Recordacoes Do Escrivao Isaias Caminha

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1 Recordações do escrivão Isaías Caminha (Lima Barreto) 1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na ci- dade do Rio de Janeiro aos 13 de maio de 1881. Filho de tipógrafo e de professora primária, Lima Barreto levou uma vida humilde. Perdeu a mãe aos sete anos, mas graças à proteção do visconde de Ouro Preto, padrinho de Lima Barreto, o rapaz conseguiu com- pletar o curso secundário e matricular-se, em 1897, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Sentindo-se discriminado por ser mulato e po- bre, Lima Barreto deixou a faculdade em 1903. Foi trabalhar como amanuense na Secretaria de Guerra, pois precisava sustentar o pai, a irmã e um irmão mais novo. Na mesma época, colaborou na impren- sa, no Correio da Manhã, mas a sua carreira jorna- lística sofreu diversas formas de perseguição e de discriminação. Como escritor, encontrou uma série de dificulda- des para publicar seus livros. A publicação de Recor- dações do escrivão Isaías Caminha (1909) só foi possível graças a uma editora portuguesa. Assim mesmo, o livro foi recebido com indiferença pelo público e pela crítica. Em 1911, publicou o romance Triste fim de Policar- po Quaresma em folhetins no Jornal do Commercio. A luta permanente de Lima Barreto contra o pre- conceito e sua revolta contra as injustiças sociais aca- baram levando-o ao alcoolismo. Até aí, levara uma vida sem projeção e sem qualquer esperança. Era menosprezado pelos grandes da literatura e do jor- nalismo da época. Entregou-se a uma vida de margina- lizado; foi internado duas vezes no Hospício Nacional para tratamento de alcoolismo, em 1914 e 1919. Em 1915, surgiu a primeira edição de Triste fim de Policarpo Quaresma, que foi recebida com sucesso de crítica, sendo Lima Barreto visto como um novo Machado de Assis. Ainda assim, a euforia inicial passou logo e não tirou o escritor das dificuldades financei- ras e de um certo anonimato perante o público. No dia 1º de novembro de 1922, faleceu de gripe torácica e de colapso cardíaco. OBRA Romances: Recordações do escrivão Isaías Ca- minha (1909); Numa e Ninfa (1915); Triste fim de Policarpo Quaresma (1915); Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919); Clara dos Anjos (1923); O cemitério dos vivos (1953). Sátira: Os bruzundangas (1922); Coisas do reino do Jambom (1953). Contos: Histórias e sonhos (1920); Outras histó- rias e contos argelinos (1952); A nova Califórnia (1982). Crônicas: Feiras e mafuás (1953); Marginália (1953). 2. INTRODUÇÃO Recordações do escrivão Isaías Caminha foi pu- blicado em 1909, em Portugal; antes saiu de forma incompleta em capítulos na revista Floreal. Não che- gou a fazer sucesso por causa de certo estranhamento inicial. Seu caráter aparentemente autobiográfico fez com que boa parte da crítica desprezasse o romance. Entretanto, as coincidências biográficas entre o pro- tagonista e o autor não diminuem em nada a qualida- de geral da obra, ao contrário, reforçam o caráter de realidade e pungência do romance. O espaço principal é o Rio de Janeiro do início do século XX. A intenção crítica é evidente, porque Lima Barreto procura desnudar a hipocrisia burguesa e a imprensa. O romance flagra o preconceito racial e a mediocridade no jornalismo carioca. Em estilo mar- cante, com uma linguagem que se aproxima do colo- quialismo, sem, entretanto, tornar-se banal ou corriqueira, o escritor carioca denuncia o jornalismo medíocre e carreirista que o impediu de ascender nessa carreira por méritos enquanto permitiu que jornalis- tas e escritores sem valores autênticos tivessem su- cesso. Em vários momentos, o protagonista Isaías Ca- minha assume o tom panfletário ao defender um jor- nalismo mais ético e menos voltado ao sucesso

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Recordações do escrivãoIsaías Caminha(Lima Barreto)

1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na ci-dade do Rio de Janeiro aos 13 de maio de 1881. Filhode tipógrafo e de professora primária, Lima Barretolevou uma vida humilde. Perdeu a mãe aos sete anos,mas graças à proteção do visconde de Ouro Preto,padrinho de Lima Barreto, o rapaz conseguiu com-pletar o curso secundário e matricular-se, em 1897,na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

Sentindo-se discriminado por ser mulato e po-bre, Lima Barreto deixou a faculdade em 1903. Foitrabalhar como amanuense na Secretaria de Guerra,pois precisava sustentar o pai, a irmã e um irmãomais novo. Na mesma época, colaborou na impren-sa, no Correio da Manhã, mas a sua carreira jorna-lística sofreu diversas formas de perseguição e dediscriminação.

Como escritor, encontrou uma série de dificulda-des para publicar seus livros. A publicação de Recor-dações do escrivão Isaías Caminha (1909) só foipossível graças a uma editora portuguesa. Assimmesmo, o livro foi recebido com indiferença pelopúblico e pela crítica.

Em 1911, publicou o romance Triste fim de Policar-po Quaresma em folhetins no Jornal do Commercio.

A luta permanente de Lima Barreto contra o pre-conceito e sua revolta contra as injustiças sociais aca-baram levando-o ao alcoolismo. Até aí, levara umavida sem projeção e sem qualquer esperança. Eramenosprezado pelos grandes da literatura e do jor-nalismo da época. Entregou-se a uma vida de margina-lizado; foi internado duas vezes no Hospício Nacionalpara tratamento de alcoolismo, em 1914 e 1919.

Em 1915, surgiu a primeira edição de Triste fimde Policarpo Quaresma, que foi recebida com sucessode crítica, sendo Lima Barreto visto como um novoMachado de Assis. Ainda assim, a euforia inicial passoulogo e não tirou o escritor das dificuldades financei-ras e de um certo anonimato perante o público.

No dia 1º de novembro de 1922, faleceu de gripetorácica e de colapso cardíaco.

OBRARomances: Recordações do escrivão Isaías Ca-

minha (1909); Numa e Ninfa (1915); Triste fim dePolicarpo Quaresma (1915); Vida e morte de M. J.Gonzaga de Sá (1919); Clara dos Anjos (1923);O cemitério dos vivos (1953).

Sátira: Os bruzundangas (1922); Coisas do reinodo Jambom (1953).

Contos: Histórias e sonhos (1920); Outras histó-rias e contos argelinos (1952); A nova Califórnia(1982).

Crônicas: Feiras e mafuás (1953); Marginália(1953).

2. INTRODUÇÃO

Recordações do escrivão Isaías Caminha foi pu-blicado em 1909, em Portugal; antes saiu de formaincompleta em capítulos na revista Floreal. Não che-gou a fazer sucesso por causa de certo estranhamentoinicial. Seu caráter aparentemente autobiográfico fezcom que boa parte da crítica desprezasse o romance.Entretanto, as coincidências biográficas entre o pro-tagonista e o autor não diminuem em nada a qualida-de geral da obra, ao contrário, reforçam o caráter derealidade e pungência do romance.

O espaço principal é o Rio de Janeiro do início doséculo XX. A intenção crítica é evidente, porque LimaBarreto procura desnudar a hipocrisia burguesa e aimprensa. O romance flagra o preconceito racial ea mediocridade no jornalismo carioca. Em estilo mar-cante, com uma linguagem que se aproxima do colo-quialismo, sem, entretanto, tornar-se banal oucorriqueira, o escritor carioca denuncia o jornalismomedíocre e carreirista que o impediu de ascender nessacarreira por méritos enquanto permitiu que jornalis-tas e escritores sem valores autênticos tivessem su-cesso.

Em vários momentos, o protagonista Isaías Ca-minha assume o tom panfletário ao defender um jor-nalismo mais ético e menos voltado ao sucesso

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econômico através das vendas. Um jornalismo quese baseasse não em figuras meramente decorativas emarcadas quase todas pela ignorância, despreparocultural e falta de informação, que atendia a uma va-lorização apenas da aparência pseudo-intelectual queagradava à superficialidade cultural do público leitorda época.

O escritor não se esqueceu também dos absurdospolíticos que tomavam conta do Brasil da velha repú-blica “café-com-leite”, na qual pouco ou nada os po-líticos contribuíam para melhorar a vida geral dapopulação escravizada pela miséria e pela explora-ção. O compadrismo político, os conchavos interio-ranos, em que coronéis mandavam e desmandavamem deputados eleitos graças aos seus eleitores de “ca-bresto” são denunciados, ainda que menos intensa-mente do que se deseja.

Tudo isso faz de Recordações do escrivão IsaíasCaminha uma obra atual e atuante no que se refere aoretrato da realidade brasileira de ontem e de hoje eserve para destacar a força da narrativa de Lima Bar-reto, sem dúvida, um dos maiores prosadores que aliteratura brasileira foi capaz de produzir.

3. ANÁLISE DO ENREDO

CAPÍTULO IA tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível

mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modocurioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, queera fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na mi-nha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade desuas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colé-gio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceuquando Napoleão ganhou a Batalha de Marengo? Arrega-lei os olhos e perguntei: Quem era Napoleão? Um grandehomem, um grande general… E não disse mais nada. En-costou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-mesem entrar na significação de suas palavras; contudo, aentonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eterna-mente. Um grande homem!…

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha.São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 29.

Influenciado pela figura do pai, Isaías passou avida cultuando a sabedoria. Acreditava que isso tor-naria os homens sagrados, “deificados”1. Por issodedicou-se desde o curso primário aos estudos. Bri-lhou. Com esse intuito, esperava Isaías uma glóriafutura. Relaxava no vestuário, o que obrigava a mãe arepreendê-lo. Fugia dos brinquedos e de grandes gru-pos. Sentiu ciúmes quando a professora, d. Ester, se

casou, tamanho o zelo com que se dedicou aos estu-dos para corresponder às expectativas dela. Quandosaiu da escola, recebeu dela um livro — Poder davontade —, que foi seu livro de cabeceira.

Passou mais dois anos em sua cidade natal depois deconcluir com louvor o Liceu. Todas as manhãs chegava aouvir de seu espírito que deveria ir para o Rio de Janeiro.

“Então, durante horas, através das minhas ocupa-ções quotidianas, punha-me a medir as dificuldades,a considerar que o Rio era uma cidade grande, cheiade riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu não tinhaconhecimentos, relações, protetores que me pudes-sem valer…”2 (p. 30)

Depois de ler numa sexta-feira que o Felício, seuantigo condiscípulo, “tão burro”, se formara em Far-mácia, com estrondosa manifestação dos colegas,deixou de lado a covardia e decidiu que era hora de irpara o Rio. No dia seguinte, ao passar por um des-campado e olhar o céu, viu um bando de patos negrospassar por ele e formar um V. “Era a inicial de ‘Vai’.Tomei isso como sinal animador, como bom augúriodo meu propósito audacioso. No domingo, de ma-nhã, disse de um só jato à minha mãe:

— Amanhã, mamãe, vou para o Rio.” (p. 31)A mãe nada respondeu, apenas olhou-o enigmati-

camente, sem aprovar nem reprovar. A tia mandou-oaconselhar-se com o Valentim. O tio entrou em segui-da. Depois de ouvir que Isaías iria no domingo para oRio, Valentim saiu e foi aos fundos da casa. Isaías oacompanhou. O tio, depois de um tempo, concluiu queo sobrinho fazia bem e convidou-o a ir ao coronel parapedir-lhe que o recomendasse ao dr. Castro, deputado.

O coronel escreveu uma carta ao deputado, porquem Valentim havia trabalhado nas eleições, pedin-do que arranjasse um emprego para o rapaz.

A minha situação no Rio estava garantida. Obteria umemprego. Um dia pelos outros iria às aulas, e todo o fim deano, durante seis, faria os exames, ao fim dos quais seriadoutor!

Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meunascimento humilde, amaciaria o suplício premente,cruciante e onímodo de minha cor… […]

Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais,quantos privilégios esse título dava! Pus-me a considerarque isso deveria ser antigo… Newton, César, Platão eMiguel Ângelo deviam ter sido doutores!

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 34-35.

Resolveu que mandaria buscar a mãe quando ti-vesse um bom emprego e uma casa. A mãe pediu queestudasse e não se importasse com ela.

No dia seguinte partiu. Aos despedir-se da mãe,ela pediu que não se mostrasse muito, “porque nós…”

1 Divinizados.2 A passagem sugere que o protecionismo e o conhecimento de pessoas importantes eram a maneira encontrada para ascender na vida.

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Dois aspectos devem ser ressaltados. O primeiroé que a única forma de arranjar emprego era atravésde indicação, de apadrinhamento, no caso, de umdeputado. O outro é a frase reticente da mãe, lem-brando que além de pobre Isaías era negro. Não“aparecer muito” significa que, passando desperce-bido, o protagonista não seria alvo de humilhações.

CAPÍTULO IIDurante a viagem de trem, Isaías sentiu fome e,

numa das paradas, dirigiu-se ao pequeno balcão ondehavia café e bolos. Serviu-se e deu uma pequena notapara pagar. Como demorassem a trazer o troco, recla-mou. O caixeiro ficou indignado e perguntou por quea pressa, porque ali não se roubava. Um rapazola alou-rado reclamou o troco, que lhe foi prazenteiramenteentregue. O contraste feriu Isaías. Os olhares dos pre-sentes fizeram crescer a sua indignação. Curtiu du-rante segundos uma raiva muda que, por pouco, nãorebentou em pranto. Tentou decifrar a razão da dife-rença dos dois tratamentos, mas não atinou. Olhou aprópria roupa e a sua pessoa. Não era hediondo nemrepugnante.

Depois de chegarem à estação terminal, passarampara uma barca. O espetáculo mudou o ânimo de Isaías.

Evolava-se3 do ambiente um perfume, uma poesia, al-guma coisa de unificador, a abraçar o mar, as casas, asmontanhas e o céu; pareciam erguidos por um só pensa-mento, afastados e aproximados por uma inteligência coor-denadora que calculasse a divisão dos planos, abrisse vales,recortasse curvas, a fim de agitar viva e harmoniosamenteaquele amontoado de coisas diferentes… O aconchego, atepidez4 da hora, a solenidade do lugar, o crenulado5 dasmontanhas engastadas no céu côncavo, deram-me impres-sões várias, fantásticas, discordantes e fugidias…6

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 39.

Era noite quando atracaram. A praça era feia, oque ofendeu Isaías como se levasse uma bofetada.Não conseguia ver a cidade bela e majestosa que lhehaviam descrito. A rua do Ouvidor diminuiu um pou-co a má impressão da cidade. Haviam recomendadoo Hotel Jenikalé, na praça da República. Jantou cala-do, desconfiado. Um dos presentes puxou conversa:

— Creio que viemos juntos…— Não me recorda, fiz eu polidamente.— Perfeitamente. O senhor dormia quando embarquei.— Pode ser…Viajei quase sempre assim… Alonguei a

resposta a muito custo e a medo; mas, arrependido, co-

mecei a pesá-la bem e vi que por ela o meu interlocutornão me poderia roubar o fraco pecúlio7.

— Vim a negócios… O senhor sabe, continuou o des-conhecido; o senhor sabe: quem quer vai, quem não quermanda… Se me limito e encomendar a farinha — é umadesgraça! Chega azeda e de péssima qualidade — entãoé um inferno! Os fregueses reclamam; a pretexto disso,não pagam. Para evitar essas e outras venho de dois emdois meses comprá-la, eu mesmo… Veja o senhor só — éuma despesa, mas que se há de fazer?!…

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 40-41.

O interlocutor era dono de uma padaria em Itapo-ranga.

O senhor Laje da Silva era baixo, de membros fortes,usava um bigode farto. Parecia ter se entregado na moci-dade a trabalhos grosseiros, mas atualmente parecia go-zar de uma vida mais fácil e leve. Parecia um velhaco8

mercadejante9. Convidou Isaías para dar um passeio paraconhecer a cidade. Tratava Isaías por doutor.

O capítulo destaca o primeiro caso de discrimi-nação racial vivido pelo protagonista, que não con-segue entender por que foi maltratado e o rapaz decabelos claros atendido prontamente. Isaías vê-seenvolvido por um desconhecido e aceita passearpela cidade com ele porque não resiste ao fato deser chamado de doutor.

CAPÍTULO IIIPor meio do padeiro, Isaías ficou conhecendo, no

bar do teatro, o jovem jornalista Raul Gusmão, queos tratou com desdém e superioridade. Isaías sentiu-se esmagado porque fizera dele o retrato de um gran-de literato, mas com uma voz horrível. Depois da saídado jornalista, soube que escrevia no Aurora. O padei-ro admirava e respeitava os homens dos jornais. “To-dos para ele eram sagrados, seres superiores ounecessários aos seus negócios, pois viviam naquelaoficina de ciclopes onde se forjavam os temerososraios capazes de ferir deuses e mortais, e os escudoscapazes também de proteger as traficâncias dos mor-tais e dos deuses.” (p. 44) Laje ficou satisfeito que oOliveira, de O Globo, viesse sentar-se à mesa.

Na manhã seguinte, Isaías percebeu que o célebrejornalista Raul Gusmão não passava de suíno e desímio. O Oliveira era parvo e besta. Ambos fingiamsuperioridade, usavam gestos fabricados e frases deefeito. Não conseguiu entender como um padeiro

3 Exalava.4 Um tanto quente, morno.5 Com fendas insignificantes.6 O cenário percebido pelos sentidos do protagonista dá um tom lírico ao romance.7 Soma economizada e reservada em dinheiro para uma eventualidade futura.8 Que propositadamente engana, ludibria; enganador; que age mal, trapaceia; traiçoeiro, ordinário, patife.9 Mercador.

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de Itaporanga cultivasse e mantivesse amizades tãofora do seu círculo. No teatro e na rua, cumprimen-tou mais de uma dezena de jornalistas e apontou umadúzia de outros.

[…] Conhecia minuciosamente toda a vida jornalística.Informava-me sobre os nomes dos redatores, dos proprie-tários, dos colaboradores; sabia a tiragem de cada um dosgrandes jornais, como a de cada semanário de caricatu-ras… Havia nisso uma mania pueril ou o que era? Não semanifestava homem de leituras, político ou dado às letras;não lhe senti a mais elementar preocupação intelectual; todoele me pareceu convergindo para os negócios, para as coi-sas de dinheiro, especulações… Por isso, a sua jovialidadee sociabilidade não impediram que, aqui e ali, repontassemem mim alguns propósitos sobre a sua honestidade.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 45-46.

As suspeitas de Isaías pareceram confirmar-se emcerta ocasião quando Laje, ao pagar uma conta, exa-minou com muito cuidado de entendido o papel, aestampa e a numeração das notas do troco. Ao notarque Isaías reparava, pediu-lhe que visse de que es-tampa era aquela nota porque não podia ler direito.Depois que separou a nota certa, arrumou-as no maço,que guardou no fundo da algibeira. As desconfiançasde Isaías aumentaram.

Isaías saiu às onze horas, mas não foi logo à Câ-mara. Estranhou o fato de um senhor de cartola, fra-que e calças brancas ter pago a passagem de umajovem senhora, sem que com ela trocasse sequer umolhar. O homem do lado de Isaías segredou-lhe queera uma pouca vergonha um senador bolinar10 e queaquilo se repetia todos os dias. Viu que o tal senadore a jovem senhora saltaram no mesmo ponto, comose fossem desconhecidos, mas tomaram uma mesmarua transversal.

Quando saltou, o homem disse-lhe que não semetesse na vida de seu Carvalho, que era um graúdoe podia ter lá “seus arranjos” sem dar satisfação aninguém. Achou que Isaías era repórter do jornalecoO Azeite. O homem era o capanga Chico Nove De-dos, que se desculpou e ofereceu a casa a Isaías, quese dirigia para a Câmara dos deputados. O porteirodisse-lhe que era melhor procurar o dr. Castro na suaresidência e deu-lhe o endereço. Isaías assistiu à ses-são para encher o tempo e travar conhecimento como misterioso trabalho de fazer leis para um país.

Embora não tendo mais a velha crença, de que elesfossem inspirados pelos deuses, o meu respeito baseava-se em motivos mais modernos, concordes com o feitio depensar do nosso tempo. Imaginava-os com uma

tresdobrada força de sentidos e inteligência, podendo pre-ver, adivinhar, sentindo antes de expressos os desejos, asnecessidades de cada um dos milhões de entes que sofriame viviam, que pensavam e amavam pela vasta extensãoda pátria. Foi com grande surpresa que não senti naqueledr. Castro, quando certa vez estive junto dele, nada quedenunciasse tão poderosas faculdades. Vi-o durante umahora olhar tudo sem interesse e só houve um movimentovivo e próprio, profundo e diferencial, na sua pessoa, quan-do passou por perto uma fornida11 rapariga de grandesancas, ofuscante de sensualidade. Nada nele manifestavaque tivesse um forte poder de pensar e uma grande forçade imaginar, capazes de analisar as condições de vida degentes que viviam sob céus tão diferentes e de resumirdepois o que era preciso para sua felicidade e para o seubem-estar em leis bastante gerais, para satisfazer a um tem-po ao jagunço e ao seringueiro, ao camarada e ao vaqueano,ao elegante da rua do Ouvidor e ao semibugre dos confinsde Mato Grosso. Onde estava nele o poder de observaçãoe a simpatia necessária para entrar no mistério daquelasrudes12 almas que o cercavam e o elegiam? Nada transpi-rava na sua preguiçosa e baça personalidade.13

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 48.

Quando ia sair, Isaías encontrou-se com Laje daSilva. Saíram. Distraiu-se com o cenário poeirentodas ruas. De um café, Laje chamou-o. Estava acom-panhando Gregoróvitch, jornalista, a quem Isaías foiapresentado. Disse a Isaías que escrevia em dez lín-guas. Logo estaria escrevendo em O Globo.

O protagonista decepciona-se com a algazarra,a confusão e a indiferença dos políticos brasileirosde quem era função legislar para a melhoria da si-tuação das pessoas. A crítica política é uma dasevidências mais importantes do capítulo. Os políti-cos possuem seus casos amorosos e pouco ou nadase dedicam às suas funções legislativas. Outra des-confiança de Isaías recai sobre a figura de um jor-nalista estrangeiro, simpático, mas com históriasmirabolantes e uma visão pouco decente sobre amoralidade e a honestidade no país.

CAPÍTULO IVSe os senhores algum dia quiserem encontrar um re-

presentante da grande nação brasileira, não o procuremnunca na sua residência. Seja a hora que for, de manhã, aoamanhecer mesmo, à hora de jantar, quando quiserem, en-fim, se o procurarem, o criado há de dizer-lhes secamente:Não está. Falo-lhes de experiência própria, porque, duranteas inúmeras vezes, a toda a hora do dia, em que fui aoHotel Términus procurar o deputado Castro, apalpando acarta do coronel, tive o desprazer de ouvir estas duas pala-vras do porteiro indiferente. Nas últimas vezes, antes mes-mo de acabar a pergunta, já o homenzinho respondiainvariavelmente da mesma desesperadora forma negativa.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 55.

10 Apalpar ou encostar-se a uma outra pessoa com fins libidinosos.11 Forte, robusta, carnuda.12 Rústicas.13 A passagem é de uma agradável ironia à política brasileira da época, mas não perdeu seu caráter de atualidade.

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O dinheiro de Isaías, em breve, pago o hotel, fica-ria reduzido a alguns mil-réis. Ele não conhecia nin-guém, não tinha a mínima relação que o pudessesocorrer. Seu entusiasmo ia-se reduzindo. A crençano doutor Castro reduzia. Não conseguia encontrá-lo nohotel. Suas únicas amigas eram aquelas notas quegastava no café, no bonde. O gerente do hotel pare-ceu farejar as preocupações de Isaías e contava ane-dotas que indicavam suas boas relações com asautoridades. Isaías perdia de vista a realidade. Espe-rava encontrar fortunas perdidas, imaginava impossí-veis combinações de acontecimentos que ofavorecessem. Chegou a supor que sua generosidadepodia trazer o favor de gênios benfazejos14. Olhava den-tro de uma caixa de fósforos velha se não havia dentrouma nota de quinhentos mil-réis.

Uma noite encontrou uma mulher andrajosa e pa-rou para ouvir suas misérias, a fome dos filhos, mo-léstias e seu choro. Deu-lhe uma nota graúdaacreditando em histórias de fadas e gnomos, de gêniosmisteriosos que se disfarçam para experimentar oscorações dos mortais. Esperou pela recompensa, masnada aconteceu. Ia ao hotel do deputado, acreditandoque pudesse ser acolhido pela bondade, a piedade e asimpatia pelo seu estado e pelos seus desejos. Imagi-nava-se empregado num lugar modesto, mas com ren-da certa, e dentro de um mês indo à faculdade e até aformatura.

Laje da Silva andava sempre fora. O velho coro-nel Figueira reclamava das mudanças na cidade paraonde não vinha desde 1882.

Isaías, cada vez mais triste, lembra-se da infância,do pai. Do tratamento distante que lhe era dispensado.Sua mãe trabalhava na casa de seu pai, que era padre.

Pareceu-me que o seu encontro fora rápido, o bastan-te para me dar nascimento. Uma crise violenta do sexofizera esquecer os votos de seu sacerdócio, vencera a suavontade, mas, passada ela, viera, com o arrependimentoda quebra do seu voto, a dor inqualificável de não poderconfessar a sua paternidade.

Ele amou-me sempre, talvez me quisesse mais por cau-sa das condições que envolviam o meu nascimento. Empúblico, olhava-me de soslaio15, media as carícias, esforça-va-se por fazê-las banais; em casa, porém, quando não haviatestemunhas, beijava-me e afagava-me com transporte. Eletemia o murmúrio, temia dar-lhe força com os atos ou pala-vras públicas; entretanto toda a redondeza quase seria ca-paz de atestar em papel timbrado a minha filiação…

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 59.

O coronel Figueira e o senhor Laje da Silva con-versavam, quando Isaías desceu. O coronel quis sa-

ber a opinião de Isaías, se havia ladroeira na loteria.Isaías respondeu que podia, mas sem qualquer con-vicção na resposta. Laje argumentou que não haviacomo. Há vinte dias, o coronel jogava na borboleta eela não saía. Isaías retirou-se para dormir como eraseu costume. Resolveu que na manhã seguinte fica-ria na porta do hotel à espera do deputado.

Na manhã seguinte, conseguiu com um rapaz, naporta do hotel, o endereço onde poderia encontrar odeputado: rua dos Irmãos Araújos, 27, Vila Isabel.Descobriu que o deputado tinha um arranjo e nãoqueria que ninguém soubesse. Isaías foi até a casa.Bateu. Perguntaram quem era. Ele respondeu “soueu”. Mandaram entrar e subir. Isaías entrou e subiu.Era uma rapariga moça, entre vinte e cinco ou trintaanos, de grandes quadris e seios altos. Ela explicouque o deputado ainda não se levantara, mas não sedemoraria. Isaías sentia-se envergonhado e tímidodiante das mulheres. Ele conhecia a esposa legítimado Castro. Era quase uma velha.

Depois de meia hora, o Castro veio. Isaías entre-gou-lhe a carta. Castro alegou dificuldades para ar-ranjar alguma coisa. Isaías disse que não queria grandecoisa… Cem mil-réis por mês bastavam. O deputadocontinuou criticando a mania de todos quererem serdoutores. Quis saber por que não fazia um concurso.Isaías explicou que precisava de alguma coisa ime-diatamente. Percebeu que a carta do coronel poucolhe valia.

Depois de comprar um jornal, no bonde, Isaíasdescobriu que o deputado partiria para São Paulo edemoraria por lá. Chamou-o de patife. No jornal en-controu também elogios ao seu amigo Laje.

Um sujeito entrou no bonde, deu-me um grandesafanão16, atirando-me o jornal ao colo, e não se descul-pou. Esse incidente fez-me voltar de novo aos meus pensa-mentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento deopressão da sociedade inteira… Até hoje não me esquecidesse episódio insignificante que veio reacender na minhaalma o desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado,esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, a servirde joguete, de irrisão17 a esses poderosos todos por aí. […]

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 67.

O capítulo mostra a indiferença dos políticos dian-te do desespero dos seus eleitores. Há uma críticaao comportamento imoral daqueles que deveriamservir de exemplo pela posição que ocupam na so-ciedade. Ainda uma vez, o protagonista percebe adiscriminação ao ser esbarrado sem obter pedido dedesculpas.

14 Generosos.15 Viés, esguelha, obliqüidade; de maneira furtiva.16 Esbarro forte e brusco; empurrão.17 Aquele que é alvo de risos desdenhosos, motejos e zombarias.

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CAPÍTULO VGregoróvitch esperava Isaías e convidou-o para al-

moçar. O orgulho obrigava Isaías a recusar. Daquelavez aceitou.

[…] Estava deprimido, desalentado; a minha vontade erafrouxa; os meus sentimentos tinham-se enfraquecido duranteaquela longa viagem de bonde a pensar na vida, a curtir ódios,a arquitetar vinganças e a farejar a miséria próxima. Fui dese-joso de encontrar uma afeição, uma simpatia, naquele estran-geiro, um aventureiro, um ente cujos precedentes não conhecia,cuja lhaneza de trato, comunicabilidade especial e generosi-dade, porém, me atraíam e solicitavam fortemente. […]

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 68-69.

O almoço foi cheio de camaradagem, confidênciase troca de idéias. Cada um contou a sua vida. Eraromeno. Pai russo e mãe grega. Estudou no Cairo,correu a Europa, a Ásia e América. Estava com 45anos e sentia-se sem pátria.

Era capaz de aprender todas as línguas, escrevê-las,falá-las em três ou quatro meses. Em cada país demora-va-se pouco, cinco ou seis anos; procurava os jornais, de-fendia esta ou aquela questão, ganhava dinheiro e vivia.Contava-me isso bebendo e à proporção que bebia vinhosfranceses os seus olhos de conta e azuis com reflexosmetálicos ficavam mais brilhantes e mais penetrantes. Fa-lou-me em poetas, em filósofos; traçou, a grandes golpes,o destino da humanidade, provocou-me grandes econsoladoras visões patrióticas, e só vim a deixá-lo sau-doso pelas duas horas, quando me dirigi ao hotel. Ali rece-bi a intimação do delegado e corri à delegaciaobedientemente, depois desse delicioso almoço que qua-se me fez esquecer os dolorosos momentos da manhã.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 69.

Isaías atrasara-se para a convocação às onze horasporque chegara tarde ao hotel. Trocou as necessárias ex-plicações com o inspetor. Sentou-se entre outras pessoassem reparar em suas fisionomias. Não sabia o que vierafazer naquela delegacia. O copeiro falou por alto de umroubo que houvera no hotel na noite última. Furtaram aocoronel Figueira cerca de seis contos e objetos de valor.

Durante o almoço, Gregoróvitch referira-se ao Lajechamando-o de “águia, homem de presa, super-homeme por mais que eu quisesse tirar informações sobre opadeiro, ele se limitou sempre a ditos sibilinos que maisme aumentaram as velhas suspeitas”. (p. 70)

Isaías viu entrar o senador que vira no bonde emcompanhia da mulher. Viera à delegacia para soltar o“Nove-dedos”, que teria feito um roubo no largo deSão Francisco. Foi informado de que não era lá, masna nona delegacia. Às quatro horas chegou um indi-víduo barrigudo, de pernas curtas, com um grilhãode ouro com uma imensa medalha cravejada de bri-lhantes atravessada no peito. Comunicou ao inspetorque iria sair. Era o escrivão Viveiros.

— E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal “mulatinho”?Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi

tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saírado colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consi-deração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibi-lidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadezaextrema que se juntava ao meu orgulho de inteligente e es-tudioso, para me dar não sei que exaltada representaçãode mim mesmo, espécie de homem diferente do que era narealidade, ente superior e digno a quem um epíteto daque-les feria como uma bofetada. […] O que mais me feriu, foique ele partisse de um funcionário, de um representante dogoverno, da administração que devia ter tão perfeitamente,como eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao Brasile como tal merecia dele um tratamento respeitoso.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 72.

As lágrimas de Isaías secaram nos olhos antes quefosse apresentado ao escrivão. O delegado demoroumuito ainda. Era noite quando foi levado à sua presença.

Ao lado, em uma mesa mais baixa, lá estava o capitãoViveiros, muito solene, com a pena atrás da orelha, o seuolhar cúpido e a sua papada farta. O delegado pareceu-meum medíocre bacharel, uma vulgaridade com desejos dechegar a altas posições; no entanto, havia na sua fisionomiauma assustadora irradiação de poder e de força.

— Qual é a sua profissão?— Estudante.— Estudante?!— Sim, senhor, estudante, repeti com firmeza.— Qual estudante, qual nada!A sua surpresa deixara-me atônito. Que havia nisso de

extraordinário, de impossível? Se havia tanta gente que oera, por que não o podia ser eu? Donde lhe vinha a admi-ração duvidosa? Quis-lhe dar uma resposta mas as inter-rogações a mim mesmo me enleavam. Ele, por sua vez,tomou o meu embaraço como prova de que mentia.

Com ar escarninho perguntou:— Então, você é estudante?Dessa vez tinha-o compreendido, cheio de ódio, cheio

de um santo ódio que nunca mais vi chegar em mim. Eramais uma variante daquelas poucas humilhações que eujá sofrera; era o sentimento geral da minha inferioridade,decretada a priori, que eu adivinhei na sua pergunta. Eafirmei então com a voz transtornada:

— Sou, sim, senhor!— Pois então diga-me de quem é este verso: — “Esta-

va mudo e só na rocha de granito”?— Não sei, não senhor; não leio versos habitualmente…— Mas um estudante sempre os conhece, fez ele com

falsa bonomia. É de admirar que o senhor não conheça…Sabe de quem é este outro: — “É o triunfo imortal da carnee da beleza”?

— Não sei absolutamente, e é inútil perguntar-mo, poisnunca li poetas.

[…]BARRETO, Lima. Op. cit. p, 75-76.

Isaías começava a exaltar-se também, a sentir-seofendido injustamente, agredido sem causa e semmotivo; conteve-se. Ficou indignado com a acusaçãode que era um gatuno18. Revoltou-se contra todos ossofrimentos que vinha suportando, injustiças, sofri-mentos, humilhações, misérias. Chamou o delegadode imbecil. O delegado mandou metê-lo no xadrez.

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Ironicamente, Isaías saíra do almoço imbuído desentimentos patrióticos e viu-se envolvido como sus-peito de um crime que jamais teria capacidade decometer. Sua educação e seus sonhos não permiti-riam que cometesse um ato imoral ou desonesto.Foi intimado apenas por causa de sua cor. O pre-conceito ficou claro desde a primeira frase do escri-vão. Isaías conhecerá todo tipo de humilhação porser mulato.

CAPÍTULO VIIsaías sente um mal-estar e acha que é por causa

do livro que está escrevendo. Ao rever recordaçõesde sofrimentos, parecem voltar as sensações doloro-sas já semimortas. “Talvez mesmo seja angústia deescritor, porque vivo cheio de dúvidas, e hesito de diapara dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valorliterário que me preocupa; é a sua utilidade para ofim que almejo.” (p. 78)

Isaías detesta literatos, a quem ele considera umaespécie de animal. Quando esteve na redação deO Globo, observou o bastante para não os amar, nemos imitar. São limitados de idéias, cheios de fórmu-las, de receitas, só capazes de colher fatos detalhadose impotentes para generalizar, possuem fetichismo deestilo e são guiados por conceitos e um pueril e errô-neo critério de beleza.19

Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possaser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meussofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com alinguagem acessível a ele. É esse o meu propósito, o meuúnico propósito. Não nego que para isso tenha procuradomodelos e normas. Procurei-os, confesso; e, agora mes-mo, ao alcance das mãos, tenho os autores que mais amo.Estão ali O Crime e o Castigo de Dostoievski, um volumedos contos de Voltaire, A Guerra e a Paz de Tolstoi, o Rougeet Noir de Stendhal, a Cousine Bette de Balzac, a Educationsentimentale de Flaubert, o Antéchrist de Renan, o Eça;na estante, sob as minhas vistas, tenho o Taine, o Bouglé,o Ribot e outros autores de literatura propriamente, ou não.Confesso que os leio, que os estudo, que procuro desco-brir nos grandes romancistas o segredo de fazer.20

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 78.

Sente que não pode abandonar sua narrativa. A pas-sagem do xadrez despertou os pensamentos amargos.

Isaías esteve preso por mais de três horas, até serlevado de novo à presença do delegado. Estava maisbrando e disposto à simpatia. Tratou-o por “menino”e “meu filho”. Pediu que não fizesse mais aquilo. Nocomeço, Isaías manteve o mesmo humor agressivo.

Respondia secamente às perguntas, mas acabou ren-dendo-se à sua brandura.

Isaías fala que seu único conhecido é o jornalistaIvã Gregoróvitch Rostóloff. O delegado perguntou-lhe por que não disse logo. Isaías não sabia que oconhecido era importante. O delegado afirma que umjornalista é sempre um homem importante, respeita-do. Manda Isaías ir embora e aconselha-o a sair da-quele hotel onde sempre há furtos. Quando o rapazse dispôs a ir embora, pediu que não dissesse nada aodr. Rostóloff.

Isaías pressentiu que o hoteleiro havia insinuadoao delegado que ele podia ser o autor do furto. Pensou“em insultá-lo, dar-lhe pancada; mas seria recomeçaras humilhações da delegacia” (p. 81). Resolveu quenada diria, esperaria que ele falasse. No hotel, ninguémdisse nada. E Isaías pensou em voltar para sua casa.

Como que percebia que estava proibido de viver e fos-se qual fosse o fim da minha vida os esforços haviam deser titânicos. Foi talvez esse adjetivo que me fez deliberarde outro modo. Passou-me pela memória a anedota mito-lógica que ele evoca. Representou-se-me a luta daquelesheróis com os deuses, a sua teimosia em escalar o céu, aenergia que puseram em tão insensata empresa… […]Abandonei a volta covarde para a casa materna e decidi-me a lutar, a bater-me para chegar — aonde? — não sabiabem; para chegar fosse como fosse. Trabalharia — em quê?em tudo. E, enquanto considerava a delicadeza das mi-nhas mãos e a fragilidade dos meus músculos, adormeciplacidamente, satisfeito comigo e com a minha coragem efirme na resolução de procurar no dia seguinte qualquerocupação, por mais humilde que ela fosse. […]21

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 81-82.

Isaías comprou um jornal e pôs-se a lê-lo no café.Escolheu um emprego que serviria até ele arranjar coisamelhor. Procurou o endereço do anúncio, mas foi re-cusado pelo português, que disse que não lhe servia.

Isaías percebeu que a recusa resultava de um tipode sentimento geral e revoltava-se contra isso. Sentiumesmo vontade de beber, mas isso era contra seushábitos. Entrou no café e bebeu uma xícara de café.Na muralha do cais, olhou o mar e sentiu-se hipnoti-zado. Parecia que o convidava a ir viver nele. Preci-sava sair do hotel, a esperança num emprego humildeesvaíra-se.

Na rua do Rosário, encontrou Agostinho Marques,seu antigo colega no Felício da Costa. Agostinho tra-balhava no escritório do dr. Leitão Fróis. Não se de-morou, mas fez Isaías prometer procurá-lo, porquetinha serviço para ele.

18 Ladrão.19 Lima Barreto escreve através de seu alterego Isaías uma crítica aguda sobre os escritores. Note-se o senso de superficialidade deconteúdo e estilo que atribui aos literatos. Ao contrário aliás do estilo do próprio escrito.20 A passagem é uma metalinguagem que exalta os romancistas que o próprio Lima Barreto sempre admirou.21 A passagem faz referência à luta dos titãs contra Júpiter. O esforço deles para escalar as montanhas e chegar a tomar o trono.

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Foi ao Passeio Público. Não reparou uma raparigade cor que se sentou ao lado dele. Considerou-a uminstante e continuou a ler o livro, indiferente à vizi-nha. A rapariga perguntou-lhe qualquer coisa. Elerespondeu sem se voltar.

[…] Subitamente, depois de fazer estalar um desprezí-vel muxoxo, disse-me ela à queima-roupa:

— Que tipo! Pensa mesmo que é doutor…Fechei o livro, levantei-me e, já afastado, ainda ouvi dela

alguns desaforos. Cheguei ao portão. Os bondes passa-vam, havia um grande movimento de carros e pedestres.Considerei a rua, as casas, as fisionomias dos transeuntes.Olhei uma, duas, mil vezes, os pobres e os ricos.

Eu estava só.BARRETO, Lima. Op. cit. p. 86.

O capítulo mostra críticas à polícia e o preconcei-to racial como motivador de suspeita de criminali-dade. A atualidade do romance pode sercomprovada nessa passagem, já que nada mudoudesde então.

CAPÍTULO VIIIsaías vendeu os livros para arranjar algum dinhei-

ro. Pagou o hotel. Pedira algum dinheiro a sua mãe.Ela mandou-lhe cinqüenta mil-réis. Isaías alugou umquarto.

Laje da Silva passou a tratar Isaías de outro modo.Jantava uns dias; em outros, almoçava unicamente;e houve muitos que nem uma coisa ou outra fez.Descobriu a Biblioteca Nacional. Uns quinze diasdepois de mudar-se para a casa de cômodos, bateramà porta. Um rapaz pediu para acender a vela dele nade Isaías. Aos poucos, tornou-se mais amigo de Abe-lardo Leiva, que era poeta e revolucionário. Traba-lhava como secretário no Centro de Resistência dosVarredores de Rua. Ganhava noventa mil-réis, gas-tava vinte e cinco no quarto e o que sobrava era maispara as coisas de toillette do que para a sua alimen-tação.

Uma noite, foi com Abelardo ao Parque Flumi-nense e encontrou o Agostinho Marques. Era o soli-citador do dr. Leitão Fróis, ganhava um conto e tantopor mês e pretendia formar-se em direito, precisandode Isaías para lhe explicar uns preparatórios.

Viram passar o Raul Gusmão, que foi visto porAbelardo e Isaías ao entrar numa hospedaria da ruada Alfândega com um fuzileiro naval.

Foi Leiva o meu iniciador no Rio de Janeiro. Deu-merelações, ensinou-me as maneiras, o calão da boêmia, le-vou-me aos lugares curiosos e consagrados. Com ele fuiao Apostolado Positivista ouvir o senhor Teixeira Mendes.Um grande matemático, disse-me; a primeira cabeça do

Brasil, uma inteligência enciclopédica, uma erudição se-gura, e, sobretudo, um caráter e um coração.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 92.

Isaías abandonara-se à miséria que a proteção deAgostinho Marques impedia que chegasse a ser de-clarada. Tornara-se professor e secretário do amigo.Agostinho não pagava o ordenado combinado. Agos-tinho era intelectualmente pobre e fisicamente pre-guiçoso. Acabou desistindo da lição e nunca pagavarealmente os quarenta mil-réis combinados.

Um dia, Agostinho partiu para um estado do Norte.Foi um período de fome e sofrimentos para Isaías. Leivanão retirava um tostão dos seus perfumes e das suas rou-pas. Isaías vendeu suas melhores roupas e tudo que tinhavalor. Quando acabou o que vender, passava dias inteirossem tomar café. Era salvo por alguém que o convidava atomar café ou a jantar. A carta que enviou para a mãe foirespondida pelo tio Valentim, que dizia atravessarem umagrande crise. A mãe de Isaías estava de cama, desengana-da. Isaías passou meses de sofrimento.

Encontrou-se com Gregoróvitch Rostóloff. Con-tou-lhe a vida. O jornalista convidou-o para passar, ànoitinha, na redação de O Globo.

Os sofrimentos do protagonista multiplicam-se numacidade estranha e com poucos conhecidos. Isaías pas-sa fome e miséria moral. Sua inteligência de nada lheserve. Sua única saída foi dar aulas e servir de secre-tário a um indivíduo cuja inteligência e capacidadeeram bem menores do que as dele. As dificuldadesde Isaías estão ligadas à sua cor. O preconceito eracomum naquela sociedade superficial e hipócrita.

CAPÍTULO VIIIEra uma sala pequena, mais comprida que larga, com

duas filas paralelas de minúsculas mesas, em que se sen-tavam os redatores e repórteres, escrevendo em mangasde camisa. Pairava no ar um forte cheiro de tabaco; osbicos de gás queimavam baixo e eram muitos.

O espaço era diminuto, acanhado, e bastava que umredator arrastasse um pouco a cadeira para esbarrar namesa de trás, do vizinho. Um tabique22 separava o gabi-nete do diretor, onde trabalhavam o secretário e o redator-chefe; era também de superfície diminuta, mas duas janelaspara a rua davam-lhe ar, desafogavam-no muito. Estavana redação de O Globo, jornal de grande circulação, diárioe matutino, recentemente fundado e já dispondo de gran-de prestígio sobre a opinião. Falei ao Oliveira, perguntan-do-lhe pelo dr. Gregoróvitch. O eminente repórter levantouum pouco o olhar de cima do importante escrito (relaçãodos decretos assinados no último despacho), ao dar coma minha fisionomia conhecida e humilde, abaixou-o logo e,entre dentes, transcendentalmente superior, respondeu:“Ainda não veio.” Eu não tinha mais onde dormir, haviadois dias que não comia, tinha a máxima necessidade defalar ao russo. Intimidado com a secura do Oliveira, fiquei

22 Parede geralmente de madeira, usada para separar áreas; divisória.

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de pé hesitando fazer-lhe uma segunda pergunta. Medro-so e esfomeado, deixei-me assim permanecer alguns mi-nutos debaixo daquele teto que abrigava a falange sagradaque vinha combatendo pelos fracos e oprimidos.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 99.

Alguém o fez sentar e o convidou a esperar. Laje daSilva apareceu à procura do Rabelo. Isaías ouviu a conver-sa de Oliveira com o Meneses, que colocou sob suspeita onegociante seu conhecido. Falaram de notas falsas queteriam sido recebidas como pagamento de um cliente.

O diretor, dr. Ricardo Loberant, entrou na sala se-guido de Pacheco Rabelo (Aires d’Ávila), redator-chefe do jornal. Ninguém suspeitara que pudesse serum jornalista, porque era dado a aproveitar a vida,gostando de gastar e freqüentar a sociedade das gran-des cocottes23. Um belo dia, nasceu O Globo e o jor-nal pegou. “Trazia novidade: além de desabrimentode linguagem e um franco ataque aos dominantes, umaafetação de absoluta austeridade e independência, umacolaboração dos nomes amados do público, lembran-do por este aspecto os jornais antigos que a nossageração não conhecera.” (p. 101)

Ricardo Loberant e Aires d’Ávila entraram nogabinete onde estava Leporace. Ricardo Loberant deuuma berro com Leporace por publicar uma matériaruim na primeira página. Leporace falou-lhe cician-do24, desculpando-se e explicando-se. O autor da “por-caria” era Adelermos Caxias, que não mostrou o maisleve movimento de revolta.

Isaías começou a sentir-se invadido pelo terror im-posto pelo diretor do jornal. O dr. Gregoróvitch não che-gava. Depois ficou sabendo que só chegaria às oito horas.

Depois de presenciar todo tipo de fanfarronice e igno-rância, o narrador conclui: “Era a Imprensa, a OnipotenteImprensa, o quarto poder fora da Constituição!” (p. 115)

O capítulo é uma violenta crítica contra a superficia-lidade do jornalismo no Brasil. Lima Barreto faz ques-tão de traçar um perfil caricatural daqueles que eramconsiderados pelo público leitor como os mais famo-sos jornalistas da época. A arrogância aliava-se a umacompleta incapacidade na formação da imprensa daépoca. Sem dúvida, o escritor envolveu-se afetivamen-te durante a narrativa, porque sofreu todo tipo de dis-criminação ao tentar a carreira jornalística.

CAPÍTULO IXAos poucos, esqueci-me dos dias de fome passados a

deambular pelas ruas da cidade. Tinha já um quarto, camae um lavatório de ferro, pensão de almoço e jantar; e, ain-

da, do ordenado, me sobravam sempre alguns mil-réis paracomprar, de quando em quando, umas botinas de abotoarou um chapéu de palha mais catita. Gregoróvitch dera-meum terno de roupa e por todo o tempo em que fui contínuo,conheci vários alfaiates caros por intermédio do corpo dosoutros.25

Custou-me muito curvar-me a tão vil necessidade […].Os meus vencimentos eram aumentados pelas gorjetas.

Havia-as de duzentos réis, mas, em geral, eram dequinhentos réis para cima. A gente dos jornais é pródigacomo jogadores e gosta de aparentar desprezo pelo di-nheiro e generosidade.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 116.

Um repórter ganhara oitocentos mil-réis no baca-rat do Aplomb Club e deu-lhe uma nota de vinte mil-réis para que procurasse um bom fim de noite. Isaíasrecebia cem mil-réis por mês e vivia satisfeito. Estavafeliz no O Globo. Chegou a acreditar, por causa dasconversas da redação, que o doutor Loberant era o ho-mem mais poderoso do Brasil. Chegou a ser apelidadode “o jornalista” pelas pessoas simples que moravamno mesmo lugar que ele. Aceitara aquela situação semtentar mudar. Não estudou mais. Só lia o jornal.

Em menos de ano e tanto, tinha já construído uma pe-quena consciência jornalística para meu uso. Julguei-mesuperior ao resto da humanidade que não pisa familiar-mente no interior das redações e cheio de inteligência e detalento, só porque levara tinta aos tinteiros dos repórterese dos redatores e participava assim de um jornal, ondetodos têm gênio. […]

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 118.

Os jornalistas viviam reclamando dos revisores,que lhes destruíam os requintes puristas da língua.Gregoróvitch não se importava com a revisão.

Aos poucos, Isaías descobria que o mundo sagra-do no qual se orgulhava de trabalhar era formado porincompetentes, ignorantes e homens que cultuavamuma aparência cultural que não possuíam. O diretorresolveu mudar a linha do jornal, não nos ataquescontínuos ao governo, mas na linguagem. Mandouparar com a literatura e a gramática. Resolveu fazerum jornal de cunho inteiramente popular e voltadopara o seu leitor.

A hipocrisia que tomava conta do país podia serobservada pelos freqüentadores que faziam fila na salado diretor. Todos denunciavam todos. “Foi semprecoisa que me surpreendeu ver que amigos, homensque se abraçavam efusivamente, com as maiores mos-tras de amigos, vinham ao jornal denunciar-se unsaos outros. Nisso é que se alicerçou o O Globo; foinessa divisão infinitesimal de interesses, em uma forte

23 Expressão francesa para referir-se a mulheres de vida fácil e normalmente cara.24 Sussurrando, murmurando.25 A passagem de abertura do capítulo é exemplo do emprego da ironia por Lima Barreto: “conheci vários alfaiates caros por intermédiodo corpo dos outros”. O narrador aproveita o início de um novo capítulo para adiantar-se na narrativa. Já está empregado no jornal comocontínuo (empregado num escritório para fazer pequenos trabalhos e/ou entregas).

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diminuição de todos os laços morais.” (p. 126) Ospoderosos eram postos abaixo e isso aumentava asvendas do jornal.

A humilhação sofrida pelo protagonista parece fa-zer dele um indivíduo submisso, e sua passividadeleva à desistência dos ideais superiores que o leva-ram ao Rio de Janeiro. A luta pela sobrevivência deulugar a uma espécie de subserviência branda. Cons-ciente dos absurdos que eram praticados na reda-ção do jornal, Isaías cala-se diante da possibilidadede perder seu razoável ganha-pão. Entretanto, onarrador usa a técnica do flash-back para compor aestrutura de sua narrativa e é com olhos críticos, irô-nicos e zombeteiros que caricaturiza os antigos co-legas de O Globo, projetando assim a veia destrutivado próprio Lima Barreto, que, com olhos em buscade mudanças, vê o estado de decadência e hipocri-sia que tomou conta do jornalismo de seu tempo.

CAPÍTULO XOs primeiros conhecidos de Isaías afastaram-se

paulatinamente dele. Laje da Silva passara a cumpri-mentá-lo friamente, com superioridade; Leiva trata-va-o bem, mas marcando distância, desde que setornara repórter. O próprio Gregoróvitch tratava-o“com a brandura que usava com todos os inferiores”.Plínio Gravata continuava a dispensar-lhe a conside-ração de igual.

Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um pro-jeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sanciona-do, determinando que todos os transeuntes da cidade,todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados.[…] Nós invejávamos Buenos Aires imbecilmente. Era comose um literato tivesse inveja dos carros e dos cavalos deum banqueiro. Era o argumento apresentado logo contraos adversários das leis voluptuárias que apareceram pelotempo: “A Argentina não nos devia vencer; o Rio de Janei-ro não podia continuar a ser uma estação de carvão, en-quanto Buenos Aires era uma verdadeira capital européia.Como é que não tínhamos largas avenidas, passeios decarruagens, hotéis de casaca, clubes de jogo?”

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 136.

Para imitar Buenos Aires, queriam alargar as ruasda cidade e manter a limpeza pública.

Um crime de pessoas que se vestiam com luxoagitou a redação de O Globo: “Uma mulher e umhomem foram encontrados mortos a facadas e deca-pitados… Vestiam com luxo… Parecem pessoas detratamento… Um mistério!” (p. 137) Várias suges-tões surgiram entre os jornalistas para o título damatéria: “Crime no Pampa”, “Bucolismo e tragédia”,“Ciúme e crime” e “Descampado da morte”. Todosgostaram do último, e Adelermo pôs-se a escrever.

Isaías critica as invencionices que cabiam a Adeler-mo quando as notícias do exterior chegavam breves,concisas demais. “Nas invenções de Adelermo, quasesempre se passavam coisas fantásticas e curiosas.”(p. 141) Ele inventava livremente para agradar ao diretor.

O crime ficou sendo a grande preocupação públicadurante os sete dias que se seguiram. O dr. Franco deAndrade garantiu que seria possível a identificação,mesmo sem as cabeças das vítimas. Teria identificadoo homem como mulato. A identificação verdadeira foifeita graças ao dono de um hotel. O casal que ocupavaum dos seus quartos não aparecia. Foi à polícia. Foiencontrada nas malas uma carteira de identificação,passada pela polícia de Buenos Aires. O defunto era ocidadão italiano Pascoal Martinelli, que partira para aEuropa com a mulher, pretendendo ficar uns dias noRio de Janeiro. “Um dia antes dessa elucidação, o dr.Franco de Andrade era nomeado diretor do serviçomédico-legal da Polícia do Distrito Federal.”

O narrador volta a detalhar o funcionamento de umaredação de jornal. Mais uma vez, o tom é caricatural ecrítico. O capítulo ironiza ainda a falta de capacidadede alguns profissionais, como é o caso do médico Fran-co de Andrade, que acumulava quatro cargos e aindaum quinto graças à eficiência de um exame legal que,aliás, estava completamente errado.

CAPÍTULO XIIsaías residia numa casa de cômodos na altura do

Rio Comprido. O antigo palacete transformara-se numcortiço habitado por cinqüenta famílias.

Admirava-me que essa gente pudesse viver, lutando con-tra a fome, contra a moléstia e contra a civilização; que tivesseenergia para viver cercada de tantos males, de tantas priva-ções e dificuldades. Não sei que estranha tenacidade a leva aviver e por que essa tenacidade é tanto mais forte quanto maishumilde e miserável. Vivia na casa uma rapariga preta quesuportava dias inteiros de fome, mal vivendo do que lhe davauma miserável prostituição; entretanto à menor dor de denteschorava, temendo que a morte estivesse próxima.26

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 148-149.

Isaías cumprimentava todos os moradores, maspouco falava. Só se aproximava de sua lavadeira, quedava notícias da vida de todos naquele cortiço.

Isaías compara o trabalho num jornal a um feudo:

No jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal aquem todos prestam vassalagem e juramento de inteiradependência: são seus homens. As suas festas são festasdo feudo a que todos têm obrigação de se associar; osseus ódios são ódios de soberano, que devem ser com-partilhados por todos os vassalos, vilões ou não. A recepção

26 A crítica social é patente nessa passagem. A pobreza dos habitantes do cortiço contrasta com o luxo e o requinte da vida levada pelosjornalistas e os políticos da época.

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do redator português era uma festa sua e ele exigia esseaparato para que tivesse uma repercussão favorável nagrande colônia portuguesa. […]

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 150.

Critica a hierarquia de um jornal, no qual “o redatordespreza o repórter; o repórter, o revisor; este, por suavez, o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do balcão”.

Todos foram à recepção do redator português, menosGregoróvitch. Isaías ficou de longe no cais. Depois, toma-ram as lanchas e foram ao navio. Logo que o novo redatorlusitano chegou, todos se acercaram dele e estabeleceu-sea cordialidade. Quando foram à mesa tomar champagne,o dr. Ricardo ergueu um brinde. O novo redator respon-deu: “Me falece competência para falar de si” (p. 156).Diante da impropriedade gramatical, o velho gramáticoLobo exclamou: “ Chi! Quanta asneira!” (p. 156)

O redator novo não se envergonhou, mas todosficaram calados de espanto diante da grosseria.27

No final, ocorreu um incidente desagradável no cais.O dr. Ricardo discutiu e depois atracou-se com seu ri-val de jornal, Apulcro de Castro. “Ricardo saiu da lutadeitando sangue pela boca e foi levado para um hotelpróximo.” (p. 156) Depois da vinda do médico, Isaíasficou a seu lado, dando-lhe a poção de hora em hora.

O episódio final mostra bem o jornalismo que sepraticava na época.

CAPÍTULO XIIO jovem poeta Félix da Costa levou seu volume

de versos recém-publicado ao jornal. Ficou descon-fiado de Isaías, que o mandou deixar o livro. Ele que-ria que dissessem alguma coisa sobre a obra, notassemos defeitos, para que ele pudesse se corrigir. Isaíasafirmou que aquilo era com o crítico literário Floc.

Custou ao jovem a achar um pequeno retângulo depapel, no qual se lia uma crítica de Floc: “Para mim, averdadeira Arte é aquela que consorcia o ideal com oreal; é aquela que, não desprezando os elementos re-presentativos da realidade, sabe pelo ideal arrebatar asalmas aos páramos do incognoscível” (p. 158).

Isaías sabia que Floc não se deteria naquela leitura.

Os livros nas redações têm a mais desgraçada sortese não são recomendados e apadrinhados conveniente-mente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome doautor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, ocrítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas muitobordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem daobra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas

com antipatias na redação, o cliché é outro, elogioso sem-pre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em queabsolutamente não se diz uma palavra do livro. […]

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 158-159.

Floc encontrou o livro em sua mesa e perguntou aIsaías quem era Félix da Costa e se era algum mulati-nho. Isaías disse-lhe que era mais branco do que Floc,louro e de olhos azuis. Floc disse a Isaías que hoje eleestava zangado. Floc não compreendia que Isaías tam-bém sentisse e sofresse.

A lei que obrigava as pessoas a usarem sapatospara sair às ruas gerou revoltas populares estimula-das pelo jornal O Globo. Isaías não viu nada, porquerecolhera-se cedo para dormir. Os populares destruí-ram a iluminação. Na manhã seguinte, havia patru-lhas de infantaria e cavalaria nas esquinas.

A fisionomia das ruas era de expectativa. As patrulhassubiam e desciam; nas janelas havia muita gente espian-do e esperando qualquer coisa. Tínhamos deixado a esta-ção do Mangue, quando de todos os lados, das esquinas,das portas e do próprio bonde partiram gritos: Vira! Vira!Salta! Salta! Queima! Queima!

O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num mo-mento o bonde estava cercado por um grande magote depopulares à frente do qual se movia um bando multicorde moleques, espécie de poeira humana que os motinslevantam alto e dão heroicidade. Num ápice, o veículo foiretirado das linhas, untado de querosene e ardeu. […]

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 166.

Eram armadas barricadas na rua do Ouvidor. O pa-vimento era coberto de rolhas para impedir as cargas decavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondi-am. Isaías observava tudo da sacada do jornal.

No jornal exultava-se. As vitórias do povo tinham hinos devitórias da pátria. Exagerava-se, mentia-se, para se exaltar apopulação. Em tal lugar, a polícia foi repelida; em tal outro,recusou-se a atirar sobre o povo. Eu não fui para casa, dormipelos cantos da redação e assisti à tiragem do jornal: tinhaaumentado cinco mil exemplares. Parecia que a multidão oprocurava como estimulante para a sua atitude belicosa28 […].

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 167-168.

O serviço normal da folha fazia-se com atividade. Osrepórteres iam aos lugares perigosos, aos pontos mais cas-tigados pela polícia, corriam a cidade em tílburis. Nem osrevisores nem os seus suplentes faltavam à chamada; ou-tro tanto sucedia com os tipógrafos e os outros operários.

Isaías viu um rapaz morrer quase em frente ao jornal.

Quando suspenderam a carga, alguns populares trou-xeram-no morto para o escritório do jornal. O cadáver es-tava num estado ignóbil29: tinha quase todos os ossospartidos, o crânio esmagado e o ventre roto. Recordei-meentão daquelas palavras de Loberant:

27 A gramática culta praticada no Brasil não admite a expressão “falar de si”, comum no português lusitano, que indicaria a terceira pessoae não a primeira — mim.28 Que tem inclinação para a guerra, para o combate; beligerante.29 Que causa repugnância, que ofende o sentido estético; hediondo.

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— Esses f… hão de ver se valho ou não valho algumacoisa! Súcia!30

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 168.

O capítulo destaca a força que a imprensa pos-sui sobre os ânimos populares e a maneira como ojornal O Globo incentivou a revolta.

CAPÍTULO XIIIO cozinheiro particular de Ricardo Loberant é morto

e transformado em herói popular pelo jornal, que di-vulgou que era seu funcionário. O jornal foi impressotarjado em sinal de luto. A morte de Charles de Fous-tangel foi divulgada em vários jornais e alguns abri-ram subscrições para socorrer a sua família.

O motim obrigou o presidente a demitir a maioria dosministros, atacados pelo O Globo. O prefeito e o chefe depolícia também saíram. A lei dos sapatos foi esquecida.As nomeações e demissões saíam de O Globo. Leporacefoi nomeado diretor das antigüidades egípcias do MuseuNacional. Rolim, subdiretor da Repartição Cartográficada República. Leiva tornou-se quarto escriturário do Tri-bunal de Contas. Todos pareciam satisfeitos e felizes.

Aires d’Ávila pediu em um artigo que o governocomprasse duas grandes telas de grandes mestres ho-landeses ou flamengos que foram expostas no Rio deJaneiro. Três meses depois um jornal de Paris as de-nunciou como falsificadas. Um outro jornal do Rioapontou Aires d’Ávila como tendo entrado no negócioe recebido trinta contos no Banco Inglês. Aires d’Ávilaconfessou depois de algum tempo que recebera o di-nheiro, mas como advogado para fazer minutas de re-querimentos. As falcatruas do jornalista foram sendodescobertas, assim como as suas dívidas imensas.

Via Floc fazer reputações literárias, e ele mesmo umareputação; via Losque, de braço dado com o medíocreRicardo Loberant, erguer à Câmara e ao Senado quembem queria; via Aires d’Ávila, com uns períodos de fazersono e uma erudição de vitrine, influir nas decisões do par-lamento; e também via d. Inês, a esposa do diretor, umarespeitável senhora, certamente, fazer-se juiz dos contose das poesias dos concursos, com a sua rara competênciade aluna laureada das irmãs de caridade.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 175.

Floc voltara de uma ópera no Lírico. Era poucodepois da meia-noite. Estava radiante. Precisava escre-ver a crônica para fechar o jornal, mas não conseguia.

Tinha medo de começar. Tinha visto tanta coisa bela,tanta carne moça e boa […] Como que senti que ele tenta-va pôr na sua crônica um pouco dos sonhos sonhados àvista daqueles colos nus e tratados, daqueles olharesfaiscantes, e também a sensação quase irregistrável da

música, o roçagar das sedas, a olência dos perfumes apairar naquele ambiente fechado, uma vida a tocar outra,bailando sem serem vistas nos ares polvilhados de luz, daluz azul da eletricidade.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 177-178.

Conseguiu escrever as duas primeiras tiras, mas pa-rou no começo da terceira. Pediu a Isaías que buscassecachaça Parati. Discutiu com o paginador que vieraapressá-lo. Escreveu algumas palavras e riscou-as.

Suspendeu o trabalho, tomou outro gole e a suafisionomia começou a adquirir uma expressão de deses-pero indescritível.

[…]Houve um estampido e o ruído de um corpo que cai. Quan-

do penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operários,ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete desangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longae doce expressão de sofrimento e perdão. Caído para o ladoestava o revólver, muito claro e brilhante na sua niquelagem,estupidamente indiferente aos destinos e às ambições.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 178-179.

O redator de plantão chamou Isaías e o fez pro-meter que não diria nunca a ninguém o que veria emandou-o à casa da Valentina atrás do dr. Loberant.Era um bordel de luxo.

Na sala em que estava o diretor, uma mulher ca-valgava uma espécie de tapir ou de anta. “Era Airesd’Ávila, cujas peles do vasto ventre caíam como úbe-re de vaca. A mulher montava-o com o garbo […]”(p. 180)

Isaías, logo que é visto pelo diretor, comunica queFloc se matou na redação.

Aires d’Ávila voltou à humanidade e, em plena orgia,por entre aqueles homens e aquelas mulheres despreocu-padas, passou a augusta sombra da Morte, misteriosa esevera…

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 181.

Um dos pontos de destaque do capítulo é o ges-to de loucura do medíocre jornalista e crítico literá-rio que se mata quando não consegue escreveralguma coisa realmente que merecesse ser consi-derada de boa qualidade. O narrador descobre, ain-da, o mundo de devassidão em que se mete osuposto “salvador da pátria”. O diretor do jornal, quese considerava um baluarte da moralidade e daseveridade no país, levava uma vida de orgias eprazeres num bordel de luxo, acompanhado por umde seus jornalistas.

CAPÍTULO XIVIsaías, dois meses depois do episódio, conseguiu

o posto de jornalista. Está entre militares fazendo umaentrevista no Ministério da Marinha.

30 Reunião de indivíduos de má índole ou de má fama; malta, bando.

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Desde os ministros até aos contínuos, todos me en-chiam de mimos e de festas. Era raro o oficial que não mepedia uma notícia, um elogio, um gabo ao relatório da suaúltima comissão. Os chefes viviam abraçados comigo eforneciam-me notas para o meu noticiário. […].

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 182.

Depois de ter surpreendido o diretor na casa deValentina, em plena orgia, Isaías notou que o dr. Lo-berant procurou aproximar-se dele. Ao saber maissobre a vida do rapaz, o diretor modificou seu juízosobre ele. Isaías foi promovido à expedição e obteveaumento de ordenado em cinqüenta mil-réis. Duas se-manas depois, Loberant perguntou se era capaz de to-mar notas numa repartição e redigi-las. Tornou-sejornalista, cobrindo a sessão da Marinha e Alfândega.

Nos primeiros dias, Isaías foi mal recebido pelos co-legas, que lhe sonegavam as notas, procuravam desmora-lizá-lo, ridicularizá-lo diante dos empregados. Loberantnão permitiu que Leporace destruísse Isaías. No quintodia, outro repórter pegou de suas mãos umas notas. Isaíasfoi ao diretor e o rapaz foi obrigado a restituir, mas gritouna portaria: “Tome, ‘seu’ moleque! Você saiu da cozinhado Loberant para fazer reportagem…” (p. 184)

Isaías conteve-se, mas sentiu desejo de matar.Quando encontrou o tal repórter na rua, atirou-se so-bre ele e bateu com força.

Na delegacia, a minha vontade era rir-me de satisfa-ção, de orgulho, de ter sentido por fim que, no mundo, épreciso o emprego da violência, do murro, do soco. […]Loberant veio a saber e gostou.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 184.

Depois que terminou de escrever, foi jantar com odiretor. Suas dificuldades acabaram. Todos passaram aconsiderá-lo. Um dia ousou escrever um artigo. Come-çou a ter inimigos. Aprendeu a lição e passou a inspirar-se nos outros jornais. Percebeu que a função do jornal éconvencer o público com “repetições inúteis e impressio-ná-lo com o desenvolvimento do artigo”. (p. 186)

Lobo enlouqueceu e foi recolhido ao hospício. Nãofalava nem ouvia, porque tinha medo de cometer, aofalar, os mesmos erros que ouvia das pessoas. Grego-róvitch não sabia elogiar e desgostou-se de escrever.Partiu para Caracas em busca de novas aventuras eoposições. Leporace abraçou o lugar das antigüida-des egípcias; imutáveis eram o Oliveira e o Meneses.“Entretanto Aires d’Ávila ganhava dois contos paraescrever algumas banalidades fatigantes.” (p. 188)

Loberant enchia Isaías de atenções e dinheiro. Isaíasfala ao diretor em abandonar o Rio, constituir famí-lia, criar e educar os filhos. Isaías teve que insistirmuito para que o diretor interviesse junto ao minis-tro, recomendando-o para um cargo no interior.

Durante uma viagem de barco à Ilha do Governa-dor, acompanhado pelo diretor e por uma bela italia-

na, Espranza, Isaías reencontrou suas lembranças demenino humilde de interior.

O diretor seguiu para o jornal e Isaías acompanhoua mulher, que descobriu ser a mesma amante do depu-tado que viu uma vez ao chegar ao Rio. A mulher con-vidou e insistiu para que entrasse, mas ele recusou.

[…] Vim vagamente a pé até ao largo da Carioca, semseguir um pensamento. Vinha triste e com a inteligênciafuncionando para todos os lados. Sentia-me sempredesgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, deforte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apani-guado de um outro qualquer. Tinha outros desgostos, masesse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco pelosoutros e um pouco por mim. Encontrei Loberant:

— Então? perguntou maliciosamente.— Deixei-a em casa.— Pois se eu tinha me separado de vocês de propósi-

to… Tolo! Vamos tomar uma cerveja…Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito

estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já nãosabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos. Ascogitações não me passaram… Loberant, sorrindo e olhan-do-me com complacência, ainda repetiu:

— Tolo!Todos os Santos, Rio de Janeiro, 1908.

BARRETO, Lima. Op. cit. p. 193.

O último capítulo traça a trajetória final do protagonis-ta, consagrando sua carreira de jornalista. Entretanto, essesucesso resulta primeiro do temor que o diretor apresen-tara por ter sido descoberto pelo subalterno em situaçãode libertinagem. A amizade surge depois que o superiorpercebe que o jovem mulato é capaz de escrever, possuiuma origem. O preconceito é superado pela descobertado homem inteligente e honesto que existe em Isaías.

4. SÍNTESE DO ENREDO

Isaías Caminha era órfão de pai e vivia com a mãenuma pequena cidade do interior do estado do Rio deJaneiro. Ao ficar sabendo do sucesso de um colegade escola dos mais medíocres no curso de farmáciano Rio, Isaías decide ir para a capital para tornar-sedoutor. Graças ao seu tio Valentim, consegue umacarta de um coronel de sua cidade para o deputado dr.Castro, com um pedido de um emprego. Com poucodinheiro, segue de trem e depois de barco para reali-zar seu sonho, imbuído dos mais profundos ideiais.

Ao chegar ao Rio, hospeda-se num hotel e torna-se conhecido de um padeiro de Itaboraí, Laje da Sil-va, que depois descobre ser muito conhecido entre osjornalistas e também conhecido por um caso de falsi-ficação de dinheiro. Por meio dele, fica conhecendoo jornalista Gregoróvitch.

Isaías procura o deputado, mas não consegue oemprego prometido. Já não tem mais quase dinheiro

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e vê-se envolvido, por ser mulato, num caso de furtono hotel em que se hospeda. Esclarecida a sua ino-cência, Isaías resolve mudar de hotel. Com a ajudade Gregoróvitch, consegue um lugar de contínuo nojornal O Globo. Apesar do pequeno salário, Isaíasmelhora de vida graças às gorjetas e roupas doadaspor Gregoróvitch.

Isaías passa a conviver com vários tipos de jornalis-tas, que apresentam em comum apenas a mediocridadecultural e a arrogância social. O diretor do jornal, dr.Ricardo, só tem como objetivo o aumento das vendas.O diretor ataca violentamente o governo, até que surgeum motim popular por causa de uma lei que obrigava aspessoas a andarem calçadas pelas ruas. Há mortes du-rante o ato de rebeldia. Morre um cozinheiro particulardo dr. Ricardo, mas divulga-se que era jornalista. Mi-nistros caem. O diretor do jornal passa a interferir nasnomeações para cargos maiores e menores, nomeandoos próprios funcionários da área jornalística.

O crítico literário do jornal se mata depois de nãoconseguir escrever um artigo sério. Isaías procura odiretor numa casa de prostituição e flagra-o em plenaorgia, junto com um de seus jornalistas, Aires d’Ávila.Isaías passa a privar da amizade e intimidade do dire-tor. Acaba nomeado jornalista, mas é perseguido pe-los colegas que não conseguem entender como umsimples contínuo chega a jornalista. O dr. Ricardoprotege o jovem amigo.

Depois de fazer sucesso na carreira jornalística,Isaías decide deixar o Rio e voltar para o interior, ondepretende se casar, criar e educar os filhos.

5. ESTRUTURA DA OBRA

Recordações do escrivão Isaías Caminha apresen-ta catorze capítulos de diferentes dimensões. A nar-rativa é feita em forma de flash-back por um narradoridentificado com os fatos que são narrados. A narra-tiva não é linear, já que o narrador em vários momen-tos da narrativa retoma o presente para darautenticidade e verossimilhança aos fatos que estácontando.

A) Foco narrativo: O romance é narrado em pri-meira pessoa. O narrador-personagem é Isaías Cami-nha, que retoma o passado próximo para denunciar suaexperiência como contínuo e jornalista em O Globo. Elenarra os incidentes que o levaram até a situação atual.Entretanto, ainda não cessaram de todo suas mágoascontra a discriminação e o preconceito de que foi vítimana sua juventude. O verdadeiro autor, Lima Barreto, éidentificado logo no início, como se fosse um prefácio,como amigo particular de Isaías Caminha.

B) Tempo: O tempo da narrativa é cronológico efocaliza o começo do século XX. O tempo da narraçãoé o presente, momento em que o pseudo-autor IsaíasCaminha está contando a história. A narração parte dopresente, retoma o passado e retorna ao presente.

C) Espaço: O espaço principal é o Rio de Janei-ro, do qual são mencionados bairros e ruas com certaminúcia, bem como o cenário em torno da cidade.O começo da narrativa menciona, mas sem dizer onome, a cidadezinha do interior de onde veio o prota-gonista Isaías.

D) Personagens:1. Isaías Caminha: É o protagonista e narrador.

Sobre ele se concentra a narrativa e a narração. Mu-lato e estudioso, herdou do pai o gosto pela cultura eo respeito aos grandes homens da história e da litera-tura. Sua inteligência e sagacidade permitiram queIsaías alimentasse o sonho de fazer carreira comodoutor no Rio de Janeiro. Entretanto, sua bondade etimidez fizeram com que fosse humilhado em váriosmomentos e fosse obrigado a calar-se diante de pes-soas mais influentes ou poderosas.

2) Outras personagens: Dr. Ricardo Loberant(diretor do jornal O Globo); Floc (crítico literário);Ivã Gregoróvitch Rostóloff (jornalista, homem demuitas línguas e viajado); os jornalistas Leporace,Rolim, Aires d’Ávila, Raul Gusmão, Oliveira; Lajeda Silva (comerciante, dono de padaria, falsificador);dr. Castro (deputado); Chico Nove Dedos (capanga);coronel Figueira (fazendeiro rico); Abelardo Leiva(poeta e revolucionário, depois torna-se jornalista);Adelermos Caxias (revisor e gramático) etc.

6.ESTILO DE ÉPOCA

O romance Recordações do escrivão Isaías Ca-minha está inserido no Pré-Modernismo (1902-1922). Esse período literário não chegou arepresentar propriamente um estilo de época, massim uma fase transitória entre as estéticas do finaldo século XIX e a Semana de Arte Moderna (1922).A característica que concentra essa tendência tipi-camente nacional é a denúncia e a visão crítica darealidade brasileira. Lima Barreto procura retratarde forma irônica, humorística e sarcástica as atitu-des da sociedade endinheirada do Rio de Janeiro doinício do século XX e do jornalismo que se pratica-va naquele período. Nem tão bem humorada assimé a denúncia do preconceito racial na figura de seuprotagonista, um mulato culto e bem preparado, ape-sar da situação de miséria de sua origem depois damorte do padre que foi seu pai.

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O Pré-Modernismo foi um fenômeno tipicamentebrasileiro, já que a Europa preparava-se para viver a Pri-meira Guerra Mundial e o apogeu das vanguardas quan-do surgiram as primeiras obras desse período de transiçãoliterária aqui no Brasil. Essa etapa foi um período de tran-sição da literatura brasileira, no qual não há uma tendên-cia dominante, mas uma arte marcada pelo sincretismo31

literário, ou seja, por uma convivência até mesmo pacífi-ca entre estilos diversos. Por isso, não se chegou a formarum estilo ou escola literária. O Pré-Modernismo ganhoudestaque por causa da importância de alguns de seus au-tores, entre eles o próprio Lima Barreto, e pela sua amplae qualitativa produção literária.

7. ESTILO INDIVIDUAL

Lima Barreto é, sem discussão, um dos maioresescritores brasileiros de todos os tempos. Seu domí-nio sobre a técnica narrativa do romance confirmasua capacidade de narrador arguto e minucioso noque se refere à linguagem e ao objeto de suas críticas —a sociedade.

Para Lima Barreto, a arte está associada à verda-de e à sinceridade, daí podermos caracterizar Recor-dações do escrivão Isaías Caminha como um romancesocial e psicológico, porque é capaz de desnudar afalsa cultura de um país mais preocupado com a apa-rência do que com a verdade. A crítica do romancevolta-se à estupidez e à ignorância das pessoas envol-vidas com o poder, o favorecimento pessoal na no-meação para os cargos públicos, desvinculada decritérios que envolvam mérito e capacidade.

Cabe destacar que, apesar de tão forte vínculo com opapel da denúncia, Lima Barreto não se descuida da lin-guagem. Pelo contrário, atinge alto grau de elaboraçãolingüística ao combinar uma prosa impecável a expres-sões nitidamente populares, mantendo assim a verossi-milhança entre a ficção e a época retratada. A narrativaflui de maneira informal, marcada por uma oralidade,coloquialismo e, não raro, uso de expressões de calão.Seu narrador é perspicaz e um excelente observador,ainda que apenas a passagem do tempo e a ascensãotenham-lhe permitido observar com mais agudeza aspessoas que o cercavam no mundo jornalístico.

A construção de personagens é outro ponto quemerece destaque. As personagens secundárias do ro-mance também são verossímeis, mas Lima Barretofez questão de registrar de maneira caricatural seuscomportamentos, na verdade uma espécie de padrão

em que a hipocrisia, a superficialidade cultural, a ar-rogância e a incapacidade intelectual sobrepujamquaisquer outras qualidades. Essas personagens sãocaricaturas e estereótipos da incapacidade burguesae do carreirismo nacional.

É importante comentar que, no chamado Pré-Mo-dernismo, as soluções particulares dos autores e a faltade uma perspectiva comum de arte conduziu à valo-rização do estilo individual mais do que propriamen-te do estilo de época.

8.PROBLEMÁTICA E PRINCIPAISTEMAS

Recordações do escrivão Isaías Caminha focali-za os temas críticos que sempre estiveram presentesna maioria das obras de Lima Barreto: o artificialis-mo cultural da intelectualidade tupiniquim, a culturade aparência, a política de nomeação para cargos pú-blicos por favorecimento, o carreirismo, o empreguis-mo e o protecionismo no funcionalismo, no jornalismoe na política, a ambição e a ganância desmedidas, ocomportamento mecânico do funcionalismo público,a rigidez gramatical do pseudo-intelectual, a tendên-cia à dissimulação e à mentira, a hipocrisia. Os ro-mances de Lima Barreto, como já observara AlfredoBosi, possuem muito de crônica. As personagens sãofixadas a partir do cotidiano, às vezes banal, e a lin-guagem “fluente e desambiciosa” resulta da experi-ência do jornalista, que transfere seu gênio para aliteratura. Talvez esse tenha mesmo sido o maiormérito da prosa de Lima Barreto, esse abandono doacademismo estéril que dominava as letras nacionaise conduzia a intelectualidade a um abismo em rela-ção às modernidades européias.

Entretanto, a força narrativa de Lima Barreto está nacrítica mordaz e ferina que desmascara o homem e asociedade brasileira de sua época, denunciando o poderque uma aristocracia endinheirada e ignorante exerciasobre as nomeações para os cargos públicos, a incom-petência dos homens públicos, incapazes de agir de acor-do com a urgência do momento e cumprir suas funçõesapenas como repetição de atos ou ações executados ante-riormente e sem reflexão. Seu olhar crítico acaba criandouma caricatura da sociedade que expõe ao ridículo opolítico incompetente e sem mérito próprio que man-tém “arranjos amorosos” e preocupa-se apenas consigomesmo; os intelectuais de aparência que se deixam se-

31 Unificação de idéias ou de doutrinas diversificadas e, por vezes, até mesmo inconciliáveis, nesta acepção, ecletismo. Amálgama dedoutrinas ou concepções heterogêneas. Fusão de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuandoperceptíveis alguns sinais originários.

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duzir por uma vida social fútil e medíocre; o jornalistamedíocre que encontra no pasquim escandaloso e sen-sacionalista, em vez do jornalismo sério, um status queo torna arrogante; a incapacidade arrogante que não con-segue vencer o imobilismo quando é preciso escreverde maneira sincera e genuína.

Enfim, as personagens de Lima Barreto formamuma galeria de tipos da cidade do Rio de Janeiro, queresumem, de maneira caricata e cômica, a sociedadebrasileira do início do século XX, com uma minúciae um senso de observação que não puderam escaparaos olhos daqueles que estavam sendo criticados.

O desprezo à literatura de Lima Barreto resul-tou não da indiferença à sua arte, mas do incômo-do que os intelectuais e poderosos sentiram ao sedepararem com sua própria caricatura esboçada ouretratada nas personagens daquele mulato pobre,mas arrogante, que se julgava no direito de inco-modar o poder estabelecido e as bases de uma so-ciedade fútil e acomodada em seus valoresburgueses. Isaías é um alter ego incômodo, mula-to, mas que não aceita o preconceito racial e sabedizer não à submissão que os aristocratas esperamdas pessoas de sua cor. Nem mesmo o silêncio dacrítica, com relação a Lima Barreto, e a falta dedivulgação puderam, entretanto, calar sua obra, cujovalor de renovação provavelmente surpreendeu acrítica especializada da época e que obrigaria, casofosse aceita pelos meios literários, a uma reavalia-ção do que se considerava boa literatura ou arte debom gosto.

9.BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão IsaíasCaminha. São Paulo: Brasiliense, 1981.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura bra-sileira. 38. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

(UFMS) Os historiadores da literatura brasileira normal-mente incluem o romance Recordações do escrivão IsaíasCaminha, de Lima Barreto, no Pré-Modernismo, por adian-tar características do Modernismo sem romper com op-ções estéticas ou ideológicas das correntes predecessoras.Considerando essa definição, assinale a(s) alternativa(s)correta(s).(01) Na linguagem, o romance apresenta coloquialismo

muito próximo do modernista.(02) No ideário político, o romance não visa a nenhuma

crítica social, aproximando-se do alheamento própriodos nefelibatas do Simbolismo.

(04) Na construção das personagens, o romance rompe aestereotipia do embate entre os bons e os maus, comoas soluções que eram empreendidas por grande par-cela dos autores românticos.

(08) Na estrutura da narrativa, o romance empreende frag-mentação estilística moldada pela influência das van-guardas européias do início do século XX.

(16) No desdobramento da personalidade do protagonista,marcado pela origem genética da qual decorrem tarase conformação psicológica, o romance é devedor daestética do Naturalismo.

Isaías Caminha assim resume sua vida: “Sentia-mesempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de gran-de, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla eapaniguado de um outro qualquer”.Dentre as considerações quanto ao desenvolvimento ro-manesco das Recordações do escrivão Isaías Caminha, deLima Barreto, assinale a(s) correta(s).(01) O estigma do preconceito racial marca a vida de Isaías

desde a infância, em especial nos seus primeiros tem-pos no Rio de Janeiro, a capital do país.

(02) Isaías pouco fala de sua família; ainda assim, somosinformados de que se casou e teve um filho, que mor-reu na infância.

(04) O cerne do romance prende-se à exposição e críticado jornalismo que se praticava no Rio de Janeiro noinício do século XIX. Além do libelo satírico, ao cairnas graças do chefe, o capitalista Loberant, Isaías apre-senta um projeto de jornalismo renovador, que, noentanto — em mais uma de suas frustrações —, não éimplantado.

(08) Com Loberant e Leda, Isaías se perde em um passeiopela Ilha do Governador. Leda se interessa por Isaíase, sob a complacência de Loberant, que o chama jo-cosamente de “tolo”, Isaías e Leda vivem uma noitede amor na casa dela.

(16) Foi com o suicídio de seu protetor Gregoróvitch queIsaías, ocupando as funções do amigo em O Globo,iniciou sua carreira de jornalista.

Leia o texto a seguir para responder ao que se pede nasquestões de 3 a 5:

A gramática do velho professor era de miopia exage-rada.

Não admitia equivalências, variantes: era um códigotirânico, uma espécie de colete de forças em que vestiraas suas pobres idéias e queria vestir as dos outros. Hátrês ou cinco gramáticas portuguesas, porque há três oucinco opiniões sobre uma mesma matéria. Lobo organiza-ra uma série delas sobre as inúmeras dúvidas nas regrasdo nosso escrever e o nosso falar e ai de quem discrepas-se no jornal! Era emendado da primeira vez, da segundarepreendido, da terceira podia ser até despedido, se eleestivesse de mau humor.

Nos seus bons dias, tinha a mansuetude e os modosconvincentes de um professor de primeiras letras e recita-va muitas vezes aos ouvidos do repórter recalcitrante to-das as regras do Sotero sobre o emprego do infinitopessoal, chamando-o por filho, repetindo exemplo. Não

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admitia que se escrevesse “vieram lhe chamar”, se alguémo fizesse em dias de mau humor, era certo ter de refazerde começo ao fim o seu trabalho.

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha.São Paulo: Brasiliense, 1981.

O que o narrador pretende informar com a expressão“miopia exagerada”?

Por que se pode afirmar que a passagem transcrita é umametalinguagem em Recordações do escrivão Isaías Caminha?

De que maneira a passagem confirma o estilo pré-modernista de Lima Barreto e sua opção por um tipo delinguagem que foge do modelo praticado no período rea-lista-naturalista e parnasiano?

De que maneira há uma aproximação entre o romanceRecordações do escrivão Isaías Caminha e a biografia deLima Barreto?

Respostas1. Soma = 5 (01 + 04)2. Soma = 3 (01 + 02)3. Ele pretende dizer que a gramática empregada pelo velho pro-

fessor é muito antiga, fora de moda, de pouca aplicação naatualidade.

4. Porque a narrativa é interrompida para falar da linguagemutilizada nos jornais da época, ou seja, o discurso se volta aoseu próprio fazer.

5. Lima Barreto opta por uma linguagem marcadamente co-loquial para a época, reagindo contra a “camisa-de-força”imposta pela norma culta e belas letras praticadas entre osparnasianos e herdeiros do Realismo-Naturalismo. A pas-sagem é uma ironia ao estilo formal exigido na época, queservia apenas para impedir que uma linguagem espontâ-nea e comunicativa se manifestasse no jornalismo e na li-teratura.

6. Assim como o protagonista Isaías Caminha, Lima Barretosofreu todo tipo de preconceito e discriminação ao tentar acarreira jornalística no Brasil; mesmo a publicação de seusromances teve que ser primeiro conseguida em Portugal. Umadas acusações mais comuns diz respeito à sua linguagem,considerada desleixada para os padrões da época.