Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na...

7
– 74 – Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992 Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 USO ILÍCITO DE DROGAS LÍCITAS PELA NOSSA JUVENTUDE. E UM PROBLEMA SOLÚVEL?* 2 Elisaldo Luiz de Araújo Carlini 1 CARLINI, E. L. A. Uso Ilícito de Drogas Lícitas pela nossa Juventude. É um Problema Solúvel? Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. 11(1): São Paulo, 1992. 1 Professor titular de Psico-Farmacologia, coordenador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas - CEBRID - Departamento de Psicobiologia - Escola Paulista de Medicina. Rua Botucatu, 862 - 1° andar- São Paulo - SP - Cep 04023 Fone: (011) 572-5470. INTRODUÇÃO Um jovem se aproximou de mim: estava barbudo, com a roupa suja usando uma espécie de bata... um tipo que real- mente detesto. As idéias de certos filóso- fos têm sido empalmadas por tais pregui- çosos, embora não tenham eles nenhum interesse pela filosofia... Esses malandros zombam de tudo, inclusive da verdade, usando a máscara da filosofia para escon- der licenciosidade e irresponsabilidade (Imperador Juliano, séc. IV a.C. In Vaüe, J. R. A visão do mundo através dos aluci- nógenos. Anais do Simpósio sobre Ciên- cia e Humanismo. Fundação Bienal de São Paulo, 1971). Essas escolas foram originalmente planejadas para “separar a criança de sua família e reserva índia, fazê-la rejeitar a cultura e costumes tribais e prepará-la para nunca mais voltar a seu povo. A criança era deliberadamente enviada para escola longe do seu lar, recebia nome inglês e era proibida de falar a sua língua”. As crianças índias nas escolas obti- nham tintas, “sprays”, colas e vários sol- ventes das lojas das cidades vizinhas ou roubavam dos almoxarifados da própria escola. Roubavam também gasolina dos tanques dos carros e do trator da escola. Os bicos de gás do laboratório de ciências tiveram que ser desligados porque as crian- ças enchiam sacos plásticos com o gás para cheirá-los mais tarde. Na falta das substâncias acima as crianças passaram, em grupos, a apertar toalhas ao redor do pescoço até desmaia- rem (Schottstaedt, M. F. e Bjork, M. S. W. Inhalant abuse in an indian boarding school. Am. J. Psychiat. 134 (11): 1290- 1293, 1977). Os jornais têm dado notícias do crescente número de suicídios entre os índios guaranis, no Mato Grosso (...). Os índios perderam a sua cultura e não ab- sorveram a dos brancos. Foram transferidos de suas áreas originais para outras mais confinadas, onde é impossível manter as suas formas tradi- cionais de vida (...). Com a perda do controle so- bre a própria vida, o suicídio é o modo extremo de recuperar esse poder (Senador Severo Gomes: Homicídio Culposo, p. 2, Folha de S. Paulo, 10/ 02/91). As frases anteriormente citadas servem bem de introdução para assunto que resulta da associação de dois aspectos dos mais complexos de nossa vida: a juventude e as drogas. E, sendo o tema drogas o mais conhecido e menos complexo dos dois, os estudiosos nele concentram-se, pois assim mostram a sua sabedoria, ou melhor, es- condem a sua ignorância e perplexidade diante da misteriosa fase da vida humana, a juventude. Conseqüentemente, com frequência, várias afir- mativas simplistas são ditas procurando estabele- cer regras repressivas, como se o uso de drogas pela juventude dependesse exclusivamente da fá- cil disponibilidade das mesmas. Outros, incapa- zes de compreender a reação negativa dos jovens diante do complexo e torturante mundo em que

Transcript of Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na...

Page 1: Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na porcentagem de alunos envolvidos, mas também no tipo de droga utilizada, sendo a maconha

– 74 –

Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992

USO ILÍCITO DE DROGAS LÍCITAS PELA NOSSAJUVENTUDE. E UM PROBLEMA SOLÚVEL?*2

Elisaldo Luiz de Araújo Carlini 1

CARLINI, E. L. A. Uso Ilícito de Drogas Lícitas pela nossa Juventude. É um Problema Solúvel?Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. 11(1): São Paulo, 1992.

1 Professor titular de Psico-Farmacologia, coordenador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas - CEBRID- Departamento de Psicobiologia - Escola Paulista de Medicina. Rua Botucatu, 862 - 1° andar- São Paulo - SP - Cep 04023Fone: (011) 572-5470.

INTRODUÇÃO

Um jovem se aproximou de mim:estava barbudo, com a roupa suja usandouma espécie de bata... um tipo que real-mente detesto. As idéias de certos filóso-fos têm sido empalmadas por tais pregui-çosos, embora não tenham eles nenhuminteresse pela filosofia... Esses malandroszombam de tudo, inclusive da verdade,usando a máscara da filosofia para escon-der licenciosidade e irresponsabilidade(Imperador Juliano, séc. IV a.C. In Vaüe,J. R. A visão do mundo através dos aluci-nógenos. Anais do Simpósio sobre Ciên-cia e Humanismo. Fundação Bienal de SãoPaulo, 1971).

Essas escolas foram originalmenteplanejadas para “separar a criança de suafamília e reserva índia, fazê-la rejeitar acultura e costumes tribais e prepará-la paranunca mais voltar a seu povo. A criançaera deliberadamente enviada para escolalonge do seu lar, recebia nome inglês e eraproibida de falar a sua língua”.

As crianças índias nas escolas obti-nham tintas, “sprays”, colas e vários sol-ventes das lojas das cidades vizinhas ouroubavam dos almoxarifados da própriaescola. Roubavam também gasolina dostanques dos carros e do trator da escola.Os bicos de gás do laboratório de ciênciastiveram que ser desligados porque as crian-ças enchiam sacos plásticos com o gás paracheirá-los mais tarde.

Na falta das substâncias acima ascrianças passaram, em grupos, a apertartoalhas ao redor do pescoço até desmaia-rem (Schottstaedt, M. F. e Bjork, M. S. W.Inhalant abuse in an indian boardingschool. Am. J. Psychiat. 134 (11): 1290-1293, 1977).Os jornais têm dado notícias do crescente

número de suicídios entre os índios guaranis, noMato Grosso (...).

Os índios perderam a sua cultura e não ab-sorveram a dos brancos. Foram transferidos desuas áreas originais para outras mais confinadas,onde é impossível manter as suas formas tradi-cionais de vida (...). Com a perda do controle so-bre a própria vida, o suicídio é o modo extremode recuperar esse poder (Senador Severo Gomes:Homicídio Culposo, p. 2, Folha de S. Paulo, 10/02/91).

As frases anteriormente citadas servembem de introdução para assunto que resulta daassociação de dois aspectos dos mais complexosde nossa vida: a juventude e as drogas. E, sendo otema drogas o mais conhecido e menos complexodos dois, os estudiosos nele concentram-se, poisassim mostram a sua sabedoria, ou melhor, es-condem a sua ignorância e perplexidade dianteda misteriosa fase da vida humana, a juventude.Conseqüentemente, com frequência, várias afir-mativas simplistas são ditas procurando estabele-cer regras repressivas, como se o uso de drogaspela juventude dependesse exclusivamente da fá-cil disponibilidade das mesmas. Outros, incapa-zes de compreender a reação negativa dos jovensdiante do complexo e torturante mundo em que

Page 2: Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na porcentagem de alunos envolvidos, mas também no tipo de droga utilizada, sendo a maconha

– 75 –

Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992

vivem, acusam-lhes de total desrespeito às nor-mas, sendo a utilização de drogas uma destas ma-nifestações. Realmente, as palavras do imperadorJuliano, há cerca de 1.500 anos, são muito seme-lhantes aos dizeres de várias autoridades que fre-qüentaram a vida pública brasileira nestes últi-mos 20-30 anos.

Estas posturas revelam acima de tudoincompreensão e intolerância para as dúvidas dajuventude. Por exemplo, ainda recentemente, DuPont (1987) preconizava ser necessário restabe-lecer o conceito de punição para tratar do assuntoabuso de drogas.

Já os dizeres dos autores americanos e dosenador brasileiro apontam para outro ângulo do pro-blema, também negligenciado ou ignorado por qua-se todos, dado ser francamente desagradávelenfrentá-lo: a cruel marginalização do jovem de cer-tos segmentos sociais. Seja através da negação deacesso aos bens materiais indispensáveis, seja pordesrespeitarem ou mesmo quebrarem os seus laçossociais e culturais, o jovem particularmente sensívelreage procurando recuperar estes valores perdidos.E, destituído de sua cultura e de seus valores edespossuído de bens materiais, o resgate da digni-dade perdida torna-se impossível, pois já não tem opoder de controle, a não ser sobre sua própria exis-tência física. Pareceria então que dispor da própria

vida, podendo chegar à autodestruição, seria comoque provar ter ainda a posse de algo. E, instintiva eparadoxalmente, através desta tentativa deautodestruição, o jovem destituído e despossuídoprocuraria recuperar a sua dirnensao e dignidadehumanas. Esta poderia muito bem ser a razão douso extremamente elevado, sem paralelo no mun-do, de drogas pelos nossos meninos de rua.

O presente relatório procurará dimensionaro uso de droga por jovens brasileiros, escolares enão-escolares, discutindo alguns aspectos relevan-tes sobre prevenção, tendo como foco pnncipalaspectos levantados nesta introdução.

USO DE DROGAS POR ESCOLARESBRASILEIROS

O CEBRID realizou dois levantamentosnacionais (usando tócnicas recomendadas pelaOMS), nos anos de 1987 e 1989, abrangendo maisde 47.000 estudantes em 17 cidades brasileiras(de Belém a Porto Alegre). Tomando-se os dadosobtidos nas escolas públicas de dez capitais(Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Hori-zonte, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitibae Porto Alegre), foram obtidos os dados mostra-dos na Figura 1.

Figura 1 - Porcentagem de estudantes de escolas públicas de dez capitais brasileiras que fizeram uso de drogas psicotró-picas na vida, no ano, mês e uso freqüente (6 ou mais vezes, nos últimos trinta dias).

Conforme pode ser bisto, o uso na vida dedrogas psicotrópicas abrangeu 21,2% dos entre-vistados em 1987 e 26,2% em 1989, o que signi-fica um aumento relativo de 23,6%, num períodode dois anos, no número de estudantes que tive-ram contato com os psicotrópicos. É importantefrisar que este uso ria vida significa tão somenteque os estudantes experimentaram droga uma ou

mais vezes, na imensa maioria de forma totalmenteocasional; não significa de modo algum depen-dência, vício, etc., mas, por outro lado, uso navida revela que estes estudantes tiverarn contatocom estas drogas.

Mais preocupante são os dados de uso fre-qüente, isto é, o uso de uma droga seis ou maisvezes nos últimos 30 dias antes da pesquisa, o

Page 3: Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na porcentagem de alunos envolvidos, mas também no tipo de droga utilizada, sendo a maconha

– 76 –

Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992

que já implica num uso engajado. Felizmente,conforme pode ser visto, estes números são aindarelativamente baixos: 2,7% e 3,5% dos estudan-tes consultados, respectivamente, em 1987 e 1988.Mas, infelizmente, não houve diminuicão desteuso e houve até um aumento relativo de 29,6%(de 2,7% para 3,5%).

As Tabelas 1 e 2 mostram ainda que tantoo uso na vida como o uso freqüente nas escolaspúblicas das dez capitais pesquisadas estão den-tro dos valores gerais apontados na Figura 1.

Tabela 1 - Porcentagem dos estudantes de 1° e 2° grausque fizeram uso de drogas psicotrópicas (uso na vida euso freqüente) nas escolas públicas das dez maiores capi-tais brasileiras.

Tabela 2 - Porcentagem de estudantes de1° e 2° graus que fizeram uso de drogas em esco-las públicas de seis cidades do interior e de esco-las particulares de quatro capitais no ano de 1989.

sendo que, nas sete cidades do interior dos esta-dos de São Paulo e Paraná e nas escolas particu-lares de quatro capitais (Brasília, Curitiba, Forta-leza e São Paulo), a percentagem de estudantesconsumindo drogas é ligeiramente maior que adas escolas públicas.

Nas 17 cidades brasileiras pesquisadas em1989, escolas públicas e particulares, predominaem nossos estudantes o uso de substâncias lícitas,em primeiro lugar os solventes ou inalantes (17,3%

declararam já terem feito uso na vida), seguido deansiolíticos (7,2% dos estudantes), anfetaminas(3,9%) e em quarto lugar a maconha (3,4%). Acocaína ocupa o último lugar com apenas 0,7 dosestudantes acusando uso na vida desta droga. Mor-fina e heroína praticamente não apareceram nosrelatos dos estudantes. A Tabela 3 mostra que estahierarquia de uso é praticamente igual em todo oBrasil: assim, os solventes (cola de sapateiro, tiner,benzina, removedores, etc.) são a primeira escolhaem todas as 17 cidades. Em segundo lugar vêm osansiolíticos (“calmantes”, como ValiumR, LoraxR,PsicosedinR, etc.) com duas exceções: as cidadesde Pinhal e Piracicaba onde a maconha já ocupa o2° lugar. O 3° e 4° lugares são disputados pelamaconha e anfetaminas, prenominando esta últi-ma no 3° posto.

É interessante notar que, em todas as cida-des, os 2" e 3° lugares para, respectivamente, oscalmantes e as anfetarninas devem-se principal-mente pelo grande número de estudantes do sexofeminino que deles fazem uso. Seria importantesaber porque as meninas abusam muito mais des-tas drogas psicotrópicas que os meninos. Muitopossivelmente a propaganda indevida feita pelaindústria farmacêutica, preconizando o uso dosansiolíticos para as tensões cotidianas da vida,

Page 4: Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na porcentagem de alunos envolvidos, mas também no tipo de droga utilizada, sendo a maconha

– 77 –

Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992

pode ter um papel importante. Estas propagandasfeitas ao médico podem também influenciar suaspacientes e as filhas destas (Carlini, 1983).

Há ainda a acentuar que os números acimacitados não são equiparáveis às estatísticas ame-ricanas e européias. Nestas regiões, o uso por es-tudante é muito maior, não só na porcentagem dealunos envolvidos, mas também no tipo de drogautilizada, sendo a maconha e cocaína muito po-pulares.

Sumarizando, os dados acima revelam osseguintes aspectos:

1) o uso de drogas por nossa populaçãoestudantil não atingiu ainda níveis dra-máticos, como os que ocorrem nos Es-tados Unidos e nos países da Europa;

2) este uso é predominantemente de dro-gas lícitas, indicando, portanto, que aimensa maioria dos estudantes que játeve contato com drogas psicotrópicasnão o fez através de traficantes (quecomercializam fundamentalmente asdrogas ilícitas como maconha, cocaí-na, etc.);

3) a fonte de obtenção destas drogas líci-tas tanto pode ser o lar como as farmá-cias e lojas (que trabalham com solven-tes orgânicos).

Estes fatos apontam, no nosso entender,que a problemática do uso de drogas pela nossajuventude estudantil ainda não atingiu proporçõesepidêmicas, nem se chegou ao uso de drogas ca-racteristicamente ligadas a dependência e deses-truturação social, como no caso da cocaína (crack)e de apiáceas (morfina, heroína). Certamente, es-tas características conferem chances bem maio-res de êxito em programas de prevenção. Mas,por outro lado, a inoperância, o “deixar como estápara ver como fica’’ ou programas educacionaisimportados como “pacotes” do exterior poderãoaté piorar a situação; afinal não se pode deixar delado o preocupante fato de que houve um aumen-to razoável no número de estudantes que faz usode drogas de 1987 para 1989, tendo os estudantesmais jovens uma preponderante participação nesteaumento, conforme mostra a Tabela 4.

Tabela 4 - Porcentagem relativa de crescimento do con-sumo de drogas (uso na vida) entre estudantes de 1° e 2°graus em dez capitais brasileiras (1987- 1989), segundo afaixa etária, em escolas da rede estadual de ensino.

USO DE DROGAS PELOS MENINOS DERUA

Não se sabe exatamente quantas são ascrianças, meninos e meninas, vivendo nas ruasdas cidades brasileiras. Segundo dados da ex-FUNABEM, existiriam cerca de 36 milhões demenores carentes, crianças oriundas de famíliascuja renda (familiar) é no máximo dois saláriosmínimos. Destes, 7 milhões viveriam nas ruasdado terem fugido ou sido expulsos de casa.

Entretanto, numa reunião nacional realiza-do em 1990, sobre essas crianças, uma das reco-mendações tiradas (CEBRID, 1990) foi:

Há dúvidas quanto ao real númerode crianças de rua existentes no Brasil, as-sim como o próprio termo carece de me-lhor definição. O dado oficial de sete mi-lhões parece ser grosseiramente exagerado.Recomenda-se a execução prioritária deprojetos de pesquisa, visando obter a realdimensão do problema.Estas crianças de rua se constituem num

grupo de alto risco para uso de drogas, dado que:

– nunca frequentaram escola ou foramprematuramente afastados dela;

– não trabalham;

– passam todo seu tempo na rua em gru-pos;

– não mantêm laços familiares;

– não mantêm os traços culturais de suasorigens;

– desenvolvem uma cultura e um ambien-te sócio-familiar “de rua” (Carlini-Cotrim e Carlini, 1988).

De fato, dados obtidos pelo CEBRID, emlevantamentos feitos nos anos de 1986, 1987 e1989, nas cidades de São Paulo, Salvador, PortoAlegre e Fortaleza, revelam um assustador e dra-mático uso de drogas por estas crianças (Carlini ecols., 1990b; Carlini-Cotrirn e cols., 1989; Carlini-Cotrim e Carlini, 1988; Silva F° e cols., 1990).Assim, o uso recente (nos últimos 30 dias), con-forme mostra a Tabela 5, é muito grande para vá-rias drogas: o uso diário de solventes chegou aatingir 18,5% e o de rnaconha 10,0% das crian-ças entrevistadas em São Paulo.

Page 5: Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na porcentagem de alunos envolvidos, mas também no tipo de droga utilizada, sendo a maconha

– 78 –

Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992

Tabela 5 - Uso recente (últimos 30 dias) de drogas pormeninos de rua de quatro capitais brasileiras (1987-1989)São Paulo

Considerando o uso de todas as drogas,conforme mostra a Tabela 6, de 7% a 39% dascrianças foram classificadas como usadores leves(crianças que usaram drogas no último mês, masnão em base diária ou semanal), de 11,0% a 22,5%como usadores moderados (crianças que usaramdrogas no último mês numa base semanal, masnão em base diária) e de 3,5% a 45,0% comousadores pesados (crianças que usaram drogasdiariamente durante o último mês), dependendoda cidade e do ano da pesquisa. Pode-se verificarque o uso diário (usadores pesados) de drogas atin-ge porcentagens elevadas das crianças de rua, oque é muito preocupante.

Tabela 6 - intensidade do uso de drogas* por meninos derua de quatro capitais de estados brasileiros (1987- 1989)

* Exceto álcool e tabaco.** Não-usuário: nunca usou drogas; usuário leve: já usou

drogas, mas no último mês o uso não foi feito numabase diária ou semanal; usuário moderado: usou dro-gas sernanalmente, mas não diariamente, no últimomês; usuário pesado: usou drogas diariamente.

O autor deste trabalho, com mais de 30anos de experiência na área, chegou a ficar cho-cado ao presenciar pela primeira vez crianças, deaté 7 anos de idade, em franco processo alucina-tório por ingestão de altas doses do medicamentoArtaneR. As crianças (88,2% delas) revelaram quetomavam as drogas juntamente com seus colegas,e que em 75,2% das vezes estas drogas eram ob-

tidas através de compra em estabelecimentos co-merciais, em 33,3% das vezes as recebiam de pre-sente de outras crianças ou de adultos ou, ainda,as roubavam em 24,7% dos casos.

Indagadas sobre o porque de tanto uso dedroga, 47,5% das crianças responderam que erapara ter “sonhos bons”, ou sensações equivalen-tes, 18,0% afirmaram que era para “ficarem lou-cas” e 9,8% disseram ser “minha sina”.

Uma experiência foi feita com as criançasde rua de São Paulo, cujo resultado poderá ser degrande importância para futuras ações de preven-ção. Por esta razão, maiores detalhes desta expe-riência são apresentados a seguir. As crianças derua que foram entrevistadas em São Paulo tinhamcontato com o Projeto Criança de Rua da Secre-taria do Bem-Estar Social daquele estado. Por esteprojeto, as crianças eram diariamente apanhadasna rua, nos fins de tarde, e levadas voluntaria-mente até um alojamento onde recebiam um jan-tar, podiam se banhar, ver TV e dormir sobre col-chão. No dia seguinte de manhã recebiam umpasse de ônibus para voltar às ruas. Entretanto,parte das crianças podia ficar durante o dia noalojamento fazendo tarefas em grupos, sob super-visão de um atendente; não havia recursos paraque todas as crianças ficassem no local durante odia e nem todas as crianças aceitavam ficar. Oproduto fabricado pelas crianças durante o dia(pequenos vasos de flores, enfeites fabricados combarbante, etc.) era em seguida vendido por elaspróprias nas ruas: o dinheiro conseguido era, sobsupervisão do atendente, utilizado para comprade mercadorias cuja escolha era feita pelas pró-prias crianças. Este procedimento teve uma dra-mática repercussão no comportamento das crian-ças, conforme pode ser visto na Tabela 7.

Tabela 7 - Uso de drogas e outras atividades dascrianças de rua que voluntariamente frequenta-vam um alojamento durante o dia, executandoatividades prograrnadas

* O asterisco indica diferenças estatisticamentesignificantes entre os dois grupos.

O falo de trabalhar em grupo sob supervi-são de um “tio”, de venderem o produto do traba-lho e decidirem o que fazer com o dinheiro ganhoresultou em significantes reduções nos compor-tamentos de consumir drogas e no comportamen-

Page 6: Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na porcentagem de alunos envolvidos, mas também no tipo de droga utilizada, sendo a maconha

– 79 –

Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992

to antissocial de roubar; o pedir esmola, que nãorepresenta transgressão, não foi influenciado. Éimportante dizer que a redução no consumo dedrogas foi obtida sem que sequer elas fossemmencionadas às crianças.

Estes dados parecem indicar que há tam-bém solução para o abuso de drogas entre as crian-ças de rua. De fato, a Organização Mundial deSaúde vem chamando a atenção (Smart e col.,

1981) de que, para reduzir o consumo de drogasentre crianças que não freqüentam escolas, a me-lhor orientação seria programar atividades e lazerestruturados.

Estas atividades evitariam que a criançaentrasse na “carreira” do submundo, que seria atémais vantajosa do que lhe é resorvado pela socie-dade através de sistema oficial, conforme mostraa Figura 2.

Figura 2 - A “carreira” do menino de rua ou do menor abandonado.

De fato, a criança entra no submundo dadroga como se entrasse em uma profissão qual-quer, conforme observação de Freire Moura(1990). Assim ela tem uma “carreira”, comprogressão funcional: de olheiro (que avisa as ba-tidas policiais ou de grupos inimigos, soltando pi-pas no alto dos morros), passa sucessivamente aaviãozinho (transportará as drogas); a indolador(que empacota e faz o “dolar”), o misturador (que

mistura a droga com substâncias inertes, visandoaumentar a oferta) e, finalmente, o soldado (vigi-lante das bocas de fumo). A criança é respeitadapela “profissão”, orgulha-se da progressão fun-cional e renda, e continua em inserção familiar ecom a sociedade local mantendo um vínculo coma cultura local. E a droga é algo importante na suavida, sendo uma fonte de trabalho, segurança erespeitabilidade. E quando não entra para profis-

Page 7: Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992 2 ...tudante é muito maior, não só na porcentagem de alunos envolvidos, mas também no tipo de droga utilizada, sendo a maconha

– 80 –

Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, II(1), 1992Refere-se ao Art. de mesmo nome, II(1), 129-143, 1992

são de agente de droga é comum, como aconteceem São Paulo, a criança abraçar a “carreira” detrombadinha, roubando objetos de valor dos tran-seuntes para entregá-los ao fim do dia a quadri-lhas de adultos que a “emprega”.

Já o contrário sucede quando esta criançaé apanhada na rede do sistema oficial: de menorcarente passa a menor internado, evolui às vezespara menor infrator, assim permanecendo até com-pletar 18 anos, quando vira “maior sem profis-são”, “marginal”, “bandido”. É estigmatizadocomo “ex-trombadinha”, discriminado em rela-ção ao emprego ou desrespeitado pela falta domesmo e por não ter renda; por ter sido internadoperde sua inserção familiar e fica sem elo com acultura local. Portanto, torna-se um despossuídodo ponto de vista material e um destituído de elossócio-culturais, pois foi afastado da convivênciade seus pares.

Terminando, então, a criança de rua brasi-leira atualmente se vê face a três possibilidades:

– viver a esmo nas ruas, sem elos sociaise culturais, escapando quer do sistemaoficial, quer do crime organizado, con-sumindo droga pesadamente “para so-

nhar”, numa tentativa de resgatar suaessência humana, mesmo às custas daprogressiva destruição física;

– entrar para o mundo do crime organi-zado, obtendo reconhecimento e respei-to pela profissão e renda; pode ou nãousar drogas pelo fácil acesso às mes-mas;

– ser cooptado para um programa de ati-vidades estruturadas, nos moldes reco-mendados pela OMS, que não lhe co-loca num vácuo social (ambientefechado e em desacordo com sua ori-gem), mas possibilitando um início dereinserção da sociedade (como o exem-plo citado, da Secretaria da PromoçãoSocial do Estado de São Paulo e demuitos outros exemplos, tais como dos“menores engraxates”, dos “menoresdoceiros”, etc.).

Nesta terceira possibilidade parece estar asolução pelo menos inicial para o problema. Certa-mente caberá à sociedade prosseguir a tarefa nãomais permitindo a continuidade de iníqua e vergo-nhosa chaga social deste país: as crianças de rua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. CARLINI, E. A. O Uso e a Propaganda deMedicarnentos. Exemplos com Psicotrópicos.Revista da Associacão Brasileira de Psiquia-tria, 5: 152-156, 1983.

2. CARLINI, E. A.; CARLINI-COTRIM, B.;SILVA Fé, A. R. Sugestões para Programas dePrevenção ao Abuso de Drogas no Brasil. Pu-blicação CEBRID: 1-39, São Paulo, 1990a.

3. CARLINI, E. A.; CARLINI-COTRIM, B.; SIL-VA F°, A. R.; BARBOSA, M. T. S. II Levanta-mento Nacional sobre o Uso de Psicotrópicosem Estudantes do 1° e 2° Graus –1989.Publicacão CEBRID: 1-93, São Paulo, 1990b.

4. CARLINI-COTRIM, B.; CARLINI, E. A. TheUse of Solvents and other Drugs arnongHomeless and Destitute Children Living in theCity Streets of São Paulo, Brazil. Social Phar-macology, 2: 51-62, 1988.

5. CARLINI-COTRIM, B.; SILVA F°, A. R.;BARBOSA, M. T. S.; CARLINI, E. A. Consu-mo de Drogas Psicotrópicas no Brasil, em 1987.Ministério da Saúde/Ministério da Justiça, Im-prensa Nacional, pp. 1-153, Brasília, 1989.

6. CEBRID. Recomendação n-° 1. In: Abuso deDrogas entre Meninos e meninas de Rua doBrasil. Publicacão CEBRID: 1-161. São Pau-lo, 1990.

7. DU PONT, R. Prevention of AdolescentChemical Dependency. Pediatric Clinics ofNorth America, 34: 495-505, 1987.

8. FREIRE MOURA, M. T. Meninos do Rio e aDroga. In: Abuso de Drogas entre Meninos eMeninas de Rua do Brasil. Publições CEBRID:43-61, São Paulo, 1990.

9. GOMES, Severo (Senador). HomicídioCulposo. Folha de São Paulo, p. 2, 10 de Fe-vereiro de 1991.

10.SCHOTTSTAEDT, M. F.; BJORK, M. S. W.Inhalant Abuse in a Indian Boarding School.Arnerican Journal of Psychiatnc, 134: 1290-1293, 1977.

11. SILVA F°, A. R.; CARLINI-COTRIM, B.;CARLINI, E. A. Uso de Psicotrópicos porMeninos de Rua. Comparação entre DadosColetados em 1987 e 1989. In: Abuso de Dro-gas entre Meninos e Meninas de Rua do Bra-sil. Publições CEBRID: 1-27, São Paulo, 1990.

12.SMART, R. G.; ARIF, A.; HUGHES, P.;MEDINA-MORA, M. E.; NAVARATNAN, V.;VARMA, V. K.; WADUD, K. A. Drug Use arnongNonstudents youth. Geneva, World HealthOrganization, Offset Publication, n° 60, 1981.

13. VALLE, J. R. A Visão do Mundo através dosAlucinógenos. In: Anais do Simpósio sobreCiência e Hurnanisrno. Fundação Bienal SãoPaulo, 1971.