Realização BREsseASIL - AMB · Raízes Africanas Tradição, alegria e fé: festas populares e...

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Raízes Africanas Tradição, alegria e fé: festas populares e tradicionais brasileiras Personalidade: Milton Santos Brancos e Negros no Ensino Superior Ações afirmativas no Brasil Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Transformando o mundo através da música Falando em Direitos Humanos Ano 1 | Edição 1 | Brasília | Outubro 2010 | ISSN 2179-2178 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB RC D H Esse BR A SIL A fricano

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Raízes Africanas Tradição, alegria e fé: festas populares e tradicionais brasileiras

Personalidade: Milton Santos Brancos e Negros no Ensino Superior

Ações afirmativas no Brasil Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas?

Transformando o mundo através da música Falando em Direitos Humanos

Ano 1 | Edição 1 | Brasília | Outubro 2010 | ISSN 2179-2178

Revista de Cultura eDireitos Humanos da AMB

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1Editorial

Igualdade nas diferençasUma revista de Cultura e Direitos Humanos. Uma edição dedicada à importância dos negros e negras na formação cultural do país. Com esta iniciativa a AMB contribuiu à sociedade brasileira para dar corpo a um dos mais importantes objetivos do II Plano Nacional de Direitos Humanos (objetivo de número 202 do PNDH). Um documento em forma de revista para preservar a memória e ao mesmo tempo contri-buir com um olhar à produção cultural de mulheres e homens negros no Brasil. A edição sintetiza a importância desta cultura e a forma determinante com que influenciou a construção de uma identidade nacional. É um depoimento sobre a riqueza, o requinte e a intensidade das várias formas de expressões cultural e intelectual daqueles cuja mi-gração para o território brasileiro foi impostas através das mais brutais violações de Direitos Humanos da história da humanidade. O processo de superação de uma etnia pode ser observado pela forma com que influenciou na academia, na música, na dança e na literatura. A luta permanente pelo espaço social outrora subtraído é justificado no lento, porém visível, processo de inclusão. A reparação da injustiça histórica da escravidão não se opera de forma simples e rápida, é um processo que compõe um dos maiores desafios civilizatórios e encontra alguns obstáculos velados, mas importantes. É a busca de um povo ao ideal da igualdade e os dilemas impostos pelos distintos olhares sobre este princípio tão caro para todos nós. A genialidade de Boaventura de Souza Santos nos move a “lutar pela igualdade sempre que as diferen-ças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”. É sobre isso que estamos tratando nesta edição. É a luta por igualdade de um povo portador de imenso crédito em digni-dade. É sobre a legitimidade desta luta que queremos falar. A AMB também está engajada neste desafio. Boa leitura.

João Ricardo dos Santos CostaVice-presidente da AMB para Direitos Humanos

Juiz José Lúcio MunhozVice-presidente da AMB para Assuntos Culturais

Agradecimentos:A Jorge Adelar Finatto, magistrado aposentado, pela imprescindível contribuição na construção do projeto; À Juliane Alcácio, funcionária da AMB, fundamental para a realização deste trabalho;À Fundação Ford pela parceria; Ao Escritório de Histórias por concretizar esta proposta.

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PresidenteJuiz Airton Mozart Valadares PiresAmepe

Secretário-GeralJuiz Nelo Ricardo Presser Ajuris

Secretário-Geral AdjuntoDesembargador Jorge Massad Amapar

Diretor-TesoureiroJuiz Emanuel Bonfim Carneiro Amaral FilhoAmepe

Diretor-Tesoureiro AdjuntoJuiz Edvaldo José PalmeiraAmepe

Vice-Presidentes

Vice-presidente AdministrativoDesembargador Ademar Mendes BezerraACM

Vice-presidente de EsportesDesembargador Alemer Ferraz MoulinAmages

Vice-presidente de ComunicaçãoDesembargador Cláudio Luis Braga Dell’OrtoAmaerj

Vice-presidente InstitucionalDesembargador Doorgal Gustavo Borges de AndradaAmagis

Vice-presidente de Assuntos AmbientaisDesembargador Flávio Humberto PascarelliAmazon

Vice-presidente de Assuntos da Infância e JuventudeJuiz Francisco de Oliveira NetoAMC

Vice-presidente de Direitos HumanosJuiz João Ricardo dos Santos CostaAjuris

Vice-presidente de Assuntos CulturaisJuiz José Lúcio MunhozAmatra II

Vice-presidente de Assuntos Legislativos TrabalhistasJuíza Patrícia de Matos LemosAmatra IX

Vice-presidente de InteriorizaçãoDesembargador Sebastião Luiz AmorimApamagis

Vice-presidente de Assuntos LegislativosJuiz Wilson da Silva DiasAsmego

Conselho Fiscal

Juíza Maria Isabel da SilvaAmagis-DF

Juiz Tiago PintoAmagis

Juíza Ângela Maria Ribeiro PrudenteAsmeto Assessores da Presidência

Juiz Rolemberg Costa Amab

Juiz Marcos SallesAMPB

Juiz Irno ResenerAmatra XII

Luiz Alberto de VargasAmatra IV

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Coordenador da Justiça EstadualJuiz Eugênio Couto TerraAjuris

Coordenador da Justiça do TrabalhoJuiz Luis Cláudio dos Santos BrancoAmatra XVII

Coordenador da Justiça MilitarDesembargador James Magalhães de MedeirosAmajme

Coordenador dos AposentadosDesembargador José CarvalhoAmab

Coordenadora da Justiça FederalJuiz Lucas Rosendo Máximo de AraújoAMB

Diretor de Relações InternacionaisDesembargador Floriano Gomes da SilvaAsmego

Diretor-Presidente da ENM Desembargador Eladio Lecey

Diretor de Informática Juiz Rafael MenezesAmepe

Diretora do Departamento de PensionistasEneida Terezinha Barbosa

Diretoria de Esportes

DiretorMárcio MendesAmapar

Diretor-AdjuntoRonaldo MacielAmma

Futebol

Diretores Regionais

Centro-Oeste - Ariovaldo nantes Corrêa (Amamsul)

Nordeste - Joaquim Lafayette Neto (Amepe)

Norte - Raimundo Nonato da Costa Maia (Asmac)

Sudeste - Sandro Pitthan Espíndola (Amaerj)

Sul - José Antônio Flôres (Ajuris)

Tênis

Diretor de tênis Arnóbio Araújo Jr.Amepe

Direto-adjunto de tênis Luiz Alberto Moro CavalcanteApamagis

CoordenaçãoJoão Ricardo dos Santos CostaVice-presidente da AMB para Direitos Humanos

Luiz José Lúcio MunhozVice-Presidente de Assuntos Culturais da AMB

Projeto Editorial, Edição, Redação, Revisão e Direção de ArteEscritório de Histórias

Projeto gráfico e DiagramaçãoSilpe Design

ApoioFundação FordSecretaria de Reforma do Judiciário - Ministério da Justiça

ImpressãoCoronário Gráfica e Editora

Tiragem50.000 exemplares

ContatoCentro Empresarial Liberty Mall, SCN Quadra 02, Bloco D, Torre B, Conjunto 1302, Brasília, DF. CEP: 70.712-903. Telefone: (61) 2103-9000.www.amb.com.br

ISSN 2179-2178

A Revista de Cultura e Direitos Humanos é uma publicação da Associação dos Magistrados Brasileiros.

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Entrevista Falando em Direitos Humanos

Dr. Edinaldo César Santos Junior

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MemóriaRaízes Africanas

PersonalidadeMilton Santos

Geógrafo, advogado, professor, escritor e pensador: o garoto de origem humilde, nascido no interior da

Bahia, conquistou o mundo e fez história

CulturaTradição,

alegria e féfestas populares e

tradicionais brasileiras

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EntrelinhasTransformando o mundo através da música

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OpiniãoAções afirmativas noBrasil

Drª. Sarita Amaro

OpiniãoBrancos e Negros no

Ensino SuperiorDrª. Delcele Mascarenhas Queiroz

EspecialPolíticas afirmativas: por que o

Brasil precisa delas?

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6 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB

Quando o senhor começou a se interessar pelos Direitos Humanos?

Meu encontro com os Direitos Humanos ocorreu logo após o término da faculdade, em 1998. Atuei em um caso emblemático, de muita reper-cussão, envolvendo uma vitima de injúria racial. No percurso trilhado, tive contato com diversos organismos estatais e não estatais de defesa dos direitos humanos. O primeiro deles, altamente marcante, foi a pro-motoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia, nas pessoas dos promotores de justiça Lidivaldo Brito e Márcia Virgens, que já atuavam na defesa dos direitos humanos. Foi um momento de grande aprendizado. Ao final do processo, obtivemos vitória na ação criminal, logrando a primeira sentença procedente de injúria racial na Bahia. Após, essa primeira ação, atuei em várias outras no mesmo sentido, tendo me especializado em Direitos Humanos.

Quando passou a atuar de maneira mais efetiva nesta área?

Sem sombra de dúvidas, quando ingressei na Defensoria Pública do Es-tado da Bahia. Entre 2003 e 2004, fui Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos, pioneiro em Defensorias Públicas no país. O núcleo atuava na defesa dos grupos vulneráveis, é dizer, pessoas que sofriam todo tipo de dis-criminação, tortura, maus-tratos, eram nossos assistidos. Como ainda não havia uma maior especialização no órgão, atendíamos também a idosos, mulheres vítimas de violência, entre outros grupos vitimizados. Tínhamos de ser juridicamente criativos para alcançarmos êxito nas ações, porque falar em direitos humanos há 10 anos, fundamentando pedidos em conven-ções internacionais, ainda gerava polêmica e mesmo rejeição.

Falando em Direitos Humanos

Edinaldo César Santos Junior nasceu em 23 de agosto de 1975, em Aracaju/SE. É graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Especialista em Direitos Humanos pela

Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como advogado, Defensor Público do Estado da Bahia,

entre 2000 e 2004 e, desde 2005, é Juiz de Direito do Estado de Sergipe. Atualmente, encontra-se licenciado, residindo no Estado de São Paulo, onde

está cursando o mestrado. Foi o 1º estagiário brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. É integrante da Comissão de Direitos Humanos da AMB.

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7 Dr. Edinaldo César Entrevista

Desta época até os dias de hoje, o que identifica como a principal mudança no aspecto jurídico?

Em 1998, o Brasil aceitou a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Havia apenas 6 (seis) anos que o pais ratificara a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica (1992). Quando estive como estagiário da Corte entre 2001 e 2002, recordo-me de que o Brasil ainda não havia sido demandado perante o tribu-nal interamericano. Assim, considero que a rati-ficação de tratados, com a sua conseqüente inser-ção no ordenamento jurídico brasileiro, tem sido um importante passo para mudanças significa-tivas, conquanto perceba haver uma deficiência quanto ao diálogo entre nós, os juízes brasileiros, e as Cortes Internacionais de Direitos Humanos.

Com relação aos afrodescendentes, na sua opi-nião, quais foram as principais dificuldades para que os Direitos Humanos pudessem ser efetivados?

Até hoje, muitas pessoas ainda vivem na crença da inexistência do racismo no Brasil e de que vivemos numa democracia racial à Gil-

berto Freire. No mínimo, conseguem admitir a presença remota de um racismo social e eco-nômico, nunca ideológico. Ouso discordar. Uma última pesquisa realizada pela AMB en-tre os juízes do Brasil constatou que da totali-dade de juízes no país, apenas 0,9% é negro. Essa é uma estatística preocupante, a demons-trar, por exemplo, que o acesso à magistratura para o negro é ainda um sonho distante. Faço parte da exceção. Ora, partindo da premissa da ausência de racismo ideológico, muitos po-deriam afirmar que um negro juiz não seria alvo de preconceito ou discriminação. Sou a prova do contrário. Não importa como ou onde esteja, a consciência social ainda não crê na possibilidade da ascensão do negro e, por isso, discrimina-o. Se o negro social e econo-micamente bem situado dirige o carro zero, é o motorista particular, se está de traje formal no shopping, é abordado como segurança, se está de pasta a tiracolo, é o fotógrafo do even-to, e mesmo dentro do “gabinete do juiz”, se está acompanhado do assessor não-negro, a ele a palavra sequer é dirigida. Todos esses fa-tos já ocorreram comigo. Penso que os afro-descendentes no Brasil ainda têm um longo caminho a percorrer.

Até hoje, muitas pessoas ainda vivem na crença da inexistência do racismo no Brasil e de que vivemos numa democracia racial

à Gilberto Freire.

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8 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB

E as principais conquistas? O que identifica como grandes avanços?

Em junho de 2003, o Brasil, através do decreto presidencial 4783, promulgou a De-claração Facultativa prevista no art. 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, reconhecendo a competência do Comitê Inter-nacional para a Eliminação da Discriminação Racial para receber e analisar denúncias de violação dos direitos humanos cobertos na mencionada Convenção. Este foi um impor-tante avanço, porque entendo que qualquer forma de monitoramento ajuda a prevenir ações violadoras de direitos humanos.

Os negros no Brasil têm um arcabouço legis-lativo importante na luta contra a discriminação racial. Não obstante, mais uma vez, constato o valor da jurisprudência e de sua visão quanto a tão importante tema. O Supremo Tribunal Federal, na análise da Ação de Descumprimento de Pre-ceito Fundamental 186 e do Recurso Extraordi-nário 597.285/RSA, abriu importante discussão social através da realização de audiência públi-ca. Para mim, a autorização da utilização das cotas como política de ação afirmativa já está inserida no Brasil desde 1969, quando o país ra-tificou a Convenção Internacional relativa à Eli-minação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que expressamente diz, no §4º do artigo 1º, não ser considerada discriminação racial a

As cotas não são um favor, mas sim uma condição necessária à reparação dos

contrastes reinantes do pais pós-1888, fruto de uma “abolição da escravidão” sem políticas de adequação econômica e social

dos egressos da condição de objeto para situação de sujeito (de direitos?).

realização de medidas especiais com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de grupos raciais, proporcionando igual gozo ou exercício de determinados direitos humanos. Leia-se medidas especiais como cotas, ao me-nos como espécie do gênero. Essa Convenção foi devidamente recepcionada pela Constituição de 1988. Ademais, quanto às cotas ressalto al-guns dados. As cotas não visam à diminuição da discriminação racial, mas sim da desigual-dade racial perversa existente e persistente. As cotas não são um favor, mas sim uma condição necessária à reparação dos contrastes reinantes do pais pós-1888, fruto de uma “abolição da escravidão” sem políticas de adequação econô-mica e social dos egressos da condição de objeto para situação de sujeito (de direitos?). Tudo isso encontra-se vinculado a uma questão da disputa de poder, com a qual se convive até hoje, apenas com a alteração das personagens. As questões

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9 Dr. Edinaldo César Entrevista

das políticas de ação afirmativa e de políticas de reconhecimento dos negros e dos demais grupos vulneráveis demandam de nós uma reflexão que nos proporcione releituras, impregnada da em-patia, que deve ser a tônica da atuação do ma-gistrado na árdua tarefa ulpiana de dar a cada um o que é seu.

O que ainda falta avançar nos Direitos Huma-nos no Brasil, na sua opinião?

É necessário mudança de mentalidade. E isso, por óbvio, não ocorre de uma dia para o outro. A educação, que forma, informa e con-forma foi, tem sido e continuará sendo a pro-tagonista de grandes conquistas. Infelizmente, a maioria das faculdades de direito ainda tem pilares na formação clássica, positivista, que surgiria como empecilho à uma perspectiva de transformação para as novas gerações. Não podemos continuar admitindo vivermos como

se fosse uma grande conquista ser a “boca da lei”. Talvez tenha sido no século XIX. Nesta senda, defendo uma maior aproximação com a população. Como prestarmos uma boa jurisdi-ção sem conhecermos a realidade dos destina-tários de nossas decisões? Se o desafio está em nos aproximarmos com a cautela exigível pela imparcialidade, também compreendo que este fator não pode ser paralisante ou impeditivo de ações que nos identifiquem e nos levem a me-lhor jurisdizer. Sempre tenho dito que o juiz está adstrito ao princípio da inércia processual, mas extraprocessualmente é livre para levar ao juris-dicionado noções de cidadania e direitos huma-nos, proporcionando acesso à justiça no sentido mais amplo, tudo em observância aos preceitos constitucionais. A realização de seminários, jú-ris simulados, palestras ou a confecção de carti-lhas são bons exemplos de atividades que teriam o condão de levar o Judiciário à comunidade onde atua.

É necessário mudança de mentalidade. E isso, por óbvio, não ocorre de uma dia para o outro. A educação, que forma, informa e conforma foi, tem sido e continuará sendo a protagonista de grandes conquistas.

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10 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB

Como percebe o interesse e a participação da sociedade nesse tema?

A concepção social de direitos humanos vem mudando nos últimos anos. Aquela velha idéia de direitos humanos como direitos dos bandidos, forjada durante a ditadura militar, resta ainda para os menos avisados ou para aqueles mui-to mais preocupados na manutenção do status quo. Os direitos humanos, como contramajori-tários que são, acabam tendo alguma resistên-cia de determinados setores sociais, que ainda os enxergam como um perigo. Por outro lado, consigo ver a sociedade civil se organizando mais e sua participação política mais qualifica-da. Vejo, por exemplo, a participação paritária, com a presença da sociedade civil organizada, em conselhos municipais e estaduais, como um avanço. A sociedade percebe a importância de interagir, constatando também que tem a sua parcela de responsabilidade. Muitos instrumen-tos jurídicos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, ressaltam direitos, mas também

deveres da sociedade e da família, e creio que essa participação, que é legítima, tende a se qua-lificar. A AMB é exemplo dessa crescente parti-cipação social ao criar uma Vice-Presidência de Direitos Humanos e uma Comissão de Direitos Humanos. Isso significa que os juízes do Brasil querem ter voz quando o tema é direitos huma-nos, entre outras questões do país. Para exem-plificar, recordo-me de que ao participar da XI Conferência Nacional de Direitos Humanos em Brasília, pela AMB, eu e vários colegas juízes es-távamos numa sala em que se discutia o tema se-gurança pública. Em dado momento, os demais participantes apenas falavam mal dos juízes e do judiciário, até que nós pedimos a palavra para replicarmos e emitirmos nossa opinião, sob os olhares perplexos e manifestação verbal em se-guida, cujo conteúdo era “nós nunca iríamos imaginar que houvesse juízes presentes nesta conferência!!”. Mas nós estávamos lá e pode-mos também opinar sobre as mudanças que nos afetam e sobre as quais temos que decidir. É a necessária mudança de paradigma.

Muitos instrumentos jurídicos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, ressaltam direitos, mas também deve-res da sociedade e da família, e creio que essa participa-ção, que é legítima, tende a se qualificar.

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11 Dr. Edinaldo César Entrevista

Quais são os grandes desafios da Justiça hoje, em relação aos Direitos Humanos?

Creio que um dos grandes desafios da justi-ça no Brasil é a aplicação do direito com a ob-servância dos precedentes judiciais das Cortes Internacionais de Direitos Humanos. Já cri, no passado, que o conhecimento pelos operado-res do direito das normas de direitos humanos inseridas no ordenamento jurídico brasileiro fosse a solução para uma melhor prestação jurisdicional, mais inclusiva do ponto de vista social. Ocorre que posso desconhecer a norma; posso conhecê-la, mas não aplicá-la; e posso aplicá-la subvertendo sua intenção. Esta últi-ma hipótese seria a mais perniciosa. Defendo a importância do diálogo entre as Cortes, o que levaria a um maior conhecimento dos magis-

Creio que o diálogo do juiz brasileiro com as Cortes de Direitos Humanos, conhecendo seus precedentes, aplicando-os como fonte de direito, seja um grande desafio da pós-modernidade.

trados brasileiros da jurisprudência internacio-nal sobre direitos humanos. Uma confirmação desse colóquio entre tribunais é o RE 511.961, sobre a obrigatoriedade do diploma de jorna-lista, em que o Ministro Gilmar Mendes faz referência tanto à Opinião Consultiva nº 05/85 da Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto ao Informe Anual da Relatoria Espe-cial para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Assim, creio que o diálogo do juiz brasileiro com as Cortes de Direitos Humanos, conhecendo seus precedentes, aplicando-os como fonte de direi-to, seja um grande desafio da pós-modernidade. Nós, juízes do Brasil, já passamos do momento de começarmos a utilizar esses instrumentos em nossas decisões a fim de garantir a efetiva inclusão de direitos.

Defendo a importância do diálogo entre as Cortes, o que levaria a um maior conhecimento dos magistrados brasileiros da jurisprudência internacional sobre direitos humanos.

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12 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB

No despontar da Idade Moderna, com as grandes navegações empreendidas a partir de Portugal, sociedades africanas da costa atlân-tica, até então nunca visitadas por popula-ções de outros continentes, passaram a fazer parte dos circuitos de relações intercontinen-tais. Algumas dessas sociedades forneceram a maior parte da força de trabalho utilizada na “construção” do Novo Mundo. Assim, do século XVI ao XIX foi em torno do tráfico de escravos, isto é, do comércio de pessoas, que ocorreram as relações entre muitos africanos e europeus.

Durante a colonização brasileira, grande par-te da mão-de-obra empregada veio da África para realizar os trabalhos mais diversos. No princípio

Raízes AfricanasPesquisa: Marina Camisasca | Redação: Isabella Verdolin e Marina Camisasca

A capoeira é uma luta dançada em

todo o território nacional e possui

muitos elementos africanos, como os instrumentos

musicais, a ginga, as letras e os passos.

os portugueses tentaram utilizar o trabalho indí-gena para a extração do pau-brasil, oferecendo em troca toda espécie de objetos, que nem sem-pre tinham utilidade ou valor para os habitantes locais. No entanto, devido à inadaptação dos ín-dios, a partir de 1550, os colonizadores optaram por empregar o trabalho de negros e negras que, dentre outros fatores, possuía um alto valor de venda no novo continente.

O Brasil foi o país que por mais tempo e em maior quantidade recebeu escravos africanos. Aproximadamente 40% dos que rumaram para a América aportaram aqui. A maioria era pro-veniente da Angola, mas também vieram escra-vos do Congo, de Moçambique, do Golfo do Benim, dentre outros.

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13 Raízes Africanas Memória

TombuctuSongai

Gaô

Gana

Mali Jené

Oió

BeninDaomé

AboméAjudá

Bissau

Belém

São Luís

Recife

Salvador

OCEANO ATLÂNTICO

OCEANOÍNDICO

OCEANOPACÍFICO

AMÉRICA DO SUL

ÁFRICA

PENÍNSULAARÁBICA

Rio de Janeiro

AladaIfe

Lagos

Cazembe

IBornu

CanemDarfur

SenarAxum

Etiópia

Núbia

Egito

Axante

Bambuk

Buré

Dongo

CongoLuanda

Tio

MatambaCassanje

Lozi

Monomotapa

Moçambique

CaboVerde

São Tomé

Cabinda(Loango)Pinda

Luanda Cassanje

BenguelaMoçambique

Angoche

QuelimaneSofala

Inhambane

Quiloa

ZanzibarAmbriz

Cabinda(Loango)Pinda

Ambriz Ambuíla

Forte de SãoJorge da MinaForte de São

Jorge da Mina

Principais destinos dos negros no BrasilCidades Africanas de origem

Cidades Africanas do passado (localização aproximada)Reinos Africanos do passado

A multiplicidade de nomes designativos de povos diferentes, de línguas desconhecidas e fo-néticas com as quais os europeus não estavam acostumados, fez com que estes identificassem os escravos de acordo com os locais de embar-que, dos mercados onde eram comercializados ou dos reinos conhecidos. Escravos receberam, por exemplo, as denominações de cabinda e de cassanje, nomes de mercados africanos. Os re-gistros não nos possibilitam conhecer a totalida-de dos povos que rumaram para cá. No entanto, eles são indicativos da variedade de grupos que foram trazidos para serem empregados como força de trabalho em diversas localidades e ati-vidades, tanto urbanas quanto rurais.

As sociedades africanas eram plurais, diver-sificadas e marcadas por alianças e disputas.

Escravizar o inimigo e utilizá-lo para o tra-balho cotidiano já era uma prática entre mui-tos desses povos. Mas, ainda assim, ao serem retirados dos seus locais de origem, levados para outro continente e rea-grupados nos plantéis, sítios ou casas onde tra-balhavam, os negros tiveram que recriar suas formas de inserção no mundo, para encontrar outros termos de convivência e de apreensão da realidade. Isto fez aflorar afinidades e ini-mizades, formas de relacionamento foram es-tabelecidas, novos laços tecidos e lideranças escolhidas.

Danse de la Guerre, de Johann Moritz Rugendas, 1835

Principais rotas do comércio atlântico de escravos para o Brasil do século XVI ao XIX

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14 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB

Havia também outros laços que ligavam brancos e negros. Prática comum era que escravas ama-mentassem os bebês recém nascidos, filhos dos senhores, as “amas de leite”. Alguns que traba-lhavam nos serviços domésticos da “casa grande” costumavam receber instrução, aprendiam a ler e escrever com as senhoras da casa e estabele-ciam amizades entre os brancos. Os escravos no Brasil não foram nem heróis nem coisas, foram pessoas que trabalharam e lutaram pela sobrevi-vência e, devido ao convívio com os seus senhores, muitas vezes, criaram relações muito próximas com esses últimos, que diferentemente do que se imagina, nem sempre foram homens maus que só pensavam em maltratar os negros e negras.

Além de relações criadas entre os afri-canos de diferentes origens, os escravos tiveram também que estabelecer uma for-ma de convivência com os seus senhores. A rede de relações pessoais entre dois grupos aparentemente antagônicos revela que o convívio entre as duas partes era de inter-dependência: o escravo era quem realizava a maior parte dos serviços e, para os senho-res, perdê-lo não era vantajoso, pois além do enorme prejuízo – um escravo custava caro -, não havia, por exemplo, outra mão de obra disponível para realizar as tarefas na lavoura.

Com a abolição da escravatura em 1888 e a instauração do regime republicano no ano de 1889, o escravo passou a ser asso-ciado a uma situação de atraso, a um Brasil arcaico que precisava ser deixado para trás, até porque sua manutenção exigia um apor-te altíssimo de recursos. A abolição por si só não representou a solução para 338 anos de escravidão. Alguns negros continuaram nas lavouras, contratados como homens li-vres até a chegada dos imigrantes no século seguinte. Na verdade, para quem deixou a vida nas fazendas, houve uma piora imedia-ta. Expulsos das senzalas, sem dinheiro, sem casa, com a roupa do corpo e sem ter um ofício, muitos procuraram os quilombos,

As sociedades africanas eram

plurais, etnicamente e com características

físicas bem marcantes, como

mostra esta série de gravuras de Johann

Moritz Rugendas. Cerca de 1820, in

Viagem Pitoresca através do Brasil

Uma Senhora Brasileira em seu lar, de Jean Babtiste Debret, cerca de 1823. Litografia e aquarela à mão

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15 Raízes Africanas Memória

Algumas das denominações atribuídas aos povos africanos vindos para o Brasil

Angola

Benguela

Cabinda

Cassanje

Congo

Jêje

Mina

Nagô

Negro da Guiné

outros tantos se dirigiram aos povoados e cida-des em busca de trabalho. Os que tinham algu-ma instrução conseguiam emprego em peque-nos comércios. Mas para os que não tinham, a busca se tornava mais difícil. Alguns tornaram-se empregados domésticos ou em bares, para fazer os serviços de limpeza, considerado indig-no. O destino de quase todos foi a construção civil e a periferia, em moradias improvisadas, sem estrutura nem conforto, que foram se per-petuando ao longo do tempo. Anos mais tarde,

com a chegada dos imigrantes, também pobres e sem ter onde morar, muitos se juntaram aos negros nas periferias das grandes cidades.

Nos quilombos, pequenas comunidades es-tabelecidas, umas mais, outras menos organi-zadas, os negros livres precisavam encontrar maneiras de sobreviver. A criação de animais como galinhas e porcos, a pequena produção de hortaliças e frutas e o comércio nos povoa-dos próximos, além do garimpo e do extrativis-mo, garantiam alimentação e sustento a todos.

Recife, capital de Pernambuco, de Johann Moritz Rugendas. Cerca 1820, in Rugendas e o Brasil

Negra tatuada vendendo caju, Jean baptiste Debret. 1827, aquarela sobre papel

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16 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB

Imagem de São Benedito. Festa

do Encontro dos Tambores Mineiros, Belo Horizonte-MG

Havia espaço também para o artesanato e para as manifestações religiosas, que

misturavam os costumes africanos e a fé aprendida com os portugueses.

Arraiais e cidades foram surgindo à beira dos caminhos mais usados no comércio, com a mis-cigenação entre brancos, negros e índios, povo-ando o interior do Brasil.

Em 2010, o Brasil completou 510 anos desde seu descobrimento. Os negros chegaram apenas 50 anos após os portugueses, e a partir de então, o que criaram aqui é considerado como brasileiro, contribuindo para a forma-ção de um povo, ainda que sofrendo forte repressão de seus costumes e cren-ças pelos colonizadores. Os 122 anos decorridos após a abolição talvez seja muito pouco tempo para modificar uma situação de desigualdade, no entanto, é preciso reconhecer que os afrodescendentes possuem um papel fundamental na composi-ção da nação brasileira.

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Na tentativa de propiciar um melhor apren-dizado sobre a bagagem cultural trazida por eles, foi sancionada pelo Governo Federal a Lei n° 11.645 no ano de 2008, que tornou obrigató-rio nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, o ensino de histó-ria da África e dos africanos. Isto pode trazer muitos benefícios, uma vez que proporcionará às futuras gerações conhecer melhor um con-tinente formado por múltiplas sociedades, que viveu processos históricos variados e que teve boa parte da sua população escravizada pelos europeus e transportada para as terras do Novo Mundo. Além disso, ela poderá contribuir para que a sociedade brasileira perceba a importân-cia dos africanos e dos afrodescendentes para a sua formação, o que promoverá o reconheci-mento e o fortalecimento da cultura nacional de uma maneira mais ampla e real pela população.

Os africanos, oriundos de povos distintos, que rumaram para o Brasil, muito influenciaram

a língua, a alimentação, as músicas, as crenças, as festas, os jogos, as religiões e as danças que hoje se praticam em todas as regiões do país e que são parte constitutiva da identidade nacional.

As religiões afro-brasileiras, por exemplo, foram proibidas no passado, mais tarde tole-radas e hoje são cada vez mais reconhecidas como parte das crenças praticadas no Brasil, ainda que os preconceitos contra elas sejam muitos. O candomblé, que talvez seja a mais famosa das religiões com influências oriun-das da África, é praticado em diversos estados como Bahia, Rio de Janeiro e Maranhão. Já as umbandas, religiões afro-brasileiras de origem banto, nas quais são cultuados ancestrais e es-píritos da natureza, estão presentes nas estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Nos terreiros dessas duas religiões estão presentes elementos da cultura africana na ar-quitetura, nos alimentos, nos ritos, na dança, na música, dentre outros.

Desde 2008, a história da África e dos africanos é ministrada nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio do Brasil.

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A música, além de ser central nos cultos religiosos, também é fundamental em muitas outras oca-siões de festas e danças, como as congadas, maracatus, reisados, frevos, boi-bumbá e capoeiras. Esta é uma luta dançada em todo o território nacional e possui muitos elementos africanos, como os instrumentos musicais, tambor e berimbau, a formação em roda, a ginga, os ritmos, as letras e

os passos. O samba, reconhecido mundialmente como parte da identidade brasileira, nasceu nas casas de baianas que emigraram para o Rio de Janeiro a partir da segunda metade

do século XIX. Na cidade, a dança praticada pelos escravos incorporou outros gêneros, como a polca, o maxixe, o lundu e o xote, adquirindo seu caráter

singular e contagiante. Inicialmente criminalizado e visto com preconceito, conquistou adeptos de todas as classes sociais e espalhou-se pelo país sob

a forma de diversos ritmos e danças populares regionais. Na contemporaneidade, a música que surgiu como uma das mais

fortes manifestações afro-brasileiras foi o rap. Nele, a força da musi-calidade está presente em circuitos que unem os negros dos Estados Unidos e do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Tanto os ritmos marcados e repetitivos, como a força da palavra, e especialmente da palavra cantada, remetem a características da sociedade africana. Esse estilo musical apareceu em um momento em que a adoção dos valores

do mundo branco não era mais vista como necessá-ria no caminho de ascensão social e em que as

raízes negras começaram a ser valorizadas ao invés de negadas.

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A Congada é uma festa popu-

lar brasileira que mistura elementos da cultura africana

com a religião católica, muito come-morada em Minas Gerais, Paraná e Goiás.

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Noutra esfera, temos a influência na culinária brasileira, principal-mente na Bahia. Aracajé, vatapá, aluá e xinxim de galinha são alguns pratos que têm receitas parecidas com as feitas ainda hoje na África. Além dos pratos, o inhame, o cará, a noz-de-cola e a banana são alguns dos alimentos da nossa dieta que vieram daquele continente.

Olhar para nosso passado é fundamental para compreendermos nosso presente e planejarmos o futu-ro. A situação dos afrodescendentes no Brasil hoje ainda é desigual, uma vez que a formação de nossa nação foi fundamentada na desigualdade. Mas é imprescindível que lutemos para que ela deixe de existir o mais depressa possível. Conhecer nossas raízes e conviver com as diferenças que fazem do Brasil uma nação de riqueza cultural incalculável é o pri-meiro passo rumo a um país mais justo e que se torne referência em igualdade racial.

Para saber mais:

COSTA E SILVA, Alberto. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49 ed. São Paulo: Global, 2004.

MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.

PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII estratégias de resistência através dos testamentos. 3ed. São Paulo: Annablume, 2009.

SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SOUZA, Marina de Mello e. África e o Brasil Africano. 2 ed. São Paulo: Ática, 2007.

A banana é um dos muitos alimentos de origem africana que incorporamos à nossa dieta.

Nosso rico vocabulário talvez seja o melhor exemplo da miscigenação entre europeus, indígenas e africanos. Ainda que o português seja a base de nossa língua, incorporamos a ele um sem número de palavras, expressões e signifi-cados oriundos do italiano, alemão, espanhol, do tupi, do guarani e de tantas outras línguas e dialetos falados pelos índios e sobretudo, pelos africanos que aqui se estabele-ceram. Termos esses que fazem parte de nosso cotidiano, como bagunça, cafuné, cochilo, dengo, farofa, enxerido, moleque, maracutaia, perrengue, quitute, quitanda, neném, sacana, tribufu, samba, dentre tantas outras. O português do Brasil possui um ritmo próprio, um sotaque só seu e que varia, inclusive, de região para região dentro do país, influenciado pelos costumes dos habitantes do lugar.

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“As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”

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Morro VelhoMilton Nascimento

No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deuFez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seuSó poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescerOrgulhoso camarada, de viola em vez de enxada

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinhoPela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninosPeixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo verOrgulhoso camarada, conta histórias prá moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grandeParte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distanteNão esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentarLinda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como láJá tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandarE seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB22

no Brasil e no mundo. Seu modo de analisar a dinâmica social e de escrever sobre a geografia modificou para sempre o jeito de pensar esta ci-ência, inserindo o humano como causa e efeito do momento presente. O que mais poderia ser dito sobre este homem?

Em busca desta resposta, mergulhei em li-vros que ele mesmo escreveu, procurei institui-ções, fundações e museus e encontrei periódicos com publicações de autores os mais diversos falando sobre Milton Santos. Alguns, seus ami-gos de longa data. Outros, jovens que tiveram a sorte de entrevistá-lo. E foi nesse emaranhado

Milton Santos

Pesquisa e redação: Isabella Verdolin

Falecido em 2001, Milton Santos deixou uma lacuna enorme no cenário nacional e interna-cional. Descrito por aqueles que desfrutaram de sua companhia como sereno, de sorriso fá-cil e fala pausada, era um intelectual respeitado

Geógrafo, advogado, professor, escritor e pensador: o garoto de origem humilde,

nascido no interior da Bahia, conquistou o mundo e fez história.

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de narrativas que descobri, aos poucos, um ho-mem maduro, centrado, que parecia gostar de conceder entrevistas – pois as que li são longas e envolvem o entrevistador no tema – e que falava apaixonadamente sobre seu modo de compre-ender o mundo. A melhor forma que encontrei para retratar Milton Santos foi escolher alguns trechos de suas entrevistas para deixar que ele mesmo se revele, partilhando a minha experiên-cia de redescobri-lo.

As origens, o exílio e o retorno ao Brasil

Adalgisa Umbelina de Almeida Santos, filha de professores primários, decidiu seguir a carreira dos pais. Sua família gozava de prestígio e seu irmão mais velho, Dr. Agenor, era advogado. Em 1921, em Salvador, Adalgisa estava na Es-cola Normal quando conheceu Francisco Irineu dos Santos, descendente de escravos prestes a se formar professor primário. Ela ingressou na Escola, formando-se em 1924, mesmo ano em que casou-se com Francisco. O casal de profes-sores mudou-se para Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina, onde Dr. Agenor exercia suas atividades. Advogado respeitado, tinha uma clientela importante, dominava o latim e o grego. Foi ali, em 3 de maio de 1926 que nasceu Milton Santos, o primeiro filho de Francisco e Adalgisa. “Era uma família remediada, humilde mas não pobre e que tentou me dar uma educa-ção para ser um homem que pudesse conversar com todo mundo. (...) Aos oito anos terminei o meu primário em casa, nunca segui uma escola primária. E, como para ir para o ginásio tinha de esperar dois anos, meus pais ficaram me en-sinando álgebra, francês e boas maneiras. Aos dez, fui ser aluno interno num colégio na capital da Bahia, (...) frequentado por uma classe média média. Morei neste colégio dez anos, quando terminei, continuei morando lá, ensinando, e fui para a faculdade de Direito, da qual saí forma-do em 1948”1.

Autor de mais de 40 livros, Milton Santos formou-se em Direito, mas a Geografia sempre o atraiu. “Desde menino, a noção de movimento

me impressionava, ver as pessoas se movendo, as mercadorias se movendo. A noção de movi-mento de idéias veio depois. (...) No ginásio, o livro de texto era Geografia Humana, de Josué de Castro. Era uma espécie de história contada através do uso do planeta pelo homem. Aquilo me impressionou. Eu tinha tido um professor muito importante, Oswaldo Imbassay, então a confluência de um professor importante, de um livro importante, as explicações de mundo, de como a sociedade se relacionava com o meio, a teoria do possibilismo, determinismo, tudo isso a gente aprendia no ginásio. Era ao mesmo tempo um debate filosófico sobre o destino do homem, a presença do homem na Terra e o seu destino, a história do mundo se fazendo através da produ-ção do espaço geográfico”2. Terminada a facul-dade em Salvador, prestou concurso e foi lecio-nar Geografia Humana no Ginásio Municipal de Ilhéus. A convite de Simões Filho, Milton Santos passou a escrever para o jornal A Tarde, como correspondente naquela região. Desde esta épo-ca, chamava a atenção para os riscos econômicos da monocultura, o que levou à publicação de seu primeiro livro: A Zona do Cacau. Foi em Ilhéus que casou-se com Jandira Rocha, com quem al-guns anos depois teve Milton Filho.

A família mudou-se para Salvador, onde Milton continuou trabalhando no jornal e lecio-nando na Universidade Católica. Em 1956, foi ao Rio de Janeiro para participar do Congresso Internacional de Geografia e fez contato com grandes geógrafos, que conhecia por suas obras. Entre eles, estava Jean Tricart, que convidou Milton Santos para fazer o Doutorado no Insti-tuto de Geografia de Strasbourg, na França. De volta ao Brasil, prestou concurso para lecionar na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia. Devido ao seu posicionamento político, com o Golpe Civil Militar em 1964, foi preso e, mesmo na cadeia, recebeu diversas cartas e con-vites de universidades francesas para que fosse lecionar naquele país. Com um princípio de der-rame, foi levado ao hospital e, despedindo-se de seu filho, amigos e parentes, já divorciado, par-tiu para a França.

1 e 2 Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos à revista Caros Amigos nº17, de agosto de 1998.

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Ao retornar do exílio, as mudanças em sua vida e sua obra eram muitas. Havia se casa-do com Marie Hélène Tiercelin em 1972, que veio ter na Bahia, Rafael, o segundo filho de Milton, em julho de 1977. “Marie Hélène foi um marco em sua vida pessoal e intelectual. Proporcionou-lhe, no ambiente de trabalho, a paz, a tranquilidade e o equilíbrio necessários ao seu mister de grande pensador. E, sendo geógrafa, trocava com ele déias de trabalho, além de ter feito as traduções de vários de seus livros”3. “Pouco a pouco já vinha se dando, na minha obra, uma separação das prisões do empírico e a busca de uma construção mais filosófica. Quando escrevi Por uma geografia nova, vivia fora do país há muito tempo e a partir de certo momento não conhecia mais o Brasil, porque o país mudou muito depois de 64, tanto em termos de materialidade como de relações sociais. Então, a filosofia era o único refúgio para mim, a única for-ma de continuar vivendo. (...) Passei quinze anos trabalhando na preparação de A natu-

“Pensou o Professor Milton que sairia do país por 6 meses. Acabou ficando 13 anos! Estes tempos não foram de ‘exílio dourado’ na França; ao contrário, foram anos de périplo por diversos países. Sua caminhada começou por Toulouse, passou por Bordeaux, por Paris, onde lecionou na Sorbonne, sendo diretor de pesquisas de planejamento urbano e regional no Iedes, de 1968 a 1971, quando seguiu para o Canadá, para a Universidade de Toronto. Foi para os Estados Unidos (EUA), convidado para ser pesquisador no Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde trabalhou com o linguista e Professor Noam Chomsky. Nesta época já escrevia sua obra O Espaço Dividido. Depois seguiu para a Venezuela, para ser diretor de

3 Trecho extraído do texto “Biografia do

Milton Santos”, de Maria Auxiliadora da Silva,

publicado em 09 de abril de 2006. In: http://www.

fpabramo.org.br

4 Trecho editado da entrevista concedida por

Milton Santos a José Corrêa Leite e publicada na

revista Teoria e Debate nº 40, de fevereiro/março/abril

de 1999. In: http://www.fpabramo.org.br

reza do espaço, no qual queria mostrar que a geografia também é uma filosofia. Eu tinha uma inconformidade com a minha discipli-na e com o que havia escrito antes sobre ela. Empreendi então a fundamentação da idéia de que a geografia é uma filosofia das técnicas. E como tal, ela somente podia se tornar teórica com a globalização, porque antes não havia técnicas planetárias e a universalidade dos fi-lósofos não havia se tornado empírica. (...) A idéia de universalidade empírica só podia bro-tar da cabeça de um geógrafo, vendo como os lugares se tornaram parecidos, na sua enorme diferenciação, com a globalização. Mas o que eles têm de parecido não são só os vidros fu-mês das grandes cidades. Essa psicosfera tem uma base técnica, a produção, as condições de vida das pessoas. Eu tive essa idéia da geogra-fia como filosofia das técnicas há 35 anos. Mas esta elaboração só podia se tornar concreta e sistematizada num livro com a globalização. Aí é visível a inseparabilidade do individual e do universal, através do lugar e do mundo”4.

O professor de geografia da USP,

Milton Santos, em sua casa, São Paulo. 2000

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pesquisa de planejamento da urbanização de um programa da Organização das Nações Unidas (ONU). Neste país manteve contato com técnicos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que facilitaram sua contratação pela Faculdade de Engenharia de Lima, onde, também foi contratado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para elaborar um trabalho sobre pobreza urbana na América Latina. Regressou a Paris, mas foi chamado de volta à Venezuela, onde lecionou na Faculdade de Economia da Universidade Central. Seguiu posteriormente para a África (Tanzânia), onde organizou a pós-graduação em Geografia da Universidade de Dar-es-Salaam lá permanecendo por dois anos, em seguida, foi para Columbia

University de Nova Iorque. Ao regressar dessa universidade, Milton Santos iria para a Nigéria, mas recusou o convite para aceitar um posto como Consultor de Planejamento do estado de São Paulo. Foi então convidado por duas professoras para trabalhar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde permaneceu até 1983. Depois, foi contratado como Professor Titular pelo Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), onde permaneceu, mesmo após sua aposentadoria”.

Trecho editado da saudação do Prof. Audo Pavani proferida em 11 de novembro de 1999, quando Milton Santos rece-beu o título de Professor Honoris Causa na Universidade de Brasília (UnB). In: http://www.abmes.org.br/miltonsan-tos/biografia/index.asp

Milton Santos em 1996

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A globalização ou o globaritarismo

“A globalização é, de certa forma, o ápice do pro-cesso de internacionalização do mundo capitalis-ta. Para entender esse processo, como qualquer momento da história, há dois elementos funda-mentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política. Na realidade, nunca houve na história humana separação entre as duas coisas. (...) Chegamos ao fim do século XX e o homem, por intermédio dos avanços da ciência, produz um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da in-formação. Elas passam a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando a pre-sença planetária desse novo sistema técnico.

A globalização não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas. Ela é também o resultado dos processos políticos que conhe-cemos. Com frequência ouvimos a pergunta: ‘mas não tem alguma coisa de bom na globa-lização?’ ou ‘será que é tudo ruim?’. A discus-são não é essa. A discussão é: há um conjunto, um sistema de técnicas baseado na ciência, e há uma forma de utilizar esse sistema presidido por essa mula-sem-cabeça chamada mercado global. (...) Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro. E quando digo uso polí-tico, digo uso econômico e cultural, porque neste fim de século tudo se tornou político; a economia é feita a partir da política, a cultura é base para a política e resulta da política. Esse é o debate central, o único que nos permite ter a esperança de utilizar o sistema técnico contem-porâneo a partir de outro paradigma.

Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de tota-litarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de re-lações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou perma-necem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o siste-ma econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político.

Esse globalitarismo também se manifesta nas próprias idéias que estão atrás de tudo. E, o que é mais grave, atrás da própria produção e difu-são das idéias, do ensino e da pesquisa. Todos obedecem, de alguma maneira, aos parâmetros estabelecidos. Se estes não são respeitados, os transgressores são marginalizados, considera-dos residuais, desnecessários ou não-relevantes. É o chamado pensamento único. Algumas vo-zes críticas podem se manifestar, uma ou duas pessoas têm permissão para falar o que quise-rem, para legitimar o discurso da democracia. Só que a estrutura do processo de produção das idéias se opõe e hostiliza essa produção de idéias autônoma e, por conseguinte, de alternativas. É uma forma de totalitarismo muito forte, insi-diosa, porque se baseia em idéias que aparecem como centrais à própria idéia da democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância – utilizadas exatamente para suprimir a possibi-lidade de conhecimento do que é o mundo, do que são os países, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informação, que, associada à tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo.

O processo da globalização, tal como se dá hoje, é centrífugo. Ele é produtor de uma frag-mentação crescente em todos os níveis: os jo-vens contra os velhos, os funcionários públicos contra os privados, uma região contra outra etc. Temos uma multiplicação de fragmentações que se acumulam. (...) A primeira reação da população pobre, como qualquer outra, é a do consumo também. Está brigando para ser cida-dã, mas primeiro quer consumir. Isto é normal. Depois é que se descobre que não basta consu-mir, ou que para consumir de forma permanen-te, progressiva e digna, é necessário ser cidadão. Dizem com desdém: ‘o pobre quer televisão’ – e por que não? Na verdade, um mínimo de consumo é condição indispensável para ser cidadão. Agora, isso deve conduzir a outra organização política do Estado, a outra ar-quitetura política. (...) A noção de democra-cia, de cidadania, tudo isto tem que ser re-visto. Essa discussão de mudança do Estado, sem discutir como o poder se exerce, é vazia.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB28

Nos venderam a idéia de que as empresas são a economia e o Estado é o poder. Não é nada disso, as firmas são o poder.(...) Mas se partir-mos do território, é impossível excluir o ho-mem, porque o território não exclui ninguém. Estão o rico, o pobre, o negro, o branco, o culto, o analfabeto, a grande empresa, o am-

bulante, todo mundo junto. Este existencia-lismo territorial pode oferecer análises úteis para que o especialista da coisa política ree-labore. Essa é a nova geografia que estamos tentando instalar, que é mais complexa e mais humilde também, porque parte das coisas simples. Mas creio que pode ajudar”5.

Os impactos da globalização no Brasil

“Os lugares são feitos sobretudo pelos de baixo, são eles que se comunicam nos lugares, são eles que estão reclamando alimentação correta, saú-de, educação para os filhos, lazer, informação e consumo político – que é uma reclamação tam-bém não muito clara, mas que vai aparecer daqui a pouco, a partir de uma base local. Uma nova distribuição de atribuições, de recursos, a con-sideração dos novos direitos que a globalização e suas técnicas levantam, uma nova idéia de de-mocracia, tudo tem que ser retrabalhado a partir de lugares. (...) Antes da globalização, nas fases em que os lugares não se comunicavam, as visões

eram caipiras, ou tendiam a ser provincianas. Hoje não, podemos ter todas as visões, mundial, nacional, local, a partir do lugar. São condições que o mundo da globalização oferece para essa reforma política e que não eram possíveis antes. São fenômenos como essa multiplicação de tele-fones, rádios, imprensa local, as dezenas de revis-tas que encontram clientela, seguidores”6.

“O Brasil é muito grande. (...) Mesmo a globalização com a sua brutalidade não vai le-var o país a mudar todo da mesma forma. As mudanças serão mais lentas em certas áreas. A globalização, de uma forma ou de outra, vai exigir certa qualificação para o acesso ao trabalho rentável. (...) Não é a mesma coisa em São Paulo,

5 Trecho editado da entrevista concedida por

Milton Santos a José Corrêa Leite e publicada na

revista Teoria e Debate nº 40, de fevereiro/março/abril

de 1999. In: http://www.fpabramo.org.br

6 Trecho editado da entrevista concedida por

Milton Santos a José Corrêa Leite e publicada na

revista Teoria e Debate nº 40, de fevereiro/março/abril

de 1999. In: http://www.fpabramo.org.br

Milton Santos em sua casa. São Paulo, 2000

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29 Milton Santos Personalidade

De La Totalidad Al Lugar. Barcelona: Oikos Tau, 1996.

Novos Rumos da Geografia Brasileira. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

Técnica, Espaço Tempo: Globalização e Meio Técnico-Cientifico Informacional. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

Metamorfoses do Espaço Habitado. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

Por Uma Geografia Nova (1978) . 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

Por uma economia política da Cidade. São Paulo: Hucitec, Ed. PUC-SP, 1994.

Espaco e Metodo (1985). 3. ed. São Paulo: Nobel, 1992.

Pensando O Espaco do Homem (1982). 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1991.

Por una geografia nueva. Madrid: Espasa-Calpe, 1990.

Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1990.

Espace et méthode. Paris: Publisud, 1990.

Manual de geografia urbana (1981). 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1989.

O Espaco do Cidadao. São Paulo: Nobel, 1987.

Pour Une Geographie Nouvelle (1985). 2. ed. Paris: Editions Publisud, 1986.

Ensaios Sobre A Urbanizacao Latino-Americana (1982). 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

Espacio y Metodo. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1986.

Espaco e Sociedade (1979). 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

A urbanização desigual (1980). 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1982.

The shared space: the two circuits of the urban economy and its spatial repercussions. Londres: Methuen, 1979.

A pobreza urbana (1978). 2. ed. São Paulo: Hucitec-UFPE, 1979.

Economia Espacial: Criticas e Alternativas.São Paulo: Hucitec, 1978.

O espaço dividido. Rio de Janeiro: Lvraria Ed. Francisco Alves, 1978.

L’espace partagé. Paris: Editions Librairies Techniques, M. Th. Génin, 1975.

Geografia Y Economia Urbanas En Los Paises Subdesarollados. Barcelona: Oikos-Tau, 1973.

Undervelopment and poverty: a geographer’s view. Toronto: The latin american in residence lectures, 1972.

Le métier du géographe en pays sous-développés. Paris: E. Oprhys, 1971.

Les villes du Tiers Monde. Paris: E. Génin, 1971. v. 10.

Dix essais sur les villes des pays sous-développés. Paris: Ed. Ophrys, 1970.

Aspects de la géographie et de l’économie urbaine des pays sous-développés. Paris: Centre de Documentation Universitaire, 1969.

La Naturaleza del Espacio. Técnica y Tiempo. Razón y Emócion. Barcelona: Ariel, 2000.

Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 2000.

Território e Soceidade, entrevista a Odette Seabra, Mônica de Carvalho, José Corrêa Leite. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção (1996). 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnico-científico informacional (1994) . 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

A urbanização brasileira (1993). 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

O Espaço do Cidadão (1987). 4. ed. São Paulo: Nobel, 1997.

La Nature de l’Espace. Technique et Temp. Raison et Émotion. Paris: L’Harmattan, 1997.

Metamorfoses do espaço habitado (1988). 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo (1978). 4. ed. São Paulo: Hucitec / AGB, 1996.

Metamorfosis Del Espacio Habitado. Barcelona: Oikos Tau, 1996.

Croissance démographique et consommation alimentaire dans les pays sous-développés. Paris: Centre de Documentation, 1967.

A Cidade Nos Paises Subde-senvolvidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

Marianne em Preto e Branco. Salvador: Livraria Progresso, 1960.

A cidade como centro de região. Salvador: Imprensa Oficial, 1959.

A rede urbana do recôncavo. Salvador: Imprensa Oficial, 1959.

O centro da cidade de Salvador. Salvador: Editora Progresso, 1959.

TRICART, J. . Estudos de Geografia da Bahia. Salvador: Livraria Progresso, Ed., 1958.

JACOBINA, D. . Localização industrial - Estudos e Problemas da Bahia. Salvador: E. mimeografada da CPE nº 3, 1958.

Zona do cacau. Introdução ao estudo geográfico (1955). 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

Estudos sobre geografia. Salvador: Tipografia Manú, 1953.

Os estudos regionais e o futuro da geografia. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1953.

O povoamento da Bahia: suas causas econômicas. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1948.

Conheça a obra de Milton SantosLivros publicados/organizados ou edições

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no Nordeste ou no Norte, onde a mobi-lidade dos homens e das coisas é menor. Num território fluido, não adianta entregar ao pobre produção, ele não tem comando sobre o resto, sobre a circulação e a comercialização. (...) Os políticos não fazem política, o aparelho de Estado não faz política, são porta-vozes. O povo faz política, os pobres é que fazem políti-ca. Porque conversam e, conversando, defron-tam o mundo e buscam interpretar o mundo. E agem, quando podem, em função do mundo. A organização é importante e a desorganização também. As periferias refletem isso. (...) Mas não estamos preparados para entender porque queremos repetir a interpretação do Brasil a partir do que aprendemos na Europa e nos Esta-dos Unidos com a classe média, porque pobres não havia. Na Europa em que essa geração [de políticos e intelectuais] estudou quase não tinha pobre, e a classe média era defensora da de-mocracia e do seu aperfeiçoamento. Tanto que houve a expansão da social-democracia. (...) E os pobres são tratados por nós, que aprendemos epistemologia européia na universidade, como o chantilly no bolo. Fazemos a construção toda baseada na classe média e depois colocamos o pobre em cima, porque resta aquela idéia de que os primeiros queriam defender os princí-pios fundamentais da humanidade e os pobres, coitados, não têm nenhuma possibilidade se ser visionários, porque estão no dia-a-dia, ‘vivendo

da mão para a boca’. O dia-a-dia era considera-do pela antropologia e sociologia oficiais como algo que impedia qualquer vocação para o fu-turo. Quando é exatamente o contrário, porque quando tenho todos os dias que renovar meu estoque de impressões, de conhecimentos, de luta – que é o que o povo faz – sou obrigado a renovar também minha produção filosófica. To-dos os dias o povo se renova e, num país como o Brasil, com essa urbanização tão galopante, tão rápida, essa mudança de lugar tem um papel ex-traordinário na produção desse outro homem”7.

Fazendo história

Ao longo de sua obra, Milton Santos fez mais do que propor conceitos e explicá-los: ele mudou o jeito de pensar a geografia, acrescentando espí-rito crítico e influenciando várias gerações de professores e estudantes. Ao privilegiar o estu-do do então chamado Terceiro Mundo, inverteu a ordem vigente da filosofia e de outras ciências, que compreendem o mundo à partir do Hemis-fério Norte e das nações mais desenvolvidas. O convite do intelectual brasileiro com seus argu-mentos bem fundamentados é que os países da parte de baixo do globo terrestre têm e terão papel crucial à partir da globalização, não sen-do mais possível pensar o mundo sem levar em conta as economias, as políticas, o espaço e as pessoas que ali habitam. O espaço deixou de ser apenas algo estanque e adquiriu dimensões de tempo e técnica, razão e emoção, tonando-se um espaço social, em que sua análise não pode-ria mais ser feita sem considerar o homem e a maneira como ele se relaciona com o lugar.

Milton Santos escreveu mais de 40 livros, pu-blicou mais de 300 artigos em revistas científicas, muitos deles traduzidos para o francês, espanhol e inglês e recebeu dezenas de títulos e homenagens em todo o mundo, incluindo 13 títulos de Doutor Honoris Causa. “De todas as homenagens que re-cebeu, a mais importante foi o Prêmio Internacio-nal de Geografia Vautrin Lud, que tem na França, para sua área, uma honraria equivalente ao Prê-mio Nobel de Geografia, da Suécia”8.

7 Trecho editado da entrevista concedida por

Milton Santos à revista Caros Amigos nº17, de

agosto de 1998.

8 Trecho da matéria “Milton Santos: geografia e cidadania”, escrita por José Maria Mayrink, publicada

no Caderno Homem de Idéias 1998 do Jornal do

Brasil, de 26 de dezembro de 1998.

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31 Milton Santos Personalidade

Ser negro no BrasilAo terminar os estudos no internato, Milton Santos era um aluno forte em matemática. “Mas havia uma notícia generalizada de que a Escola Politécnica não tinha muito gosto em acolher negros, então fui aconselhado fortemente pela família a estudar direito. (...) Na realidade, al-guns negros conseguiram entrar, mas havia a crença na sociedade baiana, na sociedade negra em particular, de que os obstáculos na Politécnica eram maiores. (...) A questão do negro já está tendo maior importância na minha maturidade do que na minha juventude, e terá muito mais, porque os negros não vão para lugar nenhum! E com a globalização nós seremos ainda menos atendidos. (...) No Brasil os negros vão deixar de ter a posição que têm hoje, pois ainda sorriem, e vão começar a ranger os dentes. O que é preciso é que os negros queiram ser a nação brasileira. Não tem de imitar americano, nem querer ser africano. Porque quando quero ser africano – ou africano brasileiro, acabo sendo menos político. (...) Quando olho para trás, para a evolução do movimento negro no Brasil, há um crescendo, tanto na velocidade quanto na intensidade. (...) O fato de que os negros tenham ido para a faculdade é importan-te – descobrem também que não vão conseguir emprego. Ou os que conseguem são de me-nor remuneração.(...) Mas está havendo uma tomada de consciência do fato de ser relegado. Porque os negros não fazem parte da nação brasileira. Pessoalmente é minha experiência. (...) Na cabeça dos outros, quando se é negro, é evidente que não se pode ser outra coisa, só excepcionalmente não se será o pobre, não será humilhado. Porque a questão central é a hu-milhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico. E daí o medo, que também tenho de circular, de entrar num restaurante e alguém olhar torto porque sou negro”.

Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos à revista Caros Amigos nº17, de agosto de 1998.

Para saber mais sobre a formação e atuação de Milton Santos, acesse seu currículo na Plataforma Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4798868Z6P

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Tradição, alegria e féfestas populares e tradicionais brasileiras

Pesquisa: Marina Camisasca

Redação: Isabella Verdolin e Marina Camisasca

Entrevistas: Rogério Dias

Fotografias: Ricardo Avelar

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alegre”, em que crianças ou adultos são coroa-dos como imperadores do Divino, numa inver-são simbólica da ordem social. As Cavalhadas, simulando as batalhas entre mouros e cristãos, ainda fazem parte da festa em diversos pontos do país. A pomba branca, símbolo do Divino Espírito Santo, é conduzida em estandartes, bandeiras e ornamenta as roupas, ruas e casas nas cidades em que os festejos ocorrem.

Mesclando a cultura negra com a religião ca-tólica, o Congado chegou ao Brasil junto com os escravos trazidos do Congo e foi sofrendo adap-tações. Inspirado numa manifestação de agrade-cimento do povo aos governantes daquele país africano, a religiosidade passou a ser a grande motivadora em terras brasílicas. Diz a tradição que uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar e que apesar das missas, nove-nas e orações, não aceitou ser resgatada pelos brancos, só retornando à terra pelas mãos dos negros, numa mensagem clara de proteção, para por fim ao sofrimento dos escravos. O Conga-do é uma dança, acompanhada de um cortejo compassado e levantamento de mastros e mú-sicas que louvam a santos. A comunidade in-corpora os personagens de reis, rainhas, coroa-dos, portas-bandeiras, juízes, capitães-regentes, alferes, dançantes, acompanhantes, cantadores, caixeiros que, juntos, formam uma guarda.

Do encontro de europeus, indígenas e afri-canos nasceu o povo brasileiro, que ao longo dos anos construiu sua cultura costurando costumes e tradições herdados de seus ances-trais. A religiosidade e o gosto pelos festejos são características presentes desde o início da colonização e a miscigenação trouxe múlti-plas maneiras de vivenciá-los. Nos dias atu-ais, as festas populares assumem coloridos diferentes, sons os mais diversos e sabores próprios, mas ao olharmos de perto, guardam entre si uma identidade que remete às origens de nossa gente, daquilo que nos torna brasi-leiros. Talvez a mais difundida seja a Festa do Divino. De origem cristã, é realizada 50 dias após a Páscoa, comemorando Pentecostes. Seus primeiros registros no Brasil datam do século XVIII e seu objetivo é anunciar a chegada de uma nova era para o mundo dos homens, com igualdade, prosperidade e abundância para to-dos. Um dos momentos marcantes é o “tempo

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Congado de pai pra filhoNeuza de Assis, Guarda de Moçambique do Sagrado Coração de Jesus, na cidade de Belo Horizonte, diz que sempre participou com seu pai e seu avô e que seus filhos foram criados dentro do Congado. “Herdei a tra-dição com meu bisavô. Toda a minha família foi criada dentro dessa tradição do congado e estamos criando os mais jovens dentro do mesmo sistema, pois achamos que é importante para a formação. Graças a Deus a Festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário tem uma aceitação muito boa. É um orgulho para um pai e para uma mãe ver um filho fardado, saindo de casa para dançar reinado”. Participante de Congado nessa mesma cidade, o Capi-tão regente do Moçambique do Divino Espírito Santo, Rodrigo Lúcio do Espírito Santo afirma que o conga-deiro não se faz, ele nasce. “Não existe congadeiro de livro ou de faculdade. Eu posso dizer que eu já dança-va congado desde a gravidez da minha mãe, continuo dançando e o meu filho segue o mesmo caminho”.

Em Oliveira (MG), o congadeiro mais antigo da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora das Mercês, Antônio Eustáquio dos Santos se sente orgulhoso de pertencer ao grupo, que completou 60 anos: “Tivemos a alegria de participar do ano do Brasil na França em 2004. Dançamos às margens do Rio Sena e ficamos muito honrados, por sermos de famílias humildes, filhos, netos e bisnetos de *cativeiros (escravos). Hoje temos a oportunidade e a liberdade de louvar Maria em todos os cantos deste nosso mundo, em qualquer rua ou qualquer praça. Estou completando 64 anos de vida e participo desde os cinco anos de idade e me orgulho deste aprendizado. Tenho 4 filhos, mas eles não participam do Congado. Meus sobrinhos e afilhados é que me acompa-nham na Guarda”.

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Os reis são os representantes da tradição, da espiritualidade. O capi-tão-regente comanda a música e a dança. Em média, cada guarda de Congo possui mais de 40 componentes e cada uma delas se distingue por seu ritmo, coreografias e instrumentos de corda e de percussão, como viola, adufe, caixas, tambores e maracás. Inicialmente restrito à comunidade negra, ao longo do tempo todos aqueles que se sentiam a margem da sociedade uniram-se na devoção a Nossa Senhora do Rosário e aos festejos. O Congado espalhou-se e é mais frequente nos estados de Minas Gerais, Paraná e Goiás, entre outros.

A Folia de Reis tem origem portuguesa. No entanto, em Portugal tinha como principal finalidade divertir o povo, enquanto no Brasil passou a ter um caráter mais religioso do que de diversão, e está presente em quase todas as regiões do país. No período de 24 de dezembro a 06 de janeiro, Dia de Reis, grupos de cantadores, instrumentistas, dançarinos, palhaços e outras figuras folclóricas devidamente caracterizadas segundo as lendas e tradições locais, percorrem as cidades entoando versos relativos à visita dos reis magos ao menino Jesus. Todos se organizam sob a liderança do Capitão da Folia e seguem com reverência os passos da Bandeira, estan-darte de madeira ornado com motivos religiosos, a qual atribuem espe-

Altar da Adoração dos Reis Magos, de Gentile da Fabriano, 1420-23. Têmpera

sobre madeira, Uffizi, Florença

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cial respeito. Com sanfona, reco-reco, caixa, pandeiro, chocalho, violão e ou-tros instrumentos seguem noite adentro em longas caminhadas. As canções são sempre sobre temas religiosos, com ex-ceção daquelas tocadas nas tradicionais paradas para jantares, almoços ou repouso dos foliões, quando ocor-rem animadas festas com canto-rias e danças típicas regionais, como catira, moda de viola e cateretê. Contudo, ao contrá-rio dos Reis da tradição, o propósito da folia não é o de levar presentes, mas sim de recebê-los. Eles vão de porta em porta em busca de ofe-rendas que podem variar de comidas a bebidas ou até mesmo esmolas.

39Tradição, alegria e fé Cultura

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40 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB

O maracatu, inicialmente praticado apenas em Pernambuco, espalhou-se para outros esta-dos como Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Minas Gerais. Atualmente está presente até em outros países, como Alemanha, Inglaterra, Rús-sia, Canadá e França. Os mais conhecidos gru-pos foram criados por afrodescendentes que se utilizaram de heranças e costumes variados. São eles que mantêm a tradição de forma bastante dinâmica, num complexo processo de fazer e refazer, resultado de constantes adaptações e re-criações de práticas antigas, não sendo possível determinar onde nem como começaram.

Em Recife, capital de Pernambuco, a denomi-nação maracatu servia para denominar um ajun-tamento de negros. Assim, os cortejos das nações em homenagem aos Reis do Congo, que aconte-ciam no carnaval, também ganharam esta deno-

minação. Os maracatus já enfrentaram momentos delicados ao longo de sua história, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, quando não havia mais que cinco grupos, em contraste aos quase trinta hoje existentes. O ressurgimento ocorreu nos anos 1980, momento em que os grupos Elefante, Sol Nascente e Estrela Brilhante retornaram ao carna-val de Recife, após alguns anos sem desfilar.

Os maracatus se dividem em duas moda-lidades, o nação e o rural, também conhecido como de baque solto ou de orquestra, que se distinguem principalmente pelos conjuntos mu-sicais. Enquanto o nação é acompanhado por uma orquestra percussiva em que sobressaem as alfaias, o rural é constituído de uma orquestra denominada terno, composta de poica, espécie de cuíca, tambor, gonguê de duas campânulas, caixa e instrumentos de sopro.

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42 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB42

A diversidade cultural e dos feste-jos mostra que ao longo do tempo nosso modo de vivenciar a religio-sidade e alegria foi sendo modifi-

cado. Seja pela modernidade, pelo crescimento desordenado, pela

interiorização do Brasil, pela evo-lução natural, pela educação, pelas mudanças dos costumes, entre tan-tos outros fatores, o que se destaca é o dinamismo da nossa cultura. As

festas tradicionais brasileiras fo-ram adaptando-se de região para região, assumindo sotaques e jei-

tos diferentes, mas são todas elas parte daquilo que nos identifica

enquanto uma só nação.

Festa do Divino. Belo Horizonte, MG

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43Tradição, alegria e fé Cultura

O tambor de crioula: tradição do Maranhão

O tambor de crioula é uma dança popular que incorpo-ra alguns elementos católicos e outros da religiosidade afro-brasileira. Frequentemente é realizado como for-ma de pagamento de promessas a São Benedito, san-to negro, e a outros protetores católicos ou entidades cultuadas nos terreiros. Nessas ocasiões as mulheres carregam nos braços ou na cabeça a imagem do san-to de devoção. Mas, normamelmente, a dança é puro divertimento. Ela foi trazida pelos escravos vindos de diversas regiões da África como Angola, Congo e Costa da Mina para as terras maranhenses entre os séculos XVIII e XIX. O isolamento geográfico do Grão Pará e Maranhão, desde os tempos coloniais, resultou em ca-racterísticas peculiares do tambor de crioula. O ponto forte é a umbigada, momento em que as coreiras, dan-çarinas, se encontram, fazem saudações aos brincan-tes e chamam uma substituta para entrar na roda. Os homens têm a função de comandar os toques e puxar os cantos. Não existe um dia determinado no calen-dário para a dança, que pode ser apresentada, prefe-rencialmente, ao ar livre, em qualquer época do ano. Atualmente, o tambor de crioula é dançado com maior frequência no carnaval e durante as festas juninas.

Para saber mais:

FIGUEIREDO, Luciano (org.). Festas e batu-ques no Brasil. Rio de Janeiro: Sabin, 2009.

LOPES, Nei. Enciclo-pédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004.

PRIORI, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.

TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros no Brasil. Cantos- danças- folguedos: origens. São Paulo: Art Editora, 1988.

SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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Apresentação de tambor de crioula em Alcântara (MA), em homenagem à São Benedito. 2006

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB44

Ações afirmativasno Brasil

um aprendizado social, um desafio jurídico, um convite à reflexãoP

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Sarita Amaro é Assistente Social pela Puc-RS, Mestre e Doutora em Serviço Social na mesma Universidade. Atua como Assistente Socialna Secretaria de Educação do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e como Conselheira do Governo Federal junto ao CNCD. Atuou como docente universitária na área do Serviço Social, tendo sido coordenadora de curso entre 1999 e 2003,

dentre muitas outras atividades ligadas à educação. Possui oito livros publicados, além de inúmeros artigos. Recebeu 20 prêmios e/ou homenagens, com destaque para o Prêmio Educação - Troféu Pena Libertária, do Sinpro-RS, em 2005. Desde 2006 é designada avaliadora de cursos e IES pelo INEP/MEC.

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45 Ações Afirmativas no Brasil Opinião

Se a cidadania é um aprendizado social, o que dizer do processo de revisão cultural e política que as ações afirmativas impõem às relações sociais? Criadas para corrigir e re-parar situações que integram um processo histórico de exclusões por racismo contra os afrodescendentes no Brasil, as políticas de ações afirmativas são dispositivos estratégi-cos de inclusão social, fundados no principio da discriminação positiva. No âmbito nacio-nal já há uma agenda que articula ações afir-mativas em resposta às necessidades e priori-dades das populações afrodescendentes. Isso, contudo, não significa um ambiente político pacífico. A oposição às cotas na universidade é apenas uma dessas manifestações. De fato, o problema do racismo e das ações afirmati-vas no Brasil reflete um histórico conflito de

interesses entre sociedade e individuo: de um lado a sociedade banaliza sua importância e, de outro, o sujeito afrodescendente constran-ge-se diante dos obstáculos em qualificar a denúncia e lutar por seus direitos de igualda-de. O judiciário tem um papel fundamental nas mediações dessa cidadania afirmativa. Mas como pode guiar-se para potencializar sua contribuição à sociedade? Considerando as limitações desse espaço, apresentaremos algumas reflexões, a seguir.

Reconhecer o racismo em suas velhas e novas manifestações

As violências raciais do século passado fo-ram tonalizadas pela exclusão no acesso a estabelecimentos, por ataques físicos de civis brancos contra negros e pela violência poli-cial. No atual século XXI, com as leis vigen-tes e o Programa Nacional de Ações Afirma-tivas, recentemente acrescido do Estatuto da Igualdade Racial, a violência racial ganhou contornos mais dissimulados, mas nem por isso menos devastadores e implacáveis1.

1 Debatemos isso no nosso livro “Negros, identidade, exclusão e direitos no Brasil. Porto Alegre: Tche,1988.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB46

Se de um lado os negros “seguem aparecendo associados a despreparo, pobreza, carência cultural, feiúra, baixos recursos intelectuais, acomodação e inadaptação; também se evi-dencia um disseminado desconforto com os negros/as que ascendem por invadirem um ter-

ritório que o branco/a considera seu.”2 Essas novas configurações requisitam um judiciário mais contundente em sua negativa aos velhos argumentos da democracia racial e mais crítico diante dos simulacros racistas que encobrem estratégias deliberadamente segregacionistas.

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47 Ações Afirmativas no Brasil Opinião

Considerar a tipificação do racismo numa perspectiva multidimensional e multicausal

A tipificação do racismo, no geral, é materia-lizada em testemunhos das vítimas e de outras pessoas que comprovem a “factualidade” des-sa violência. Contudo, o racismo, diante de sua complexidade, nem sempre pode ser compro-vado em testemunhos e, não raramente, isso acaba desmobilizando muitas vítimas de seguir com a queixa e buscar seus direitos. Temos defendido que tanto os operadores de Direito como o Judiciário devem (re)aprender a buscar a comprovação do racismo em outras formas de registro. Laudos periciais são alguns deles. Os laudos tendem a revelar a correlação fenomenal entre a discriminação racial e várias situações como o rebaixamento salarial ou funcional, o desemprego, a perseguição cultural-religiosa, as adjetivações estigmatizantes imputadas aos ne-gros, assim como o desenvolvimento de patolo-gias acionadas pelo trauma, tais como: fobias, pânico, cardiopatias e disfunções neurológicas. Esses e outros condicionantes precisam ser iden-tificados, interfaceados/confrontados e conside-rados como prova judicial.

Apoiar a identificação étnico-racial por meio da auto-atribuição de pertença

O judiciário segue recebendo processos que lançam dúvidas sobre a negritude de certos cidadãos, em geral quando o assunto é cotas, seja nas universidades, seja no acesso a postos de trabalho. Basicamente, as questões gravitam em torno da “cor” do sujeito que se reconhece “afrodescendente”. Mas como em tudo que te-mos orientado nesse artigo, nesse caso também a complexidade deve ser o nosso guia. A reco-nhecida miscigenação racial praticada no Bra-sil (aliás, entre várias etnias) deve estar na lente do judiciário ao se pautar o pertencimento ét-nico; considerando, por exemplo, a genealogia familiar3; sem ater-se à valorização apenas do aspecto fenotípico.

2 BENTO, Maria Aparecida. In: Racismos Contemporâneos. Ashoka (org). RJ: Takano Ed, 2003. 105-106, passim.

3 E quando dizemos isso nos referimos não apenas a famílias afrodescententes (biológicas), mas também àquelas derivadas de adoções, mesmo que miscigenadas – sendo as crianças negras adotadas e os pais adotantes (se brancos) os alvos principais.

4 Sobre isso sugerimos ver nosso artigo “A questão racial na assistência social: um debate emergente”. In: Revista Serviço Social e Sociedade, nº 81, Ano XXVI, 2005. P 58-81.

Compor decisões judiciais balizadas pelas ações afirmativas, numa pers-pectiva de complexidade

Decisões judiciais, numa perspectiva comple-xa e afirmativa, poderiam conjugar aspectos morais e materiais, por meio da aplicação de retratações morais públicas (em jornais dentro da abrangência espacial em que o prejuízo do racismo foi mais marcante), as-sociadas a reparações materiais por meio do pagamento de numerários, preferencialmente expressivos (para impactar na educação anti-racista) ou de restituições de bens/territórios (como os devidos a muitas comunidades qui-lombolas). A decisão judicial pode ainda si-nalizar que as instituições e políticas sociais existentes disponibilizem apoio social4, psi-cológico ou médico-psiquiátrico para vítimas de violência racial (discriminação racial, in-júria ou ofensa de caráter racial), durante um tempo específico, enquanto durar o processo ou após seu arquivamento.

Essas são apenas algumas reflexões. Acreditamos que quanto mais avançarmos na publicização, criminalização e reparação do racismo brasileiro, holística e progressivamente, estaremos compondo novos parâmetros de socialidade, efetivamente fundados na equidade racial. E essa conquista não será apenas dos afrodescendentes, mas da sociedade brasileira como um todo.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB48

Delcele Mascarenhas Queiroz é Professora Adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), douto-ra em Educação e pesquisadora associada ao Programa Cor da Bahia/UFBA.*Artigo originalmente publicado no livro Afirmando Direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade, de Nilma L. Gomes e Aracy A. Martins (organizadoras). Ed. Autêntica, 2ª edição, 2006.

Brancos e Negros no Ensino Superior

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB48

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49 Ações Afirmativas no Brasil Opinião

O Brasil vem de uma longa história de nega-ção das desigualdades raciais em que, ape-sar das profundas distâncias entre brancos e negros, as representações sobre as relações raciais estiveram influenciadas pela ideia de “democracia racial”. Essa auto-imagem tem dificultado a emergência de uma visão críti-ca sobre a realidade das relações raciais no país. Apenas agora, depois de enorme luta das organizações negras, o Estado brasileiro começa a conhecer a situação diferenciada de negros e brancos e a consequente necessidade de medidas de combate ao racismo e à desi-gualdade racial.

No entanto, a adoção de tais medidas tem encontrado barreiras consideráveis. Ao lado de fortes relações vindas de setores da sociedade, a carência de informações, em certas áreas, constitui-se num poderoso obstáculo. No ensino superior, por exem-plo, embora as universidades públicas co-letem, anualmente, uma gama considerável de dados sobre a população estudantil que demanda seus cursos, até bem pouco tem-po, era completamente desconhecido o per-fil racial dessa população.

Foi com essa preocupação que, na década passada, indagamos sobre o que se passava com os negros no interior da universidade. Até essa época, havia hipóteses sobre a baixa representatividade do negro no ensino supe-rior, mas não havia sido desenvolvido ne-nhum estudo que desse conta dessa realida-de. A partir de 1997, iniciamos um trabalho de investigação que, num primeiro momento, examinou a participação dos negros na Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA) e, poste-riormente, procurou verificar a situação em outras universidades do país. Esse estudo foi realizado nas universidades federais do Maranhão, Rio de Janeiro, Paraná e Brasí-lia. O estudo mostrou uma situação bastante parecida entre essas universidades, deixando a ideia de que se pode afirmar, com alguma segurança, que essa é a situação nas demais universidades federais brasileiras.

A pesquisa realizada na UFBA, sobre a participação de estudantes dos diversos seg-mentos raciais, talvez seja o primeiro esforço visando revelar o perfil racial da população universitária brasileira. Essa investigação le-vantou informações sobre os estudantes que ingressaram na universidade naquele ano.

Nesse levantamento, uma proporção de cerca de 50% dos estudantes se declararam brancos, aproximadamente 34% pardos e 8% pretos. Isso significa que, agregando pre-tos e pardos na categoria negros, estes cor-respondiam a cerca de 42% dos estudantes que ingressaram na UFBA naquele ano. Esses resultados, revelando uma distância de ape-nas oito pontos percentuais entre brancos e negros na universidade, poderiam parecer animadores, considerando-se a histórica tra-jetória de desvantagens dos últimos, não fos-sem eles cerca de 80% da população baiana, e os brancos apenas 20% desta. Além dis-so, o estudo mostrava ainda que os negros presentes na universidade frequentavam, em geral, os cursos de menor valorização social, e, em muitos destes, eles eram minoritários. Estavam entre os estudantes negros a maioria dos que tinham frequentado a escola média em condições mais precárias: a maioria dos que haviam estudados em escolas públicas, em turno noturno, que tinham associado es-tudo e trabalho na sua trajetória escolar; a maioria daqueles cujos pais eram portadores de instrução elementar e estavam em ocupa-ções manuais. A pesquisa indicou, dessa for-ma, que, em que pese a expressiva presença dos negros no conjunto da população baiana, eles não estavam se beneficiando, na mesma medida que o contingente branco, do acesso à universidade.

A constatação desses resultados instigou indagações sobre o que se passava em outras universidades federais brasileiras. Em cola-boração com a UFMA, a UnB, a UFRJ e a UFPR, se decidiu, em 2000, promover um es-tudo que permitisse comparar realidades de diversas universidades federais.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB50

Cor e participação

As informações da pesquisa foram coletadas através de um questionário que indagava sobre as condições socioeconômicas do estudante, as-pectos de sua escolarização anterior, da escolari-zação e ocupação dos pais e solicitava que o es-tudante autodeclarasse sua cor ou raça, segundo duas modalidades de autoclassificação. No pri-meiro momento, o questionário apresentava uma questão aberta que permitia ao estudante usar o termo que desejasse para definir a própria cor ou raça. No segundo momento, lhe foi apresentada uma pergunta fechada, em que as opções de res-posta eram os termos raciais de uso do IBGE, a saber: branca, parda, preta, amarela e indígena.

A comparação mostrou uma grande similari-dade no modo como se distribuem os segmentos raciais, evidenciando que a universidade brasilei-ra é predominantemente branco. Excetuando-se a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), os brancos representam sempre mais da metade dos estudantes nas universidades investigadas; e, ainda aí, eles são o contingente mais significati-vo. O maior contingente relativo de estudantes brancos está na Universidade Federal do Paraná (UFPR), o que não surpreende, uma vez que, dos Estados contemplados pela pesquisa, o Paraná é o de maior população branca. Em seguida estão a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de Brasília (UnB). A Universida-de Federal do Maranhão e Universidade Federal da Bahia, Estados de maioria negra, são aquelas que apresentam os menores contingentes relati-vos de estudantes brancos.

A comparação entre a participação dos seg-mentos negro e branco no conjunto da popula-ção e sua participação na universidade, em cada Estado, revelou significativas distâncias, indi-cando o privilégio dos brancos que estão sobre-representados na universidade.

Distribuição percentual dos estudantes segundo a cor e a universidade*Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB

Branca 76,8 86,5 47,0 50,8 63,7

Parda 17,1 7,7 32,4 34,6 29,8

Preta 3,2 0,9 10,4 8,0 2,5

Amarela 1,6 4,1 5,9 3,0 2,9

Indígena 1,3 0,8 4,3 3,6 1,1

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0fonte: pesquisa direta

* Foram respondidos 12.278 questionários nas

cinco universidades, assim distribuídos: UFRJ 4.056; UFPR 3.499; UFMA 907;

UnB 528; UFBA 3.288.

A história escolar do estudante

Em quase todas as universidades, as maiores concentrações de estudantes provenientes de escolas privadas estão entre os brancos. Es-sas proporções são especialmente elevadas na UFBA e na UFMA. Entre os pretos estão, em geral, os menores percentuais de estudantes oriundos desse tipo de escola. Com exceção da UFPR, nas universidades investigadas, a pro-porção de estudantes oriundos de escolas pro-vadas está em torno de dois terços. Essas esco-las revelam-se espaços bastante seletivos para pobres e negros.

Participação dos negros no conjunto da população do Estado e sua presença na universidadeEstado População Universidade PopulaçãoRio de Janeiro 38,2 UFRJ 20,3

Paraná 22,4 UFPR 8,6

Maranhão 75,1 UFMA 42,8

Bahia 77,5 UFBA 42,6

Distrito Federal 53,6 UnB 32,3

fonte: IBGE/pesquisa direta

Participação dos brancos no conjunto da população do Estado e sua presença na universidadeEstado População Universidade PopulaçãoRio de Janeiro 61,7 UFRJ 76,8

Paraná 76,2 UFPR 86,5

Maranhão 24,8 UFMA 47,0

Bahia 22,1 UFBA 50,8

Distrito Federal 45,9 UnB 63,7

fonte: IBGE/pesquisa direta

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51 Ações Afirmativas no Brasil Opinião

Na UFPR está a melhor situação dos estu-dantes vindos de escolas públicas; eles represen-tam quase dois quintos dos que aí ingressaram. Também na UnB eles estão bem representados, mesmo entre os estudantes brancos. Isso talvez se explique por uma melhor qualidade do sis-tema público de educação nesses Estados. Em quase todas as universidades, está entre os pre-tos a maior proporção dos que vieram desse tipo de escola. Entre os pardos é também bas-tante representativo o segmento oriundo da es-cola pública. Esse dado é bastante eloquente ao apontar para a importância da escola pública para a população negra, mostrando a urgência de políticas voltadas para a melhoria da qua-lidade do ensino básico público, como forma de atacar as desigualdades raciais existentes no Brasil, sobretudo em universidades do Nordes-te, onde se concentram significativas parcelas da população negra.

51 Brancos e Negros no Ensino Superior Opinião

Distribuição dos estudantes oriundos de escola privada de nível médio, segundo a cor

Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB

Branca 73,7 62,3 74,5 78,6 68,2

Parda 57,9 50,8 66,3 56,4 63,3

Preta 44,6 41,9 60,4 47,0 53,8

Amarela 70,3 71,0 68,6 72,4 53,3

Indígena 63,5 42,3 63,2 76,5 40,0

Total 69,9 61,4 69,4 68,4 65,7fonte: pesquisa direta

Distribuição dos estudantes oriundos da escola pública de nível médio, segundo a cor

Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB

Branca 24,9 37,7 24,5 17,2 30,9

Parda 39,9 49,2 33,0 36,9 34,0

Preta 53,1 58,1 38,5 44,0 46,2

Amarela 28,1 29,0 29,4 20,4 46,7

Indígena 32,7 57,7 36,8 18,3 40,0

Total 28,5 38,6 29,7 26,4 32,7

fonte: pesquisa direta

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB52

Cor e prestígio do curso frequentado

Uma das medidas do prestígio dos cursos supe-riores, adotadas nesse estudo, teve como refe-rência a pesquisa sobre o valor das profissões no mercado de trabalho da Região Metropoli-tana de Salvador (RMS). A pesquisa baseou-se numa coleta de informações realizada em em-presas de consultoria em RH, que atuam no mercado de trabalho da RMS, tomando como referência o elenco de cursos oferecido pela UFBA, e que resultou numa escala de prestí-gio das profissões de cinco posições, a saber: Alto, Médio alto, Médio, Médio baixo e Bai-xo1. Essa escala de prestígio respaldou a análi-se das desigualdades entre os segmentos raciais no acesso aos cursos.

Na maioria das universidades o segmento branco é aquele que, frequentemente, apresen-ta a mais elevada concentração de estudantes em cursos de Alto prestígio. No Paraná, esse privilégio cabe aos amarelos e, na UFRJ, são os que se declararam indígenas os mais bem posicionados.

Em elevadas proporções, e em todos os segmentos raciais, os estudantes que fre-quentam as universidades públicas federais fizeram seu curso médio no turno diurno; a maior proporção está na UnB e a menor na UFPR. Na maioria das universidades, os pretos são o segmento cujos estudantes, em menores proporções, frequentaram escolas nesse turno, o que aponta para a desvanta-gem desse segmento.

Distribuição dos estudantes oriundos de escola de nível médio no turno diurno, segundo a corCor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnBBranca 87,4 77,4 91,3 89,5 95,5Parda 79,5 65,6 91,2 79,6 95,4Preta 73,8 61,3 91,1 76,7 92,3Amarela 78,1 81,9 85,7 86,7 100,0Indígena 84,6 76,9 84,2 89,6 66,7Total 85,4 76,5 90,6 85,0 95,2

fonte: pesquisa direta

Coerentemente com os aspectos anterior-mente analisados, na população branca, é pouco expressiva a parcela dos que associa-ram trabalho e estudo na sua trajetória pela escola básica. Entretanto, entre os pretos estão as mais elevadas proporções dos que assim procederam. Na UFPR encontra-se a maior proporção dos estudantes que traba-lharam durantes os estudos de nível médio. Nas demais universidades, esse contingente é pouco significativo. Entre os pretos estão, em geral, as maiores participações; na UFPR e na UFRJ estão as mais elevadas.

Distribuição dos estudantes que trabalharam duran-te os níveis fundamental e médio, segundo a corCor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnBBranca 0,9 3,9 0,5 1,3 3,3Parda 2,0 6,6 3,3 3,2Preta 3,1 12,9 1,1 6,2Amarela 3,1 1,5 1,9 1,0Indígena 3,8 15,4 1,9 2,6 16,7Total 1,2 4,2 0,7 2,4 3,2

fonte: pesquisa direta

Distribuição dos estudantes que trabalharam duran-te o nível médio, segundo a corCor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnBBranca 12,3 25,7 11,6 10,8 12,0Parda 18,7 32,7 17,3 15,8 11,5Preta 26,4 25,8 26,1 18,1 15,4Amarela 18,8 16,9 15,4 13,3 13,3Indígena 13,5 34,6 15,4 10,4Total 13,9 26,0 15,7 13,2 11,8

fonte: pesquisa direta

Distribuição dos estudantes em cursos de Alto prestí-gio segundo a corCor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnBBranca 35,1 37,9 26,3 44,2 23,0Parda 24,6 31,9 21,9 29,9 19,5Preta 19,6 17,9 16,2 20,8Amarela 30,9 47,1 19,1 26,7 14,3Indígena 37,2 13,5 25,0 26,7 16,7Total 32,8 37,5 23,4 36,3 21,1

fonte: pesquisa direta

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53 Ações Afirmativas no Brasil Opinião 53 Brancos e Negros no Ensino Superior Opinião

Considerações finais

Assim, o estudo apontou expressivas desigual-dades entre os segmentos raciais no ensino su-perior, indicando que a universidade brasileira é um espaço de predomínio de brancos. Em quase todas as universidades os brancos representaram proporções superiores à metade dos estudan-tes. Constatou-se uma sobre-representação dos brancos e uma sub-representação dos negros na universidade, mesmo dos Estados em que estes são a maioria expressiva da população, como a Bahia e o Maranhão.

A pesquisa mostrou que, em significativas proporções, os estudantes das universidades fe-derais vieram de escolas privadas, de funciona-mento diurno, frequentaram cursos de caráter propedêutico e não trabalharam durante sua trajetória escolar básica. No entanto, os pretos e pardos têm, frequentemente, fraca representa-ção nesse grupo.

A pesquisa evidenciou ainda uma forte se-letividade racial no acesso a cursos de elevado prestígio social, mostrando que é, também, pre-dominantemente dos brancos esse privilégio.

Os resultados do estudo apresentam as univer-sidades federais investigadas como espaços forte-mente seletivos, particularmente marcados pela desigualdade racial. Embora tenha ficado evidente a posição de desvantagem em eu se encontram os estudantes negros, é oportuno lembrar que se está diante de um segmento da população negra já bas-tante selecionado, porque bem sucedido na dispu-ta por uma oportunidade da universidade pública brasileira, mas pouco representativo do conjunto de estudantes negros brasileiros.

Essas evidências concorrem para dar visibili-dade a uma realidade que tem estado silenciada ao longo da história pós-escravista, contribuindo para manter a população negra nos níveis mais precários da escala social e para dissimular as prá-ticas racistas vigentes da sociedade brasileira.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB54

por que o Brasil precisa delas?

Pesquisa, entrevistas e redação: Isabella Verdolin

Desde que algumas universidades anunciaram que reservariam parte de suas vagas para estudantes negros e indígenas, o Brasil assiste a um acalo-rado debate entre os que são contra ou a favor das cotas. Mas, ser contra ou a favor é mesmo relevante? Afinal, de onde surgiu esta ideia? E por que o Brasil decidiu colocar em prática as cotas nas universidades?

Políticas afirmativas: Pho

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55 Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Especial

Para responder estas e muitas outras ques-tões suscitadas pelo tema, é necessário, pri-meiramente, a compreensão acerca das ações afirmativas. Ações afirmativas são programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades, com o objetivo de reparar as distorções e desigualdades so-ciais e demais práticas discriminatórias adota-das, nas esferas públicas e privadas, durante o processo de formação social do país, em todos os setores (educação, saúde, esporte, trabalho, moradia, entre outros).

“No âmbito do Direito, as políti-cas e ações afirmativas estão funda-mentadas no princípio da Isonomia ou Igualdade descrito no Artigo 5º da Constituição Federal de 1988”, explica João Ricardo dos Santos Costa, Presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS. “É também uma forma de aplicar o princípio de discriminação positiva, para que diferenças histó-ricas - culturais, sociais, econômicas - possam ser diminuídas a partir de outra condição de partida social. O transporte coletivo para os portado-res de necessidades especiais é uma ação afirmativa, por exemplo, assim como assentos preferenciais para grávidas, idosos, obesos”, completa Sarita Terezinha Alves Amaro, Dra. em Assistência Social e Assistente Social da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul. Neste senti-do, as cotas para estudantes negros e indígenas são apenas mais uma iniciativa de reparação histórica às populações que sofreram tratamen-to desigual no desenvolvimento do Brasil enquanto nação.

Mas, ao contrário de ações como os ônibus adaptados, vistos como um grande avanço pela socieda-

de, as cotas para ingresso nas universidades causaram uma enorme polêmica e dividi-ram opiniões. Afinal, porque o assunto des-perta tantas “paixões”? Se olharmos para o passado, talvez encontremos algumas pistas.

O Brasil foi uma das colônias que mais recebeu mão de obra escrava vinda da África (além de escravizar os índios) e a última a abolir a escravatura.

Negros procurando diamantes, Thomas Kelly, 1815.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB56

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB56

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57 Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Especial

mésticas não remuneradas. Este fato acabou, de certa forma, estigmatizando o lugar da mulher negra no mercado de trabalho”, afirmam Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, no artigo Movimento negro e educação (Revista Brasileira de Educação Set/Out/Nov/Dez 2000 Nº 15).

Em todo o século XX, mesmo com organi-zações que defendiam os direitos dos negros e combatiam o racismo, a crença de que a miscigenação brasileira não distinguia bran-cos, negros e índios ganhou força e passou a permear as políticas públicas de toda ordem. Com a educação, não foi diferente. Se não há racismo no Brasil, não há porque desen-volver políticas educacionais que resguardem grupos étnicos e se comprometam a diminuir desigualdades. De acordo com esse raciocínio – de clara inspiração européia – o acesso à educação, sobretudo a de nível superior, se-ria apenas uma questão de mérito do aluno.

A partir da Lei Áurea, em 1888, os negros li-bertos não receberam qualquer apoio do Esta-do e ainda sofreram restrições para ter acesso ao estudo. “A herança do passado escravista, no início do século XX, marca profundamente as experiências da população negra no que se refere à educação. Naquele momento as crian-ças negras estavam afastadas dos bancos escola-res. Desde a tenra idade eram levadas a ativida-des remuneradas, para auxiliar na manutenção da família. Sua formação para o trabalho era feita sob a orientação dos patrões, no desempe-nho das mais variadas tarefas. A escolarização, entre os homens negros nascidos no início do século XX, quando ocorreu, foi, em sua maio-ria, na idade adulta. Já as mulheres eram enca-minhadas a orfanatos, onde recebiam preparo para trabalhar como empregada doméstica ou como costureira. Famílias abastadas as adota-vam, quando adolescentes, como filhas de cria-ção, o que de fato significava empregadas do-

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Constituição Cidadã: Direitos e Garantias Fundamentais“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem dis-tinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” (Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos)“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previ-

dência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desampara-

dos, na forma desta Constituição.” (Capítulo II - Dos Direitos

Sociais)

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB58

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59 Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Especial

A partir da Constituição de 1988, saúde, educação, mora-dia e tantos outros itens descritos no Artigo 6º do Capí-tulo II, tornaram-se uma questão de direito dos cidadãos. “O mérito é uma construção social e acadêmica. O discurso do mérito acadêmico, que tem sido formulado por alguns como algo isento e objetivo, distancia-nos do debate sobre o direito à educação. Será que é justo continuar pensando que todos têm direito à educação, desde que a ela façam mérito?” A questão, levantada por Nilma Lino Rodrigues no I Seminário Nacional Ações Afirmativas na UFMG, é um bom ponto de partida para compreendermos a participação brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Into-lerância Correlata realizada em Durban, na África do Sul, em setembro de 2001.

Os dados da exclusãoFazendo um cruzamento entre a pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade, classe social, idade, situação familiar e religião (usando como base dados do IBGE, IPEA e outras instituições de mesma respeitabilidade), ao longo de mais de 70 anos, desde 1929, Ricardo Henriques* chega à conclusão de que, no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não brancos. Algumas cifras assustam:- Do total de universitários brasileiros, 97% são bran-cos, 2% negros e 1% descendentes de orientais.- Dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros.- Dos 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros.* Texto para discussão nº 807. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. IPEA, julho de 2001.

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB60

No Relatório do Comitê Nacional para Reparação da Participação Brasileira, apresen-tado em Durban e publicado pelo Ministério da Justiça em 2001, nosso país se comprome-teu com propostas em benefício da comuni-dade negra, a saber: “a adoção de medidas reparatórias às vítimas do racismo, da dis-criminação racial e de formas conexas de in-tolerância, por meio de políticas públicas es-pecíficas para a superação da desigualdade. Tais medidas reparatórias, fundamentadas nas regras de discriminação positiva prescrita na Constituição de 1988, deverão contemplar medidas legislativas e administrativas desti-nadas a garantir a regulamentação dos direi-tos de igualdade racial previstos nessa mesma Constituição, com especial ênfase nas áreas de educação, trabalho, titulação de terras e esta-belecimentos de uma política agrícola e de de-senvolvimento das comunidades remanescen-tes de quilombos, adoção de cotas ou outras medidas afirmativas que promovam o acesso de negros às universidades públicas”. Com o Brasil sendo signatário desta Conferência e de outros tratados internacionais de Direitos Hu-manos, não se trata mais de ser contra ou a favor das cotas. “No âmbito do Direito, as po-líticas afirmativas, incluindo as cotas, consis-tem num compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional. Se não cumpri-las, o Brasil está sujeito a san-ções internacionais”, esclarece João Ricardo.

A educação é a chave de tudo

Partindo do pressuposto de que o desconhe-cido amedronta, talvez a melhor maneira de desmistificar qualquer assunto seja a educa-ção. No caso das políticas e ações afirmativas, não seria diferente. Tanto é que, desde 1988, a Constituição estabeleceu que o ensino da história do Brasil, a partir de então, deveria abarcar as contribuições das diferentes cultu-ras e etnias que formaram o povo brasileiro. Na conferência de Durban, em 2001, o plano de ação aprovado pelo Brasil reafirmou não

só a necessidade desta implementação como o igual acesso à educação para todos na Lei e na prática. Em 2003, a Lei nº 10.639 alterou a Lei nº 9.394/96 – que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional – incluindo no currículo oficial da rede de ensino a obrigato-riedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Esta ação visa modificar a forma-ção dos alunos, mas ainda há pela frente um trabalho de capacitação dos educadores e pro-fessores. “O desafio é enorme”, afirma Sarita, “pois é preciso mudar a maneira de pensar. A sociedade pensa o ‘novo versus velho’ há sé-culos, buscando o unívoco, a afirmação de si no outro. As pessoas precisam romper com o jeito ‘de sempre’ de pensar e criar espaço para as diferenças. Só assim será possível começar a pensar de modo includente, enxergando e convivendo com a diversidade”.

José Roberto Camargo de Souza, o Zezão, membro do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD) da Secretaria de Di-reitos Humanos da Presidência da República e do Instituto Casa da Cultura Afro-Brasileira (ICCAB), vai além e afirma que ações afirmati-vas “vão proporcionar um grande e melhor de-senvolvimento, não só à população vulnerável, mas ao país como um todo, pois uma população com nível de escolaridade mais alto, que pos-sa disputar cargos, se aperfeiçoar, ter acesso a tecnologia, vai conceder a todos a possibilidade de crescimento. Não é uma política só para os negros, é uma política para o Brasil”. Correla-cionando a questão do acesso ao estudo com a situação no mercado de trabalho nos dias atu-ais, Zezão chama a atenção para “o crescimento tecnológico que o Brasil vive na atualidade. Al-guns setores produtivos já não encontram pro-fissionais qualificados no mercado para atender à demanda. Se não investirmos no aumento do nível educacional da população, muito em breve teremos uma escassez severa de mão de obra. A inclusão da maior parcela populacional na edu-cação superior vai beneficiar a todos os elos da cadeia produtiva e não só aos negros e indíge-nas, como querem fazer crer algumas pessoas”.

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61 Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Especial

Desafios na escola

Zezão usa como exemplo a sua vivência como estudante para explicar o tipo de revolução que o ensino da história e cultura africanas pretende realizar. “Eu tinha vergonha de ir à escola, estudava a história da Eu-ropa e da Ásia, com suas grandes invenções, reis e rainhas e o máximo que ouvia falar da África era que fornecia escravos que vinham para cá sofrerem humilhações de todo tipo. Assim como eu, muitas crianças ne-gras sentem vergonha e não se interessam pela escola em função disso. Ensinar as várias histórias da formação do povo brasileiro é fundamental e precisa ser muito bem trabalhado com os professores e educadores. Assim eles formarão cidadãos melhores, que entendam e aprendam a conviver com as diferenças desde a escola. Isso será ensinado a todos os alunos, negros, indígenas e brancos”.

61Especial

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB62

Mudança de postura

Os compromissos assumidos em Dur-ban conduzem necessariamente à cons-tatação de que o mito da democracia racial brasileira está desfeito. Existe racismo no Brasil e não é mais possí-vel negar esta realidade. Talvez as re-ações inflamadas contrárias às cotas, ainda que disfarçadas de argumentos ra-cionais, sejam um bom exemplo de como o racismo é praticado no Brasil do sécu-lo XXI. Muito mais que uma reparação após mais de 300 anos de escravidão e da cobrança de um direito constitucional oferecido pelo estado, como a educação, as cotas que garantem o acesso aos estu-dantes negros e indígenas nas universida-des púbicas cumprem outros papéis. Um deles é o de conferir uma nova dinâmica à instituição universitária, enriquecendo a produção de saberes e levando a uma refle-xão sobre a excessiva influência européia na tradição universitária brasileira. Mas a contribuição de maior relevância, segundo José Jorge de Carvalho, é “a intensificação da luta anti-racista no Brasil. Propor cotas é abrir a discussão, até agora silenciada, sobre a sociedade racista em que vivemos; reconhecer que essas práticas racistas estão presentes também no nosso ambiente aca-dêmico é forçar uma tomada de posição por parte de todos nós para reverter esse quadro e construir as bases para um am-biente universitário livre de práticas racis-tas e discriminatórias”. Para Sarita Ama-ro, na atual conjuntura cultural e social do Brasil, as políticas afirmativas, como as cotas, “são necessárias para modificar a situação das populações historicamente excluídas desde já. Isto não pode e não deve mais ser adiado. Espero que consi-gamos avançar bastante, para num futuro próximo, podermos abrir mão delas, pois teremos uma sociedade mais igualitária no sentido de conviver com as diferenças”.

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63 Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Especial

Além da introdução da história e da cultura africanas no ensino Fundamental, Médio e Superior – que prepara as novas gerações para conviver com as diferenças, há em andamento outras ações afirma-tivas, não só na área educacional, como também na área da saúde. Ainda assim, é a questão das cotas nas universidades que continua despertando maior atenção. No artigo intitulado “Um ponto de vista em defesa das cotas”, Kabengele Mu-nanga analisa cada um dos argumentos contrários a implantação dessa política afirmativa e ressalta a importância de ações coordenadas: “A cota obrigatória se confirma, pela experiência vivida nos paí-ses que a praticaram, como uma garantia de acesso e permanência nos espaços e setores da sociedade até hoje majorita-riamente reservados à ‘casta’ branca. O uso desse instrumento seria transitório, esperando o processo de amadurecimento da sociedade na construção de sua demo-cracia e plena cidadania. Paralelamente às cotas, outros caminhos a curto, médio e longo prazos, projetados em metas, pode-riam ser criados e incrementados”.

Para saber mais:

Afirmando Direitos – Acesso e permanência de jovens negros na universidade. Nilma Lino Gomes e Aracy Alves Martins (org.). 2ª edição. Belo Horizonte, 2006. Ed. Autêntica.

As cotas não são as únicas políticas afirmativas em prática no Brasil

África-Brasil-África: matrizes, heranças e diálogos contemporâneos. Iris Maria da Costa Amâncio (org.). Belo Horizonte, 2008. Ed. Puc Minas e Ed. Nandyala.

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Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas?

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB64

Transformando o mundo através da música

Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB64

Pesquisa: Marina Camisasca

Redação e Entrevistas: Isabella Verdolin, Juliana Braga e Marina Camisasca

Fotografias: Arquivo FolhaPress, Arquivo dos entrevistados.

“O ser humano precisa de um elemento para se libertar dos seus preconceitos, das suas angús-tias, das suas decepções e esse elemento pode ser a música, seja ela qual for. Eu entendo a música como um elemento libertador da pessoa”. Com essas palavras o Diretor Cultural do Olodum, Nelson Mendes, procurou retratar a importân-

cia da música, que atualmente é utilizada como ferramenta por grupos diversos, em várias par-tes do país, com o objetivo de promover trans-formações sociais.

Na Cidade de Deus, uma das comunidades mais violentas do Rio de Janeiro, Alex Pereira Barbosa, nacionalmente conhecido como MV Bill, fez da música sua ferramenta de luta contras as diferenças sociais e hoje está à frente da Cen-tral Única de Favelas (Cufa). Criada em 1999, a Cufa nasceu a partir de reuniões entre vários jovens ligados ao hip hop. “No início, era apenas uma maneira de juntar os ‘manos’, mas por fim

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65Transformando o mundo através da música Entrelinhas

foi a alternativa para sair do lugar comum de de-núncias e construir novas alternativas, caminhos e futuro”, lembra MV Bill. Através de uma lin-guagem própria, a Cufa difunde a conscientiza-ção das camadas desprivilegiadas da população com oficinas de capacitação profissional, entre outras atividades, que elevam a autoestima das periferias, oferecendo-lhes novas perspectivas.

Também no Rio de Janeiro, o Grupo Agro-Reggae se utiliza de oficinas de percussão, dança, circo e teatro para tentar mudar a realidade de áreas marginais da cidade. Em 1993, a comuni-dade de Vigário Geral foi cenário do massacre de 21 pessoas inocentes, por um grupo de exter-mínio que invadiu casas e assassinou moradores. Esse episódio foi o ponto de partida para o início do trabalho de um pequeno grupo, que depois se expandiu para outras quatro comunidades: Pa-rada de Lucas, Morro do Cantalago, Complexo do Alemão e Nova Era, essa última localizada na cidade de Nova Friburgo. De acordo com o co-ordenador executivo José Júnior, o foco do traba-lho é sempre o mesmo, “atuamos aproximando as pessoas da cultura e promovendo desenvolvi-mento econômico e social”.

Em Salvador, foi criado em 1979 por mo-radores do bairro Pelourinho, o bloco afro Olodum, que tinha por objetivo representar os habitantes do bairro no carnaval e também pro-duzir ações sociais durante todo o ano. Nesse período, o Pelourinho era uma área extrema-mente degradada, marcada pela miséria e vio-lência. Os casarões do século XVIII estavam em ruínas e eram utilizados como residências, que abrigavam cada uma delas, cerca de dez a quin-ze famílias. “Havia a necessidade de uma inter-venção do ponto de vista humano, porque havia uma população marginal de prostitutas, pessoas que lidavam com drogas, havia tráfico e tudo mais”, explica Nelson Mendes. Foi a partir de aulas de percussão e também da exibição de fil-mes, palestras e debates, que o Olodum iniciou seu trabalho no Pelourinho, com o intuito de combater qualquer tipo de discriminação, prin-cipalmente a racial, e tentar inserir essa popula-ção majoritariamente negra no convívio social.

65 Entrelinhas

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB66

Todos esses projetos vêm a educação como a chave mestra para resgatar a cidadania dessas populações marginalizadas. Para promover essa mudança a Cufa tem investido na formação dos jovens e oferece, em todo o país, cursos e oficinas de DJ, break, graffiti, informática, gastronomia, basquete, skate, capoeira, cinema, literatura, te-atro, dentre outras. “Isso tem feito a diferença. É necessário mostrar a eles que podemos construir coisas tão nobres quanto as que conseguimos ad-mirar. O importante é que essas manifestações são construções nossas. Essa é a grande diferença para a diminuição da exclusão”, diz MV Bill.

Um desses cursos desenvolvido pela Cufa e que ocorre no Distrito Federal, é o Cine Perife-ria Criativa, que além de propiciar que as pes-soas de regiões pobres possam assistir a filmes, também oferece a oportunidade para que elas aprendam a criar, produzir, dirigir, roteirizar, filmar, enfim, de serem autores da própria histó-ria e assumirem as câmeras. Com isso, o curso pretende democratizar o acesso à produção au-diovisual e incentivar a participação de produ-ções nacionais como estratégia para espalhar a cultura cinematográfica, promovendo diversão e discussão.

CufaCriada em 1999, com sede no Rio de Janeiro (RJ) já se expandiu para outros 25 Estados brasileiros, além do Distrito Fe-deral. Tem no rapper MV Bill um dos seus fundadores, que, em 2004, recebeu da UNESCO o prêmio de um dos dez maio-res militantes no mundo na última década. Além dele, a Cufa conta com Nega Gizza, uma forte referência feminina no mundo do Rap, conhecida e respeitada por seu empenho e dedicação às causas sociais e muitas outras pessoas envolvidas com a música e com o desenvolvimento social.

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Participantes do Projeto Pixaim, na Cufa de Mato Grosso

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O Olodum também aposta na formação e desde 1984, por meio da Escola Olodum, tra-balha com o objetivo de explorar o potencial criativo e empreendedor dos jovens, a partir de experiências de vida, ritmo e interesses próprios, com vista à formação de valores so-ciais e morais, que possibilitem a convivência de todos os segmentos sociais. A escola ofere-ce cursos de percussão, dança afro, canto, em-preendedorismo cultural, informática cultural e formação de lideranças para crianças e ado-lescentes de 07 a 18 anos. Esse último curso é obrigatório para todos os que estão matri-culados na escola e tem por objetivo educar

os jovens para a cidadania. Lá os professores trabalham com a valorização da autoestima e da identidade étnica dos alunos. Mas a es-cola não trabalha exclusivamente com alunos negros, apesar de esses comporem a maior parte da população mais pobre de Salvador, “No Olodum o critério para a escolha dos jovens é social e não racial. Nós entendemos que se nós trabalhamos contra o preconcei-to racial nós não podemos ter uma atitude racista”, conta Nelson. A preocupação é de-senvolver, sobretudo, a cidadania dos jovens e incluí-los na sociedade através das artes, basicamente da música e da cultura africana.

Músicos do Olodum tocam no Pelourinho, em Salvador (BA), após a classificação da seleção brasileira para a decisão da Copa. 2002

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OlodumGrupo criado em 1979 com sede em Salvador (BA), na rua Gregário Bezerra nº 22, bairro Pelourinho. A experiência do Olodum tem servido de estímulo para o surgimento de iniciativas similares, como o Grupo Unidos dos Quilombos, em Sergipe; Meninos do Morumbi, Régua e Compasso e Arte no Dique, em São Paulo e Sons de Cidadania, em Brasília. O Olo-dum levou sua música para 35 países e já gravou um DVD, onze CDs no Brasil, 4 no exterior, e tem mais de 5 milhões de cópias vendidas.

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Danilo Bonfim Rodrigues, 9 anos, toca

repique na banda mirim do Olodum em ensaio

para o Carnaval de Salvador, Bahia. 2001

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69Transformando o mundo através da música Entrelinhas

“Originalmente a Escola Olodum foi criada para atender aos filhos dos percussionistas que viam os pais tocando e também queriam tocar”, lembra Nelson. Mas com o passar dos anos ela foi se expandindo e hoje atende aos jovens de baixa renda, regularmente ma-

triculados em escolas públicas de qualquer região de Salvador. No entanto, “a procura é tão grande que é preciso selecionar os alu-nos, já que a escola só consegue atender a 300 jovens”, afirma o secretário escolar An-tonio de Jesus.

O AfroReggae também trabalha por meio do viés educacional e já ajudou a mudar a vida de diversas pessoas. A história do carioca Vitor Onofre ilustra o poder de transformação do gru-po: “Comecei na oficina de percussão. Fui com-ponente de Trupe de Saúde, projeto para cons-cientizar a população sobre o risco das DSTs e Aids. Depois me tornei assessor desse projeto e hoje sou coordenador do AfroReggae aqui em Vigário Geral”, conta. Apesar de histórias

como as de Onofre serem comuns, o coordena-dor executivo José Júnior é comedido ao falar sobre o impacto que as atividades do grupo tive-ram na população. “Não sei se ajudou as pesso-as a superarem o trauma da chacina, mas foi um diferencial para mostrar que Vigário Geral não era só tráfico, violência e crime”. Para Júnior, além de poder oferecer um caminho diferente a tantas pessoas que antes só vivenciavam a vio-lência, o AfroReggae pode se orgulhar de ter,

Integrantes do bloco Olodum Mirim desfilam no Campo Grande, em Salvador, onde Caetano Veloso e Margareth Menezes fizeram um show para comemorar os 450 anos da capital baiana. 1999

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como se diz nas favelas, construído uma ponte entre morro e asfalto. “Tocamos em temas que eram verdadeiros paradigmas, como a proibi-ção de moradores de uma determinada favela, dominada por uma facção do narcotráfico, en-trarem em uma comunidade ‘rival’. Nós nunca seguimos esses ‘códigos’. Também tivemos um papel importante na construção de pontes de vias de mão dupla juntando pessoas de pensa-mentos e classes sociais diferentes”.

A mais recente realização desse encontro foi a fundação do Centro Cultural Waly Salomão, complexo cultural de última geração inaugura-do em maio deste ano. Seu nome homenageia o poeta carioca que foi também um dos incenti-vadores do AfroReggae. Com design do artista plástico Luís Stein, o prédio abriga em seus qua-tro andares uma área para teleconferências, vi-deoteca, espaço para ensaios de teatro e dança, uma sala com 17 computadores em rede wi-fi e outro estúdio, profissional, para gravação, mi-

xagem e masterização. Para construí-lo, o grupo contou com um investimento de R$ 6 milhões, fruto de uma parceria entre BNDES, Petrobras, governo do estado do Rio e os institutos Uni-banco e Rukha.

Além de trabalharem para promover a educa-ção e a cidadania nas comunidades onde atuam, esses grupos também trocam experiências e tor-nam-se exemplos para a ação de muitos outros grupos sociais em todo o Brasil. Em Santos, por exemplo, o grupo Régua e Compasso, criado por antigos membros do Olodum, desenvolve traba-lhos sociais a partir do samba reggae e utiliza me-todologia semelhante a do grupo baiano em que se inspirou. O Olodum também é frequentemen-te requisitado para ensinar as suas metodologias, como foi o caso do Grupo Unidos dos Quilom-bos, localizado em Sergipe. A transferência dessa tecnologia social se concretiza por meio de capa-citações, acompanhamento e monitoramento das atividades realizadas nesses projetos.

Multidão na festa de inauguração do

Centro Cultural Waly Salomão, na favela

de Vigário Geral, na zona norte do Rio de

Janeiro (RJ). Evento atraiu multidão de

moradores para shows gratuítos de

Gilberto Gil, Caetano Veloso e AfroReggae.

A obra custou mais de R$ 6 milhões e será sede de uma

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A Cufa também trabalha com diversas ou-tras organizações e iniciativas. “A Cufa tenta se comunicar com todos os movimentos sejam eles radicais ou não. Mas o diálogo não é uma von-tade de todos os movimentos. Tentamos convi-ver com todos, com o Movimento Hip Hop, o Movimento Negro, o de luta pela terra, o da juventude. Enfim, são muitos”, diz MV Bill.

Segundo o líder do AfroReggae, José Junior, são tantos os grupos que os procuram que ele não saberia quantificar, mas cita alguns que são apoiados, como é o caso do Maje Mole, que promove aulas de dança em Pernambuco, e o Grupo Cultura Bagunçaço, que promove ofici-nas de percussão na Bahia.

O Olodum e o AfroReggae possuem um di-álogo muito frutífero, e de acordo com Nelson Mendes, quando o AfroReggae estava começan-do, o diretor Júnior os procurou para saber um pouco da experiência do Olodum.

Além de transmitir seu conhecimento para grupos brasileiros, o Olodum também procura levar a sua tecnologia social para outros países, como ocorreu no Benin. O país possui uma po-pulação descendente de antigos escravos do Bra-sil que retornaram à África e de comerciantes baianos lá estabelecidos nos séculos XVIII e XIX, que são conhecidos como agudás. Esse povo pos-sui forte ligação com a cultura brasileira, por isso a importância de divulgar as nossas tradições do outro lado do oceano. Assim, ao levar a sua me-todologia, o Olodum contribui para manter viva em comunidades do Benin a história dos africa-nos no Brasil, utilizando a música como estraté-gia de mobilização e preservação cultural.

Os feitos desses grupos que utilizam a mú-sica como ferramenta de inclusão social são muitos e todos são unânimes em afirmar que já conseguiram fazer bastante, mas que ainda não é o suficiente. Mesmo com tantas conquistas,

AfroReggaeCriado em 1993, com sede no Rio de Janeiro (RJ), no início atuava somente na comuni-dade de Vigário Geral, depois se expandiu para Parada de Lucas, Morro do Cantagalo, Complexo do Alemão e Nova Era (em Nova Friburgo). Além do Rio de Janeiro, o AfroReggae tem 65 projetos em todo o Brasil e também no exterior.

O vocalista LG durante ensaio da banda AfroReggae, composta por moradores da favela carioca de Vigário Geral, Rio de Janeiro. 2000

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB72 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB72

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o líder do AfroReggae reconhece que, “a voz da periferia ainda não é ouvida como deveria, mas começa a ser mais disseminada pela arte e pela internet. Nosso maior desafio é continuar com a entidade viva. É preciso ampliar as pon-tes e envolver mais pessoas que queiram de fato mudar o mundo”. De acordo com MV Bill, mesmo funcionando de maneira efervescente e crescendo cada vez mais no Brasil, a Cufa ainda enfrenta os mesmos obstáculos desde seu iní-cio: a dificuldade de organizar o discurso das massas. “Queremos que os jovens das favelas tenham um senso crítico apurado e, a partir daí, conquistem sua própria inserção social”. Ele re-conhece que o crescimento brasileiro tem pro-vocado uma mudança positiva. “O Brasil está mudando e isso acaba beneficiando em alguma medida os jovens das periferias e favelas. Mas estamos muito longe do ideal”.

Se no começo a Cufa enfrentou a indiferen-ça e a falta de informação, hoje o movimento está cada vez maior e mais conhecido. Um sinal dessa notoriedade é o fato de MV Bill integrar o elenco da nova temporada da novela adolescen-te “Malhação”, da TV Globo. Nada mais justo para alguém que é a mais viva prova de que a música pode abrir um caminho para a inclusão social. Para o futuro, ele quer para a Cufa um caminho tão espontâneo quanto o rap. “A Cufa não tem metas claras, e confesso que não vejo nisso um problema. Mas eu arriscaria dizer que sua meta é atender anualmente 3 milhões de jo-vens a partir de 2015”.

Cantor se apresenta no 1º Funk Festival - Canta Cidade Tiradentes, em São Paulo. 2008

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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB74

O trabalho do Olodum também conseguiu mudar a vida de muitos baianos. De acordo com Nelson, “há centenas de músicos profis-sionalizados que já passaram pelo Olodum e hoje tocam com artistas nacionais e interna-cionais, gente vivendo na Europa, mas que aprendeu a tocar percussão aqui no Olodum. Eles estão tocando lá fora com vida digna como músicos”. No entanto, o diretor afirma que um dos principais desafios a ser enfrenta-do ainda é a luta contra o preconceito racial: “hoje há um avanço na discussão da questão racial no Brasil e consequentemente dos direi-

tos humanos, porém ainda detectamos focos de preconceito racial e isso faz com que nós permaneçamos na luta para mostrar que as pessoas têm valor e que têm que ser respeita-das, independente da cor da sua pele.”

Nelson também considera que não é o Olodum que é capaz de mudar a vida das pessoas, mas sim a música. “Nós somos um veículo, a arte musical que é transformadora, nós apenas oferecemos uma mini estrutura para que as pessoas a usem e possam melho-rar as suas próprias vidas, e isso nós estamos conseguindo!”

“Queremos que os jovens das favelas tenham um senso crítico apurado e, a partir daí, conquistem sua própria inserção social. (...) O

Brasil está mudando e isso acaba beneficiando em alguma medida os jovens das periferias e favelas. Mas estamos muito longe do ideal”.

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Show do rapper MV Bill em comemoração ao Dia da Consciência

Negra, na Praça da Sé, no centro de São

Paulo. 2007

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Um novo movimento musical: o trabalho do funk No Rio de Janeiro, os bailes funk haviam sido proibidos, pois eram realizados nas favelas e es-tavam associados à questão do tráfico de drogas e também da sexualização precoce. No entanto, havia uma demanda do movimento funkeiro, que não se associava ao tráfico e nem a apologia ao sexo, que desejava que os bailes pudessem ser realizados em áreas permitidas pelo poder públi-co e não em locais controlados pelos traficantes. Esse grupo procurou o deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo, então presidente da comissão dos direitos humanos da ALERJ (Assem-bléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), para que ele os ajudasse a modificar a situação. O deputado trabalhou para a aprovação de lei que permitisse a realização dos bailes funks. A lei nº 5543 de 22/09/2009 foi aprovada na ALERJ e considerou o funk um movimento cultural e musical de caráter popular. Além disso, determi-nou que o poder público fosse responsável por assegurar ao movimento a realização de suas

manifestações próprias, como festas, bailes e reu-niões, sem quaisquer regras discriminatórias ou diferentes das que regem outras manifestações da mesma natureza.Após a aprovação dessa lei, a massa funkeira começou a ser organizar e criou a Apafunk (As-sociação de Profissionais e Amigos do Funk). Hoje essa associação realiza oficinas de funk e direitos humanos nas escolas públicas do Rio de Janeiro. Além desse trabalho, a Apafunk promove ainda as rodas de funk que têm por objetivo discutir determinados temas nas escolas, parques e pra-ças públicas, como, por exemplo, a construção de muros no entorno das favelas da cidade.Essa associação iniciou, assim, um trabalho importante para construção da cidadania nas favelas através de um estilo musical discriminado e marcado por vários estereótipos.

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Público no baile do Via Show, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. 2004

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Raízes Africanas Tradição, alegria e fé: festas populares e tradicionais brasileiras

Personalidade: Milton Santos Brancos e Negros no Ensino Superior

Ações afirmativas no Brasil Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas?

Transformando o mundo através da música Falando em Direitos Humanos

Ano 1 | Edição 1 | Brasília | Outubro 2010 | ISSN 2179-2178

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