ReCRIA #5
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As pessoas entram e saem da vida de outras pessoas que
também vem e vão. Seguindo qualquer forma de entropia.
Uma bagunça vibrante que vem do nosso direito fundamental
de ir e vir. E isso nos forma, nos transforma em algo que não
se conforma. Nós ainda não descobrimos a certeza. Não
sabemos o que seremos e nem esperamos pela definição.
Somos amigos do aleatório e admiradores da imprecisão. Nós
nos definimos no não-saber. Queremos ser transparentes
para nos enchermos em cor e sabor através de nós mesmos.
Nessa revista, nos refazemos, nos preenchemos e existimos.
Somos novos a cada instante e a cada semestre reescrevemos
uma história jamais vivida. Também, não somos nunca
os mesmo. Se hoje estamos passeando pelo hall, amanhã
estaremos em um outro continente, fazendo outras cabeças
e dando outras caras para bater. E quando vamos, cedemos
lugar para outros, que chegam e não nos substituem, mas que
buscam a mesma coisa que nós. Eles também fazem parte
deste “nós”. Não gostamos do sentido denotativo. Qualquer
outra conotação nos interessa mais. E que ela não seja uma,
mas várias. Defendemos o não-ser e a mudança. A falta de
identidade é o que guarda a nossa essência. Porque não é regra
ter uma cara. Não é obrigatório dizer o que somos. Ninguém
nunca precisou de saber o que é. É da dúvida que nasce o
incrível. É da pergunta que vem a inovação. E estudante vê
prazer em questionamento. As páginas brancas são nosso
grito, a não identidade o nosso rosto. Nós queríamos algo
constantemente mutante, em palavras e em grafismos. Nós
somos alunos de Comunicação Social e temos cucas quentes.
As ideias borbulham em nós e é dentro do nosso aquário
que encontramos espaço para nos recriar. E a Cria nos deu a
ReCria. Não espere um padrão. Esse conceito foi banido desse
projeto logo que nasceu. Essa tevista tem um único propósito:
ser o que nós queremos no momento mais imediato possível.
Porque o amanhã pode esperar. Ele está sempre logo ali. Nós
não temos lugar fixo e a ReCRIA também não. O nosso tema
faz parte do quando e o tempo, nessa revista, é de quem faz.
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Produzir essa edição foi um desafio desde o seu início. Dar
continuidade a um projeto bem sucedido, atendendo a sua
proposta e essência iniciais, além de satisfazer as expectativas,
não foi fácil. O que eu não saberia meses depois, era que a
solução estaria mais próxima que o pensado. Entre ir, vir,
recriar, mudar, não necessariamente nessa ordem, surgiu o
Movimento. Tema que mostra mais de nós mesmos do que
imaginamos ou percebemos. Por isso, essa edição possui um
tom autoral tão natural quanto seu tema, com uma equipe que
se dedicou a traduzir em palavras o que surpreende, encanta,
diverte, comove e provoca tantos outros sentimentos em
nossas vidas. A 5ª edição da Recria é resultado de meses
pesquisando e observando o que está ao redor, o que pode
acontecer e o que já passou. Seja pelos mistérios da fé e da
religião, pelos desejos de uma vida melhor ou pelas calçadas
das ruas de Belo Horizonte, o movimento nos trouxe até aqui
com uma visão diferente da que tínhamos ontem e da que,
provavelmente, teremos amanhã. Orgulhoso do resultado
e grato a todos que participaram de alguma forma dessa
jornada, convido você para se deixar encantar, discordar,
refletir, rir, odiar ou amar.
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Adeus, Adorno
Esportes que você nunca teve na aula de Educação Física
O que sabemos sobre a liberdade?
E se?
O que te move?
6 segundos e só.
Andar com fé, sem fé
Na verdade, ainda estão tentando matar Deus
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É claro que a publicidade,
na maioria das vezes,
não vende produtos, e sim
cria a disposição de compra.
Por isso, relaciona-os com as
noções de bem-estar, conforto
e sedução, fazendo com que
o público compre ideias e não
a mercadoria em si. É por
isso que, talvez, a maioria
das pessoas prefira comprar
Omo a outro sabão em pó.
Mas como fazer isso? Como
conversar com um país inteiro
como se estivesse falando
com uma única pessoa? A
propaganda, como um retrato
de uma determinada cultura,
a movimenta revelando os
sistemas de interação de um
povo ou criando hábitos e
tendências de uma sociedade?
A superprodução surgida
com o fim da Primeira Guerra
Mundial e a Grande
Depressão nos Estados
Unidos fez com que a
indústria investisse
na persuasão do
público. E é óbvio
que a publicidade e
o marketing seriam
f u n d a m e n t a i s
nesse fenômeno de
consumo. Porém, a
publicidade nessa época era
rudimentar, especulativa,
intuitiva e cheia de “na
minha opinião” e “se fosse
eu, não me interessaria”.
Era necessário reinventar
a propaganda. Mas como?
Estimulando o consumo,
estudando e entendendo
seu público e, mais do que
isso, satisfazendo-o.
Na época, o rádio era
o principal meio no qual
as propagandas eram
veiculadas, e conseguiam
atingir um número
expressivo de pessoas,
independente de idade,
classe ou gênero. No filme
A Era do Rádio, Woody
Allen retrata exatamente
como o primeiro meio de
comunicação de massa
influenciou as famílias,
trazendo sonhos, notícias
da guerra e, claro, a
publicidade. Ao chegar
para a população, o
rádio revolucionou a
comunicação e, junto a
isso, a forma de fazer
publicidade. Entretanto,
como no rádio o público não
tinha um contato visual ou
palpável com o produto
Adeus, Adorno
por Gabriela Filippo e Bruno Silvestrini | Arte por Henrique Lima
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ou o serviço,
as peças
p u b l i c i t á r i a s
criadas, dentre
spots e jingles
m e m o r á v e i s ,
c u m p r i a m
a função de
descrever, de
orientar o consumidor,
sendo meramente
informativos e longos.
Para compensar
tanta racionalidade, a
parte sentimental era
encarregada pelas melodias
de alguns jingles, que
tentavam conquistar
a afeição do público.
Um exemplo disso é o
famosíssimo jingle do Mc
Donald’s que descrevia o
Big Mac, o sanduíche mais
famoso e tradicional do
restaurante. Recordando,
“dois hambúrgueres, alface,
queijo, molho especial,
cebola, picles e num pão
com gergilim” é obviamente
descritivo, mas ao
transformar isso em música
que só informasse à pessoa
sentada no sofá de casa as
qualidades de um produto
sendo que o da concorrência
também as possuía. Era
necessário que começasse
uma diferenciação de uma
marca pra outra. Mas se
eram todas iguais, como
fazer isso? Da mesma
forma que uma pessoa pode
preferir um brinquedo de
infância ao outro: de acordo
com o sentimento que
possui pela coisa.
O Garoto Bombril, uma
campanha que durou cerca
de 40 anos, deixou essa
tendência bem clara: Carlos
Moreno, o protagonista,
sempre insinuava que a
marca de palha de aço era
melhor que as outras - na
verdade, dizia que era
“um pouquinho melhor” e
“um pouqinho mais caro
que as outras” - ao citar
que o produto possuia
1001 utilidades, mas
nunca explicitava quais.
Além dessa omissão, a
cada nova propaganda
ele vinha com um apelo
sentimental e cômico para
cima do telespectador, às
vezes se caracterizando
de figuras famosas,
históricas ou apreciadas
pela sociedade. Com o
passar do tempo e o grande
sucesso da campanha,
Carlos Moreno tornou-
se um companheiro da
dona de casa, literalmente,
pois quando tentaram
e apelar pra uma brincadeira
com uma linguagem rápida,
que instiga a decorar
a letra, a propaganda
acaba carregando consigo
um apelo mais cômico e
amigável.
Com o desenvolvimento
tecnológico e a difusão
da TV na sociedade, a
propaganda começou
a explorar, de fato, seu
público, estabelecendo um
processo de identificação
com o mesmo. Por
exemplo, em tempos de
guerras e descontrole
social, governos de vários
países, que tinham noção
do poder da propaganda,
utilizaram-se de campanhas
publicitarias institucionais,
criando uma identidade
nacional, resgatando
sentimentos nacionalistas
e patriotas. Portanto, foi
aí que a publicidade criou
sua própria linguagem:
sedutora, criativa,
persuasiva, direcionada.
A dimensão sentimental
passou a ser um campo
explorado pela publicidade -
e como foi. Não havia mais
sentido uma propaganda
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desvincular a marca de
sua imagem, o resultado
não foi satisfatório, e o
nome da marca é agora até
metonímia para o produto
em si: ninguém sabe que a
palha de aço é palha de aço,
para todos virou bombril,
com b minúsculo.
Nos dias de hoje, com
a grande diversidade dos
meios de comunicação de
massa - TV, rádio, internet,
mídia impressa - e suas
segmentações (diversos
canais, estações, sites,
portais, redes sociais,
revistas, jornais, entre
outros), os estudos sobre
os públicos começaram
a ser cada vez mais
detalhados, aprofundados
e minuciosos. Para que
uma peça publicitária dê
certo, o publicitário tem que
saber quem estaria em uma
mídia para que a mensagem
conseguisse ser vista,
decodificada e relevada pelo
público. Ainda no exemplo
do brinquedo de infância, o
que adiantaria veicular uma
propaganda sobre ele em
uma seção de Economia de
um jornal se o público que
compra não está ali? Sem se
identificar com o que está
exposto ali, na sua frente,
o máximo que o leitor da
seção de Economia do jornal
iria fazer é virar a página. E
não ocorreria a parte mais
importante da publicidade:
a identificação.
Para Washington
Olivetto, a propaganda,
além de cumprir suas
funções básicas de vender
produtos e construir
marcas, deve conseguir uma
ambição mais nobre: “entrar
para a cultura popular do
país”. Não seria, então, essa
publicidade que movimenta
a cultura responsável pela
identificação popular? Essa
identificação, que está
sempre em construção e dá
sentido para a existência,
não seria, de uma certa
forma, possibilitada por
essa propaganda que pauta
comportamentos e condutas
sociais?
Um dos papéis dessa
publicidade é agir na
manutenção da cultura,
revitalizando seus
patrimônios culturais,
hábitos e costumes, com
um papel educativo e
instrucional e, sem dúvidas,
extremamente importante
para a sociedade. Uma
prova disso é: quantas
vezes bordões publicitários,
criados a partir da percepção
de algum déficit ou de uma
supervalorização de um
costume em uma sociedade
não entraram para a cultura
do país, sendo incorporados
no linguajar cotidiano?
Quantas vezes essas
palavras que vendem mais
verdades do que qualidades
não foram adotadas como
uma lição pelo público?
Ao mesmo tempo, e pode
até parecer contraditório, a
publicidade funciona como
um grande reflexo de toda
uma sociedade e sua cultura,
divulgando e reiterando
suas normas, seus costumes
e estereótipos, entretendo
a população e, também,
cumprindo o papel de
difundir toda sua bagagem
cultural. A publicidade,
então, é manifestação
cultural já que conversa
diretamente com as massas
e busca a identificação
subjetiva e sentimental de
seu público para, no fim,
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obter sucesso.
Enfim: os publicitários,
para criar uma campanha,
por exemplo, baseiam-se e
se refletem na atual cultura
da sociedade a fim de
diagnosticá-la, descobrindo
o que está ruim, incompleto,
bom, ou seja, do que
podem se apropriar para
afirmar uma identidade
ou reinventá-la. Talvez
seja complexo entender
essa lógica, mas por que
não sair da teoria e pensar
na prática? Pensemos no
caso da Friboi. Explicando
superficialmente o
planejamento por trás da
campanha de expansão
da marca, os publicitários
estudaram o mercado
no qual a empresa está
inserida e perceberam
um detalhe que foi
extremamente importante:
os brasileiros não olhavam
a marca da carne na hora
de comprar uma. É uma
coisa boba, simples, mas
que ninguém parou para
pensar na importância
que o conhecimento da
procedência tem na hora
de consumir. E foi isso que
eles usaram, a partir de
um costume da população,
que é o de comprar carnes
sem saber a origem, veio
uma proposta de ativar
um hábito que seria o de
olhar qual é a sua marca
e levar esse aspecto em
consideração na hora da
compra - e é claro que, por
ser a primeira a explorar
isso, a Friboi se posiciona
como sinônimo de marca de
qualidade.
Deve-se entender, então,
que propaganda tem
uma função muito mais
complexa e profunda na
nossa sociedade: além de
vendas, ela está a favor
da cultura. Ela
reflete, repercute,
reafirma, molda,
cria e, mais do que
isso, movimenta
a cultura social.
Nesse sentido,
se a cultura é
importante para o
desenvolv imento
de uma sociedade,
a publicidade
também é. Assim
como economia,
política, religião,
futebol e música, a
propaganda é um aspecto da
cultura popular e para ela
deve voltar seus produtos.
Fica até engraçado escutar
que publicidade aliena, não
é mesmo?
Movimentar-se faz bem para a saúde mental e física, e é altamente recomendável a prática de exercícios físicos para pessoas
de diferentes idades. Os esportes podem atuar na prevenção de doenças e proporcionar o contato com novas pessoas, ou mesmo ser um momento de descontração entre amigos.
Mas existem alguns esportes que não se adequam tanto a esse perfil, e podem ser bastante perigosos, colocando até em risco a vida de seus praticantes, em alguns casos. Outras atividades esportivas são um tanto quanto inusitadas para a nossa cultura, e há ainda algumas que não aparentam ter sentido algum.
Conheça um pouco mais desses esportes esquisitos que existem ao redor do mundo. Por incrível que pareça, alguns deles são bastante tradicionais, e até já foram esportes olímpicos!
Texto Por: Victor Cordeiro Arte: Paulo Assunção
Os esportes são fontes de diversão para muitas pessoas ao redor do mundo. Mesmo que alguns
nos pareçam cruéis, excêntricos, bizarros e outras coisas do gênero.
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centro de um círculo e fugir dos adversários enquanto o carrega. Na segunda modalidade, o objetivo é agarrar essa “bola”, que fica posicionada da mesma forma, e levá-la até a área de pontuação. Embora os objetivos pareçam simples, há várias complicações: a carcaça costuma pesar aproximadamente setenta quilos, e os membros do time oponente usam chicotes para atrapalhar quem estiver carregando o animal. Uma partida não tem um tempo de duração definido, exceto em campeonatos, podendo durar até dias.
TEJO: O tejo é o esporte nacional da Colômbia, embora a
sua origem seja desconhecida. As regras desse esporte peculiar são bem simples: os jogadores arremessam uma peça de ferro conhecida como tejo, tentando acertar um alvo. O curioso é que em volta desse alvo são posicionados explosivos, e quando o lançamento é bem sucedido, ocorrem pequenas explosões.
LUTA LIVRE DE CAMELOS: Em alguns países asiáticos, em especial na Turquia,
ocorrem festivais de luta livre entre camelos. Esse esporte parece com brigas de galo, exceto pelos participantes. O duelo é travado entre dois camelos machos, que, enfeitados com grandes bordados de seda, lutam instintivamente enquanto uma fêmea no cio assiste ao embate. Perde a luta quem recuar, gritar ou for derrubado. Os festivais atraem grandes públicos, e muitos líderes de aldeias compram alguns desses animais, que são símbolos de poder.
XADREZ-BOXETambém conhecido como boxe-xadrez, foi
criado por um cartunista sérvio, e mostra que força e inteligência podem trabalhar em conjunto, desmentindo o estereótipo de que os fortes não possuem uma boa capacidade de raciocínio. As regras são simples: os praticantes alternam entre quatro minutos no tabuleiro e três minutos no ringue, com intervalos de um minuto entre cada troca. No total são seis rounds de jogo e cinco de luta, e ganha quem nocautear o oponente ou fizer um xeque-mate. Caso não ocorra nenhuma dessas situações, o vencedor é o que marcar mais pontos no ringue, e se continuar o empate, quem tiver jogado com as pedras pretas vencerá a disputa. Quem ultrapassar o tempo limite disponibilizado para cada lance no xadrez é desclassificado e dá a vitória ao adversário. Existem campeonatos mundiais desde o ano em que surgiu o esporte, realizados pela Organização Mundial de Xadrez-boxe.
KABADDI: Esse esporte requer fôlego, para conseguir ficar
sem respirar pelo maior tempo possível. Mas engana-se quem pensa que ele é subaquático. Surgido na Índia, o kabaddi é formado por duas equipes, cada uma com sete jogadores em campo e cinco reservas. Enquanto um time ataca com um de seus jogadores no campo adversário, o outro time defende com todos em seu campo. O objetivo de quem está atacando é tocar o máximo de defensores possível, com qualquer parte de seu corpo e conseguir voltar para o seu campo de defesa sem ser derrubado pelos oponentes. O engraçado é que durante o seu ataque, o jogador deve prender o fôlego e ficar dizendo “kabaddi” incessantemente, só podendo voltar a respirar após retornar ao seu campo. Se o seu fôlego acabar ainda no campo de ataque, ele sairá do jogo. Uma partida dura quarenta minutos, divididos em dois tempos de vinte, entre os quais há um intervalo de cinco. Existem várias competições da modalidade, como a Copa Asiática de Kabaddi, a Copa de Kabaddi do Reino Unido e a Copa do Mundo de Kabaddi.
BUZKASHI: Provavelmente um dos esportes mais perigosos e
bizarros do mundo, surgiu no Afeganistão e é muito tradicional nesse país. A tradução aproximada do termo para o português é “agarramento de cabra”, e isso resume bem o que é o jogo: carregar uma carcaça sem cabeça de uma cabra ou de um bezerro, montado em um cavalo. Existem duas modalidades do buzkashi: o tudabarai e o qarajai. Em ambas a partida é disputada entre duas equipes, com dez jogadores cada, que ficam montados em cavalos. O objetivo da primeira é agarrar o animal, que fica posicionado no
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THE TOUGH GUY:Embora o decatlo seja uma competição desgastante,
não chega nem aos pés desse esporte. Criada por um soldado britânico, essa corrida de fato parece treinamento para o exército. A tradução direta, “O cara durão”, já deixa isso bem claro. Consiste em uma prova de doze quilômetros, que pode durar de uma hora e meia a cinco horas, dependendo da forma física e resistência à dor dos participantes. Entre os desafios por eles enfrentados estão uma corrida para atravessar uma colina carregando uma tora, travessias de valas, saltos, piscinas de água congelada, fogueiras, cercas elétricas, túneis subterrâneos e subaquáticos. Como se isso não bastasse, a corrida também possui a sua versão de inverno, na qual os participantes chegam a encarar temperaturas negativas. Os organizadores comunicam dos riscos apresentados pela corrida, como fraturas, cortes, queimaduras, desidratações, hipotermias, choques e outras lesões, e exigem a assinatura de uma declaração que os isenta de responsabilidade por possíveis incidentes durante o percurso. A maioria dos competidores não completa a prova, e já ocorreram duas mortes durante o evento, que segundo o criador da prova, foram provocadas por “causas naturais”. A organização ajudou com as despesas dos funerais. O vencedor da corrida não ganha nenhum prêmio.
CARREGAMENTO DE ESPOSA: Esse esporte junta marido e mulher em uma corrida
divertida! O homem deve prender sua esposa em seu pescoço e carregá-la por um percurso de 250 metros, preenchido por obstáculos como uma piscina, toras, uma pista de areia e outros. Ganha quem completar o circuito com o menor tempo, e o vencedor da prova recebe como premiação o peso de sua companheira em cerveja e cinco vezes esse peso em dinheiro. O peso mínimo é de 50 quilos, e se a mulher não chega a esse número, são acrescentados pesos até atingir essa medida. Se durante a corrida o marido derrubar sua
parceira, ambos terão que refazer todo o percurso. A modalidade surgiu na Finlândia, se expandiu para outros países, e atualmente conta com o Campeonato Mundial de Carregamento de Esposa, que é disputado anualmente em seu país de origem desde 1997.
ZORBING: Criado na Nova Zelândia em 2002, esse esporte é
uma corrida nada convencional. Seu objetivo é descer uma ladeira dentro de uma bola de PVC conhecida como zorb dentro do menor tempo possível. O zorb é constituído por duas esferas. O competidor se acomoda na esfera inferior, e desce o morro girando várias vezes, chegando a atingir a velocidade de 50 quilômetros por hora. Também existe o zorbing com dois participantes, que descem juntos a ladeira. Além disso, existem várias modalidades, como o zorb na neve, que fará parte dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014; o kinder zorb, que é voltado para o público infantil e por isso utiliza um zorb menor e descidas menos íngremes; e ainda o hidro zorb, que é realizado na água ou mesmo em terra. Neste caso, a descida do morro é feita em uma esfera com água dentro.
ARREMESSO DE ATUM: Em 1962, na Austrália, surgiu esse esporte curioso.
Funciona como o lançamento de martelo nos jogos olímpicos, só muda o “objeto” arremessado: um atum adulto, que pesa em torno de 8 quilos! Quem lançar o atum mais longe é o vencedor. Anualmente ocorre o Campeonato Australiano de Arremesso de Atum, que atrai cerca de 20 mil turistas e oferece um prêmio de aproximadamente sete mil dólares para o campeão.
NADO SINCRONIZADO SOLO: A peculiaridade desse esporte já fica evidente no
nome. Mesmo assim, por mais incrível que pareça, ele já foi uma modalidade olímpica, de 1984 a 1992. Uma dançarina de cada vez fazia sua apresentação para os juízes avaliarem. Difícil é saber os critérios utilizados para a avaliação da sincronia individual de cada nadadora!
Muitos desses esportes podem nos parecer incompreensíveis ou sem sentido, mas possuem forte identificação cultural nas sociedades em que surgiram. A diversidade de atividades esportivas existentes no mundo é impressionante e é um reflexo dos aspectos característicos de cada cultura. Não é à toa que existem tantos eventos esportivos ao redor do mundo. Mas uma coisa é certa: a criatividade do ser humano não
tem limites, e uma brincadeira maluca de hoje pode vir a se tornar um esporte de sucesso de amanhã!
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Texto: Gabriela Albuquerque e Isadora Fachardo Arte: Paulo Assunção
Foi com a vontade de desmistificar o que é o viver na rua e de nos inserirmos na linha de tiro da sociedade que decidimos
buscar e conhecer ainda mais do movimento social nas ruas, de forma a dar voz ao outro lado da história e tentar, assim, entender como vivem essas pessoas, o que querem, o que pensam, e como se movem físicamente e psicologicamente no meio em que vivem. Assim, tentamos conhecer melhor não só o que é viver na rua, como também o que é ser a rua.
“Eu só quero uma casinha para cuidar das
minhas plantinhas e bichinhos.”
Era essa a maior vontade da vida de uma das entrevistadas que, mesmo não morando na rua, fez da Avenida Augusto de Lima seu nicho. Por meio de respostas curtas e controversas, a sensação é de que não foi ela que passou pela vida, mas sim de que foi a vida que passou por ela. Seu olhar muitas vezes se perdia entre as ruas, entre as pessoas, entrelinhas... E suas respostas, às vezes um pouco dispersas, evidenciavam a solidão não só de si, mas dos seus pensamentos já cansados, depois de trinta e cinco anos no local onde, teoricamente, tudo acontece. Com seu pedacinho de pau na mão, dizia não ter medo daquilo que a cercava. Mas, do que seria exatamente esse medo? Dos outros moradores de rua e a violência que a cercava? As incertezas de viver nas ruas ou o medo da sua própria invisibilidade diante da sociedade? Responder a essas perguntas se torna impossível quando se enxerga tudo de longe, com olhos de granito que, narcisicamente, quando se deparam com um morador de rua, de maneira natural, encaram-no não mais como um ator da sua própria realidade, mas como parte do cenário.
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crença de que os moradores de rua estão fadados naturalmente a casos assim estiver acima da tentativa de mudança da situação atual, nossa sociedade continuará sendo responsável por criar mais Macabéas no meio em que vivemos.
A invisibilidade dos moradores de rua já está tão incrustada no psicológico humano, que eles próprios fogem de si mesmos: alguns apenas negam suas condições, enquanto outros constroem infinitos particulares em seus imaginários. Sentado sozinho na escadaria da Paróquia São José, estava um homem com as roupas desgastadas dizendo que esperava a missa, mas em seu rosto estava visível que o que ele verdadeiramente aguardava era a indicação de um caminho para sua vida. Por ele ter se mostrado aberto à conversa, achamos que desvendar um pouco sobre sua vida seria mais fácil, mas progressivamente as respostas dele não se encaixavam e, juntas, nos fizeram perceber que ele se mascarava não por trás de si mesmo, mas daquilo que gostaria de ser. Apontava para frente e tentava nos convencer de que era lá que seus pais moravam, e que estava hospedado lá desde que havia chegado à cidade. Falava das suas expectativas de, em breve, arranjar um emprego, dos cursos que fez, de sua cidade natal, para onde viajaria, mas se perdia e se confundia em suas respostas de tal maneira, que foi construindo uma realidade que só ele podia enxergar. E sem conseguir reagir a toda aquela história que nos era contada, devagar fomos o deixando sozinho, esperando a história se encerrar em si mesma.
“Corta o mal pela raiz.”
Repetia um morador que encontramos na rua da Bahia, sentado em um banco encarando um jornal. Nós nos aproximamos e, enquanto tentávamos conversar, ele recitava trechos da Bíblia, mas se confundia com os nome dos apóstolos, falava sobre os vermes que corroíam
“Deixa ele, não gasta seu dinheiro não, tá drogado, isso tem de monte aqui, se a
gente for se preocupar com cada um...”
Foi o que escutamos ao tentar comprar água para o morador estendido na calçada. Como a chuva de verão que caía, aquele momento era denso e conturbado, as pessoas envoltas em si mesmas se cruzavam, ignorando a presença do morador de rua. As poucas que paravam assistiam tudo como coadjuvantes buscando apenas alimentar a vontade de presenciar o espetáculo humano diante dos olhos cansados da rotina diária. A falta de atitude e de humanidade àquele momento evidencia que a sociedade compactua com a exclusão dos moradores de rua de sua condição de cidadão - talvez seja mais fácil acreditar nisso do que criar intimidade e laços com a realidade, para assim saber encará-la de fato. Enquanto a
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árvores e pessoas, depois voltava sempre ao que parecia ser lembrança, ou mesmo ilusão de quando trabalhava no Iraque. Dizia a nós sobre burcas, igrejas e sua esposa, mas quando perguntávamos mais sobre sua vida pessoal ou mesmo sobre seu nome, ele fechava qualquer possibilidade de acesso a suas particularidades e apenas repetia: “aí já é assunto privado, não posso responder”. Não entendemos muito do que aquele homem nos disse, tampouco concluímos se ele estava sob efeito de álcool ou drogas, mas vimos nele o efeito que uma dura realidade tem sobre alguém. Ele preferia se voltar a seus devaneios e repetir aquilo que leu no jornal, na Bíblia, nos rostos de outras pessoas, do que dizer e pensar sobre sua própria condição.
Porém, enquanto alguns se veem presos à realidade de suas invisibilidades, outros tornam esta uma ferramenta para estruturar sua liberdade. Na conturbação da Praça Sete, um grupo de hippies faziam do local sua hospedagem para conhecer a cidade sobre uma nova perspectiva. “O centro é o esgoto da cidade”, e foi a partir daí que toda a nossa conversa com Toti começou, por vontade de entender e vivenciar como sua liberdade tornou a rua sua família e sua válvula de escape contra tudo aquilo que entendia como errado. Optar pelas ruas em vez de escolher a vida considerada socialmente exata faz com que de fato ele construa a liberdade que lhe convém,
porém dá margem para que seja essa mesma liberdade julgada erroneamente e com discriminação pela sociedade. Foi quando falou sobre tudo com tanta sabedoria e segurança que percebemos como seu espírito livre dos padrões e experiências conseguem formatar uma visão consciente sobre o mundo em que vive, contrariando o que a maioria acredita: eles realmente não estão à margem do que acontece socialmente. Contudo, viver sem as amarras sociais não faz com que estejam livres da perseguição da polícia, do estereótipo de vagabundo e drogado e dos cotidianos olhares preconceituosos, para ele tudo isso apenas fazia com que explodissem indagações em sua cabeça. Como se tentasse entender, questionou: “É só por isso que devo ser punido? Por escolher outra realidade?” A solidão se tornou sua bagagem não só em sua jornada física, mas também moral. Com o passar do tempo, saber lidar com essa situação se torna condição para ter sua liberdade garantida, mas aquilo que nunca conseguiria carregar consigo em sua caminhada pela vida foi o descaso, advindo de todos os segmentos da sociedade.
A busca - talvez, inalcançável - pela liberdade faz com que o ser humano tente encontrar, de alguma maneira, uma verdade individual sobre ela. A variação de como cada um dialoga com a sua liberdade
faz com que cada história assuma enredos diferentes. De certa forma, viver na rua é isso: um debate constante com a liberdade. Contudo, para algumas pessoas essa relação já nasce conflituosa e, por escolhas próprias ou por consequência do descaso público, alguns a celebram e outros a corrompem.
Apesar de a liberdade estar presente diferentemente para cada um desses perfis encontrados nas ruas, a falta de higiene, de alimentos, de recurso para realizar suas atividades, de respeito da sociedade, e a fé numa vida melhor os encaixam na mesma estante das prateleiras da exclusão social. Seria hipocrisia dizer que não sentimos medo, que não ficamos acuadas com a realidade das ruas que nos engolia lentamente. Vimos pessoas que eram realmente vítimas da situação, mas também conhecemos as que usam as ruas para ganhar a vida facilmente - os “malandros”. Sentimos neles também o medo, medo do mundo, da realidade em que todos nós estamos inseridos, da vida que levam - muitos sem esperança ou com esperanças que sabem ser cansadas, da figura do outro, dos que compartilham da mesma vida que a deles, e o medo também das nossas perguntas e de suas respostas. Este medo não é unilateral, ele surgia a cada nova história que conhecíamos, o medo de como eles reagiriam à nossa tentativa de entrar em seu íntimo. Temíamos que nossas
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perguntas ultrapassassem apenas o questionamento e atingissem questões que estavam guardadas e escondidas dentro do âmago de cada um. Foi o medo que nos fez calar diante de um olhar, de um sorriso sem graça, e que fez os moradores de rua encurtarem suas respostas e manterem seus olhares distantes. A relação dominador versus dominado sempre será carregada de desconfianças - a agressão parte de todos os lados.
As vidas das pessoas que estão na rua são ainda mais preenchidas de complexidade se comparadas às nossas. Numa produção em série, fomos formatados para engolir a ideia de que aqueles que vivem na rua não passam de desocupados, drogados, marginais... E, de maneira intrínseca, os relacionamos com sentimentos de piedade, desconfiança, medo, que, com o passar do tempo,
sedimentam a indiferença. É claro que não podemos desconsiderar episódios negativos que envolvem moradores de rua, porém despejar a culpa de situações do gênero neles mesmos apenas aumenta ainda mais as raízes do esvaziamento das políticas sociais nas terras do descaso público. A questão não é mantermos posturas extremistas, de sentirmos dó, de acharmos que eles devem ser presos ou mortos, de reduzir essa realidade ao maniqueísmo, precisamos compreender que a vida dos moradores de rua é eterna reação de sobrevivência à vida. Eles se agarram ao que podem para se manterem: ao cotidiano conformado, bebidas, drogas, ao mundo paralelo da loucura, a ilusões e mentiras, à sensação de liberdade que aquilo proporciona, ou mesmo a Deus e à fé. É como arrumar um escape para a realidade
que não está como queremos - a realidade massificadora-, e com este fato qualquer um se identifica. Ser humano é isso, cada pedacinho que nos constitui é feito de reação. Julgar o comportamento de quem não está preso à ideal realidade construída socialmente é julgar a si mesmo pois, apesar de contextos distintos, também nos agarramos a tudo aquilo que nos acalma. Fazemos da nossa vida uma busca eterna pela permanência em uma zona de conforto. Mas se não for exatamente esta que nos agrada? E se, no final das contas, para encontrar aquilo que verdadeiramente nos constitui precisarmos revirar a liberdade que nos é concedida? Somos moradores das ruas das nossas incertezas.
19
Materia por Cristiano Prado e Ariane Harbekon Arte por Ana Machida
Sem saber, pensa-vam na mesma coisa. Sobre esse tal de destino, que move, arrasta e recoloca pessoas, lugares e sonhos como se fos-sem peças de xadrez. Era um momento meio metalinguísti-co: pensavam sobre a vida e ela pensava sobre eles, movi-mentando-os como queria. Ela descia a rua correndo, arrumando a bolsa e procurando o dinheiro da passagem na carteira. Não olhou pro céu. Se tivesse vis-to aquele amanhecer, teria se lembrado da avó. Teria ficado pensando nela enquanto ou-via sua lista de músicas to-cando no aleatório. Aleatório que lhe escolheu uma música triste. Se tivesse vindo outra, talvez ficasse mais animada para a prova que ia fazer. E se tivesse chegado ao ponto alguns segundos mais cedo, teria pegado o ônibus antes e não chegaria atrasada pra faz-
er a prova. Prova que o pro-fessor preparou correndo um dia antes, deixando passar um erro no enunciado, que acabou o obrigando a anular a questão. Não fosse isso, mais 13 pessoas da turma teriam sido reprovadas. Mas ela ainda es-tava no ponto, aguardando o próximo ônibus, ainda chatea-da por ter perdido o anterior. Ao seu lado, um senhor com seus 70 anos observava os carros passando. Observa-vam. Com corpos próximos e mentes distantes. Era segun-da e o sol ensaiava sair de trás das nuvens no céu - se espe-rança pra ela, pra ele, melan-colia. Aura abafada de sol, de ir e de vir. Se o sol pra ele se escondia, pra ela, o mesmo sol fugido e guardado sob o cinza era só a chance de se renovar pra amanhecer depois, outra. Ele observava o movimento com olhos fixos. Estava ali não sabia por que, havia esquecido. Mas o tem-po lhe ensinou a ser paciente, e por isso esperava resignado até encontrar a resposta de pra onde deveria rumar. Se não tivesse esquecido o celu-lar, no qual mal sabia mexer,
poderia se comunicar com alguém conhecido. Se não estivesse naquele restauran-te, 50 anos atrás, não teria conhecido sua metade, com quem teve os filhos que lhe deram os netos que hoje lhe ensinam a operar o celular.. Se não estivesse estado lá, talvez também não tivesse alguém algum a quem recorrer agora. Ele divagava com certa melancolia e o nó no peito de quem gostaria de ser jogador, e não peça. Ela seguia com olhos brilhantes, em dúvi-das semelhantes, sob um olhar diferente: tem consigo a von-tade de voar e descobrir quais jogadas lhe esperam, e aquela sensação de eterno, quando alteramos hipoteticamente o futuro, acreditando deixar o ag-ora intacto para seguir conosco no bolso. O jogo nos move in-voluntariamente, e de repente surge vontade, pressa, calma, partir, voltar, dar a volta. O tempo, esse é segredo que escondem da gente, deixando sentir so-mente seus efeitos, sem saber-mos seu modo de usar. Disso sabia, e gostaria que pudesse ver de que forma os passos dos seus descobririam, porque
20 recria
uma coisa o tempo lhe rom-peu o segredo: a constância do jogo, do movimento das peças, deixa muita coisa pra trás, pelo caminho. Os planos, os anos, os sonhos seguem em movimento constante, sof-rendo alterações e alterando a nós mesmos, dependendo da jogada. E nos resta adaptar os roteiros, amar as escolhas pra não carregar na mala o peso do “e se?”. Isso, o semblan-te dela ainda leve dos anos, preocupado com a prova, teria de descobrir, e queria ele pod-er seguir de mãos dadas com aquela esperança contornan-do seu rosto em fios castanhos claro, esperando o ônibus ao seu lado. É quando a vida nos coloca frente a frente com esse atrás, que nos dá a von-tade de saber por que o vento nos soprou até aqui, com esses olhos, essa forma de andar. Cada caminho, uma escolha, mas que escolhas me trouxe-ram até aqui? Por quê? Ele mantinha o olhar perturbado - olhava os bancos, os passageiros, acompanhava os passos de quem entrava. Do outro lado do corredor, uma moça olha-va pra longe. Ele via nela as linhas ainda não tecidas, os tecidos ainda não bordados. Pensou se ele, quando na idade da moça, já tinha seu fu-
turo todo escrito, todo prescri-to, inscrito em cada dia novo que viesse. Pensou se poderia tudo ter sido diferente. Pen-sou se dava pra ir escolhendo passo a passo o futuro, ou se já estava mesmo tudo pronto para ser como foi. Ela mantinha o ol-har admirado – o l h a v a pela janela, fitava as pessoas, acompanhava seus passos, e pensou na vida de cada um que caminhava apressado para o trabalho. E em meio àquela pressa, pensou também na vida da criança de mãos da-das com sua mãe, que parecia uma gota de tempo naquele mar de pressa e preocupações. Vestia uma roupa que não havia escolhido, estava indo pra um compromisso que não era seu, por um caminho que não conhecia. Será que a vida já nasce estabelecida, pronta? Ou a gente mesmo acha os destinos por meio das escolhas que fazemos ou que o mundo faz por nós? Parou por um mo-mento. Aqueles olhinhos flutuantes pela cena que os cercava a fez ver que a ausên-cia de escolhas faz o caminho ser natural. Aquela criança, vestindo amarelo mesmo preferindo azul, indo ao médi-co curar uma dor que não era sua, mas com a serenidade e a firmeza de alguém que tem certeza de onde está, mes-
mo não tendo. Décadas nos ensinam que não ter traçado por onde se anda é estar sem rumo, sem propósito, mas talvez possa ser diferente. Deixar-se levar pelo que nos move naturalmente talvez também seja um grande propósito, mesmo não estando em mapas ou agendas lotadas de horários cronometrados. Assim seguiu, menos preocupada com a hora, pensando menos nos moldes da rotina, e por sua janela passou um casal: cabe-los nevados, sorrisos leves de quem venceu os propósitos desse jogo. Ou só acasos. O caso é que venceram, e jun-tos degustavam aquela tarde e aquela vida toda juntos, de forma a deixar qualquer um intrigado se existe mesmo essa tal pessoa certa destinada a cada um que foge da solidão, ou se é mais uma questão de persistência e simplicidade pra reconhecer em outro sua von-tade de lutar juntos. Os prob-lemas existiram, mas estavam ambos caminhando sem pres-sa, anos depois de destino ou coincidência tê-los unido.Tinha vez em que ficavam à toa e conversavam sobre o tal do destino. Será que já não tin-ham se visto antes do baile de 1966? Quando crianças, talvez já tivessem brincado juntos na praça. Depois, poderiam ter se visto algumas vezes pelas ruas
21
do bairro, trocado olhares ou só mesmo se cruzado sem nem imaginar por quem acabaram de passar. Como duas linhas, de rastros-registros da vida, que se cruzam, se amarram, se desviam, se aproximam, e que um dia se juntam sem nunca se imaginar terem estado tão próximas. Agora caminhando pela avenida, brincavam de desenhar histórias e propor enlaces aleatórios no meio daquela gente toda que pas-sava por ali. Como se viessem do futuro, criavam casais en-tre pessoas quaisquer que se cruzavam sem se olharem – e riam disso, da nossa pequenez sobre o que ainda não veio, do eterno segredo descoberto pedaço a pedaço cada dia, das surpresas desenhadas com carinho pra que só mais tarde tudo nos faça algum sentido. Tudo tão gigante, tão imprevisível. Ela então fechou os olhos e pensou na Terra, em sua forma e em seu azul. Pensou nos bilhões de pessoas em lados e estações opostas, e também nas tantas vidas que se cruzam apesar dos continentes. Quem ou o
que as move? Estaria mesmo escrito que alguém de algum lugar tão distante se tornar-ia necessária àquela que mal sabe seu idioma? Se fosse mes-mo um plano, uma jogada, por que não estaria esse alguém tão valioso seguindo mais próximo a quem virá a im-portar? Pode ser que precisem mesmo e unicamente daquela pessoa, ou talvez tenham es-colhido por isso. De qualquer forma, algo as moveu e assim, passam a seguir em linha, jun-tas. As mesmas faces separadas por minutos. Nada disso diz algo ou dá segurança alguma. Tudo continua flu-tuante sob os cordões dessa marionete. É a vida que movi-menta cada um de uma forma, de seu próprio e único jeito - às vezes, irônico; às vezes, maluco. E essa curiosidade por antecipar a vida, por trazer o sol por trás do muro cinza de ante-chuva, fez a moça jovem do ônibus querer brincar de mudar escolhas. Levantou-se, puxou a corda dando sinal para descer e foi aguardar o ponto seguinte na porta do
ônibus. Pretendia descer só daqui a cinco ou seis pontos, mas agora nenhum comprom-isso lhe parecia certo. Estava tudo em aberto. Na porta do fundo, aquele senhor que a observa-va já esperava para descer na próxima esquina. Subiria a pé mais três quarteirões e meio, e estava em casa, como fazia em todos os dias (in)úteis de sua aposentadoria. Mas agora, consciente da rotina e do desti-no, também quis entrar nesse tal jogo. Sobre esse tabuleiro, sentiu um instante de autono-mia e queria saber onde pode-ria chegar. Desistiu de descer. O ponto chegou e só a moça desceu, convicta de que agora era a dona do seu próprio jogo. Já o homem, esse voltou e se sentou no banco. Agora, ao lado de outro senhor, mais velho, sentia-se jovem - o mais esperto dos jovens. Imaginava cada passo, pensava cada consequência, e assim sorria radiante, por ter visto a tempo que tudo não passa de pequenos movimentos. Passos, olhares, desvios, atalhos, minutos, tropeços, pedaços que a vida nos faz o favor de juntar, mas que nos faz muito bem tentar mudar também.
22 recria
Os sonhos, o dinheiro, as amizades? Você já parou pra pensar no porquê de movimentar sua vida?
A vida em uma grande cidade como Belo Horizonte é aquilo que podemos chamar de
“movimentada”. Temos os carros em um
fluxo louco e contínuo pelas principais
avenidas, informações circulando a uma
velocidade inacreditável, tarefas sendo
feitas ao mesmo tempo. E temos as pessoas.
Pessoas que fazem parte desse grande
emaranhado que é a cidade. E elas se movem
ainda mais do que todo o resto que as rodeia.
Os cidadãos podem não perceber, mas são
peças chave de todo um sistema do qual
fazem parte. Têm o movimento inerente a si
e, talvez por isso, nunca tenham parado para
pensar por que, então, se movem. O contín-
uo “vai e vem” imposto pelas ações mais sim-
ples do cotidiano torna-se rotineiro e acaba
por parecer imotivado, mas por trás dele ex-
istem histórias diversas, pessoas singulares
e organismos vivos e pensantes. É dessas
pessoas e de seus sentimentos que surge a
motivação de cada um para se movimentar.
Pensando nisso, nos propusemos a en-
Texto por: Lucas Vitorino e Nathália TameirãoArte: Paula Cardoso
23
trevistar e observar várias pessoas, de
diferentes idades e em diferentes situ-
ações, para refletirmos sobre “O que as
move”. Ao partirmos de um olhar dis-
posto a refletir sobre o tão esquecido
assunto, obtivemos respostas incríveis.
Desde crianças, já estamos de al-
guma forma conectados com o mundo a
nossa volta. Apesar de pequenos, possuímos
um grandioso poder de transformação, que
desconhecemos. Nosso movimento nessa
idade é, na maioria das vezes, não planejado.
Agimos por impulso e motivados por nossa
vontade pessoal. É nessa época que começa-
mos a aprender, conhecer e experimentar o
mundo e, por isso, nosso movimento é um
dos mais puros e bem intencionados. Então,
respostas como “Eu quero ser astronauta”,
“Eu estudo porque minha mãe manda” ou
“Ah, eu quero virar artista!”, são igualmente
válidas, e nós sabemos que não vão ser as
mesmas para o resto de nossas vidas. Mas
o tempo passa. Não se pode ser criança pra
sempre. A adolescência chega, acompan-
hada por dilemas que nos parecem sem
solução. A experiência do primeiro amor, as
mudanças que o corpo sofre, notas baixas na
escola, tudo isso gerando marcas que só não
são mais numerosas do que aquelas que as
temidas espinhas deixam em nossos rostos.
Nessa fase, a preocupação com os grandes
feitos, a vontade de mudar o mundo e de
ser reconhecido podem ser percebidos facil-
mente. Os grandes ideais de criança ainda
estão vivos, e, agora, inspirados em grandes
personalidades, sejam elas pessoas famosas
ou ativistas políticos. Há uma sede de suces-
so, fama e reconhecimento durante esse
tempo, que é muito menos presente nas out-
ras fases da vida. Planejamos muitas cois-
as, escrevemos o nosso amanhã como em
um livro, esperando que o enredo criado se
torne real o mais rápido possível. Talvez essa
seja a essência do ser jovem: ser sonhador.
As pessoas crescem e, junto com
elas, crescem as responsabilidades, as
preocupações, e também a sabedoria. Vê-se
o mundo de outra forma, o futuro começa
a parecer algo não tão distante. “Querer
impressionar as pessoas é o que me move.”.
“O que me move é a vontade de construir
um futuro melhor, ter uma vida boa, che-
gar num ponto na vida dos estudos onde
eu possa fazer o que eu quiser.”. “O que me
move são meus objetivos em longo prazo.”.
Quando o “aguardado futuro” bate à porta,
as pessoas, tendo alcançado ou não aqui-
lo que desejavam, continuam se movendo,
e as perguntas não param de surgir. Por
que um homem de meia idade, que sonha-
va em ter sua própria empresa, atravessa
a cidade todo dia para trabalhar com pes-
soas de quem ele nem mesmo gosta e para
ganhar um salário menor do que merecia?
O que faz uma costureira ficar o dia todo
em frente à sua máquina em uma posição
desconfortável? Ou ainda, por que alguém
precisa limpar outros lugares que não sejam
sua própria casa? E as respostas se mesclam.
Os sonhos ainda não morrem. “Eu só quero
dar pros meus filhos uma vida melhor do
que a que eu tive.”. “Eu preciso trabalhar pra
ganhar meu dinheirinho e poder fazer as
coisas que eu quero.”. “Tenho minha meni-
na lá em casa, preciso colocar comida na
mesa.”. Vive-se em função de alguém. Mes-
mo que esse alguém ainda seja você mesmo.
Correr atrás dos sonhos ou da
própria sobrevivência? Abandonar o em-
prego para construir seu próprio negócio
ou trabalhar cada vez mais para ganhar
“Eu preciso trabalhar pra ganhar meu dinheirinho e poder fazer as coisas que eu
quero”.
24 recria
dinheiro e depois “chutar o balde”? São
as respostas a essas perguntas que irão
definir o tipo de pessoa que vamos encon-
trar nesse momento da vida. Enquanto al-
guns ficam extremamente presos a seus
sonhos, e são capazes de tudo para con-
seguir alcançá-los, como ficar noites tra-
balhando sem dormir, passar por cima dos
outros, ou viver viajando, mesmo sem ter
dinheiro nem para as passagens, outros
passam a “viver apenas por viver”, fazen-
do somente o necessário para garantir sua
próxima refeição. Estes já desistiram dos
seus sonhos, que agora consideram ilusões
de adolescente, e caem no comodismo.
A pergunta nesse momento é: existe uma
maneira certa para se viver? É errado aban-
donar os sonhos e passar a nos mover em
função de outras coisas, como os filhos ou
a família? Certamente que não. Cada pes-
soa tem sua motivação para continuar e ela
pode ser individual ou mais altruísta. O fato
é que cada um tem que descobrir como quer
viver a sua própria vida e, assim, talvez até
consiga viver de muitas formas, garantindo
seu sustento ou de sua família e correndo
atrás dos próprios sonhos ao mesmo tempo.
Quando esse momento turbulento da vida
passa e as pessoas podem parar para pen-
sar em tudo que já aconteceu, em todas as
situações que já viveram, elas entram em
uma nova fase. É só aí que elas percebem a
importância de tudo. Dos acertos e também
dos erros, de cada hora que passaram tra-
balhando ou fazendo algo com os amigos, de
cada pequena alegria. Tudo isso compõe sua
trajetória, marcada por deslizes, erros e de-
cepções, mas também por sonhos e conquis-
tas, por momentos de felicidade gravados na
memória. Quando se chega aqui, os ideais
não são mais tão grandiosos, já se alcançou
o que podia ser alcançado na vida individu-
al e, muitas vezes, os sonhos dos outros se
transformam nos seus novos sonhos. “Ah, eu
só quero viver pra ver meus filhos vivendo
bem, pra ver meus netos se formando, cre-
scendo.”. A vida deixa de ser tão complicada.
De repente, passa-se a enxergar o mundo
em toda a sua simplicidade. “Eu só quero fi-
car tranquila aqui na minha casinha.”. “Des-
de que eu tenha saúde, o resto a gente vai
levando.”. Pena que só aprendemos a viver
dessa forma quando já é quase tarde demais.
O movimento das pessoas, seus ideais, sua
forma de sobreviver, é inerente ao mov-
imento da própria vida. Todos são levados
na mesma direção, para um fim inevitável,
onde paramos de nos mover. Chegamos a
esse fim de diferentes formas, mas, antes
disso, são nossos desejos, amizades, amores,
aquilo que vai além do material que tere-
mos de mais importante na vida, e é bom
saber que há pessoas cientes disso. “Para
a vida o que me move são os sonhos, para
o dia-a-dia as pequenas alegrias.”. “Busco
o que poucos ‘dizem’ que tem e ninguém
sabe explicar: a minha felicidade.”. “As
amizades, o lazer, o sorriso, o bem estar,
estar perto de alguém que te faça bem...
as boas companhias. São as pequenas
coisas que nos fazem aturar a rotina.”.
Não há um mapa que nos guie no desa-
fio que é fazer valer o tempo que passa-
mos em vida, assim como não existem leis
que digam qual a forma certa de conduzir
a nossa existência. Cada um precisa de-
scobrir a seu tempo quais são seus ideais,
as razões para ser feliz, os objetivos que
quer alcançar e, principalmente, os moti-
vos que o farão nunca parar de se mover.
Mover-se é algo natural, é bom. Não há
como escapar do fluir da vida. E quando as
pessoas se dedicam a fazer isso da melhor
maneira possível, do jeito que gostam e que
se sentem bem, não há como dizer que se
chegou ao fim sem ter conhecido o paraíso.
“As amizades, o lazer, o sorriso, o bem estar, estar perto de alguém que te
faça bem... ”.
25
Seis segundos, um celular, e nada mais. Mas e as luzes? A câmera? Alguns segun-dos são suficientes para dar o movimento
que a vida virtual pede. Vines. Quem são eles? Pra que servem? De onde vieram? E, principal-mente: por que ficaram tão famosos?
Vine é um aplicativo criado em 2013 que permite criar pequenos vídeos de no máximo 6 segundos, que podem ser constituídos de rápi-dos cortes ou planos inteiros. Ao longo do ano, esse novo modelo de vídeo veio se populari-zando ao redor do mundo, espalhando-se pelas mais redes sociais. No Facebook, por exemplo, a maior página em homenagem a esses peque-nos vídeos em poucos meses já alcançou cerca de 18 milhões de curtidas.
Mas por que tanto sucesso? O que fez com que esses videozinhos ganhassem tanta fama? Talvez porque surgiram em uma época em que as redes sociais de compartilhamento, como o Instagram, estavam com grande popularidade. Ou pode ser porque os vine são primos próxi-mos dos GIFs, imagens animadas que se virali-zaram pela internet nos últimos anos. Ou, quem sabe, tenha sido pela forte aderência de celebri-dades à tendência do aplicativo.
Podemos relacionar tudo isso à sua popula-ridade, mas o principal fator é o movimento. A proposta do aplicativo é dar movimento às
6SEGUNDOSe s ó .
t e x t o e a r t e p o r c e l s o h a d d a d
26 recria
e s ó .
fotografias estáticas, agre-gando ainda mais significado a elas. A dinamicidade dos vines consegue acompanhar muito bem o andamento da rotina do internauta, uma vez que nos dias atuais, tudo deve ser imediato. Vivemos em uma era em que a infor-mação é entregue de manei-ra breve, as conversas com os amigos acontecem por meio de mensagens instantâneas, o cotidiano é relatado em 140 caracteres, e as estórias con-tadas em 6 segundos. Ou até menos que isso.
Por ser um tempo tão cur-to, a maioria dos vídeos não possui a estrutura “começo-meio-fim”, e a suspensão des-se modelo acaba provocando a outra característica mar-cante dos vídeos: o nonsense. Um vine é quase como uma experiência inconsequente. São apenas alguns segundos, e, durante esse instante, não importa o que acontece antes ou depois. Esse momento bas-ta para tirar do espectador al-gumas risadas. E durante es-ses segundos, é só isso que ele busca. Nenhuma explicação, justificativa ou sentido. O sem sentido é o que o atrai e o que tem se tornado tão popular.
Jerome Jarre é um grande exemplo de que cada vez mais o público se atrai pelo curioso.
O rapaz francês foi um dos primeiros usuários do Vine a ficar famoso por meio do aplicativo, e possui mais de um milhão de seguidores em seu Facebook. O conteúdo de seus vídeos é sempre impre-visível: vai de escândalos em cenários públicos a invasões em reportagens televisivas e até senhoras se assustando em um supermercado.
Em entrevistas, Jerome diz que encontrou nos vines uma maneira de sair de sua zona de conforto e compartilhar suas ações com seus seguidores, na tentativa de fazê-los rir com apenas seis segundos.
Rápido e imediato. Assim é o Vine. Dura um pedacinho de quase nada, rende umas boas risadas, e acaba. Assim é quase tudo na internet. Quando online, nos interes-samos e perdemos o interesse quase imediatamente. É tudo muito fugaz. São movimen-tos que instantaneamente se encantam e desencantam, que se constroem de peque-nos e intensos instantes de apenas 6 segundos.
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28 recria
Eu ando todos os dias.
Só que não é esse
andar despreparado,
tropeço e corrido que a
maioria das pessoas anda
fazendo dia após dia. Eu
ando porque nasci assim, pra
nunca parar. Desde que eu
me entendo por gente, e isso
já faz um tempo, ao menos
gosto de pensar assim, tô
sempre com o pé no chão.
Foi quando eu tinha um
ano e dois meses que comecei
a minha andança.No começo
era extremamente desregular
e só em volta da casa. Meus
pais me achavam prodígio.
“Olha o Samuel, ele não para
de andar, aposto que vai
começar a escrever daqui a
pouco!”, dizia mamãe. Nas
brincadeiras, eu era o que
mais energia tinha. Causava
inveja por ser o mestre do
pega-pega. Eu era imbatível.
A verdade é que eu não
queria ser mestre de nada.
Eu queria só andar. E tudo
isso era motivo para meus
pais se orgulharem, até meu
sonambulismo se tornar
diário e as coisas mudarem um
pouco de figura. Nunca contei
pra eles, mas na verdade
nunca fui sonâmbulo. Eu só
queria andar.
Ao menos a ocorrência
frenética dos meus passos
fez com que meus pais
entendessem a minha
natureza. Assim, eles
começaram a andar comigo.
É por causa das lembranças
desses momentos que meu
pomo de Adão se desregula
, . por Mauro Sérgio Silva
Arte por Henrique Lima
constantemente.
Eu achei que
eles iam me
acompanhar por muito mais
de uma década. Não foi bem
assim. Logo que um ano se
passou, meu caminhar se
tornou mais rápido.
Ainda era torto e um pouco
sem equilíbrio, mas era mais
veloz do que os passos dos
meus pais. Eu queria falar
sobre os objetos que eu
pinçava e das plantas que
colocava na boca, mas ou
eles conversavam comigo
por 5 minutos, ou respiravam
por 15. O oxigênio sempre
ganhava de mim. Quando eu
29
isso, todos aprenderam a
querer estar ali. E eu aprendi
a querer estar com eles.
Esse foi o tempo em que ri
muito mais alto e por muito
mais tempo. Foi quando
fiquei mais incessante com
meus passos. Até ganhei um
apelido. De Samuel Bolina,
virei Sam. E talvez por ser
um bando, ninguém nunca
sibilava de tanto andar.
Deve ser uma dessas coisas
que acontecem com os
animais quando estão em
maior número. Foi como
uma migração de pássaros.
A diferença é que ninguém
sabia para onde ir. E também
não tínhamos asas. Uma
pena que não tínhamos asas.
O problema é que minha
ingenuidade entrou no meio
e atrapalhou tudo. Fiquei tão
leve que me
deixei
aprendia algo, meu pai não
conseguia dizer muita coisa.
“Parabéns, campeão”, era o
máximo que ele suportava.
Depois de pouco tempo
começou a ficar tão difícil que
ele preferiu não falar mais.
Eu já sabia que não ia durar
muito mais tempo minha
caminhada com eles. Por
mais que os dois procurassem
meios de aumentar o
condicionamento físico
deles, nada adiantava.
Enquanto eles procuravam
maneiras de continuar
a andar comigo, eu me
preparava para o dia em que
os dois fossem ficar para trás.
Com 11 anos de idade eu já
não me via mais com meus
pais. Foi muito difícil para
mim, mas foi mais difícil para
eles. De tão preocupados em
conseguir me acompanhar,
não se preparam para me
deixar ir. E você não sabe o
tanto que é difícil abraçar
alguém quando se precisa
seguir em frente.
Comecei a andar sozinho
e então muitas pessoas
chegavam até mim por
curiosidade, porque já tinham
ouvido falar do menino que
nunca parava. No começo
era incrível atrair pessoas
somente pelo fato de que
eu era eu. Não precisava
me esforçar para conhecer
ninguém, para andar com
ninguém. Só que em pouco
tempo as pessoas começaram
a criar expectativas demais.
Esperavam que eu não
sentisse calor nem frio,
que minhas roupas fossem
sempre impecáveis, que eu
fosse sempre sorridente e
receptivo, que eu corresse e
não me cansasse. Ei, eu me
canso às vezes! Corresponder
às expectativas dessas
pessoas me desgastou muito.
Mudei meu caminho.
E lá vieram outras pessoas
que me procuravam porque
queriam saber como eu fazia
pra andar sempre. Como
eu não sabia explicar, elas
se frustravam. Algumas
caminhavam comigo por
horas até perceberem
que eu não era o que
elas procuravam. Outras
sequer passavam trinta
minutos ao meu lado e já me
abandonavam. Foi só com um
grupo de poucas pessoas que
o cenário foi diferente.
Essas pessoas queriam
andar comigo porque
desejavam ter a experiência
de andar a esmo. Eu as aceitei,
claro. Sem muitos sorrisos e
nem paciência, é verdade. Eu
estava cansado de atravessar
tanta gente passageira.
Minha surpresa foi que esse
grupo ficou do meu lado. No
começo era inevitável um ou
outro alguém
reclamar da
c a m i n h a d a .
Ouvi até mesmo
alguns deles se
questionarem
se valia ou
não a pena
continuar. Fora
30 recria
levar.
Cheguei a
pensar que ia andar com
aquelas pessoas pra sempre.
Inseparáveis. Não me abalei
quando uma pessoa decidiu
não andar mais. Foi assim, por
conta própria. Segundo ela,
não estava cansada, poderia
continuar por quilômetros,
mas não quis. “O caminho tem
dessas coisas”, pensei. Mas
não minto, tremi quando um
dia olhei para trás e vi mais
duas pessoas paradas. Elas só
acenavam confortavelmente
do horizonte retrógrado atrás
delas. Tantas passadas dadas
lado a lado para terminar
assim, com dedos preguiçosos
balançando no ar. Depois
disso ficamos em seis, depois
decrescemos para quatro, até
que só mais um par de pernas
me acompanhava. Andamos
em silêncio por meses, até
eu dizer que tudo bem se ela
quisesse ficar pra trás, como
os outros. ”Eu te sopro um
b e i j o
todos os dias, Sam”, me
prometeu.
Envelheci tanto depois
disso. Comecei a ficar sozinho
de novo. Foi bom para
explorar outros lugares. Mais
distantes, mais frios. Alguns
poucos lugares quentes.
Foi bom ver rostos novos.
Também vi rostos velhos com
novas feições.
Mas, claro, não fiquei
completamente sozinho.
Sempre aparece alguém para
te perguntar as horas ou
arriscar um meio-sorriso.
Mas depois de um tempo
aprendi a me ensurdecer, a
me cegar diante dos outros.
Tudo por necessidade.
Chegou um momento em
que tudo o que precisei
escutar foram meus passos.
Macios, apressados, raivosos.
Controlar minha respiração.
Tranquila, dura, furiosa. E
quanto mais me ouvi, me
respirei, mais o caminho
pareceu maior. Pra mim foi
como enxergar um prospecto
imenso de tudo à minha
volta. Comecei a ver estradas
que pareciam infinitamente
paralelas, mas que bem pra lá
se encontravam.
E foi em um desses
encontros que encontrei um
rosto já familiar. Bom, eu acho
que era familiar. A verdade é
que ando tanto que agora as
feições, os sentimentos, me
parecem iguais. Esse rosto
familiar quis andar comigo.
Tudo bem, sempre tem lugar
no meu caminho. O rosto
familiar já tinha mesmo
passado perto de meus passos
anteriores. Ele então se pôs a
caminhar do meu lado.
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chão ficou estranho demais.
Começou a ficar impossível
andar. Não para mim, mas
para o Rosto Familiar. Os pés
dele não alcançavam uma
altura confortável para sua
passada. Ele ficou para trás.
Parou, mesmo que quisesse
continuar a caminhada
comigo. E eu não parei.
Eu quis continuar a dar os
meus passos.
Meu andar incessante não
me deixou parar. Talvez o
Rosto Familiar foi até aonde
deveria ir, enquanto eu
ainda tenho muito caminho
pra andar. Eu não quero,
mas me questiono quanto
tempo ainda falta pra mim.
Eu não sei mais nada, eu não
sou mais nada. É só isso que
faço. Andar. Essa jornada
interminável. Só um homem
só. Talvez seja meu gene,
talvez seja meu jeito. Acho
que meu andar só funciona se
for sozinho.
Ele me contou por onde
tinha andado. Passou tempos
e tempos falando de si,
principalmente sobre as
coisas pequenas. O seu corte
de cabelo mais feio, da vez
que quebrou o dedo médio
da mão esquerda, da mousse
inesquecível que um dia
provou, do achocolatado
preferido, da sua paixão por
álcool gel. Disse também que
sempre quis conhecer mais
o mundo, as pessoas, a vida.
Conversou sobre os deuses
e questionou Darwin. Falou
sobre o amor por dentes-
de-leão e por chumbo.
Mostrou sua complexidade
e seus complexos.
Andamos juntos por anos.
O Rosto Familiar ouvia a
minha voz tão bem quanto eu
ouvia a dele. Sabia quando me
interromper. Sabia fechar os
olhos para respirar. Durante
todo o meu caminho passado,
percebi que é possível
sincronizar meus passos com
os dos outros. Pouquíssimas
vezes fiz isso. Sempre achei
que era tirar a individualidade
da minha passada e transferi-
la. Com o Rosto Familiar foi
diferente. Eu me permiti a
aprender a sincronia dos
nossos passos. Durante
todos os anos que andamos
lado a lado, passamos pelos
lugares mais inóspitos. Áreas
desérticas, áridas. Foi difícil.
Foi recompensador.
O problema é que chegou
um momento em que o
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Uma vez Douglas Adams, um famoso escritor inglês
conhecido também pelo seu ateísmo, perguntou-se em um de seus livros se “não é o bastante ver que um jardim é bonito sem ter que acreditar também que há fadas escondidas nele”. A religião, que teve em seu surgimento a necessidade dos homens de explicar os fenômenos que aconteciam ao seu redor, foi, sem dúvidas, um dos principais pilares para que a ciência surgisse. Porém, essa mesma ciência nos dias de hoje prova que todos esses fenômenos considerados sobrenaturais são naturais, convertendo religião em mitologia, mesmo sem objetivar isso sempre. A questão é: em um mundo em que a razão parece querer explicar tudo, por que 84% das pessoas ainda acreditam em uma força superior, seja ela qual for?
Como sabemos, na teocêntrica Idade Média, os significados e valores de todos os acontecimentos eram atribuídos a Deus. Porém, o campo de influência da religião nessa época era maior do que isso, uma vez que possuía também uma importância política-econômica. Dessa forma, toda a sociedade era marcada pelo pensamento religioso, privando-se de todos os prazeres terrenos em prol dos benefícios que seriam alcançados em uma suposta vida após a morte. Contudo, movimentos filosóficos como o Iluminismo abalaram toda essa influência e possibilitaram uma crise religiosa a partir de um pensamento mais humanista e antropocentrista. Aliado a isso, o desenvolvimento da ciência, que passou a entender racional e detalhadamente o homem e a natureza, possibilitou que diversas explicações deixassem de ser empíricas, sendo agora científicas.
Dessa forma, é fácil estabelecer um caminho da religião: criada para explicar fenômenos naturais, passou a ditar regras e comportamentos, moldando o homem; contudo, após a expansão dos movimentos de cunho mais racional e o desenvolvimento da ciência, que passou a explicar praticamente tudo, o homem não se sente mais na necessidade de crer em algo superior, acabando com a religião. Mas, na verdade, as coisas não são tão lógicas assim.
Contrariamente a linha de raciocínio proposta, a religião permanece viva em pleno século XXI e - o que é mais impressionante - ainda ganha fiéis e fortalece, de certa forma, a crença dos que já acreditavam. Com isso, o movimento contrário é quase instantâneo: os ateus parecem se tornar mais resistentes e
certos de suas
c o n v i c ç õ e s a cada dia. E assim
se estabelece o famoso diálogo do mundo virtual entre ateus e teístas: intolerância e irredutibilidade de ambas as partes em conversas improdutivas, baseadas, na maioria das vezes, em argumentos ofensivos e em conhecimentos do senso-comum.
Para os teístas, a religião se faz necessária em, basicamente, dois âmbitos: o social e o pessoal. No primeiro, ela constrói comunidades, bem como relações de compaixão e inclusão, ainda mais atualmente, em uma sociedade cada dia mais individualizada e solitária. Além disso, os religiosos defendem que os Direitos Humanos têm profundas raízes nas comunidades de fé. Por isso, reforçam que o respeito pela vida e pela igualdade é inerente a toda religião. Já no segundo, a
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religião como sistematizadora de crenças, funciona para que o ser humano, ante toda a sua insignificância no mundo, encontre algo maior, que transcenda sua própria existência e confira à ela algum sentido no mundo.
Já para os ateus, as religião é uma forma de se esquivar da realidade, sendo considerada, por muito deles, uma traição ao intelecto. É importante destacar também que, segundo eles, a religião dissemina explicações falsas que se comportam como obstáculos para a obtenção de explicações reais, ensinando apenas a “nos satisfazermos em não entender o mundo”, como diz o biólogo
Richard Dawkins. Céticos em relação a quaisquer questões sobrenaturais, defendem que não há evidências empíricas que provem a existência das mesmas e que a sociedade funcionaria melhor caso as religiões não existissem.
Como lidar, então, com esse homem descrente em todas as promessas científicas e crente em promessas divinas? Como lidar com um homem que se esquece de todos os prazeres terrenos que o século 21 fornece, com todos
seus avanços tecnológicos, em nome de uma crença? Com um homem que talvez acredite na religião apenas pelo medo, mesmo que inconsciente, de negá-la? E como se comportar diante de homens contrários a tudo isso, que acreditam que a religião é um atraso intelectual e que acreditam em uma sociedade melhor sem ela, já que podemos ser morais sem sermos religiosos? E, por último, talvez o mais importante: como fazer com que esses homens com paixões tão diferentes convivam pacificamente em um mesmo mundo?
Basicamente, é necessário que a fé deixe de lado a convenção
social de que está acima de qualquer crítica.
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Críticos de literatura, cinema e música podem criticar arduamente seus objetos conseguindo elogios e aplausos, sem que a sociedade se vire contra eles. Porém, basta um crítico da religião usar um argumento - que em outros contextos seria apenas mais um - que ele logo é chamado de intolerante e hostil, sendo socialmente reprovado. Portanto, essa aura de superioridade crítica que a fé carrega deve ser extremamente combatida, uma vez que impossibilita o diálogo pacífico e produtivo entre dois pontos de vistas tão extremos.
O famoso “futebol, política e religião não se discutem” toma como verdade que esses três assuntos são tão polêmicos e complexos que não deveriam ser discutidos, enquanto, na verdade, deveria ser o contrário. O medo de discutir, que gera barbárie e hostilidade toda vez em que assuntos polêmicos são postos em pauta, desacostumou o homem a discutir sobre eles. Dizer que um assunto não é passível de discussão é radicalizar sua própria
opinião, uma vez que é declarar, implicitamente, que outras perspectivas e óticas são erradas e que gerariam briga, caso discutidas. Consequentemente, essa facilidade de apenas refutar outros pontos de vista faz com que, cada vez mais, paremos de pensar em determinado assunto, gerando rótulos que impossibilitam ainda mais o que seria uma discussão saudável: ateus são arrogantes perigosos e sem nenhuma base moral, enquanto teístas são cegos, irracionais e dogmáticos.
É claro que, quando dois pontos de vista tão divergentes são expressos, a verdade, se é que ela existe, não estará sempre no meio dos dois. Porém, é necessário que nos perguntemos: a religião é compatível com o século XXI? Se sim, como podemos adequá-la às leis e aos novos valores da sociedade moderna? Para o mundo, a religião faz mais o bem ou o mal? O que aconteceria se as religiões simplesmente desaparecessem? Nesse sentido, se o produto dessa discussão entre ateus e teístas não necessariamente
é um consenso, estaria algum desses lados certo? Ou melhor, algum lado tem que estar certo? Que um dia possamos ter as respostas para todas essas questões. Amém.
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diagramaçãoAna Naemi
Celso Haddad
Henrique Lima
Mauro Sérgio Silva
Paula Cardoso
Paulo Assunção
finalizaçãoCelso Haddad
capaBárbara Machado
campanhaAudiovisual:
Isadora Fachardo
Juliana Motta
Renan Araújo
Direção de Arte:Celso Haddad
Paulo Assunção
Gestores:Gabriela Contaldo
Renan Araújo
Redação:Nathália Tameirão
Juliana Motta
Planejamento:Luciana Lana
Virgínia Badaró
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