Realidade das expedições marítimas - original

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Realidade das expedições marítimas 1. Sociedade a bordo O duro quotidiano a bordo dos navios dos Descobrimentos era afectado por um conjunto de factores, naturais e humanos, que o transformavam num raro exemplo das continuadas dificuldades e privações enfrentadas por aqueles que viam no mar, ou nas terras para além dele, a promessa de riquezas ou de uma vida melhor, embarcando muitas vezes sem consciência dos perigos e das provações que os aguardavam. Assim, as grandes naus e os galeões da carreira da Índia eram autênticas fortalezas flutuantes em que, durante meses a fio, viviam centenas de pessoas: 700 ou 800 em média, englobando tripulação e passageiros. A tripulação dos navios era formada e por voluntários contratados e gente provinda das principais ruas das cidades do Reino. A carência de técnicos qualificados e habilitados ao exercício da navegação foi em algumas etapas da nossa história marítima. A má formação e tipo de personalidade dos marinheiros e dos mais elementos da tripulação contribuíram para o elevado grau de ineficácia marítima daquela época. Na maioria dos casos estes marinheiros eram homens rudes que se faziam ao mar muitas vezes contrariados ou iludidos por um sonho ou aventura. A autoridade suprema era o «capitão», não sendo necessário que fosse capaz de dirigir um navio. Bastava-lhe ter sido nomeado por ordenação real para exercer a sua autoridade privilegiando inequivocamente a ascendência social. Para comandar a navegação havia o piloto, que estava, hierarquicamente logo a seguir ao capitão. A bordo, o piloto era o primeiro dos homens do mar e tinha a seu cargo a orientação da rota do navio e os problemas de precedência eram frequentes, sobretudo quando o capitão capaz de se achava interferir na área do piloto. Ex.: Armada da Índia de 1611, incompatibilidade entre D. António Ataíde (capitão-mor e especialista em navegação) e Simão Castanho (piloto)

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Realidade das expedições marítimas 1. Sociedade a bordo

O duro quotidiano a bordo dos navios dos Descobrimentos era afectado por um conjunto de factores, naturais e humanos, que o transformavam num raro exemplo das continuadas dificuldades e privações enfrentadas por aqueles que viam no mar, ou nas terras para além dele, a promessa de riquezas ou de uma vida melhor, embarcando muitas vezes sem consciência dos perigos e das provações que os aguardavam.

Assim, as grandes naus e os galeões da carreira da Índia eram autênticas fortalezas flutuantes em que, durante meses a fio, viviam centenas de pessoas: 700 ou 800 em média, englobando tripulação e passageiros. A tripulação dos navios era formada e por voluntários contratados e gente provinda das principais ruas das cidades do Reino. A carência de técnicos qualificados e habilitados ao exercício da navegação foi em algumas etapas da nossa história marítima. A má formação e tipo de personalidade dos marinheiros e dos mais elementos da tripulação contribuíram para o elevado grau de ineficácia marítima daquela época. Na maioria dos casos estes marinheiros eram homens rudes que se faziam ao mar muitas vezes contrariados ou iludidos por um sonho ou aventura.

A autoridade suprema era o «capitão», não sendo necessário que fosse capaz de dirigir um navio. Bastava-lhe ter sido nomeado por ordenação real para exercer a sua autoridade privilegiando inequivocamente a ascendência social. Para comandar a navegação havia o piloto, que estava, hierarquicamente logo a seguir ao capitão. A bordo, o piloto era o primeiro dos homens do mar e tinha a seu cargo a orientação da rota do navio e os problemas de precedência eram frequentes, sobretudo quando o capitão capaz de se achava interferir na área do piloto.

Ex.: Armada da Índia de 1611, incompatibilidade entre D. António Ataíde (capitão-mor e especialista em navegação) e Simão Castanho (piloto)

Duas outras figuras tinham um papel importante a bordo: o mestre da tripulação e o condestável. Ao primeiro, competia-lhe organizar e supervisionaras tarefas dos marinheiros; o segundo era responsável pela artilharia e pelos artilheiros (chamados «bombardeiros», nessa época) e só respondia perante o capitão do navio. Havia a bordo diversos ofícios: tanoeiros (fabricantes de pipas), carpinteiros, calafates, barbeiros, etc… sem contar com o capelão, o escrivão e o cirurgião. Cerca de 60 marinheiros e 70 mareantes como soldados, quadros de administração ultramarina, missionários, comerciantes e meros aventureiros.

2. Condições da viagem A) Conforto

Desde logo, o conforto de tripulações e passageiros não constituía prioridade na concepção e construção dos navios, sendo que o aumento da respectiva tonelagem, ditado por crescentes desejos de lucro e necessidades de defesa, em pouco contribuiu para a melhoria das condições de vida a bordo, onde os diferentes elementos compartilhavam o exíguo espaço disponível com carga, materiais e equipamentos de reposição e até com animais vivos. Apesar de algum esforço colocado na organização do espaço, poucos eram os que não tinham que

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suportar um ambiente promíscuo, gerador de comportamentos agressivos e depressivos.B) Viagem

O trajecto que, em circunstâncias favoráveis, demoraria entre seis e sete meses a percorrer, submetidas consecutivamente à meteorologia primaveril da partida e a própria viagem obrigava a suportar numerosas mudanças climáticas sendo a pior delas a referente à zona das calmarias equatoriais (as doldrums), onde podiam ficar quase imobilizados durante dias, ou mesmo semanas, sem qualquer brisa, sob um calor tórrido. C) Alimentação

A alimentação e a água potável constituíam um problema recorrente. No que respeita aos mantimentos, enquanto os passageiros deviam garantir à partida a sua própria subsistência durante a viagem, o que raramente acontecia, tanto por ignorância como por insuficiência de recursos, cabia ao armador o abastecimento da despensa do navio, por forma a manter toda a tripulação. Mesmo em condições normais, os alimentos eram alvo de distribuição racionada, efectuada numa base diária ou mensal consoante o tipo de produto, verificando-se níveis de verdadeira penúria, impostos por circunstâncias desfavoráveis.Ainda que se recorresse pontualmente ao abate de animais e à pesca, a dieta a bordo centrava-se no consumo de biscoito - pão cozido pelo menos duas vezes, aumentando o seu período de conservação -, enchidos e alimentos salgados, sobretudo carne de porco, mas também algum peixe, acompanhados pela ração diária de vinho.

Quanto à água, o racionamento aumentava em austeridade ao longo da viagem, ao mesmo tempo que a qualidade decrescia face à falta de higiene do vasilhame utilizado, o que era extensivo ao acondicionamento do vinho. Desta forma, a sede era uma constante a bordo, piorando a situação com a necessidade de consumo dos géneros conservados em sal, motivando a reutilização da água usada para os demolhar e cozer, sendo posteriormente ingerida em caso de necessidade. As restrições quanto ao consumo de água implicavam a existência de condições sanitárias extraordinariamente precárias.

Ex.: missionário em 1564 - «fechar os olhos e tapar o nariz» para bebê-laD) Saúde

Fisica:Com a higiene pessoal reduzida à sua mínima expressão e a

frequente impossibilidade de proceder ao despejo de dejectos, a atmosfera nas áreas pouco ventiladas situadas entre cobertas rapidamente se tornava nauseabunda, o que, associado às circunstâncias climatéricas e à deficiente nutrição, concorria para o aparecimento e fácil propagação de um rol alargado de enfermidades: febres tropicais, pleurisias (pulmões) associadas ao frio, toda a espécie de parasitas, tifo (febre tifóide), sarampo, doenças venéreas e de pele, a partir da segunda metade da viagem, o temível escorbuto, provocado por grave insuficiência vitamínica, cuja prevenção através da ingestão de fruta apenas tardiamente se tornou conhecida e praticada.

Encontravam-se entregue às sangrias e a outros rudimentares cuidados de saúde aplicados pelo barbeiro de bordo, o qual substituía o cirurgião, cuja presença, ainda que regulamentar, se via frequentemente inviabilizada por razões de ordem financeira. Era comum a existência de uma botica, mas os remédios e mezinhas disponíveis revelavam-se naturalmente pouco eficazes. Ainda no que

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toca ao amparo dos enfermos, a presença de missionários a bordo detinha grande importância, já que os religiosos assumiam com enorme dedicação o papel de enfermeiros.

PsicológicaAs consequências de tão longa estadia no mar reflectiam-se

igualmente no plano psicológico e emocional, ainda que de modo diferente sobre segmentos distintos da população embarcada: para além do comum receio em relação ao riscos representados por intempéries e ataques de corsários, à penosa ociosidade forçada dos passageiros contrapunha-se o esgotante labor da tripulação, contribuindo uma e outro para um ambiente de permanente tensão a bordo

3. Ambiente a bordo A) Diversão

Tratava-se, pois, de encontrar formas de ocupar o espírito, com recurso tanto ao âmbito do profano como do religioso. Quanto à primeira vertente, qualquer acontecimento benéfico que quebrasse a rotina servia de pretexto para festejar. Do mesmo modo, os hábitos de terra viam-se transpostos e adaptados à vivência a bordo, destacando-se os jogos de azar, os quais, apesar de proibidos por degenerarem facilmente em altercações e violência, eram tolerados enquanto uma das raras diversões existentes, apesar da crítica dos religiosos embarcados, verdadeiros agentes da observação da moral e bons costumes. Simulavam-se touradas, utilizando canastros empurrados ou largando no convés os tubarões que se deixavam enlear nas redes de pesca, existindo ainda registos da representação de peças teatrais, sobretudo de teor religioso.B) Religião

De facto, os aspectos religiosos eram “guardados a bordo dos navios como em terra”. Organizavam-se procissões que percorriam o navio, salientando-se aquela que marcava as festividades pascais, realizada pouco depois da saída do Tejo. Por seu turno, quer as missas de acção de graças realizadas após qualquer aflição, quer os ofícios regulares, detinham audiência alargada, assumindo-se, tal como em terra, como um importante momento de controlo social.

Conclusão Para os passageiros que conseguiam suplantar os ataques de corsários, a fome e a

sede, a sobrelotação e a promiscuidade, as moléstias do corpo e o desânimo do espírito, o clima e as tempestades, a chegada ao destino apenas poderia significar uma enorme sensação de alívio em relação a todas as enormes privações e riscos que a demorada permanência a bordo determinava.