RECONSTRUÇÃO A HIPÓTESE JEAN GRONDIN NVERNO … · desenrolar desta perspectiva histórica...

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Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 10 N. 19, INVERNO 2013 345 ROBERTO ROQUE LAUXEN * Recebido em mar. 2013 Aprovado em mai. 2013 RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE HERMENÊUTICA: A HIPÓTESE DE JEAN GRONDIN E A RETOMADA DE UMA AUSÊNCIA – PAUL RICOEUR RESUMO O trabalho apresenta a hipótese de Jean Grondin para a reconstrução histórica do conceito de hermenêutica. Explora, por um lado, a revisão crítica proposta por ele para desfazer a noção de compêndio histórico e, por outro lado, procura compreender como a noção de universalidade da perspectiva hermenêutica, que tem sua raiz em Gadamer, opera como fio condutor na reconstrução da heterogeneidade de seu ponto de vista universal, desfazendo a idéia teleológica dessa história. Na retomada dos principais expoentes dessa tradição, procuramos, no jogo de continuidade e descontinuidade, entender as razões da ausência de Paul Ricoeur e a influência do perspectivismo de Nietzsche na condução da história da hermenêutica contemporânea. PALAVRAS-CHAVE Hermenêutica. História. Gadamer. Ricoeur. * Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA - UESB

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ROBERTO ROQUE LAUXEN *

Recebido em mar. 2013Aprovado em mai. 2013

RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE HERMENÊUTICA:A HIPÓTESE DE JEAN GRONDIN E A RETOMADA DE UMA

AUSÊNCIA – PAUL RICOEUR

RESUMO

O trabalho apresenta a hipótese de Jean Grondin paraa reconstrução histórica do conceito de hermenêutica.Explora, por um lado, a revisão crítica proposta porele para desfazer a noção de compêndio histórico e,por outro lado, procura compreender como a noçãode universalidade da perspectiva hermenêutica, quetem sua raiz em Gadamer, opera como fio condutorna reconstrução da heterogeneidade de seu ponto devista universal, desfazendo a idéia teleológica dessahistória. Na retomada dos principais expoentes dessatradição, procuramos, no jogo de continuidade edescontinuidade, entender as razões da ausência dePaul Ricoeur e a influência do perspectivismo deNietzsche na condução da história da hermenêuticacontemporânea.

PALAVRAS-CHAVE

Hermenêutica. História. Gadamer. Ricoeur.

* Professor Adjunto do Departamento de Filosofia daUNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA - UESB

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. ABSTRACT

The paper presents the hypothesis of Jean Grondin tohistorical reconstruction of the hermeneutics concept.It explores, on the one hand, the critical revisionproposed by him to undo the notion of historicalcompendium and, on the other hand, seeks tounderstand as the notion of universality of thehermeneutic perspective, that has its root in Gadamer,operates as conducting wire in the reconstruction ofthe heterogeneity of its universal point of view, undoingthe idea teleologic of this history. In the retaken one ofthe main exponents of this tradition, we seeks, in thegame of continuity and discontinuity, to understandthe reasons of the absence of Paul Ricoeur and theinfluence of the perspectivism of Nietzsche in theconduction of the history of contemporaryhermeneutics.

KEYWORDS

Hermeneutics. History. Gadamer. Ricoeur.

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1 INTRODUÇÃO

A noção de hermenêutica tem se difundido amplamente não apenas no círculo de debates

filosóficos, mas também teológicos, jurídicos,linguísticos etc. – apenas para mencionar as áreas maistradicionais que dela se ocuparam –, muito emboraseu emprego pudesse ser estendido para outros campos,inclusive fora das ciências humanas.

Em seu uso generalizado já se sugeriu que umainterpretação de Descartes é o mesmo que umahermenêutica de Descartes. Da mesma forma, é muitocomum empregarmos a expressão “consideraçõeshermenêuticas prévias” sugerindo que se dê explicaçõesprévias. Desse modo, o conceito de hermenêutica éempregado como sinônimo de interpretação,explicação, explanação, etc. Para alguns filósofoscontemporâneos o termo passou a ser associado aoconceito de razão, compreensão, linguagem, para nãofalar da ação, do sujeito, etc.; assim, pode-se falar deuma hermenêutica da ação, ou de “hermenêutica dosujeito”, noções que foram consagradas por MichelFoucault e Paul Ricoeur. Desta abrangência deriva aconsequente imprecisão que o termo veio a adquirir.

Diante de tais dificuldades a primeira e talvez amais importante tarefa do filósofo é prestar algumesclarecimento conceitual, sempre correndo um duplorisco: primeiro, de não encontrar um sentido unívoco;segundo, ao tentar tornar transparente, ajudar aconfundir. Tentaremos em nossa exposição evitar osegundo procurando abrir algum caminho para evitaro primeiro.

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. Mas há dois modos de prestar algumesclarecimento sobre o conceito de hermenêutica, oprimeiro consiste em analisar sistematicamente osdiferentes usos do termo em seus respectivoscontextos, tal como procedemos no início,desconectado de sua referência histórica. Outromodo de fazê-lo é investigar a gênese oudesenvolvimento histórico do conceito. Talalternativa, que adotaremos em nossa investigação,pode lançar nova luz para uma melhor compreensãosistemática do conceito.

O risco que corremos neste tipo deempreendimento histórico é de perder-se numemaranhado panorâmico de concepções desconexas,ainda que nos pareça inevitável que toda retomadahistórica seja sempre um exercício de reconstrução.Além disso, todo exercício de retomada históricaexibe uma concepção prévia de hermenêutica a partirde onde se pode elaborar qualquer exercício dereconstrução.

A abordagem de Jean Grondin, queprocuramos acompanhar aqui, tem plena consciênciadessa pressuposição e é de posse do conceito deparadigmas universais de interpretação, que setraduz na concepção gadameriana de universalidadedo ponto de vista hermenêutico ou hermenêuticafilosófica, que ele procura acompanhar as grandeslinhas e os grandes momentos de ruptura da tradiçãohermenêutica, tentando encontrar certo fio condutorpara uma revisão histórica e um significado críticodo desenvolvimento histórico da hermenêutica.

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Nossa própria tarefa será a de acompanhar odesenrolar desta perspectiva histórica traçada por Grondintentando entender, de um lado, os motivos que levaram-no a excluir Paul Ricoeur da história contemporânea dahermenêutica em seu livro de1991 Einführung in die

philosophische Hermeneutik (traduzido para o portuguêscom o título Introdução à hermenêutica filosófica, 1999).De outro lado, destacar a importância de Nietzsche parao significado desta mesma tradição hermenêutica.

A partir desta meta principal desenvolvemos nossareflexão com base no seguinte roteiro: primeiro,apresentamos um preâmbulo crítico ao intento de traçaras diretrizes históricas da hermenêutica (parte 2). Emseguida, procuramos reconstruir tal perspectiva históricaa partir de três momentos principais: etimologia doconceito de hermenêutica e seu sentido geral (parte 3);o sentido estrito de hermenêutica como teoria dainterpretação em seu desdobramento implícito (semconsciência de seu significado filosófico) (parte 4); aperspectiva fenomenológica ou ontológica dainterpretação com Heidegger e o desdobramento explícito

da hermenêutica filosófica de Gadamer (parte 5). Por fim,a via da hermenêutica crítica de Paul Ricoeur, onde alémde compreender o significado de sua ausência no projetode Grondin, exploramos a contribuição específica deRicoeur para a tradição hermenêutica (parte 6). Nestaretomado histórica procuramos ainda medir o alcancedo perspectivismo de Nietzsche na determinação doconceito filosófico da hermenêutica contemporânea, quea separa decisivamente da hermenêutica mais tradicional(parte 7).

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. 2 PREÂMBULO CRÍTICO PARA O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

DA HERMENÊUTICA

Quando falamos em história da hermenêutica épreciso dizer que ela é uma construção que remonta aDilthey e Gadamer, que realizaram um compêndio deseu desenvolvimento: Dilthey no seu artigo Origens da

hermenêutica1; Gadamer na segunda parte de sua obramonumental Verdade e método2.

A ideia de compêndio pressupõe algo como umaevolução teleológica do processo histórico, comdiversos estágios interrelacionados: partindo daantiguidade, ultrapassando a Reforma e o Romantismoe vindo a ser completada na hermenêutica filosófica,ou seja, de uma coletânea de regras esparsas deinterpretação chega-se ao seu ponto de vista universal.

O tipo de desenvolvimento histórico que Diltheye Gadamer impuseram a esta tradição determinou seuenlace e continuidade. Porém, tais elos foram desfeitospela crítica das ciências literárias, sobretudo a partirdo estruturalismo e a valorização das análisessincrônicas da linguagem em detrimento da diacroniaou análise genética. Partindo dessa crítica, JeanGrondin elabora a hipótese da descontinuidade dahistória da hermenêutica, jogando sobre ela um“ceticismo sadio” (1999, p. 91) que ajuda a remover

1 DILTHEY, Wilhelm. Origens da hermenêutica. In:MAGALHÃES. R. (org.) Textos de Hermenêutica. Porto: Rés,1984, p. 147-203.

2 Para Paul Ricoeur esta obra de Gadamer “permanece semcontestação a mais importante publicada na Alemanha desdeSer e Tempo de Heidegger” (RICOEUR,1996, p. 1-2).

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certos preconceitos decorrentes da abordagemteleológica. Trata, então, de revisá-la e revisitá-ladesfazendo alguns equívocos.

Segundo ele, não há uma história da hermenêuticano singular ou a história universal da hermenêutica, masapenas no plural. Porém, apesar de criticar certos aspectosproblemáticos desta história, não deixa de propor “umaintrodução histórica no campo da hermenêutica” (1999,p. 49), não mais em função de seu significado teleológico,mas a partir do tipo de universalidade pretendida porcada “hermenêutica” histórica. Ele utiliza, assim, oadjetivo “filosófico” da hermenêutica – que tem suaorigem e seu sentido estrito em Gadamer – para aplicá-loem sentido amplo às “eras axiais da hermenêutica” e aosprimeiros esboços de uma teoria da interpretação.

É em função do conceito filosófico que Grondinreconhece uma reflexão latente (implícita) e outraexplícita na história da hermenêutica. A reflexão latente

designa a tradição hermenêutica carente de consciênciade si mesma e que a crítica literária e a hermenêuticafilosófica atual pretendem reconstruir, consultandocontextos históricos longínquos desde as “eras axiais”,às tradições teológicas, literárias, jurídicas, etc.,distantes da adjetivação filosófica. Este momento podeser designado como a “pré-história” da hermenêutica.A reflexão explícita é obra da modernidade, desdeSchleiermacher, Dilthey e Heidegger que passaram avincular o termo a uma teoria da interpretação, numsentido mais abrangente do que a filologia, a exegesee a jurisprudência e que em Heidegger e Gadameralcança seu lugar na filosofia.

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. Na tentativa de apreender o significado da “pré-história” da hermenêutica, Grondin (1999, p. 50)ressalta a importância em dar-se atenção às “eras axiaisda hermenêutica”, ou seja, às experiências de rupturashistóricas que suscitaram grandes questõesinterpretativas: a interpretação alegórica e racional dosmitos de outras culturas pelos gregos, o anúncio deCristo, a relação entre a Sagrada Escritura e os textospagãos na Idade Média, a Reforma protestante, aeclosão do historicismo e, poderíamos acrescentar, apossibilidade iminente de entropia dos ecossistemasnaturais na atualidade, etc.

Tomando a reivindicação de universalidade porparte da hermenêutica filosófica, pode-se reconhecernesta “pré-história” “a ideia de um cerne comum doesforço hermenêutico a ser sempre reconquistado”(GRONDIN, 1999, p. 93). Por exemplo, na Idade Média,o esforço de haurir todo o saber da interpretação dasSagradas Escrituras. Da mesma forma, essa universalidadeaparece em alguns filósofos como Fílon3, Orígenes4,

3 Em Filon a universalidade do alegórico. A interpretaçãoalegórica deve revelar o significado oculto, a alma do textonão a letra. Mas encontram-se nele afirmações, de que tudonas Sagradas Escrituras consistiria de mistérios. Cadapassagem seria misteriosa e necessitaria da interpretaçãoalegórica, assim pode-se intuir o caráter universal dainterpretação alegórica (GRONDIN, 1999, p. 60-64).

4 Em Origenes a universalidade do cristológico. A interpretaçãodo antigo testamento deveria ser interpretada a partir doanúncio de Cristo como parâmetro (topoi) de leitura. Como aEscritura oculta um mistério em todas as suas letras elepromove a universalização do tipológico ou cristológico(GRONDIN, 1999, p. 64-70).

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Agostinho 5, Lutero 6, Fracius 7 etc. Essa observaçãodesfaz a perspectiva de que no passado a doutrina dainterpretação possuía apenas regras esparsas quedepois veio a se reunir numa teoria geral. Se essa leiturahistórica tem algum valor, ela decorre de um processodescontínuo e muito particular, concebido de formaimprecisa em termos teleológicos.

Grondin (1999) apresenta diferentes exemplospara desfazer esta marca teleológica e evolutiva datradição hermenêutica. Por exemplo, atribui-se aSchleiermacher a perspectiva de desregionalização dahermenêutica, porém já no século XVII com Dannhauer,Meyer e Chladenius, a hermenêutica aparece comoteoria geral da interpretação, rompendo o quadro das

5 Em Agostinho a universalidade do verbo interior. A palavranão é só mero som audível (flatus vocis), som e ruído, mascarrega um sentido inteligível e universal. O homem paraproceder com certeza deve ater-se, ao falar, à verdade do“verbum” interior (GRONDIN, 1999, p. 70-81).

6 Em Lutero a universalidade do literal (sui ipsius interpres).Lutero rejeita a interpretação alegórica e a interpretação dosquatro sentidos da escritura orientando-se para o sensus

literalis, o sentido literal já contém um significado espiritual(GRONDIN, 1999, p. 81-84).

7 Em Fracius a universalidade do gramatical (gramma). Aspassagens obscuras são meramente de ordem lingüísticas egramaticais, o domínio da letra, gramática (gramma) deveriafornecer a chave (clave) para as passagens obscuras.Concretiza assim a perspectiva de Lutero do “sui ipsiusinterpres” de uma interpretação imanente recorrendo àadução de passagens paralelas, princípio que já se encontraem Agostinho. Suas regras se tornaram o manual básico dahermenêutica protestante até o fim do século XVIII(GRONDIN, 1999, p. 85-89).

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. hermenêuticas especiais. Da mesma forma, a idéia deuma ciência compreensiva é muito mais obra dopróprio Schleiermacher do que de Dilthey comodocumenta Grondin (1999, p. 30): “A concepção, quese tornou corrente, de que a hermenêutica de Diltheydeveria fornecer algo como uma base metodológicadas Geisteswissenschaften, é [...] menos diltheyano doque normalmente se crê, necessitando, por isso, derevisão”.

As pretensões de universalidade da hermenêuticamais antiga só puderam antecipar as consideraçõesatuais graças ao tipo de consciência que temos desteproblema no século XX; depois que tal pretensão deuniversalidade da hermenêutica foi reivindicada porGadamer. Portanto, a leitura de Grondin estácomprometida com este cenário da hermenêuticafilosófica inaugurada por Gadamer.

Pode-se perceber o terreno movediço ao qualse encontra a tarefa de traçar a história dahermenêutica, na medida em que Grondin pretendereconstruir toda a tradição interpretativa, nãonecessariamente filosófica, sob um núcleoparadigmático – “a ideia de um cerne comum do esforçohermenêutico a ser sempre reconquistado” (GRONDIN,1999, p. 93) – suscitado num período preciso em quea hermenêutica viria a adquire consciência de si, comosugere a “hermenêutica filosófica” de Gadamer.

Poderíamos perguntar, desde já, se a pretensãoque se manifesta na própria definição do campohermenêutico por Grondin, como veremos, queacompanha Gadamer, não seria derivada da mesma

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pretensão ontológica que acompanha ahermenêutica desde Heidegger e que Ricoeurprocura avançar por um via longa de diálogo com asciências humanas, a partir de uma nova definiçãode seu objeto: os textos e o quase-texto da ação e dahistória, que se configuram em forma narrativa.Permanece a suspeita de que a ideia de conflito dasinterpretações que Ricoeur assume em sua trajetóriahermenêutica mostra-se diametralmente oposta aesta orientação unitária da hermenêutica. Seria estauma das razões da exclusão de Ricoeur desseempreendimento de Grondin de uma narrativahistórica da hermenêutica?

O que contribuiu decisivamente para a tomadade consciência da universalidade do ponto de vistada hermenêutica na atualidade foi a descoberta docaráter fundamentalmente interpretativo de nossaexperiência do mundo que, depois de Kant e aradicalização com Nietzsche – embora essapossibilidade também tenha sido antecipada peloceticismo antigo e os sofistas –, torna o estatuto dainterpretação ou da hermenêutica a base do próprioato de filosofar, ou seja, a interpretação alcança ostatus de filosofia primeira, paradigma para qualquermediação compreensiva de nossa experiência demundo.

Embora diversa, as pretensões de universalidadeda hermenêutica em seu significado filosófico, derivamde uma concepção comum que pode ser vinculada aosentido etimológico do termo grego hermeneuen,“tornar compreensível”, como veremos a seguir.

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. 3 ETIMOLOGIA DO TERMO HERMENÊUTICA

O termo “hermenêutica” provém do gregohermeneuen e seus derivados hermeneus e hermeneia quesignifica declarar, anunciar, interpretar e traduzir. ParaGrondin (1999, p. 52-56) esta multiplicidade de acepçõescoincide na idéia de “tornar compreensível”, sendo esteseu significado etimológico mais preciso.

É provável que o termo derive de Hermes, omensageiro dos deuses na mitologia grega, a quem seatribui a origem da linguagem e da escrita, e a quemcompetia conduzir a mensagem dos deuses até os homens,“tornar compreensível” uma sentença, uma mensagemou um oráculo dos deuses. Dessa forma o termo derivado horizonte sagrado e não para menos foi empregadoprimeiramente no domínio teológico (exegese), emboraos textos profanos como obras literárias, testemunhoshistóricos e textos legislativos, também suscitassemproblemas de interpretação, o que exigia a reformulaçãodo significado do termo.

Não pretendemos passar em revista os maisdiferentes significados que a ideia de hermenêutica emseu sentido lato poderia sugerir e como ela foicompreendida nos mais diferentes contextos históricosno ocidente. Anteriormente apresentamos um breveesboço (parte 2) que será ampliado a seguir (parte 4 e5). Entenderemos a hermenêutica aqui no seu sentidoestrito como teoria da interpretação. Fora dos limites deuma teoria – elaborada apenas na modernidade – semprehouve interpretação, mas nenhuma teoria sobre ainterpretação. Nesse sentido, sabemos que mesmo antesda filosofia já existia exegese dos mitos, pois não hámito sem que haja alguém que o decifre.

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4 HERMENÊUTICA COMO TEORIA DA INTERPRETAÇÃO

Notamos que a definição do que devemosentender por hermenêutica pode ajudar-nos a traçaros contornos do que devemos procurar e identificarcomo traços relevantes de sua história. Observa-se,contudo, que mesmo no seu sentido estrito de teoria

da interpretação, não está claro o que devemos entenderpor “teoria” da interpretação, uma vez que esta idéia éno mínimo polissêmica. Para uns ela deve indicar asregras de como lidar com textos, para outros deverenunciar a esta tarefa técnica (Schleiermacher) eassumir uma forma mais abrangente do fenômenooriginário da interpretação como uma condição de todoser humano que compreende (Heidegger).

A ideia de “interpretação” também necessita deum limite, pois, como dissemos no início, a próprialinguagem é identificada com a interpretação, bastalembrar o tratado sobre a linguagem de Aristóteles quecarrega o título Da interpretação. Para Aristótelessignificar algo já é interpretar. Neste caso, uma teoriada interpretação seria uma teoria da linguagem, sendoassim, uma introdução histórica da hermenêuticadeveria conduzir a uma teoria da linguagem. Em vistadessa amplitude, Grondin propõe uma restrição quevai de encontro ao sentido etimológico antesenunciado: “a interpretação só aparece quando umsentido estranho, ou percebido como estranho, deveser tornado compreensivo” (1999, p. 49). Essa ideiade teoria da interpretação adquire relevância universalporque todas as atividades humanas possuemdeterminado processo de compreensibilidade. Com tal

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. definição Grondin procura perfilar as diferentesperspectivas históricas e sua pretensão deuniversalidade. É preciso reconhecer que este sentidoé ainda bastante amplo se, por exemplo, tomarmos adefinição de Paul Ricoeur (1986, p. 83): “ahermenêutica é a teoria das operações da compreensãoem sua relação com a interpretação dos textos”.

O problema da universalidade da interpretação,mencionamos acima, já estava presente de formaimplícita em vários momentos da tradição, porémnunca foi articulado sob o título de hermenêutica enunca foi levado a cabo de modo explicito, isso pordois motivos principais: primeiro, porque até o séculoXVIII, o sentido dominante desta vasta tradiçãodesenvolveu-se, em grande parte, sem ter plenaconsciência de si mesma e, até o século XVII, sem fazersequer referência ao termo “hermenêutica”. Dannhauer(1654) foi o primeiro a empregar o termo no título deum livro (GRONDIN, 1999, p. 27; 47).

O segundo motivo se encontra no sentidolimitado de técnica (ars) que a interpretação adquiria(e não theoria), como nos diz Grondin (1999, p. 49),“o processo de interpretação no passado, com rarasexceções, era tratado como um problema especial, doqual devia assenhorear-se uma disciplina normativaauxiliar no âmbito das ciências interpretativas”. Ahermenêutica, desde o surgimento do termo no séculoXVII, sempre foi compreendida no sentido de uma artede interpretar (ars interpretandi), a qual competiaapresentar as regras da interpretação competente.Tinha, portanto, uma clara intenção normativa e

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técnica de evitar a arbitrariedade no campo dainterpretação de textos, signos e símbolos. Ahermenêutica ficou circunscrita ao conteúdo específicodestes textos. Isto não quer dizer que não haviauniversalidade da interpretação, apenas que estavacircunscrita a domínios de discurso específicos. Porexemplo, as Sagradas Escrituras continham o conteúdouniversal do que se deveria saber (GRONDIN, 1999,p. 23; 41; 70-81), tal como a filologia continha as regrasuniversais para ler os textos profanos e a jurisprudênciapara compreender as leis.

O círculo do que tinha valor universal de leiturasó veio a ser ampliado com a modernidade (GRONDIN,1999, p. 93). A Renascença passa a valorizar tambéma autoridade da tradição clássica. Temos assim paraas Escrituras regras que não se aplicam aos textospagãos ou às leis. Porém já no século XVII comDannhauer, Meyer e Chladenius, a hermenêuticaaparece como teoria geral da interpretação, rompendoo quadro das hermenêuticas especiais e não apenasem Schleiermacher como se quis sugerir (GRONDIN,1999, p. 27).

Essa hermenêutica mais antiga partia de umaespécie de compreensibilidade de princípio, ou seja,na maior parte das vezes não precisamos interpretar,porque já sabemos o que precisamos compreender,conforme a antiga tradição do “crer para compreender”.Agostinho, o autor dessa expressão, considerava queas Sagradas Escrituras já continham tudo o que sedeveria saber, só precisamos recorrer a regras deinterpretação quando há passagens obscuras. Nele

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. encontramos ao mesmo tempo, um sentido técnico paracompreender as passagens obscuras e o sentido universaldo logos interior que se antepõe à palavra exterior.

A contribuição decisiva de Schleiermacher nãofoi apenas ter apresentando um conjunto de regrasgerais para a interpretação, certamente o propôs, comooutros o fizeram antes dele, mas ter colocado oproblema da universalidade da interpretação, numsentido mais radical, como um problema dacompreensão em geral. Tal reviravolta só foi possívelpelo reconhecimento da universalidade do mal-entendido, que torna a interpretação uma tarefainfindável. A identificação da interpretação com aproblemática geral da compreensão estabelece, pelaprimeira vez, certo decentramento do conteúdo dostextos que se quer interpretar (objeto), para acompreensão de um sujeito que pode estar, desde oprincípio, equivocado. Começa aí a delinear-se auniversalidade do processo hermenêutico decompreensão e interpretação. Assim os termoscompreender e interpretar adquirem a mesmaextensão: compreender já é sempre interpretar, nãohá compreensão sem interpretação.

Porém, para Schleiermacher a interpretaçãoainda é um meio através do qual se compreende.Sublinha ainda a velha tradição das regras e técnicaspara a melhor compreensão: a interpretação gramatical

ou técnico-psicológica, sendo esta última voltada parao ato criador do autor. Assim, o que se entende mal nofundo é o pensamento íntimo do autor, o que ele queriadizer; é por isso que se deve interpretar.

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Apesar da dificuldade que consiste em decifraro projeto hermenêutico de Schleiermacher 8, é precisoreconhecer que a interpretação psicologista, que lheatribuiu Dilthey, não é adequada. Grondin procurafazer justiça ao texto de Schleiermacher restituindo-lhe o seu sentido dialético, o círculo hermenêutico, arelação parte-todo à qual está subordinada estaintenção do autor, na qual o lingüístico deve serentendido como “emanação de pensamento interior,ou seja, como tentativa de comunicação de uma alma”(GRONDIN, 1999, p. 134). É claro que não podemosremover a marca romântica desse intento de capturara genialidade do autor.

Schleiermacher não tem consciência darevolução que está a operar. Será tarefa de Dilthey, aodefrontar-se com o problema do historicismo, realizartal reviravolta epistemológica. Ele passa a compreendera hermenêutica como uma metodologia universal dasciências do espírito, no intento de preencher umalacuna do kantismo, que desconsiderou a crítica doconhecimento histórico e das ciências do espírito.

5 HERMENÊUTICA E FENOMENOLOGIA

A tradição posterior a Scheleiermachersustentou que a hermenêutica deveria renunciar a essatarefa crítica para assumir a forma mais abrangente

8 Não é nossa intenção aqui apresentar as diferentes matizesde sua teoria hermenêutica que nunca levou a cabodefinitivamente e que pode conduzi-la para posiçõescontestáveis por seus contemporâneos, cabe aqui a advertênciade Grondin (1999, p. 27-28) “a classificação da teoriahermenêutica de Schleiermacher é tudo menos algo unívoco”.

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. de uma análise fenomenológica do fenômeno originárioda interpretação e, respectivamente, da compreensão.Nesse sentido fenomenológico, a hermenêutica nãoensina como se deve interpretar (técnica exterior), mascomo de fato se interpreta (ação interior, ato deinterpretar). Em relação à tradição anterior em que ainterpretação é um meio para se compreender, ou seja,primeiro se interpreta para depois compreender,Heidegger realiza uma inversão: a interpretação é aexplicitação do modo de compreensão do Dasein. Nocaso específico da interpretação de textos: antes deinterpretar é preciso explicitar a própria situaçãohermenêutica, a pré-compreensão, para nãoprocedermos de forma acrítica. A interpretaçãoesclarece e desenvolve a pré-compreensão, como nosdiz Heidegger (1989, p. 204, [§ 32]) “interpretar nãoé tomar conhecimento de que se compreendeu, maselaborar as possibilidades projetadas na compreensão”.A busca da autotransparência do Dasein estabelece umcírculo entre a interpretação e a pré-compreensão quea retroalimenta. O avanço crítico positivo desse círculo,e a tarefa da hermenêutica, se jogam na desconstruçãoda tradição, para avançar na interpretação do Dasein.O “tornar compreensivo” do esforço hermenêutico quese vinculava à interpretação de textos passa a ser umexistencial do ente situado no tempo, do Dasein.(HEIDEGGER, 1989, p. 204-211).

Essa autointerpretação não ocorre fora dalinguagem, mas ela é sempre um modo derivadodaquela estrutura fundamental do Dasein. A posiçãode Heidegger em relação ao aspecto derivado da

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linguagem é decisiva para a hermenêutica posterior.Heidegger se mantém fiel a esta perspectiva deste Ser

e Tempo, porém, noutro contexto 9, faz da linguagemo lugar privilegiado da hermenêutica, que carrega a

mensagem (hermeneuen) para a compreensão. Paracompreender é preciso escutar a mensagem que écarregada pela linguagem (HEIDEGGER, 2003, p. 71-120).

Em relação a esses tímidos aportes à noção dehermenêutica em Heidegger, Gadamer assumedecisivamente o termo e o propósito de levar a cabouma “hermenêutica filosófica”, seguindo esta guinadaontológica da hermenêutica inaugurada por seu mestre.Como nos diz Ricoeur, o problema central dahermenêutica de Gadamer é a retomada do debate comas ciências do espírito e a espécie de distanciamentoalienante Verfremdung que é próprio dessas ciências eda consciência moderna (1986, p. 106). Heideggerconsiderou o problema das ciências do espírito, algoderivado da compreensão fundamental, afastando-sede qualquer atitude metodológica. A idéia de umfundamento atemporal representava para Heideggeruma fuga da temporalidade e algo negativo, como podeser enunciado nos termos in-finito ou não-temporal.Com isso, deixa de lado o problema do historicismo edas ciências do espírito.

9 Ver a respeito HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem.Trad. Marcia Sá Cavalcante Schubeck. Petrópolis: Vozes;Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2003, p. 71-120 (De uma conversa sobre a linguagem entre um pensador eum japonês).

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. Gadamer retoma este diálogo, não emcontinuidade com a perspectiva epistemológica deDilthey, que transfere o metodologismo vigente naciência moderna para as ciências compreensivas doespírito. O ideal de ciência moderna não correspondecom o ideal humanístico mais antigo das ciências doespírito que não procedem como nas ciências danatureza por “indução lógica, que destaca regras e leisa partir do material recolhido”, mas através da “induçãoartística” para a qual “não existem regras definitivas”(GRONDIN, 1999, p. 182). As ciências do espírito viamno gosto ou no senso estético um valor deconhecimento, e não um mero valor subjetivo comoem Kant. A subjetivação do juízo do gosto desacreditouo conhecimento das ciências do espírito pressionado-apara a metodologia das ciências naturais. Por isso aprimeira parte de Verdade e método, busca precisamenteretomar esse debate. É no seio dessa tradiçãohumanística que se faz justiça à pretensão cognitivadas ciências do espírito, reprimida pelo conceito demétodo das ciências modernas (GADAMER, 1998).

A primeira parte de Verdade e método se propõerealizar uma crítica da consciência estéticareconhecendo-lhe um valor de conhecimento emoposição à subjetivação a que Kant relegou o juízo dogosto ou o senso estético em relação ao conhecimentoda natureza, que implodiu os pilares das ciências doespírito. Gadamer apresenta a experiência do jogocomo um modelo do tipo de conhecimento que presideo senso estético e a racionalidade nas ciências doespírito. No jogo mantemos uma relação com o objeto

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em que o sujeito não domina a situação, os jogadoressão conduzidos pelo jogo. Após repor estes pilares, nasegunda parte da obra, Gadamer se propõe reconstruira pré-história das ciências do espírito ou dahermenêutica 10. Aí ele se defronta diretamente com oproblema do historicismo, que pressupõe um modometodológico de acercar-se ao conhecimento histórico,tal como foi levado a cabo pela postura epistemológicade Dilthey. Gadamer considera que apenas arevalorização do mundo da vida por Husserl e ahermenêutica da facticidade de Heidegger estão emcondições de afrontar a espécie de consciênciaalienante vigente nas ciências do espírito.

Para o historicismo o mundo humano éresultado de um processo de formação histórica quepode ser recontruído e compreendido; a objetividadehistórica é possível desvinculada da subjetividade, dospreconceitos do sujeito. Eis a contradição dohistoricismo que Gadamer aponta: o historicismotambém resulta de um processo de constituiçãohistórica, é filho do cientificismo, mas em virtude deseu pressuposto positivista, de neutralidade – que sepretende fora da história –, não pode reconhecer. Comajuda de Heidegger, Gadamer desmascara dicotomiade sujeito e objeto implícitos no historicismo.

10 A recepção de Gadamer, sobretudo na França, deu maiordestaque a essa segunda parte da obra, embora hoje,tardiamente, se tenha prestado maior destaque à primeira eultima parte da obra. Ver a respeito, RICOEUR, Paul. Le retour

de Gadamer, 1996, p. 1-2. in: <http://www.fondsricoeur.fr/>,acesso em: agosto de 2010.

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. A hermenêutica de Gadamer avança no sentidode uma reabilitação dos preconceitos, ou melhor, de dar-se conta da própria preconceitualidade da compreensãopara não impor um julgamento precipitado sobre a coisaque se quer compreender, a fim de deixar a própria coisaou o texto falar. Através da valorização dos preconceitosse joga uma nova releitura crítica da hermenêutica, a dediscernir os preconceitos falsos dos verdadeiros, sem quehaja critérios absolutos para tanto, porque sempre se estáno círculo da compreensão. Se houvesse algum critério,não haveria mais o que perguntar ou compreender. Oque pode haver são indícios de melhor compreensão.O que torna tais indícios verdadeiros é o fato de elessó se esclarecerem com a distância temporal, no olharhistórico retrospectivo, uma vez que não podemos sairda pré-compreensão e da história, como reza o textoda tradução brasileira de 1998: “Nada além do queessa distância de tempo torna possível resolver averdadeira questão crítica da hermenêutica, ou seja,distinguir os verdadeiros preconceitos, sob os quaiscompreendemos, dos falsos preconceitos que produzemos mal-entendidos” (GADAMER, p. 447, grifos nossos).Como nos informa Grondin (1999, p. 189), mais tardeGadamer se dá conta da unilateralidade deste seuprincípio, porque a distância temporal não se apresentasempre de forma produtiva, a história atua tambémcomo fator de encobrimento da verdade, para não falardo esquecimento que pesa sobre ela. É por isso que naquinta edição de suas obras completas (1985) Gadamerretoca o texto e substitui “nada além...” por“frequentemente”.

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Não vamos desenvolver todos os pressupostosda concepção hermenêutica de Gadamer. Gostaríamos,como anunciamos no título, de fazer justiça a outroexpoente da hermenêutica contemporânea, PaulRicoeur, que não foi mencionado por Grondin em suaIntrodução à hermenêutica filosófica (1999), o quemereceria uma justificativa à parte.

6 JUSTIFICAÇÃO DE UMA AUSÊNCIA: A ORIGINALIDADE DA

HERMENÊUTICA DE PAUL RICOEUR

Lançamos algumas hipóteses para tal ausência:a primeira poderia vir da própria perspectivadescontínua que Grondin está a adotar. É verdade quetal perspectiva não desconsidera a tradição francesa,uma vez que Derrida é incluído em suas análises, porémnão faz referência ao nome mais significativo datradição hermenêutica da França que é Paul Ricoeur.Neste particular a descontinuidade pode ser sinônimode arbitrariedade motivada talvez pelo fato de Grondinnão ter compreendido suficientemente, àquela altura,a obra de Ricoeur para tê-la incluída em sua Introdução.

Uma segunda hipótese poderia vir da própriaquestão que baliza sua investigação: “que espécie deuniversalidade pretendia cada forma de hermenêuticainvestigada e que espécie de universalidade deve oupode pretender a hermenêutica atual” (1999, p. 41).Ele reconhece que o adjetivo “filosófico” do título desua obra Introdução à hermenêutica filosófica, é umassunto de Gadamer e nós perguntamos, qual o lugarda hermenêutica de Ricoeur nesse contexto? Teria ahermenêutica de Ricoeur renunciado à universalidadedo ponto de vista hermenêutico e priorizado o caráter

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. mais técnico e metodológico da teoria dainterpretação?, como ele mesmo sugere num artigoem que se debruça sobre o debate das concepçõeshermenêuticas de Gadamer e Ricoeur11. Talalternativa não faz justiça a Ricoeur, uma vez que eleprocura, uma alternativa mais larga do que oencurtamento metodológico. Almeja uma sínteseentre epistemologia e ontologia, explicação ecompreensão, tarefa que, como vimos, vem na própriavertente de Gadamer.

Uma terceira hipótese pode estar vinculada aofato de Grondin incluir apenas os autores que travaramalgum confronto direto com a hermenêutica filosóficade Gadamer como é o caso de Betti, Habermas e Derridaque ele comenta ao final de seu livro. Ricoeur de fatonão foi adversário de Gadamer, ambos lutavam emfrentes diferentes e seguiram tradições diferentes.Cremos que existe um motivo a mais, reconhecido porGrondin numa entrevista: de que Ricoeur teriapriorizado a debate apologético com seu outro, umafilosofia do diálogo que lhe impediu de constituir umaidéia autônoma de hermenêutica. No artigoL’herméneitique positive de Paul Ricoeur (GRONDIN,1990, p. 121-137) acrescenta que tal idéia original, éapenas apresentada em Temps et recit, a partir dosentido largo de narração ao invés do texto. Ricoeurnão concorda com esta abordagem, como esboça em

11 GRONDIN, Jean. De Gadamer à Ricoeur. Peut-on parler d’uneconception commune de l’herméneutique? In: FIASSE, Gaëlle(Org). Paul Ricoeur. De l’homme faillible à l’homme capable.Paris: Puf, 2008, p. 37-62.

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resposta ao texto de Grondin12, porque este nãovalorizou sua contribuição específica para a tradiçãohermenêutica. Não sabemos até que ponto esta lacunade Grondin em relação a Ricoeur tem sido reparadaem virtude de diferentes artigos dedicados ao seupensamento, tendo ainda participado de importanteseventos sobre o pensamento desse autor. Num artigorecente, considera que a hermenêutica de Ricoeur nãoconseguiu resolver os problemas metodológicos quereprova em Heidegger e Gadamer (GRONDIN, 2008, p.53). Discutimos noutra ocasião 13 porque discordamosdesta posição, mas vale lembrar que o cerne do debateestá no pressuposto de uma antecipação da ontologiapor parte daqueles autores que se transforma na diretrizargumentativa de Grondin.

Em vista dessa lacuna, apresentamos nasequência as contribuições que julgamos maisimportante e que justificam a originalidade dahermenêutica de Ricoeur em função da ausência quereprovamos no texto de Grondin.

Ricoeur subdividiu a tradição da hermenêuticacontemporânea em duas vertentes principais, aepistemológica, a qual se associa Schleiermacher, massobretudo Dilthey e a vertente ontológica que inaugurouuma reviravolta na herança epistemológica dahermenêutica a qual se vincula Heidegger e Gadamer.

12 Paul Ricoeur: réponses aux critiques. In: BOUCHINDHOMME,Cristian; ROCHLITZ, Rainer. Temps et recit en débat. Paris:Du Serf, 1990, p. 201-205.

13 LAUXEN, Roberto R. Interfaces e distanciamentos entre ahermenêutica de Hans Georg Gadamer e Paul Ricoeur.Philósophos, Goiânia, v. 17, n.1, p. 127-158, jan./jun., 2012.

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. Ricoeur procura conciliar as duas vertentes. Ele adereà intenção filosófica da hermenêutica, mas procuracerto encurtamento do conceito abrangente derivadodo termo hermeneuen “tornar compreensível”, e assimdefine a hermenêutica: “é a teoria das operações dacompreensão na sua relação com a interpretação detextos” (RICOEUR, 1986, p. 83). Embora tenhaenfatizado a dimensão narrativa de toda experiência eestendido esta noção de texto para outras áreas dasciências humanas, como a história e a ação, nuncaabandonou este limite.

Não é nossa intenção demonstrar como Ricoeurprojetou essa espécie de articulação daquela duplatradição, queremos apenas destacar um ponto que, aonosso modo de ver, converge para a posição original

da hermenêutica de Paul Ricoeur face à Heidegger eGadamer e à tradição mais antiga da hermenêutica,que Grondin não mencionou nos raros momentos emque se ocupou do pensamento hermenêutico deRicoeur. Não é apenas o fato mais aparente, queRicoeur retornaria a uma hermenêutica maistradicional ao eleger a problemática dos textos comotema central; nem tampouco a inclusão daproblemática narrativa, como ressaltou Grondin(1990), ou da problemática reflexiva em relação àhermenêutica ontológica. De fato estes três momentossão importantes a serem destacados na determinaçãoda posição de Ricoeur face à tradição hermenêutica,mas eles só fazem sentido, e este é o fator decisivo,com base no conceito semântico e analítico delinguagem que ele sempre procurou vincular à sua

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hermenêutica, que falta tanto a seus parceiros, quantoao intento da hermenêutica mais antiga dainterpretação de textos 14.

Enquanto Gadamer parte de uma concepçãoontológica da linguagem, que faz da linguagem o lugarprivilegiado da experiência hermenêutica, segundo seuadágio lapidar “ser que pode ser compreendido élinguagem” (1998, p. 687), Ricoeur situa alinguisticidade da experiência, num nível crítico emque a base semântica vem dar sustentação àhermenêutica, sem que esta intenção explicativa reduzaa linguagem a objeto ou instrumento, como manifestouGadamer15. Ricoeur desenvolve uma abordagembidimensional da linguagem, entre semântica esemiótica, herdada de Benveniste. Apenas a dimensãosemântica da linguagem, em contraposição ao sistemasincrônico de signos da semiótica, possui evento esentido e sentido e referência e carrega em si aproblemática da inovação semântica. O símbolo, ametáfora e a narrativa apenas fazem avançar estaperspectiva de que a linguagem sempre fala do mundo,tem referência. Esta semântica da frase ou do discurso,contempla uma estratégia sintética da linguagem, pois“uma frase é um todo irredutível à soma das partes”(RICOEUR, 2003, p. 21) que carrega em si aproblemática ontológica tão reclamada por aqueles

14 Partilhamos da posição de Jean Greisch em Paul Ricoeur.

L’itinérance du sens. Grenoble: Jérôme Millon, 2001, p. 141.15 Possivelmente Gadamer tenha entendido a análise das ciências

da linguagem apenas em seu sentido semiótico, sem levar emconta a dimensão semântica.

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. autores. A hermenêutica trata de textos, de unidadesmais longas do que a frase, mas tem seu sustentáculonesta semântica da frase que Ricoeur trata de explicitar.

Este conceito semântico e analítico dalinguagem foi desenvolvido em diferentes trabalhos porRicoeur – em obras posteriores a La metaphore vive,ele se ocupa da narrativa e da análise da linguagemordinária – e representa seu principal avanço para atradição hermenêutica. Com isso, pôde fazê-la avançarnum diálogo mais sólido com as ciências humanas,preservando maior continuidade entre compreensão eexplicação. Diferente de Dilthey, que joga a explicaçãopara as ciências da natureza, Ricoeur encontra nasciências humanas modelos nomológicos auxiliares àcompreensão: o estruturalismo, a linguística, a filosofiaanalítica, a psicanálise, etc. Por isso ele concebe ocampo da hermenêutica como um campo conflitual ea tarefa da hermenêutica filosófica consiste em arbitraros conflitos dentro das interpretações e métodos jápraticados nas ciências humanas. Pode-se dizer que ahermenêutica de Gadamer opera por trás dos conflitosmetodológicos, enquanto a hermenêutica de Ricoeur,procura reparar as posturas redutoras do sentido,abrindo-se ao diálogo franco com as ciências. Poradotar a via longa de diálogo com seu outro, Ricoeurposterga a possibilidade de uma ontologia. Destaestratégia de Ricoeur podemos retirar a máxima lapidarde seu projeto hermenêutico: “explicar mais paracompreender melhor” (RICOEUR, 1986, p. 25).

Ricoeur ainda desdobra uma dupla concepçãode hermenêutica: enquanto restauradora do sentido e

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como exercício de suspeita. Esta última perspectiva sedirige ao papel diferenciado que Ricoeur atribui àfilosofia do cogito, uma vez que a hermenêutica dasuspeita contribui para uma melhor compreensão dosujeito, libertando-o de suas ilusões. Podemos dizerque em sua última fase esta problemática reflexiva vemcoroar o grande desvio de sua hermenêutica numprojeto de uma antropologia do homem capaz.

Para finalizar incluímos em nossa análise umaspecto marcante da hermenêutica contemporânea,muito oportunamente trazido à luz por Grondin, emrelação à hermenêutica mais tradicional que tantoGadamer quanto Ricoeur procuraram de algumaforma superar: o perspectivismo interpretativo deNietzsche.

7 A MODO DE CONCLUSÃO: NIETZSCHE E O CARÁTER

INTERPRETATIVO DA EXPERIÊNCIA HUMANA

Embora sempre houvesse alguma iniciativa deuniversalidade no campo interpretativo e inclusivetentativas de sistematização das regras para ainterpretação numa hermenêutica geral, mesmo antesde Schleiermacher – que constituem duas das tesesprincipais de Grondin –, nunca houve a espécie deradicalidade que pudesse fazer da interpretação oestatuto universal da compreensão humana e dafilosofia. Hegel em sua Carta à Niethammer 16 se queixadas tendências estéticas e interpretativas que rondavamo meio acadêmico de sua época. Gadamer, não para

16 HEGEL, G.W.F. Escritos pedagógicos. Mexico: Fondo de CulturaEconômica, 1991, p. 182.

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. menos, inicia justamente sua grande obra pelaconsciência estética.

Tal perspectiva do caráter interpretativo domundo é aberta na filosofia pela distinção kantianaentre fenômeno e coisa em si, por isso o kantismocontinua sendo o pressuposto fundamental dahermenêutica moderna, o acesso ao mundo só épossível através do aparecer subjetivo (fenômeno). ParaKant isto não constitui nenhum risco para aobjetividade, uma vez que todos os homens são dotadosdas mesmas categorias racionais.

Schleiermacher reflete sobre dois aspectos quepreside a práxis da interpretação, a interpretação maislaxa, branda e outra mais austera. Quanto à primeira, acompreensibilidade é um dado, a não-compreensão é aexceção, há hermenêutica apenas para resolver um mal-entendido eventual. O caso paradigmático é Agostinho:até as crianças compreendem bem o evangelho, diz ele,mas quando há “passagens obscuras” é preciso aplicaras técnicas adequadas para decifrá-las, que ele trata deesclarecer no terceiro livro de Doutrina cristã. Quanto àinterpretação austera a compreensão é radicalmentedificultada, partimos sempre da universalização do mal-entendido. Vimos que a partir daí começa a delinear-sea universalidade do processo hermenêutico decompreensão e interpretação.

Retornamos aqui a Schleiermacher, paraintroduzir a posição de Nietzsche face a estauniversalização do mal-entendido, que estrutura todaa problemática da hermenêutica contemporânea e quea distingue definitivamente da hermenêutica mais

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tradicional. O que a hermenêutica contemporâneaacrescenta a esta radicalização do mal-entendido é aidéia de finitude, possibilitada principalmente porNietzsche e pela hermenêutica do Dasein de Heideggerque é ainda mais radical – uma vez que Nietzsche aindasustenta uma metafísica do porvir do homem. Este é oponto de ruptura com aquela tradição mais antiga dahermenêutica, ou seja, perdeu-se o campo deorientação que antes era conduzido ou pela idéia daphysis da antiguidade grega ou pelo logos cristão, emque a tarefa da hermenêutica consistia apenas eminterpretar um sentido já dado por um horizontesagrado inquestionável.

Com Nietzsche, a moderna imagem do mundose destaca por sua autoconsciência perspectivista. Elefoi o primeiro autor que tornou consciente o caráterfundamentalmente interpretativo de nossa experiênciado mundo, não limitado ao âmbito das ciências doespírito. O caráter interpretativo da vida não é exclusivoda exegese, filologia ou direito, propriamente “não háfatos, mas apenas interpretações” (NIETZSCHE, 2006,p. 222). É claro que não podemos tirar fora de contextoesta frase de Nietzsche, porque este fragmento iniciavoltando-se

[...] contra o positivismo que se detém no fenômeno,“só há fatos”, eu diria não, precisamente não háfatos, apenas interpretações. Não podemos constatarnenhum fato “em si”; talvez seja um absurdo quereralgo como isso. “Tudo é subjetivo”, dizeis vós: masisso já é interpretação, o “sujeito” não é algo dadosenão algo inventado e acrescentado, algo posto por

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. detrás. É em última instância necessário porainda o intérprete detrás da interpretação? Jáisso é invenção, hipótese (NIETZSCHE, 2006,7 [60], p. 222).

Este é o desafio maior que provoca todo odespertar da hermenêutica que agora passa ao primeiroplano, guardando o lugar da metafísica. Mas entãoperdeu-se a noção de horizonte diante desteperspectivismo? Gadamer não sucumbe aoperspectivismo, porque é no pathos da tradição e nasvozes do passado que continuamos um diálogo que jácomeçou, a partir do qual se recoloca o horizonte e apossibilidade de uma fusão de horizontes. Ricoeurprocura resolver o problema perspectivista pela viareflexiva – que Gadamer havia rejeitado, por ver aí araiz idealista de toda postura objetivista. Ricoeurprocura uma posição conciliadora entre as filosofiasdo cogito e anti-cogito. Concorda com Nietzsche que achave do conhecimento de si mesmo foi jogada fora 17,mas concordaria com outro aforismo, não se deve jogara água suja junto com a criança, ou seja, é precisomantém a problemática reflexiva sem a qual éimpossível manter a linguagem e nossas promessas(RICOEUR, 1990, p. 193-198).

Em relação à tradição mais antiga dahermenêutica, essa problemática da compreensão desi é jogada para o fim, porque o sentido não pertence

17 Referência que faz Nietzsche em Sobre verdade e mentira no

sentido extra-moral, § 1, afirmando que a natureza cala sobreseus segredos, ela jogou a chave fora, por isso o homem nadasabe sobre si mesmo.

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à intenção do autor, escondido atrás do texto, mas serevela em face do texto. É na apropriação do sentidodo texto que o sujeito se desapropria de si mesmo econstitui um si ampliado, exposto ao texto. Soi-même

comme un autre leva adiante uma hermenêutica do sique tem como ponto culminante a constituiçãonarrativa da identidade na qual o trajeto de retorno asi-mesmo é mediado pelo grande desvio dos signos,símbolos e textos.

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