho passado muito (e bom tempo) con-sigo, com os seus pensamentos, tentando olhar, sentir,escutar, compreender, analisar, sintetizar... A minha reflexão, a minha perspectiva foi acrescentadaatravés do diálogo reflexivo. Isto aconteceu, acontece esei que vai acontecer mas sempre em torno de situaçõeseducativas reais como as que acontecem ao longo de umpercurso que se realiza e constituirão potencialidades dedesenvolvimento importantes para que eu consigaactuar e ser no desempenho profissional. Essencialmente, como refere Dewey, a reflexão implicasaber pensar, isto é, ser capaz de suster uma conclusão oujuízo, ser capaz de procurar (olhar, escutar) outra infor-mação passível de confirmar ou rejeitar, de modo funda-mentado, a primeira ideia ou crença. Ao assistir à sua lição senti-me perplexa e fascinada...cheia de incertezas, mas com a certeza de que estiveperante alguém que subiu à montanha e viu mais e maislonge, mas com disponibilidade para nos ajudar a subirpara que cada um de nós possa também ter essa visãocomplexa, abrangente...Tal como a minha experiência nesta Pós-Graduação,senti (e sinto) que estava a ser «levada» ou embalada nadirecção ajustada, envolvida de afectos, sabedoria, textosou contextos... Agora evoco sugestões, alternativas,outras perspectivas, matéria-prima para a minha refle-xão..., para o meu treino, com vista à formação de umadirecção adequada de um pensamento (transgressor)complexo. Nas suas palavras, «questionando o meu pró-prio papel e, nesse exercício, (re)aprendo outros modosde ser e de estar, progressivamente mais esclarecidos,mais conscientemente controlados e desse modo maisgratificantes, quer pessoal, quer profissionalmente».Portanto, na minha perspectiva, a Supervisão Pedagó-gica inscreve-se no pressuposto da construção intrapes-soal do conhecimento, através da acção/reflexãointerpessoal, na resolução de situações concretas, inte-

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grando o conhecimento teórico referencial e o quadropessoal de representações com conhecimento emer-gente da prática e que, como é óbvio, só nela reside.Deste modo, fundem-se teoria e prática num exercíciode reflexividade (praxeológica) que cumpre uma finali-dade epistémica de construção partilhada e implicada desaberes. Nesta perspectiva, insisto num exercício de uma orien-tação reflexiva, ecológica, dialógica e, como tal, necessa-riamente ajustada caso a caso. Atendendo ao seupensamento, este tipo de formação pressupõe ummodelo aberto e flexível que respeita o direito à dife-rença e, consequentemente, permite processos evoluti-vos diferenciados que conduzirão a actos de ensinoconscientes e responsáveis. Mas é algo necessariamenteinacabado e susceptível de auto-regulação constanteatravés de uma persistente atitude de questionação –«paradigma de indagação». Tento, insisto e acredito napossibilidade de integrar perspectivas diferentes, o quepressupõe caminhos diversos... Tento, insisto e acreditona resposta individualizada a cada situação e a cadasujeito, respeitando as especificidades e os níveis dedesenvolvimento particulares e ampliando o conheci-mento que se vai construindo em cada momento. É omeu compromisso. Estes são os aspectos que configurama minha representação de «cenário integrador» quesobreleva aspectos importantes de cada interveniente. Eis que se considera as dimensões humana, o conheci-mento e a experiência reflectida que cada um traz con-sigo, a relação afectiva e acolhedora, potenciadora demúltiplos momentos de descoberta pessoal e de desen-volvimento profissional, evidenciado através da cons-trução de portfolios reflexivos individuais, como umasolução possível, aberta e flexível, que releva o direito àdiferença e, como tal, evidencia e valoriza a singulari-dade dos percursos de formação. Bem-haja! Muito obrigada por me permitir reflectirconsigo a minha prática e também sobre a própria refle-

xão, possibilitando a (re)construção pessoal de significa-dos. Obrigada pela cumplicidade.

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Seminário 8

Multiculturalismo e Interpretações doMundo: incomensurabilidade, diálogo emestiçagem

João Maria André

Doutor em Filosofia. Professor Catedrático da Facul-dade de Letras da Universidade de Coimbra. Directordo Teatro Académico de Gil Vicente de Coimbra de2001 a 2005. Encenador da Cooperativa Bonifrates.Encenador. É autor de numerosas obras científicas, emartigo e em livro, na área da especialidade e em temasdiversos da cultura.

Reflexão de Daniela Gonçalves

Multiculturalismo e interpretações do mundo:Incomensurabilidade, diálogo e mestiçagem

Reflexão

Normalmente associa-se o conceito de tolerância a uma certa con-descendência e essa é uma forma negativa de entender a tolerância. Quer sob o ponto de vista etimológico quer sob o ponto de vista

do que pode ser a tolerância, entendo que o seu sentido maisnobre é o de hospedagem, e ligo muito estes dois conceitos. Tolerar

é hospedar o próximo e ser capaz também de se hospedar nele.João Maria André

Conceitos como o de «mestiçagem», «diálogo» e «cul-tura» foram apresentados neste seminário, não só ao

longo da história das ideias, mas também na importânciaque eles têm no pensamento contemporâneo e, muitorelevante, na educação dos homens. «Muitas vezes,somos governados por homens que pensam que são deu-ses. E, muitas vezes, quando a História nos mostra, já étarde de mais. Eu gostaria que não fosse», concluiu JoãoMaria André, no final da sua intervenção. Partindo daclarificação destes conceitos e descrevendo o nosso posi-cionamento educativo, tentamos justificar fundamenta-damente a possibilidade do professor intercultural.

Todas as culturas serão mestiças?

Aos homens uma atitude parcial, sectária, intolerante, domina-dora, às vezes suicida, e os transforma continuamente em pessoas

que matam ou em partidários dos que o fazem. A sua visão domundo está dessa forma enviesada, distorcida.

A. Maalouf

Sabemos que a cultura é um processo dinâmico asso-ciado às próprias condições de vida das pessoas que,como tal, incide na vida destas e vice-versa. Ao conceitode cultura poderíamos aplicar o princípio fisíco da ener-gia: não se cria nem se destrói, apenas se transforma.E transforma-se pelas opções que se tomam num dadomomento e pelas interacções, inevitáveis, com outrasculturas. Daqui pode resultar o carácter mestiço das cul-turas. Como João Maria André demonstrou, na reali-dade, uma cultura é também a soma de todas asinfluências exteriores que recebeu. Tentar procurar umaraiz única, uma essência única e autêntica, conduz não sóà ruína desta cultura, mas também aos piores excessosque a história demonstrou. Ora, todos os seres huma-nos, todas as culturas, participam inexoravelmente deoutras culturas, inclusivamente com relações de conflitoe domínio. Nesta lógica, o ser humano é fundamental-mente intercultural e mestiço.

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Neste seminário, foi possível compreender o caráctermutável e evolutivo do conceito de identidade, dado quenão a adquirimos de repente e para sempre, mas vamo --la construindo e transformando ao longo de toda anossa existência. Por outras palavras, a identidade não éum dado rígido e imutável, é fluida – um processo sem-pre em movimento, no qual continuamente nos afasta-mos das próprias origens. Assim, só uma identidademorta é uma identidade fixa. As culturas perecem noisolamento e prosperam na comunicação. Por isso, odireito à diferença cultural diante da dos outros, quenem existiu nem existe; nem deve tentar evitar estesfenómenos de globalização, porque contribuem deforma espontânea para a mudança e a diversificação quesão inerentes à culturas vivas, de maneira tão naturalcomo é o facto de terem uma especificidade própria.Entrar em contacto com outros não implica, necessaria-mente, perder a identidade nem renunciar àquilo quenos é próprio, mas é motivo para revermos a visão quetemos do que é nosso e ao fazê-lo reconstruirmo-nos. Assim, concordamos com João Maria André quandoconsidera que «os outros mundos são afinal os nossosmundos»... e o caminho para o diálogo passa pelo enten-dimento desta identidade compósita e plural.

Diálogo: uma exigência existencial?

Não há vida sem diálogo. E na maior parte do mundo hoje a polémica substitui o diálogo.

Camus

Inseparável do respeito pelos direitos e deveres queencarnam os Direitos do Homem, sabemos que nãoexiste possibilidade de convivência sem diálogo. Numaperspectiva mais radical, podemos afirmar que a huma-nização só é possível graças à linguagem e ao diálogo. Paulo Freire associava a ideia de diálogo a uma exigênciaexistencial: encontro que solidariza a reflexão e a acçãodos sujeitos encaminhados para o mundo que deve sertransformado e humanizado, e que «não pode reduzir -sea um mero acto de depositar as ideias de um sujeito nooutro, nem sequer converter-se numa simples troca deideias consumadas pelos seus permutadores» (Freire;1970:105).Para além disto, este pedagogo considera que o diálogosó acontece quando não há relações de domínio, porqueum verdadeiro diálogo implica a humildade: «o diálogo,como encontro dos homens para a função comum desaber e actuar, quebra-se se os pólos (ou um deles) perdea humildade» (1970:107). Finalmente, considera quetambém não pode haver diálogo sem esperança.O diálogo é também um factor essencial que contribuipara a melhoria da qualidade de vida das relações huma-nas. Com efeito, sendo a escola uma organização social ehumana, o diálogo deve ser utilizado como uma estratégiahabitual, aumentando assim as possibilidades de poten-ciar as relações pedagógicas (e humanas), assim como ascondições de abordar e resolver possíveis conflitos. Nestesentido, a proposta de João Maria André aponta para quea escola deva ser entendida como aquele «espaço e tempode interioridade» que permitirá uma «sensibilidade esté-tica» e ética para a prática de uma pedagogia intercultural(ou de interioridade da identidade compósita).

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É possível ser um professor intercultural?

A esperança será a última palavra da minha boca.M. Torga

Os professores ocupam uma posição estrategicamentecentral nas sociedades contemporâneas, em particularnas dimensões do desenvolvimento e da mudança social(e/ou cultural). Vários autores assinalaram um vasto conjunto de cons-trangimentos (de naturezas radicalmente diferentes) aque os professores estão sujeitos: história individual, ainserção social, as propriedades estruturais das condi-ções do emprego, o contexto sócio-político, controlo,avaliação, pressões da opinião pública, pressões dos paise dos próprios alunos...Portanto, ser professor significa desempenhar um«papel» extremamente complexo, repleto de ambigui-dades e de contradições. Para António Nóvoa, a ambi-guidade detecta-se sobretudo ao nível do seu estatutosocial, ou seja, por um lado, nível económico relativa-mente baixo, quando comparado com outras ocupaçõesde formação similar; por outro, nível cultural acima damédia, devido à posse do diploma – símbolo de saber e deconhecimento – e ao prestígio daí decorrente, o que geraexpectativas dificilmente conciliáveis. Quanto à natureza contraditória da função docente,deve-se ao facto de que boa parte dos professores temque enfrentar exigências antagónicas, nomeadamente,«serem agentes de execução, no sentido de que operamuma selecção social da qual resulta a reprodução do sis-tema social e cultural, indo muitas vezes esta sua práticacontra os seus princípios pessoais de defesa da igualdadede oportunidades sociais e culturais perante o ensino»(Lima; 1996:51). Esta experiência vivenciada pelo pro-fessor de dilemas e contradições criadas no sistema edu-cativo, em virtude de contradições existentes ao nívelsocial e cultural também foi salientada por Hargreaves

(1980). Para além disto, os professores têm de lidar, facea face, com inúmeros estudantes em simultâneo, estandoconstantemente em cena perante um público cujas carac-terísticas e comportamentos são, a maior parte dasvezes, desconhecidos e imprevisíveis.Os professores são, ainda, confrontados com a incapaci-dade de a própria instituição escolar responder à diver-sidade cultural com a qual é «actualmente» confrontada.Encontram-se perante alunos cada vez mais diversos...Exige-se que eles exerçam autoridade sobre os alunos,mas que, ao mesmo tempo, tem com estes um compor-tamento afectivo...Portanto, o professor alterna, centenas de vezes duranteo dia, entre dois papéis (contraditórios), o de pai amigoe o de «mestre» facilitador.O exercício da sua profissionalidade também envolveuma negociação entre várias dimensões: a sua biografia,a sua prática pedagógica e a estrutura institucional emque está inserido. Estas dimensões estão numa relaçãode permanente tensão, criando aquilo que designamospor exigências conflituantes.Os professores são sujeitos a uma acumulação de res-ponsabilidades que, por vezes, são desproporcionadasem relação ao tempo e aos meios que dispõem: exige-se --lhes que estimulem os alunos, «sigam» de perto aquelesque trabalham mais lentamente, velem pela atmosferada aula, programem as suas actividades, avaliem, aconse-lhem, participem em reuniões, organizem diferentesmomentos na instituição,...Apesar de tudo isto, será possível ser um professor inter-cultural?Acreditamos que sim. Os professores devem dar priori-dade à relação, à experiência significativa, ao consensoalcançado, para além de proporcionar momentos de diá-logo, negociação, reflexão e arbitragem de projectos einiciativas. Portanto, exige-se uma mudança de perspec-tiva: «nas últimas décadas operou-se uma passagembrusca e violenta nas suas manifestações – passou-se de

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uma perspectiva da educação virada sobre a subjectivi-dade para uma educação virada sobre a subjectividadepara uma educação fundada no diálogo intersubjectivo.O outro representa o desafio e a oportunidade para amudança de perspectiva na educação e na prática peda-gógica» (Gonçalves; 2004:31). Nesta nova perspectiva – Educação Intercultural –, aênfase é colocada na relação que o eu mantém com ooutro, em detrimento de uma educação centrada no eu ouno outro. Parece-nos que não resta outra opção ao pro-fessor de hoje: uma educação intercultural que, a partirda relação/interacção «eu-outro», promova uma educaçãoaberta à alteridade, visando compreender as relaçõesplurais e dinâmicas entre todos os seus alunos, para quetodos possam crescer no apreço pela vivência responsá-vel da Liberdade. Acreditamos que a grande intenção épropiciar uma integração reflexiva, que incorpore umasensibilidade antropológica e estimule a integraçãosocial de diversas mundividências. Acreditamos que épossível descobrir esta perspectiva. Partindo do carátermestiço da(s) cultura(s), a nossa tarefa será «conscien-cializar» pessoas que actuem como agentes sociais e cul-turais ao serviço da construção de sociedades maisdemocráticas e justas.

Referências Bibliográficas

FREIRE, P., (1970), Pedagogia del Oprimido, Buenos Aires, Siglo XXI.JARES, X., (2007), Pedagogia da Covivência, Maia, Profedicões. GONÇALVES, J. (2004), O (re)conhecimento do Outro, Fátima, SNEC.LIMA, J. (1996), «O Papel de Professor nas sociedades contemporâneas» inEducação, Sociedade e Culturas n.º 6, Porto Ed. Afrontamento.STOER, R. S., e CORTESÃO, L., (1999), Levantando a Pedra – Da PedagogiaInter/Multicultural às Políticas Educativas numa Época de Transnacionalização, Porto, Ed.Afrontamento.

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