Reconfigurações do Consumo Televisivo no Reality Show...
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13a15 de outubro de 2016)
Reconfigurações do Consumo Televisivo no Reality Show RuPaul’s
Drag Race1
Cristiano Nascimento Oliveira2
Universidade Federal da Bahia
Leonardo Trindade Araújo3
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
O presente artigo propõe uma análise cultural da rede de articulações entre o reality show
norte-americano RuPaul’s Drag Race e o público brasileiro, tomando como ponto de partida
as materialidades expressivas do programa televisivo e abarcando os ciclos de produção e
consumo gerados pelo reality show no contexto local – grupos e fóruns de discussão em sites
de redes sociais, bem como produtos midiáticos e eventos relacionados à temática drag queen.
O debate proposto é ancorado teoricamente na interface entre Comunicação e Estudos
Culturais, como estratégia para compreender, de forma panorâmica, a relação que o programa
estabelece com o público, a cultura e seus valores.
Palavras-chave: Consumo Televisivo; Reality Show; RuPaul’s Drag Race; Estudos
Culturais; Convergência Midiática
Fenômenos da televisão mundial na contemporaneidade, os reality shows
alcançaram popularidade entre um público diversificado unindo elementos de jogo,
realidade e ficção. A força e a repercussão dos programas do gênero mobilizam
cotidianamente uma verdadeira rede de comunicação, que envolve o
compartilhamento e o debate do conteúdo dos programas em sites de redes sociais,
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 6 COMUNICAÇÃO, CONSUMO e SUBJETIVIDADE,
do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação- Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Doutorando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail:
[email protected] 3 Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail:
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blogs ou fóruns e ainda a criação de “memes”, campanhas para algum candidato
especial, trending topics no Twitter, fanpages no Facebook, além de muitas outras
possibilidades de apropriação e consumo desse produto cultural.
Assim como os demais gêneros televisivos (GOMES, 2007), o reality show,
tal qual o conhecemos hoje, é resultado de um longo percurso, marcado por uma série
de mudanças econômicas, culturais, sociais e tecnológicas. De acordo com Meniconi
(2005), o marco inicial dessa trajetória é o programa Candid Câmera, exibido na
televisão norte-americana na década de 1940, que simulava situações capazes de
produzir, em pessoas anônimas, as mais inusitadas reações, que eram captadas por
câmeras escondidas. Já em 1973, foi ao ar nos Estados Unidos o programa “An
American Family”, a primeira experiência de retratar o cotidiano de pessoas
ordinárias, que conscientemente executavam seus afazeres diários para as câmeras de
televisão. O caráter competitivo do reality show foi introduzido em Real World,
exibido pela MTV norte-americana em 1992, que acompanhava o convívio de sete
jovens que até então não se conheciam e disputavam uma recompensa financeira
oferecida pela emissora. O primeiro programa do gênero a trazer o confinamento dos
participantes e a captação ininterrupta de imagens foi o Big Brother, lançado na TV
holandesa em 1999 e responsável pela popularização dos reality shows em escala
mundial.
No Brasil, o gênero (GOMES, 2011) chegou em meados do ano 2000, quando
a MTV brasileira começou a exibir o programa 20 e Poucos Anos - uma readequação
de Real World - que mostrava a vida de oito jovens que tinham seus cotidianos
acompanhados por câmeras e se reuniam semanalmente para discutir seus problemas
e suas diferenças. No mesmo ano, a Rede Globo – com um alcance muito maior –
colocou no ar No Limite, a versão brasileira do sucesso norte-americano Survivor,
atingindo grande audiência. Em 2002, incentivada pelo êxito obtido por Casa dos
Artistas, reality exibido pelo SBT, a Globo estreou a primeira versão de Big Brother
Brasil.
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Com o passar do tempo, os reality shows se revestiram de novos formatos que
lidam, em maior ou menor escala, com o monitoramento de seus participantes.
Atualmente, os programas adotam temáticas variadas que vão desde a simples
reforma do guarda-roupa até a radical intervenção proporcionada por uma cirurgia
plástica no rosto e no corpo, passando por lições de comportamento, remodelação da
casa, concursos musicais ou de aptidão culinária.
Toda esse itinerário nos remete à noção de processo de formação, proposta por
Williams (1997), pois demonstra o caráter dinâmico da conformação de determinados
traços estilísticos de um produto midiático. Nesse sentido, é possível afirmar que o
gênero televisivo conhecido como reality show, com suas marcas partilhadas por
produtores e audiência, está diretamente articulado à cultura e em construção
contínua.
Para viabilizar o estudo proposto, a análise parte dos aspectos formais de
RuPaul’s Drag Race. Desta maneira, organizamos o trabalho em duas partes: na
primeira, discutimos o reality, abordando as complexas redes que ligam os produtos
midiáticos ao público e aos contextos culturais nos quais são consumidos. Na
segunda, refletimos sobre a articulação entre o consumo televisivo e a relevância de
programas deste formato.
Shantay, You Stay - RuPaul’s Drag Race e a Cultura Drag
Entre os maiores exemplos de sucesso recente do gênero está o programa
norte-americano RuPaul’s Drage Race. O reality, desenvolvido pela produtora World
of Wonder e exibido no canal norte-americano de televisão por assinatura Logo TV,
já está em sua oitava temporada e mostra a competição entre drag queens que se
submetem a desafios semanais para conquistar a coroa e o título de “American’s Next
Drag Superstar”. Além do prestígio conferido pelo título e da projeção no mercado e
nas mídias, o vencedor ainda ganha prêmio em dinheiro, suplementos de cosméticos e
outras cortesias que são oferecidas durante episódios no programa.
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O reality é idealizado e apresentado por RuPaul Andre Charles, um dos
artistas mais icônicos da cena LGBT norte-americana. O apresentador tornou-se um
fenômeno midiático desde que surgiu como drag queen, em meados da década de
1980, nos meios de comunicação massivos dos Estados Unidos, atuando como ator,
cantor e diretor numa variedade de filmes, programas de rádio e de TV, propagandas,
eventos sociais e casas noturnas, além de videoclipes para promover seus álbuns
musicais. Com isso, impulsionou o imaginário estético e a subcultura drag queen não
só em seu país de origem.
Em cada uma das temporadas do programa iniciado em 2009, RuPaul reúne 12
candidatas que concorrem entre si em provas de habilidades cênicas, tais como
criação, produção e desfile de roupas, interpretação, dublagem de músicas, imitação
de celebridades e outros talentos, que vão desde a maquiagem até os diferentes
processos e graus de disfarce das formas masculinas e ilusão da aparência feminina. O
desempenho das candidatas é avaliado por um júri composto pelo próprio RuPaul,
pelos jurados fixos, Santino Rice e Michelle Visage, e convidados, quase sempre
celebridades.
Além de acompanhar a convivência entre as candidatas no processo de
preparação paras os desafios, a equipe do programa prepara surpresas, como
depoimentos de familiares ou namorados e, dessa forma, é possível acompanhar os
relatos de histórias e o cotidiano de cada uma delas, suas experiências íntimas com a
homossexualidade e com o mundo do entretenimento. Com isso, o reality acaba por
explorar potencialidades narrativas que humanizam a drag queen para além da
abordagem exótica, revelando suas emoções, vulnerabilidades e intimidades, e
trazendo a sua referência para outros contextos além das comunidades LGBT.
As temporadas de Drag Race privilegiam a mistura e combinação de tipos de
drag queens, que se diferenciam umas das outras pelas características e pesos
corporais, étnicas, de geração ou de experiência profissional. Desse modo, o programa
apresenta uma diversidade de referências estéticas que contribui para a identificação
do público dos diversos países que o acompanha. Essa pluralidade de perfis serve
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ainda de incentivo para quem deseja se dedicar a arte drag, uma vez que o reality não
oferece um padrão a ser reproduzido, mas uma gama de possibilidades de expressão
artística.
Por todas essas características, ao longo de suas edições, o programa foi não
só ampliando sua audiência, mas causando também cada vez mais repercussão. No
Brasil, pode-se afirmar que RuPaul’s Drag Race tornou-se uma referência
significativa de como as produções televisivas podem ser consideradas geradoras de
sociabilidade, propiciando afetos, tensões, experiências e identificações entre as
pessoas.
Transmitido inicialmente no país pelo canal por assinatura VH1 e depois pelo
Multishow, o reality show pode ser acompanhado pelo público brasileiro também
através da plataforma Netflix, onde se tornou um dos conteúdos mais populares entre
os assinantes. De forma ilegal, algumas páginas na internet fornecem links para
download de arquivos de mídia e legendas em português dos episódios.
Nesse contexto, a exibição de RuPaul’s Drag Race resultou em uma série de
produtos midiáticos com a mesma temática, páginas em sites de redes sociais e
eventos dedicados à arte drag que favorecem a compreensão e o consumo continuado
do reality norte-americano. Toda essa efervescência ganhou destaque em sites de
notícias, revistas e jornais locais4 que buscam compreender a popularização das drag
queens no país gerada pelo programa.
Na Rede Globo, o programa Amor e Sexo traz no elenco fixo a cantora drag
queen Pablo Vittar, além de contar com um quadro chamado Bishow, no qual homens
enfrentam o desafio de se transformar em drag queens com ajuda de profissionais
experientes da área. Acompanhando o sucesso do reality apresentado por RuPaul
surgiu Glitter5, versão nordestina transmitida pela TV Diário, de Fortaleza; Academia
4 Entre os diversos exemplos dessa visibilidade dada pela imprensa brasileira ao tema, podemos citar as
matérias veiculas no sites G1 e Carta Capital, disponíveis respectivamente nos seguintes links:
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/02/reality-show-americano-inspira-nova-geracao-de-drag-
queens-no-brasil.html> e <http://www.cartacapital.com.br/revista/841/como-o-efeito-rupaul-colocou-
drag-queens-na-moda-1956.html>. Acesso: 10/02/2016. 5 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=W82gwkD-qns>. Acesso: 10/02/2016.
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de Drags6, similar feito para o YouTube e apresentado por Silvetty Montilla, drag
queen mais conhecida do país; a websérie Drag-se7, que retrata a rotina de drag
queens cariocas; e o documentário Tupiniqueens8 que mostra a cena das drags queens
brasileiras após o programa.
No Facebook, páginas como All Rupaul9, com mais de 55 mil membros, e
Draglicious10 com quase 29 mil participantes, servem de ponto de encontro para o
público brasileiro que deseja debater sobre os episódios de RuPaul’s Drag Race ou
ainda ter acesso a links para download das temporadas com legendas produzidas pelos
fãs mais engajados. Nesses espaços diversas drags brasileiras participam dos fóruns
de discussão, postam vídeos de suas performances e, consequentemente, ampliam
suas apresentações em casas noturnas.
O número de festas dedicadas à arte drag também cresceu exponencialmente
pelo país, movimentando uma engrenagem econômica própria, ao juntar no mesmo
palco ex-participantes do reality norte-americano que realizam turnês por algumas
cidades brasileiras, drags locais com décadas de carreira e outras que começaram a se
montar incentivadas pelo programa. A capital baiana, por exemplo, não ficou de fora
da tendência11 e já possui uma série de eventos dedicados à essa expressão artística,
entre os quais podemos citar as festas Templo12, Freak13, Shade14, Gandaia15 e Casa
6 Disponível em: <https://www.youtube.com/academiadedrags>. Acesso: 10/02/2016. 7 Disponível em: < https://www.youtube.com/dragsetv>. Acesso: 10/02/2016. 8 Informações sobre Tupiniqueens podem ser encontradas na página do documentário no Facebook:
<https://www.facebook.com/tupiniqueens/>. Acesso: 10/02/2016. 9 Disponível em: < www.facebook.com/AllRuPaul>. Acesso: 10/02/2016. 10 Disponível em: <www.facebook.com/dragliciouz>. Acesso: 10/02/2016. 11 Matéria publicada no Jornal Correio relaciona o crescimento do cenário drag soteropolitano ao
reality norte-americano. A reportagem está disponível em http://www.correio24horas.com.br/single-
entretenimento/noticia/conheca-a-nova-geracao-de-drag-queens-de-salvador-reunidas-em-uma-
homenagem-a-iemanja/?cHash=5e8cf7632335ee2d2515b2e097499603. Acesso:10/02/2016. 12 Página da festa: < https://www.facebook.com/festatemplo/>. Acesso: 10/02/2016. 13 Página da festa:: <https://www.facebook.com/festafreak/>. Acesso: 10/02/2016. 14 Página da festa: <https://www.facebook.com/THESHADEPARTY>. Acesso: 10/02/2016. 15 Página da festa: < https://www.facebook.com/Festa-Gandaia-1527135434238060/>. Acesso:
10/02/2016.
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da Luz Vermelha16 que recebem performances de drag queens experientes e novatas
e, em alguns casos, de artistas que passaram pelo programa capitaneado por RuPaul.
Articulações entre o Programa Televisivo RuPaul’s Drag Race e o Público
Brasileiro
A discussão proposta ganha relevância dentro de um contexto em que mesmo
com toda a reivindicação dos Estudos Culturais da relevância cultural e social dos
produtos de entretenimento, ainda repercute no senso comum e até mesmo em alguns
círculos acadêmicos a percepção de que as expressões da indústria cultural estariam
ligadas às ideias de frivolidade e superficialidade, reafirmando lógicas hegemônicas e
buscando a simples manutenção das relações capitalistas. Nesse sentido, na medida
em que os reality shows apresentam grande êxito junto ao público dos países em que
são exibidos muitos jornais, revistas e portais de notícias especializados em crítica
televisiva tomam os programas do gênero como ícones de um processo de
empobrecimento da qualidade dos produtos midiáticos. Concomitantemente a esse
discurso, muitos pesquisadores (Baudrillard, 2002; Carneiro, 2004; Dutton, 2006;
Kilpp, 2008, Rocha, 2009, Rodríguez, 2008) lançam críticas contundentes aos
programas desse gênero considerando-os uma síntese da decadência tanto da atual
programação televisiva, quanto, e talvez principalmente, de sua audiência.
Em uma perspectiva contrária a essa visão unidimensional, a pesquisa
proposta busca compreender que os produtos televisivos podem, muitas vezes,
questionar padrões sociais e constantemente são ressignificados nas experiências de
consumo. Mesmo que muitas das críticas tecidas em relação aos reality shows sejam
pertinentes, apontamos para a necessidade de reconhecer que pessoas de contextos
socioculturais diferentes apresentam graus de interesse e tipos de motivação distintos
para acompanhar determinado programa televisivo e, em certa medida, exercem
16 Página da festa: < https://www.facebook.com/profile.php?id=100009846189838>. Acesso:
10/02/2016.
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algum tipo de agenciamento sobre o que é exibido pela televisão. Essa interface
teórica conduz nossa observação para a televisão, e mais especificamente para os
reality shows, levando em conta as relações que os programas estabelecem com o
público, a cultura e seus valores. A relevância dessa articulação é destacada por
Martín-Barbero (1993, p. 61):
A expansão e interpenetração dos estudos culturais e da comunicação não são
fortuitos nem ocasionais, respondem ao lugar estratégico que a comunicação
ocupa tanto nos processos de reconversão cultural – que a nova etapa de
modernização requer nestes países, – como na crise que a modernidade sofre
nos países centrais. Não é possível compreender o cenário atual desses
estudos sem pensar esta encruzilhada.
Assim, buscando evitar concepções teóricas monolíticas sobre os programas
televisivos, especialmente sobre os reality shows, a presente proposta de estudo busca
avançar na direção de uma abordagem multidimensional que compreenda a televisão
como um espaço específico, com regras e recursos próprios, mas situada dentro das
relações mais amplas que marcam a experiência cotidiana e a estrutura social. Logo, a
comunicação é compreendida aqui enquanto prática relacional, na qual os atores se
confrontam, reproduzindo e reelaborando discursos e representações sociais.
Soma-se a todas essas questões já elencadas, o debate proposto no projeto
sobre as transformações da experiência de consumo do fluxo televisivo (WILLIAMS,
1997). Exibido em emissoras de TV por assinatura, disponível na plataforma de
streaming Netflix ou por meio de arquivos para download, os episódios de RuPaul’s
Drag Race demonstram como a interferência de um número cada vez maior de
dispositivos tecnológicos, capazes de conceder ao usuário maior controle no consumo
da televisão, tem problematizado o fluxo enquanto característica fundamental do
meio, ao menos no sentido de que o fluxo televisivo é determinado por outra pessoa
que não o próprio espectador.
Como afirma Fechine (2009, p. 139), a “televisão tem sido afetada, de modo
direto, pelos novos modos de produção das tecnologias da convergência, seja pela
emergência dos meios interativos, seja pela circulação de conteúdos por diferentes
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sistemas de distribuição”. Nesse cenário de mudanças, o público tem a possibilidade
de acompanhar os conteúdos televisivos quando, onde e como quiser e, dessa forma,
precisa desenvolver novas competências e compreensões culturais sobre as diferentes
experiências de assistir televisão.
Com a possibilidade de quebra do fluxo, a oferta de conteúdos se tornou mais
vasta, acarretando numa maior segmentação do público e consequente fragmentação
da audiência televisiva, que se torna mais restrita e especializada. Lotz (2007, p. 30)
ressalta que a “televisão pode não estar morrendo, mas mudanças em seu conteúdo e
como e onde nós o consumimos complicaram a maneira de pensarmos e entendermos
seu papel na cultura”. Marcado pela influência mútua dos meios e pela coexistência
de novos e antigos hábitos de consumo.
Como o programa é consumido e dialoga com espectadores de contexto
distintos, nos remeteremos as noções de circularidade cultural e hibridismo, proposta
por Canclini (1997). O autor investe contra as diversas modalidades do raciocínio
maniqueísta, que pressupõem a existência de culturas isoladas e incomunicáveis e de
dicotomias entre tradição e modernidade ou entre o culto, o popular e o massivo. Em
seu argumento, o Canclini propõe as noções de desterritorialização e
reterritorialização, para explicar a perda da relação ‘natural’ da cultura com os
territórios geográficos e sociais e as relocalizações territoriais relativas, parciais, das
velhas e novas produções simbólicas. As discussões do autor serão relevantes,
justamente, para compreender como Rupaul’s Drag Race negocia com os diferentes
contextos de recepção.
As articulações do fandom de RuPaul’s Drag Race demonstram como um
programa televisivo pode ser um catalisador de energia criativa, estabelecendo laços
sociais através da identificação entre pessoas que o acompanham. Com isso, os fãs
estabelecem um processo comunicacional, por meio de comunidades em sites de
redes sociais, eventos temáticos e listas de discussão, que contribui para o
fortalecimento dos produtos midiáticos, influencia, muitas vezes, nos
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encaminhamentos dos programas televisivos e possibilita a expansão e o surgimento
de mais produções voltadas para um nicho de público.
Nesse âmbito, as proposições de Jenkins (2009) sobre o caráter cultural da
convergência midiática também são pertinentes para as interpretações desta pesquisa.
Como aponta o autor, a primeira aplicação bem-sucedida da convergência midiática
aconteceu com os reality shows, o que levou a indústria dos meios de comunicação a
repensar algumas ideias a respeito da interação entre o telespectador e a produção
televisiva, convidando-o a participar e interagir com ela. Para Jenkins (2009), os
programa do gênero representam um atrativo para discussões entre alguns fãs, que
compartilham conhecimento e opiniões em fóruns online na tentativa de desvendar
informações e segredos antes de serem levados ao ar e se tornarem oficiais.
Conforme define, o conceito de convergência refere-se ao “fluxo de conteúdo
através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados
midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação”
(JENKINS, 2009, p. 27). Este fluxo depende da participação ativa dos consumidores,
que são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a
conteúdos dispersos, demonstrando que a convergência vai além da visão tecnológica
e mercadológica, mas é um processo que envolve todo um contexto de transformações
culturais e sociais.
Ponderações Finais
Por muitas razões, os programas de TV têm ocupado, há alguns anos, um lugar
de destaque dentro de nossa cultura. Principalmente, quem se interessa por questões
relacionadas à comunicação de massa em suas interações sociais e com a cultura
contemporânea. Diante disso, ressaltamos que pesquisas voltadas ao ambiente
televisivo vêm merecendo considerável atenção, seja na academia ou nos encontros e
congressos da área. Se por um lado, a TV tem certas características típicas, por outro,
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nos permite compreender como identificar as características expressivas, analíticas,
narrativas que os programas televisivos possuem.
Diversas drags brasileiras começam a fazer parte dos fóruns de discussão,
postam vídeos de suas performances e, consequentemente, as boates gays de todo o
Brasil começam a divulgar em sua programação as apresentações de drags brasileiras
e das participantes de Rupaul. O fórum do Reddit, apesar de não possuir o mesmo
engajamento, é beneficiado pela superioridade numérica e também pelos membros
serem oriundos de diferentes lugares do mundo. A variedade de pessoas com
diferentes conhecimentos possibilitam uma troca de informações mais rica.
A nova cultura de conhecimento surge ao mesmo tempo em que nossos
vínculos com antigas formas de comunidade social estão se rompendo, nosso
arraigamento à geografia física está diminuindo, nossos laços com a família
estendida, ou mesmo com a família nuclear, estão se desintegrando, e nossas
alianças com estados nações estão sendo redefinidas. (JENKINS, p.56-57)
Cabe ressaltar que a cultura drag ganhou uma nova vida com a chegada de
Rupaul’s Drag Race. Lançando um olhar divertido e desmistificando este universo, o
programa vem ganhando milhares de fãs (SOUZA, 2007) e criando uma nova cena
drag brasileira. Eles são um importante ingrediente para o sucesso crescente e
expansão da cultura drag.
Contudo, compreender a relação entre os produtos televisivos e os diferentes
contextos de recepção, bem como as novas configurações na experiência de consumo
em um período de convergência midiática, propondo interpretações que continuem
pertinentes para análise de novos fenômenos midiáticos são de extrema importância
para a cultura contemporânea..
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