Referenciação Textual

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Rev. de Letras - N 0 . 21 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1999 118 Resumo O presente artigo analisa o uso de construções apositivas não-restritivas como um mecanismo por meio do qual um referente discursivo sofre recategorizações de modo a ajustar a expressão a vários propósitos comunicativos. Palavras-chave: aposição; referenciação; recategorização. Abstract This paper analyses the use of non-restrictive appositive constructions as a mechanism by means of which a discursive referent suffers recategorizations in order to adjust the expression to several communicative purposes. Key words: apposition; referentiation; recategorization. 1 INTRODUÇÃO Com o intuito de definir limites conceituais para a aposição, muitos lingüistas e gramáticos, ao investigarem os aspectos semânticos desse tipo de construção, apontam a existência de uma relação de correferência entre dois ou mais termos como critério para a identificação de uma estrutura apositiva. Principalmente porque a maioria dos estudos so- bre a aposição se limita ao nível da oração, no que concerne ao modo como os aspectos nocionais são investigados, a concepção de correferência assenta-se nos pressupostos de uma semântica extensional, que se caracteriza por assumir a existência de uma correspondência direta entre as palavras e as coisas. Com essa perspectiva, os trabalhos sobre aposição costumam, em geral, avaliar a existência de correferência entre as expressões lingüísticas de construções ditas REFERENCIAÇÃO TEXTUAL E O EMPREGO DE CONSTRUÇÕES APOSITIVAS apositivas, no sentido de verificar, em primeiro lugar, se elas têm valor referencial e se apresentam exatamente o mesmo poder designativo, isto é, se são extensionalmente idênticas. No presente artigo, propõe-se que os estudos sobre aposição se desenvolvam dentro de uma nova perspectiva, passando tal processo a ser caracterizado como um meca- nismo textual-discursivo que cumpre relevante papel na pro- gressão referencial, isto é, nas estratégias de referenciação no discurso. 2 APOSIÇÃO E CORREFERÊNCIA Nos estudos sobre progressão referencial, o concei- to de referente evolutivo vem recebendo críticas, principal- mente de estudiosos como Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995). A discussão em torno desse conceito é suscitada pela análise de ocorrências em que a correferência não cons- titui condição para a continuidade referencial no discurso, nem a co-significação é necessária para que a correferência seja mantida. Essas ocorrências representam encadeamen- tos considerados improváveis ou inaceitáveis, mas que são freqüentemente produzidos com uma função pragmática precisa. Na comunicação verbal corrente, os interlocutores não costumam dar atenção a esses comportamentos, cuja elucidação teórica só é possível dentro de uma concepção não-realista, mas processual e estratégica da referência. Dessa forma, explica-se por que, mesmo quando não há explicitação lexical de um antecedente para um item refe- rencial, este item pode ser cognitiva e sócio-culturalmente compreendido. No caso de construções apositivas, pode ocorrer que o verdadeiro escopo de uma expressão apositiva não esteja expresso, mas deva ser inferido com base em um contexto antecedente que lhe serve de base, tal como se observa no exemplo a seguir: Márcia Teixeira Nogueira * * Professora do Departamento de Letras Vernáculas da UFC. Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa.

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  • ResumoO presente artigo analisa o uso de construes

    apositivas no-restritivas como um mecanismo por meio doqual um referente discursivo sofre recategorizaes de modoa ajustar a expresso a vrios propsitos comunicativos.

    Palavras-chave: aposio; referenciao; recategorizao.

    AbstractThis paper analyses the use of non-restrictive

    appositive constructions as a mechanism by means of whicha discursive referent suffers recategorizations in order toadjust the expression to several communicative purposes.

    Key words: apposition; referentiation; recategorization.

    1 INTRODUOCom o intuito de definir limites conceituais para a

    aposio, muitos lingistas e gramticos, ao investigaremos aspectos semnticos desse tipo de construo, apontam aexistncia de uma relao de correferncia entre dois ou maistermos como critrio para a identificao de uma estruturaapositiva. Principalmente porque a maioria dos estudos so-bre a aposio se limita ao nvel da orao, no que concerneao modo como os aspectos nocionais so investigados, aconcepo de correferncia assenta-se nos pressupostos deuma semntica extensional, que se caracteriza por assumir aexistncia de uma correspondncia direta entre as palavrase as coisas.

    Com essa perspectiva, os trabalhos sobre aposiocostumam, em geral, avaliar a existncia de correfernciaentre as expresses lingsticas de construes ditas

    apositivas, no sentido de verificar, em primeiro lugar, se elastm valor referencial e se apresentam exatamente o mesmopoder designativo, isto , se so extensionalmente idnticas.

    No presente artigo, prope-se que os estudos sobreaposio se desenvolvam dentro de uma nova perspectiva,passando tal processo a ser caracterizado como um meca-nismo textual-discursivo que cumpre relevante papel na pro-gresso referencial, isto , nas estratgias de referenciaono discurso.

    2 APOSIO E CORREFERNCIANos estudos sobre progresso referencial, o concei-

    to de referente evolutivo vem recebendo crticas, principal-mente de estudiosos como Apothloz e Reichler-Bguelin(1995). A discusso em torno desse conceito suscitadapela anlise de ocorrncias em que a correferncia no cons-titui condio para a continuidade referencial no discurso,nem a co-significao necessria para que a correfernciaseja mantida. Essas ocorrncias representam encadeamen-tos considerados improvveis ou inaceitveis, mas que sofreqentemente produzidos com uma funo pragmticaprecisa. Na comunicao verbal corrente, os interlocutoresno costumam dar ateno a esses comportamentos, cujaelucidao terica s possvel dentro de uma concepono-realista, mas processual e estratgica da referncia.Dessa forma, explica-se por que, mesmo quando no hexplicitao lexical de um antecedente para um item refe-rencial, este item pode ser cognitiva e scio-culturalmentecompreendido.

    No caso de construes apositivas, pode ocorrer queo verdadeiro escopo de uma expresso apositiva no estejaexpresso, mas deva ser inferido com base em um contextoantecedente que lhe serve de base, tal como se observa noexemplo a seguir:

    Mrcia Teixeira Nogueira *

    * Professora do Departamento de Letras Vernculas da UFC. Doutora em Lingstica e Lngua Portuguesa.

  • [01] Em regies estacionalmente secas, nas quais a guaabunda no perodo de crescimento, temos dois tipos gerais devegetao heliomrfica de acordo com a capacidadearmazenadora do substrato. Quando este raso (campos brasi-leiros, veld africano, caatinga em parte) e sujeito a freqentesperodos secos entre as descargas pluviais, por via da dessecaosob forte insolao, a vegetao reduzida no tamanho e nafolhagem. Quando o solo profundo (savanas arborizadas,cerrado) e armazena grandes quotas de gua, no podendo ha-ver deficincia hdrica acentuada, a vegetao alta e a folha-gem grande. (TF-LT)2

    Em [01], as expresses entre parnteses exemplificamo tipo de vegetao caracterizado em cada perodo. Essaexemplificao tem, respectivamente, como escopo, o quepode ser inferido como vegetaes heliomrficas de soloraso e vegetaes heliomrficas de solo profundo. Emborano se encontrem lingisticamente explicitados, esses esco-pos podem ser construdos cognitivamente, operando umasubcategorizao motivada pela expresso dois tipos geraisde vegetao heliomrfica:

    A esse respeito, vale chamar a ateno para a expli-cao que o gramtico Maximino Maciel (1916: 258) for-nece para alguns casos em que o termo fundamental da cons-truo apositiva no est expresso. No exemplo a seguir,Maximino Maciel afirma ser um pronome pessoal elptico otermo fundamental a que se refere a expresso em destaque:

    [02] Panfletista mordaz, publicou (ele) o libelo dopovo sob o pseudnimo de Timandro.

    H casos, inclusive, que, segundo Maximino Maciel,se assemelham a anacolutos ou frases quebradas, por noterem o termo fundamental expresso, como o exemplo aseguir, por ele citado:

    [03].Cumpridor escrupuloso de deveres, assduo saulas, interno de clnica, amador de laboratrios, seucabedal cientfico era maior do que o de grande nmero deseus colegas... (Fbio Luz)

    Ora, apontar o pronome ele, um elemento que j estoperando uma referenciao anafrica, como termo funda-mental da expresso panfletista mordaz tentar buscar, noslimites da frase, um objeto de discurso cuja construo, pro-vavelmente, j deve ter sido iniciada em passagens anterio-res da construo apositiva, j estando, portanto, presentena memria discursiva do leitor.

    Outra ocorrncia em que o termo fundamental daaposio no se encontra expresso, mas discursivamenteconstrudo, v-se na frase [04]:

    [04] A bibliografia no exaustiva, o que seria pra-ticamente impossvel tal a quantidade de livros de imagensque tm sido editados nos ltimos anos. (FOT-LT)

    Na ocorrncia [04], o pronome demonstrativo o, se-guido de uma orao relativa, caracteriza, tipicamente, umaconstruo denominada, em nossas gramticas, como apos-to de orao. Por meio dela, faz-se um comentrio sobrealgo dito em um segmento anterior do discurso. Percebe-seque o comentrio que se faz (o que seria impossvel...) notem como escopo a orao negativa inicial (A bibliografiano exaustiva), mas o seguinte contedo, a bibliografiaser exaustiva, construdo cognitivamente.

    Nessa perspectiva de estudo da progresso refe-rencial,3 como sugere Mondada e Dubois (1995: 276), o ter-mo referncia, associado a uma concepo coisista, quepressupe uma segmentao a priori do discurso em nomese do mundo em entidades objetivas, deve ser substitudopor referenciao, que designa a construo de objetoscognitivos e discursivos na intersubjetividade das negocia-es, das modificaes, das ratificaes de concepes in-dividuais e pblicas do mundo.

    Alm disso, como ressaltam Apothloz e Reichler-Bguelin (1995: 227-229), cumpre conceber os referentescomo objetos do discurso, modalizveis sob a forma deum conjunto por definio evolutivo de informaesinclusas no saber compartilhado pelos interlocutores. Osobjetos de discurso no devem ser concebidos como pr-existentes naturalmente atividade cognitiva e interativados sujeitos falantes, mas como os produtos fundamental-mente culturais dessa atividade. Cabe aos lingistas in-

    Dois tipos gerais devegetao heliomrfica:

    vegetaes heliomrficasde solo raso: camposbrasileiros, veld africa-no, caatinga em parte

    vegetaes heliomrficasde solo profundo: savanasarborizadas, cerrado

    2 As ocorrncias aqui apresentadas foram extradas, respectivamente, de amostras de literatura tcnica, literatura dramtica e de oratria, doBanco de Dados de Lngua Escrita Contempornea no Brasil, armazenado no Centro de Estudos Lexicogrficos da Faculdade de Cincias eLetras, UNESP/Araraquara.

    3 Tal perspectiva, fundada nos trabalhos de Apothloz e Reichler-Bguelin (1995) e Mondada e Dubois (1995), vem sendo seguida por Koch eMarcuschi (1998) e Marcuschi (1998), no tratamento dos processos de referenciao no portugus do Brasil.

  • vestigar no as transformaes que incidem sobre o estatutoontolgico dos objetos do mundo extralingstico, mas aque-las que afetam a bagagem de conhecimento de que dispem,a cada momento do discurso, os interlocutores a propsito deum referente dado, bagagem de conhecimento que constitui,propriamente falando, a identidade do objeto de discurso(Apothloz e Reichler-Bguelin, 1995: 239-240).

    Apothloz e Reichler-Bguelin (1995: 241) desta-cam que as designaes atribudas aos objetos de discursodependem muito mais de fatores scio-culturais e pragmti-cos do que de fatores referenciais, no sentido extensional ecoisista do termo. Nessa perspectiva, o lxico no consti-tui um estoque de etiquetas, mas representa, para os falan-tes, um conjunto de recursos para as operaes de designa-o. Mais do que um domnio de restries em que o em-prego se submete unicamente ao princpio de adequaoreferencial, o lxico passa a ser visto como um conjunto dedispositivos extremamente malevel, continuamente traba-lhado no e para o discurso.

    Com o abandono de uma perspectiva realista de lin-guagem como representao de pessoas e coisas, em favorde uma concepo construtivista da referncia lingstica, aaposio pode ser vista como importante expediente pormeio do qual um mesmo objeto pode ser apresentado se-gundo diferentes pontos de vista. Desse modo, com o expe-diente da aposio, enriquecida a bagagem de conheci-mentos que constri, na memria discursiva do interlocutor,a identidade de um objeto de discurso.

    A relao de correferncia, caracterstica apontadapor muitos estudiosos como inerente construo apositiva,est relacionada com essa propriedade textual-discursiva daaposio. Segundo Rodriguez (1989), os sintagmas emaposio so correferenciais porque a prpria construoos equipara. Os elementos devem-se referir a uma mesmaentidade, no que signifiquem o mesmo.

    El peculiar es que esos sintagmas son correferencialesporque la construccin los equipara, los hace cor-referente (...) Luego la aposicin, en sentido general,es una construccin nominal que hace que dossintagmas nominales (de lengua o de discurso), u otrosdos segmentos funcionamente equivalentes (...) seancorreferentes. (Rodriguez: 1989, 220)

    Tambm para Martinez, a aposio estabelece acorreferncia entre os termos:

    ...la correferncia expresada por la aposicin es unvalor de contenido realizable, al margem de que lecorresponda o no una realidad constatada: tanaposicin es Vitigudino, la capital de Espaa (El sa-tlite de la tierra, Vitigudino) como Valladolid, capi-tal de Espaa o La capital de Espaa, Madrid, aunqueslo sta se correponda con una realidad actual.Martinez (1985: 455)

    Como nem sempre h, nas diferentes construesapositivas, correferncia estrita entre as unidades, prefer-vel, em vez de correferncia, que se fale em referenciaoa um mesmo objeto de discurso. A natureza centrpeta daaposio, isto , seu carter de relao de elaborao, deretomada de um elemento j introduzido, para fornecer-lheuma caracterizao, para especific-lo mais detalhadamenteou reformul-lo de algum modo, assenta-se sobre o que, nostermos de Apothloz e Reichler-Bguelin (1995: 266), con-sistiria em um efeito de correferncia, de estabilidadereferencial.

    Esse efeito de correferncia existe mesmo em cons-trues apositivas cujos elementos no so co-significantes.Dessa forma, a aposio mostra-se como um expediente queest a servio da tarefa de recategorizar um referente dodiscurso, por vezes afastando-o de sua denominao padro,para ajustar a expresso a vrios objetivos comunicativos.Um exemplo desse fato pode ser visto na frase a seguir, re-tirada de um texto de literatura tcnica:

    [05] A transferncia do laboratrio para a Nature-za (ou passagem da Fisiologia para a Ecologia) pode tro-pear em barreiras impostas pela ao modificadora (ouprevalente) de fatores outros, interferentes. (TF-LT).

    Nos pares de expresses laboratrio e Fisiologia,de um lado, e Natureza e Ecologia, de outro, no h relaode sinonmia, isto , do ponto de vista lxico-semntico, elasno tm o mesmo significado. Apesar disso, a construoapositiva explicita, por meio de um mecanismo tpico dereformulao, uma relao de equivalncia.

    3 REFERENCIAES NA ESTRUTURAAPOSITIVA NO-RESTRITIVA

    Assume-se, no presente artigo, que a aposio consti-tui um dos mecanismos que participam do processo geral dereferenciao, ou seja, nos termos de Marslen-Wilson &Tyler (1982), que contribuem para o estabelecimento e amanuteno dos referentes em uma contnua representaomental que o interlocutor faz do discurso corrente.

    Todavia, considerando-se, mais especificamente, aestrutura apositiva, percebe-se que as unidades que a com-pem podem funcionar catafrica ou anaforicamente. Emuma construo apositiva em que h referenciao catafrica,emprega-se, como primeiro elemento, tipicamente umsintagma nominal indefinido, s vezes, uma proforma, e,como segundo elemento, um sintagma nominal mais espe-cfico que identifica o que referido no primeiro, tal comona ocorrncia [06]:

    [06] Aprendeu ali coisas utilssimas. As humanidadesbem sabidas, o estoicismo dos quartis, com os horrios

  • inexorveis, e, principalmente, comeando a conhecer-se,a sua inaptido para a disciplina e o impessoalismo da vidadas armas. (TA-LO)

    O que aqui se denomina de referenciao catafricaassemelha-se a um tipo particular de recategorizao lexicalexplcita, isto , de um tipo de anfora descrita por Apothloze Reichler-Bguelin (1995: 248), em que o objeto de dis-curso designado por uma expresso referencial no foi ain-da categorizado, a no ser de forma vaga. Essa expresso,ento, especificaria tal objeto, batizando-o lexicamente.

    Esse tipo de referenciao catafrica se caracteriza porenvolver as duas unidades apositivas em um mecanismo pe-culiar de apresentao de uma informao. Em vez de umasinalizao textual para trs, trata-se de uma opo por umadeterminada forma de organizar a informao, em que se pre-para o ouvinte/leitor para a identificao de um elemento ini-cial mais genrico, empregado cataforicamente. SegundoSenna (1986: 208-209), esse recurso semelhante ao de umatopicalizao, em que a primeira unidade da estrutura apositivad incio a um ambiente de expectativa e direciona a tensopara o contedo da unidade que a sucede.

    Nas construes apositivas com referenciao cata-frica, bastante comum o emprego de uma expresso no-minal que antecipa e resume o contedo de uma orao, deum perodo completo ou, at mesmo, de todo um pargrafo.Essas construes so similares s estratgias de rotulaoantecipada descritas por Francis (1994).

    Segundo Francis (1994: 84), as funes de antecipare organizar das expresses nominais que tm o papel de r-tulo podem ser vistas em termos das metafunes de Halliday(1985). Elas tm um significado ideacional, pois participamdo processo de acumulao de informaes no discurso; tmum significado interpessoal, pois a escolha lexical pode ex-pressar uma avaliao do autor; e apresentam uma funotextual, pois, sendo parte do rema da orao a que perten-cem e foco de informao nova, elas tm carter prospectivo,ou seja, esto potencialmente destinadas a permanecer nodesenvolvimento do argumento.

    A estratgia de rotulao pode-se dar mediante oemprego de nomes genricos, tais como coisa, fato, aspec-to, etc. Halliday e Hasan (1976: 274-275) afirmam que afuno coesiva do emprego de nomes genricos est na fron-teira entre coeso lexical e coeso gramatical. Do ponto devista lexical, o uso desses nomes coesivo por eles seremmembros superordenados de conjuntos lexicais maiores, e,como tais, funcionarem em um tipo de coeso lexical porsinonmia. O carter de coeso gramatical do emprego denomes genricos surge da combinao destes comdeterminantes especficos, tais como o artigo definido e ospronomes demonstrativos, que fazem que o conjunto operecomo um item de referncia.

    Todavia, no caso do emprego de nomes genricos naaposio, cabe lembrar que eles so muito utilizados em

    referenciaes catafricas, nas quais, por estarem criandoum foco de referncia, encontram-se freqentemente com-binados com artigos indefinidos:

    [07] S uma coisa: o almoo est de p? (RE-LD)

    Com expresses de carter metalingstico oumetadiscursivo, resume-se e categoriza-se um segmento dodiscurso como sendo de um tipo particular de linguagem.Esse tipo de rotulao pode ocorrer pelo uso de nomesilocucionrios, ou seja, nomes relativos a atos de fala, taiscomo em [08] e [09]:

    [08] Mas o que ele fez foi cumprir sua ordem: trouxeo novilho e mandou matar! (PEL-LD)

    [09] Lembra-te dos conselhos do mdico: no terpreocupaes nem aborrecimentos de espcie alguma.(VP-LD)

    Por vezes, empregam-se nomes que referem algumtipo de atividade de linguagem ou o resultado disso, comoem [10]:

    [10] Surgiu ento uma discusso que perdura athoje, mais incua que a determinao do sexo dos anjos: afotografia arte? (FOT-LT)

    Observa-se tambm o emprego de nomes relaciona-dos a estados e processos cognitivos ou deles resultantes.Tais nomes originam-se a partir de nominalizaes de ver-bos de processos mentais, usados, em geral, para projetaridias, embora nem sempre haja verbos cognatos corres-pondentes, como em [11]:

    [11] Foi este o primeiro passo para a melhor consoli-dao de uma hiptese j existente sobre a origem do siste-ma solar: uma grande nuvem de poeira csmica girando ese condensando, com as partes mais densas lentamenteacumulando-se no centro, acabando por formar um proto-sol, enquanto outros aglomerados menores foram forman-do seixos rochas, protoplanetas. (DST-LT)

    Nomes de carter metalingstico propriamente dito,ou seja, que dizem respeito estrutura formal do discurso,so tambm freqentemente utilizados como rtulos:

    [12] Agora, ateno ltima frase: Permaneciamde p, distncia, contemplando essas coisas, todos os seusamigos, assim como as mulheres que O haviam acompa-nhado desde a Galilia. (NE-LO)

    Em algumas construes apositivas, o emprego dasegunda unidade constitui uma estratgia de referenciao

  • anafrica em relao primeira. Como o referente j foidevidamente introduzido na representao mental que oouvinte/leitor faz do discurso, sendo, em geral, a primeiraunidade da construo apositiva uma expresso definida, ofalante/autor pode utilizar, na segunda unidade, um conjun-to no limitado de expresses referenciais. Tal empregoconsiste, geralmente, em reapresentar, de uma perspectivadiferente, mediante uma redenominao ou uma predicaode atributos, um referente discursivo. Por vezes, a funodesse tipo de estratgia evocar algum tipo de conhecimen-to supostamente compartilhado para levar o interlocutor identificao desse referente discursivo:

    [13] O quarto e ltimo fala da diplomacia brasileira,cujo patrono Jos Maria da Silva Paranhos Jnior, o ba-ro do Rio Branco, teve uma longa e profcua atuao di-plomtica (...) (DIP-LT)

    [14] A cmara - a futura mquina fotogrfica - jexistia e h muito vinha sendo aperfeioada. (FOT-LT)

    A referenciao anafrica que se observa em cons-trues apositivas no-restritivas relaciona-se com estrat-gias de reformulao textual. Muito freqentemente, em-prega-se, numa aposio no-restritiva, uma segunda uni-dade que reformula o contedo ou a expresso lingsticada primeira, de modo a garantir que o ouvinte/leitor com-preenda satisfatoriamente o que foi formulado.

    Em algumas construes apositivas no-restritivas,pode ocorrer um tipo de referenciao anafrica por meioda qual se d uma fragmentao do referente do discursoapresentado na primeira unidade (cf. Apothloz e Reichler-Bguelin, 1995: 258). Isso ocorre em parfrases que se pres-tam, na aposio, s funes de exemplificao, tal comoem [15], e de particularizao, como em [16]:

    [15] Dependendo das perguntas a serem colocadaspara o material, pode-se utilizar classificaes segundo di-versos critrios, como funcionalidade, decorao, compo-sio fsica etc. (ARQ-LT)

    [16] A ameaa no se concretizou por este lado, massim pelo aumento do uso de certos gases, como o freon eoutros, principalmente os utilizados em aerossis. (DST-LT)

    Em uma operao inversa, a segunda unidade daaposio, por meio de uma reformulao parafrsica de ge-neralizao, pode reunir, sob uma s expresso referencial,objetos aparentemente no referidos na primeira (Apothloze Reichler-Bguelin: 1995, 261):

    [17] Primeiramente: so os Judeus, todos eles semdistino, rus da crucifixo de Jesus? (NE-O)

    A aposio no-restritiva reformulativa tambm cos-tuma manifestar-se como uma correo. De um modo ge-ral, na correo, a segunda unidade faz um ajuste da refe-rncia ou do significado estabelecido na primeira unidadeda construo apositiva.

    [18] Lucas distingue nitidamente trs agrupamentos.Um, o dos soldados, conduzidos pelo centurio, imediata-mente em torno da Cruz. Outro, o do povo, ou melhor, deuma parte do povo, a princpio indiferente, mas que termi-nou por voltar batendo no peito. O terceiro, distncia, ogrupo dos conhecidos, dos quais uns eram homens, outrosmulheres. (NE-LO)

    Na estratgia de correo, o locutor enumera alter-nativas lexicais possveis na busca por uma melhor adequa-o daquilo que tenta dizer. Cumpre salientar que, na buscapor uma preciso progressiva, as opes lexicais no se ex-cluem, no so apagadas pela ltima escolha. Segundo Mon-dada e Dubois (1995), a referenciao adequada pode servista como um processo de construo de um percurso queligue diferentes denominaes aproximativas.

    Conforme lembra Barros (1993), a correo parcialconfunde-se com a parfrase. Geralmente, as unidades vmligadas por expresses do tipo ou, ou melhor, quer dizer,que introduzem ressalvas com o objetivo de garantir preci-so s informaes textuais:

    [19] Naturalmente quando Rodrigo estatui que o Jar-dim das Confidncias e Os Poemetos de Ternura e de Me-lancolia so os melhores documentos da poca, o meuteorismo, ou melhor, os meus preconceitos relativos distino entre prosa e poesia, voltavam-me, queriam im-por-se de novo. (HP-LD)

    A correo mais comum em textos orais, em umalinguagem espontnea, quando formulao e planejamentolingsticos ocorrem praticamente de forma simultnea.Todavia, em alguns textos escritos, a expresso lingsticatipicamente utilizada na funo de correo pode assumirum carter retrico, tal como se observa em [20], em queno se tem, de fato, uma correo intencional:

    [20] Mas quando o padre Rossi irrompe no palco,quer dizer, no altar, sob aplausos e assobios da platia, no difcil perceber que se est diante de um evento diferente.(Veja, ano 31, n. 44, p. 115).

    Alm das funes de favorecer a adequao infor-mativa e a preciso referencial, o emprego de aposies no-restritivas tambm exerce uma funo argumentativo-atitudinal quando o falante/autor manifesta sua atitude emrelao ao que diz. Essa funo se torna evidente em cons-trues em que o referente apresentado mediante uma ava-

  • liao que determina uma orientao argumentativa para oleitor, tal como se v em [21]:

    [21] No, toda essa discusso estril e escolsticasobre a sensibilidade ou a sua ausncia na arte moderna oque reflete coisa bem mais profunda: a crise da civilizaoverbal. (MH-LT).

    As rotulaes em referenciaes catafricas podemsinalizar uma avaliao que o autor faz das proposiesencapsuladas. De acordo com o contexto em que usado,todo o sintagma nominal envolvido pode indicar uma atitu-de em relao a essas proposies:

    [22] Sobre a apresentao do mal moral, Pio XII, naAlocuo de 28 de outubro de 1955, aos representantes domundo cinematogrfico, tem as seguintes judiciosasconsideraes: Uma coisa conhecer os males, procu-rando dar-lhes explicao e remdio na filosofia e naReligio; outra fazer deles objeto de espetculo e diverso.Ora, acontece que dar forma artstica ao mal, descrever-lhe a eficcia e desenvolvimento, os caminhos claros outortuosos com os conflitos que gera ou atravs dos quaiscaminha, tem para muitos uma atrao quase irresistvel.(MA-LO)

    Quando a segunda unidade da construo apositivafaz uma referenciao anafrica em relao primeira, ainda maior a liberdade para a escolha de expresses lexicaisinovadoras e para as estratgias persuasivas, uma vez que oobjeto, em geral, j est identificado e denominado no mo-delo de mundo construdo pelo discurso. Essa unidadeanafrica pode servir no somente para apontar um objetodiscursivo, mas para modific-lo, por meio dessasrecategorizaes lexicais. Assim, uma expresso referencialajusta o conhecimento disponvel a propsito do objeto dediscurso, enxertando sobre ele algumas informaes cujarazo de ser no referencial. Ocorre, dessa forma, umadupla operao, que consiste, segundo Apothloz e Reichler-Bguelin (1995: 247), na referncia propriamente dita e noaporte de uma informao nova sobre o objeto de discurso,o que pode eventualmente desencadear uma reinterpretao.

    H alguns exemplos em que a segunda unidade tem,claramente, um objetivo argumentativo, pois revela opini-es, crenas e atitudes de quem constri o texto, a respeitodo referente do discurso, tal como se observa em [23]. Essadesignao pode apresentar-se sob a forma de uma met-fora, como em [24]:

    [23] O candombl da Bahia, sem dvida o de maioresplendor de todo o Brasil, que ainda agora serve de espe-lho a todos os outros cultos, tem uma designao com queno concordam os seus adeptos, embora no tenham umapalavra melhor para substitu-la. (CAN-LT).

    [24] (...) a msica uma cincia tanto quanto umaarte: quem poder fundir estas duas entidades no mesmocadinho, seno a imaginao, esta rainha das faculda-des? (REF-LT)

    Uma outra forma de manifestao da funo argu-mentativo-atitudinal no emprego de uma expresso apositivaencontra-se no tipo de construo conhecido em nossas gra-mticas como aposto de orao. Em geral, a segunda uni-dade dessas construes so comentrios introduzidos porum demonstrativo seguido de uma orao relativa, tal comoem [25]:

    [25] J avultava o modernismo, na obra de grandespoetas inovadores, o que no constitua, porm, no sentidoglobal, uma inflexo de rumos, com o abandono do passa-do, mas indcios de idade nova, de uma correnteinfluenciadora do processo da nossa evoluo literria, decolorido autenticamente verde-amarelo. (TA-LO)

    Esse emprego assemelha-se ao que Francis (1994:84) descreve como rotulao retrospectiva, em que um r-tulo serve para encapsular ou empacotar um segmentodiscursivo j realizado.

    4 CONSIDERAES FINAISEm linhas gerais, o presente artigo pretendeu mos-

    trar como a aposio, uma categoria cujo estatuto objetode controvrsias no mbito da sintaxe, pode ser vista comoum mecanismo que exerce importantes funes de ordemtextual-discursiva, mais particularmente no que concerne aosprocessos de referenciao. Prope-se que, numa perspec-tiva processual e estratgica da noo de referncia, aaposio seja vista como recurso por meio do qual o falan-te/autor opera recategorizaes do referente discursivo,modulando a expresso referencial em funo de objetivos,em geral, relacionados preciso informacional, argumentatividade e aos efeitos esttico-conotativos.

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