Recordando

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Recordando… «Conta-me uma história, Avozinha!...» Era assim que eu começava sempre... Então, tu sorrias, acariciavas as minhas mãos pequenas e principiavas: «Era uma vez...» As tuas histórias eram lindas, lindas! ... Falavam de reis, de rainhas, de príncipes loiros, de donzelas formosas, de moiras encantadas e eu ouvi-as recostada nos teus joelhos, de olhos voltados para o Céu. Que saudade, Avozinha! Tinhas uma voz meiga, suave, e a tua face cheia de pequenas rugas, tinha a frescura das rosas de toucar... E, quando falavas de bruxas velhinhas, curvadas, de mãos secas e longas, eu imaginava-as com os teus olhos a sorrir por detrás dos óculos pequenos, com o teu cabelo prateado, com as tuas saias compridas, com o teu longo xaile sempre suspenso dos ombros, boas e meigas como tu. E sonhava, Avozinha! Tu vias o meu olhar distante e parado no infinito do meu sonho e puxando-me as tranças negras, dizias: «Nasceste sonhadora, minha filha!» O tempo passou, a Morte levou-te e a tua filha cresceu, Avozinha!... Alguém roubou os meus vestidos de folhos, as minhas meias brancas, os meus sapatos de fivela dourada, o meu laço de seda. Mãos estranhas cortaram sem piedade as minhas tranças negras, fizeram mais profundos e tristes os meus olhos azuis escuros, carminaram os meus lábios de donzela... Avó, avozinha! Que fizeram de mim? Do passado nada existe; somente no meu olhar parado e indefinido ficou suspenso o encanto das tuas lindas histórias... Um dia contaste-me uma, a mais bela de todas que Deus quis que ficasse incompleta. Dizias ser eu a princesa duma lenda, uma princesa bela e linda, retida na Terra e suspensa no Céu. Acreditei, Avó e desde que tu partiste tenho tentado viver a tua história, nos dias que passam a caminho do Eterno... Obrigada, Santa Imagem da minha infância! Perfumaste a minha meninice, povoaste a minha vida de Sonho, cobriste a minha alma de carícias e deste-me um Reino.

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Page 1: Recordando

Recordando… «Conta-me uma história, Avozinha!...» Era assim que eu começava sempre... Então, tu sorrias, acariciavas as minhas mãos pequenas e principiavas: «Era uma vez...» As tuas histórias eram lindas, lindas! ... Falavam de reis, de rainhas, de príncipes loiros, de donzelas formosas, de moiras encantadas e eu ouvi-as recostada nos teus joelhos, de olhos voltados para o Céu. Que saudade, Avozinha! Tinhas uma voz meiga, suave, e a tua face cheia de pequenas rugas, tinha a frescura das rosas de toucar... E, quando falavas de bruxas velhinhas, curvadas, de mãos secas e longas, eu imaginava-as com os teus olhos a sorrir por detrás dos óculos pequenos, com o teu cabelo prateado, com as tuas saias compridas, com o teu longo xaile sempre suspenso dos ombros, boas e meigas como tu. E sonhava, Avozinha! Tu vias o meu olhar distante e parado no infinito do meu sonho e puxando-me as tranças negras, dizias: «Nasceste sonhadora, minha filha!» O tempo passou, a Morte levou-te e a tua filha cresceu, Avozinha!... Alguém roubou os meus vestidos de folhos, as minhas meias brancas, os meus sapatos de fivela dourada, o meu laço de seda. Mãos estranhas cortaram sem piedade as minhas tranças negras, fizeram mais profundos e tristes os meus olhos azuis escuros, carminaram os meus lábios de donzela... Avó, avozinha! Que fizeram de mim? Do passado nada existe; somente no meu olhar parado e indefinido ficou suspenso o encanto das tuas lindas histórias... Um dia contaste-me uma, a mais bela de todas que Deus quis que ficasse incompleta. Dizias ser eu a princesa duma lenda, uma princesa bela e linda, retida na Terra e suspensa no Céu. Acreditei, Avó e desde que tu partiste tenho tentado viver a tua história, nos dias que passam a caminho do Eterno... Obrigada, Santa Imagem da minha infância! Perfumaste a minha meninice, povoaste a minha vida de Sonho, cobriste a minha alma de carícias e deste-me um Reino.

Page 2: Recordando

Todas as crianças têm um Reino? Diz-me: A princesa da tua história ficará eternamente retida na Terra? Quando completas a tua história, Avozinha? Talvez daqui a muitos anos, quando tal como tu, curvada sobre um rosto de criança, uma boquita rosada, me implore: «Conta-me uma história, Avozinha!...»

Maria Helena Amaro

In, «Maria Mãe», 1973, p. 176-177. Data da conclusão da edição no blogue – 22 dezembro de 2014

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