REA DO DIREITO ESUMO -...

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1 Acerca da autonomia da ordenação do território enquanto bem jurídico-penal 1 LUIZ REGIS PRADO Professor Titular de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá. BRUNA AZEVEDO DE CASTRO Mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá. ÁREA DO DIREITO: Penal, Ambiental, Constitucional RESUMO: A ordenação do território é um conceito mais amplo, que compreende o urbanismo. Enquanto bem jurídico de relevância penal, é entendida como a utilização ou aproveitamento racional do solo (urbano ou não urbano), referida à ordenação dos espaços habitáveis com vistas ao pleno desenvolvimento das atividades do homem em seu espaço; é substancialmente autônomo e de importância constitucional, que merece ser tutelado de forma independente de outros bens e valores que com ele se relacionam, mas não se confundem. O conceito de ambiente mais adequado à intervenção no Direito Penal para sua proteção, não congrega os espaços urbanos, as construções, o patrimônio histórico ou cultural (conceito amplo, mas não amplíssimo ou totalizador). Embora com ele mantenha uma relação íntima, a ordenação do território deve ser diferenciada de ambiente, sobretudo para que se possa precisá-la como um autêntico bem jurídico- penal. PALAVRAS-CHAVE: Ordenação do Território Urbanismo Bem jurídico Direito penal. ABSTRACT: Urbanism and territorial ordinance originate in order to solve human groups’ problems. Territorial ordinance is a wider concept that includes urbanism and can be conceptualized based on different perspectives. As a juridical asset of penal relevance, it is understood as the utilization or rational use of the soil (urban or non- urban), concerning the ordinance of habitable spaces aiming at the full development of people’s activities in their space; it is substantially autonomous and of constitutional relevance and deserves to be seen independently from other assets and values that are related to it, but are not confused. The environment concept that is most appropriate to intervention in the Penal Law for its protection does not congregate urban spaces, buildings, historical or cultural heritage (a wide concept, but not extremely wide or 1 Publicado na Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, n.59, 2010, p.92 123.

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1

Acerca da autonomia da ordenação do território enquanto bem jurídico-penal1

LUIZ REGIS PRADO

Professor Titular de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá.

BRUNA AZEVEDO DE CASTRO

Mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá.

ÁREA DO DIREITO: Penal, Ambiental, Constitucional

RESUMO: A ordenação do território é um conceito mais amplo, que compreende o

urbanismo. Enquanto bem jurídico de relevância penal, é entendida como a utilização

ou aproveitamento racional do solo (urbano ou não urbano), referida à ordenação dos

espaços habitáveis com vistas ao pleno desenvolvimento das atividades do homem em

seu espaço; é substancialmente autônomo e de importância constitucional, que merece

ser tutelado de forma independente de outros bens e valores que com ele se relacionam,

mas não se confundem. O conceito de ambiente mais adequado à intervenção no Direito

Penal para sua proteção, não congrega os espaços urbanos, as construções, o patrimônio

histórico ou cultural (conceito amplo, mas não amplíssimo ou totalizador). Embora com

ele mantenha uma relação íntima, a ordenação do território deve ser diferenciada de

ambiente, sobretudo para que se possa precisá-la como um autêntico bem jurídico-

penal.

PALAVRAS-CHAVE: Ordenação do Território – Urbanismo – Bem jurídico – Direito

penal.

ABSTRACT: Urbanism and territorial ordinance originate in order to solve human

groups’ problems. Territorial ordinance is a wider concept that includes urbanism and

can be conceptualized based on different perspectives. As a juridical asset of penal

relevance, it is understood as the utilization or rational use of the soil (urban or non-

urban), concerning the ordinance of habitable spaces aiming at the full development of

people’s activities in their space; it is substantially autonomous and of constitutional

relevance and deserves to be seen independently from other assets and values that are

related to it, but are not confused. The environment concept that is most appropriate to

intervention in the Penal Law for its protection does not congregate urban spaces,

buildings, historical or cultural heritage (a wide concept, but not extremely wide or

1 Publicado na Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, n.59, 2010, p.92 – 123.

2

total). Although it has a close relation with it, the territorial ordinance must be

differentiated from the environment, especially in order to specify it as an authentic

juridical-penal asset.

KEYWORDS: Territorial ordinance – Urbanism – Juridical asset – Penal law.

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais – 2. Ordenação territorial e urbanismo: distinções –

3. Tutela penal da ordenação territorial: síntese evolutiva – 4. Ambiente e ordenação

territorial: delimitação do bem jurídico: 4.1 O conceito de ordenação territorial enquanto

bem jurídico-penal – 5. Conclusões principais.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A ordenação do território e as questões atinentes à utilização do solo urbano são de

irrefutável relevância, visto que se inserem em um conjunto de temas relacionados ao

almejado equilíbrio entre desenvolvimento socioeconômico e preservação ou melhoria

da qualidade de vida humana, o que muitas vezes demanda uma conjugação entre

interesses coletivos e particulares.

A necessidade de utilizar racionalmente o solo, especialmente no tocante à distribuição

espacial das atividades humanas sobre determinado território, surge primeiramente com

os problemas que ocorrem dentro das cidades, provenientes da grande concentração de

massa populacional.

Aliás, a problemática urbanística acentuou-se a partir da Revolução Industrial, quando a

saída da população rural para os centros industrializados gerou diversos inconvenientes

no meio urbano, que não estava preparado para sustentar tal explosão demográfica. No

Brasil, a aceleração desse processo verificou-se um pouco mais tarde, a partir da década

de 1950.

Tais inconvenientes conduziram à necessidade de se aprimorar uma ciência que, até

então, era utilizada e concebida apenas como uma forma de dispor sobre os centros

urbanos do ponto de vista estético, mais como uma arte do que propriamente como uma

ciência, qual seja, o urbanismo. Este último se desenvolve com maior tecnicismo e

caráter científico a partir da explosão demográfica.

O âmbito espacial de influência das cidades não se restringe aos limites tipicamente

urbanos, razão pela qual a ciência urbanística expande também o seu alcance de modo

a investigar os problemas existentes nesse espaço territorial que não é rotulado como

urbano, na acepção estrita da palavra.

3

Pode-se afirmar que a complexidade das relações estabelecidas entre o homem e o seu

espaço de habitação e evolução inicia-se em um contexto particular e específico, que é a

cidade, e toma proporções regionais, nacionais e até globais.

A partir daí, uma nova ordem de conhecimentos é formada com o fim de resolver tais

problemas, agora denominados problemas de “macro-ordenamento”, que abrange

também as antigas dificuldades locais referentes ao urbanismo propriamente dito.

Trata-se, portanto, da ordenação do território, conceito empregado para designar o

interesse que é próprio de toda a coletividade e em que o solo possa ser aproveitado ou

utilizado de forma racional, ordenada, com vistas à qualidade de vida e o equilíbrio

entre interesses pertinentes.

Em sendo assim, o Direito Penal não poderia deixar de intervir em tão relevante

matéria, haja vista ser a ordenação do território um bem jurídico autônomo e de

dignidade penal.

Ademais, é escorreita a diretiva a ser seguida em sua utilização como ultima ratio,

diante de ofensas mais graves e da ineficácia dos demais ramos do ordenamento jurídico

para promover a proteção de bens jurídicos.

Para tanto, é indispensável que o legislador atue com o mínimo de coerência no

momento de elaboração dos tipos penais, o que nem sempre se verifica, mormente se a

delimitação do bem jurídico ao qual se pretende conferir proteção não é sequer tido

como substancialmente autônomo.

2. ORDENAÇÃO TERRITORIAL E URBANISMO: DISTINÇÕES

A ordenação territorial e o urbanismo são matérias estreitamente relacionadas, alvo de

atual e crescente preocupação.

A racional utilização do solo constitui um interesse coletivo (geral) referido ao

“estabelecimento de condições existenciais básicas para o desenvolvimento equilibrado

e sustentável das sociedades modernas”.2

O êxodo rural para os centros industrializados gerou diversos inconvenientes ao meio

urbano, acentuando a chamada problemática urbanística, o que, posteriormente, veio a

contribuir para o desenvolvimento da ciência do urbanismo.3

2 BOLDOVA PASAMAR, Miguel Ángel. Fundamentos de la punición de los delitos urbanísticos en el

derecho penal español. RCP 6/65-96. São Paulo: Ed. RT, jan.-jun. 2007, p. 66. 3 Vide FERRAZ, Hermes. Filosofia urbana. São Paulo: Tecci, 1998, t. IV, p. 71 e ss.

4

Em sua etimologia, o termo urbanismo deriva da expressão latina urbs, que, em sua

primeira acepção, certamente vincula-se de forma mais restritiva à cidade propriamente

dita.4

O urbanismo é também, a exemplo da urbanização, uma expressão de natureza

polissêmica. Assim, procede-se a uma sistematização de diferentes enfoques – fato

social, técnica, ciência, política, entre outros.5

Modernamente, afirma-se que o problema urbano não mais deve ser contemplado

exclusivamente na estrita e tradicional área de incidência (a cidade), mas sim,

regionalmente contextualizado, e a cidade e seus problemas não estão dissociados da

região em que aquela se insere;6 por conseguinte, impõe-se uma ampliação das

finalidades do urbanismo, que passa a ser percebido como “planejamento territorial, na

sua acepção mais geral, objetivando não mais simplesmente o planejamento urbanístico,

mas principalmente o de territórios”.7

Ademais, é forçoso reconhecer que a área urbana e a rural, cidade e campo, não podem

mais ser examinados como se estivessem em uma relação de contradição ou contraste,

pois “a vida rural levará a marca do urbanismo, à medida que sofre a influência das

cidades através do contato e comunicação”.8 Isso significa que a área rural não mais se

caracteriza por ser um local absolutamente privado de recursos urbanos, isolado e

inacessível.

Todavia, o urbanismo como uma ciência ou técnica não restrita unicamente ao espaço

citadino não implica a consideração mais expansiva também do espaço urbano ou,

adotando-se uma expressão técnico-administrativa, da zona urbana.

Em outras palavras: o urbanismo não diz respeito mais apenas ao espaço urbano stricto

sensu – à zona urbana propriamente dita –, mas a adjetivação “urbana” não pode ser

entendida de forma excessivamente abrangente.

4 RAMÓN FERNÁNDEZ, Tomás. Manual de derecho urbanístico. 18. ed. Madrid: El Consultor, 2005, p. 15;

TAKEGUMA, Mario Seto. Aspectos fundamentais do tratamento jurídico-penal do parcelamento do solo

urbano brasileiro. Dissertação de mestrado em Direito – subárea de Direito Penal, Universidade Estadual

de Maringá, 2003, 139 p. p. 13. 5 CORREIA, Fernando Alves. Manual de direito do urbanismo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2004. vol. 1, p.

20-54 passim. 6 Cf. PLAZOLA CISNEIROS, Alfredo; PLAZOLA ANGUIANO, Alfredo. Arquitectura habitacional: análisis

temático, teoría, diccionario. México: Limusa, 1986. vol. 2, p. 1016. 7 CORONA, Eduardo; LEMOS, Carlos A. C. Dicionário da arquitetura brasileira. São Paulo: Edart, 1972,

p. 463-464. 8 Desse modo, “o urbanismo não está confinado a tais localidades [que preenchem os requisitos para

definição de cidade], mas manifesta-se em graus variáveis onde quer que cheguem as influências das

cidades” (WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. Trad. Marina Corrêa Treuherz. In: VELHO,

Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 95-96).

5

A zona urbana é um espaço delimitado por meio de norma da administração pública

municipal que designa a área de um município caracterizada pela edificação contínua e

a existência de equipamentos sociais destinados às funções urbanas básicas, como

habitação, trabalho, recreação e circulação. Na legislação brasileira federal há

dispositivo que oferece parâmetros mínimos para identificação da zona urbana (Lei

5.172/1966, que, em seu art. 32, §§ 1.º e 2.º, trata do IPTU).

O urbanismo pode ser então conceituado como o ramo do conhecimento cuja

aplicabilidade faz com que seja reconhecido como ciência, técnica ou arte9 que

investiga e propõe soluções relacionadas aos espaços territoriais habitados ou

habitáveis, com o fim de ordená-los de maneira racional e, assim, propiciar melhor

qualidade de vida humana.10

De seu turno, pode-se afirmar que o conceito de ordenação do território, desenvolvido,

sobretudo, pela doutrina francesa, surge do desenvolvimento e incremento das

responsabilidades da Administração Pública em relação aos cidadãos, a qual assume a

obrigação de assegurar uma melhor repartição dos homens no território em função dos

recursos naturais e das atividades econômicas.11

Entendida lato sensu como a “política

de distribuição dos usos do solo”,12

é, portanto, mais abrangente e compreende em si o

conceito de urbanismo envolvendo a regulação do “uso do solo (urbano e rural),

planejamento e gestão territorial, bem como a edificação”.13

Assim sendo, é ela concebida como organização dos espaços habitáveis através da

utilização de um conjunto de operações que têm por finalidade realizar uma política de

habitação, organizar a manutenção, ampliação ou contenção das atividades econômicas,

favorecer o desenvolvimento do lazer e turismo, transportes coletivos, saneamento

9 Vide MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao direito ecológico e ao direito urbanístico.

Instrumentos jurídicos para um futuro melhor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 47. 10

Para o conceito de urbanismo, vide, por exemplo, MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal

brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 511; SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico

Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 31; FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito

ambiental brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 247; FIGUEIREDO, Lucia Valle. Disciplina

urbanística da propriedade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 33; MUKAI, Toshio. Direito urbano-

ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 16; Idem. Temas atuais de direito urbanístico e

ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 13; NOGUEIRA, Antonio de Pádua Ferraz. Desapropriação e

urbanismo. São Paulo: Ed. RT, 1981, p. 21-22. 11

QUINTANA LÓPEZ, Tomás. Las actividades mineras y da ordenación del espacio. Revista de Derecho

Urbanístico, vol. 22, n. 106, a. XXII, p. 53-83. Madrid, ene.-feb. 1988, p. 54-55. 12

ACALE SÁNCHEZ, Maria. Cuestiones claves de los delitos urbanísticos desde una perspectiva

comparada. Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente, vol. 40, n. 223, a. XL, p. 85-138. Madrid,

ene. 2006, p. 86. 13

PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. Meio ambiente. Patrimônio cultural. Ordenação do

território. Biossegurança (com a análise da Lei 11.105/2005). 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 302.

Vide também QUINTANA LÓPEZ, Tomás, op. cit., p. 55.

6

básico, salvaguardar o patrimônio imobiliário e os espaços naturais. Cuida-se de uma

descrição global de ordenação do território, que busca agregar ao seu conceito, tanto

quanto seja harmoniosamente possível fazê-lo, a totalidade das atividades humanas

essenciais.14

A diferença entre ordenação territorial e urbanismo não se ampara no objeto da função

pública por ambos exercida – regulação do uso do solo enquanto recurso natural e

suporte das atividades humanas15

–, mas na perspectiva e finalidade por esta última

abordada, sendo que a primeira desempenha tal função a partir de uma escala ampla e

globalizadora, em nível supralocal ou regional (incluindo determinações sobre proteção

do meio ambiente, desenvolvimento econômico, regulação do solo rústico, previsão de

infraestruturas e urbanismo); ao passo que o urbanismo atende principalmente a uma

regulação direta e concreta dos usos do solo e no âmbito local ou urbano.16

Este último

procura solucionar os problemas de “micro-ordenamento”, de ocupação física do solo,

enquanto aquela concerne ao “macro-ordenamento”, visando a uma ocupação

equilibrada do território nacional ou, ainda, no caso da realidade europeia atual, do

próprio território europeu.17

Com efeito, a amplitude de objetivos e de atuação é nota distintiva marcante entre

urbanismo e ordenação do território, de modo que “dada a vocação globalizadora da

ordenação do território, esta vem a constituir um ordenamento superior ao ordenamento

urbanístico; as normas de ordenação do território fixam uma série de determinações que

vinculam os instrumentos urbanísticos”.18

Nessa perspectiva, é correto afirmar que a ordenação do território em primeiro grau se

traduz em uma direção e fixação do marco de atuação específica do urbanismo que, por

sua vez, expressa uma ordenação de segundo grau.19

14

PIPAÓN Y MENGS, Javier Sáenz de. Tratamiento penal del espacio: el territorio, el suelo, la ciudad.

Globalización o reinvención de lo local? Madrid: Colex, 2003, p. 19. 15

Vide PAREJO ALFONSO, Luciano. Ordenación del territorio y medio ambiente. Revista de Derecho

Urbanístico y Medio Ambiente, vol. 30, n. 146, a. XXX, p. 131-178. Madrid, ene.-feb. 1996, p. 159-160. 16

Cf. RODRÍGUEZ-CHAVEZ MIMBRERO, Blanca. Protección ambiental y ordenación territorial y

urbanística: ponderación y desarollo sostenible. Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente, vol.

36, n. 193, a. XXXVI, p. 111-169, Madrid, abr.-may. 2002, p. 131; RAMÓN FERNÁNDEZ, T., op. cit., p.

16; BOLDOVA PASAMAR, M. A., op. cit., p. 67. 17

JACQUOT, Henri; PRIET, François. Droit de l’Urbanisme. 4. ed. Paris: Dalloz, 2001, p. 12.. Também

OLIVEIRA, Fernanda Paula. Direito do ordenamento do território. Coimbra: Almedina, 2002, p. 12. 18

RODRÍGUEZ-CHAVEZ MIMBRERO, B., op. cit., p. 133; Cf. COIMBRA, Mário; BUGALHO, Nelson R.;

SOUZA, Gilson Sidney Amâncio de. Alguns aspectos sobre a tutela penal da ordenação do território. In:

PRADO, Luiz Regis (coord.). Direito penal contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor José

Cerezo Mir. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 312). 19

VERCHER NOGUERA, Antonio. La delincuencia urbanística. Aspectos penales prácticos sobre

urbanismo y ordenación del territorio. Madrid: Colex, 2002, p. 40.

7

Ordenação do território e urbanismo comportam, ainda, distintos campos de atuação, de

acordo com “magnitudes temporais e especiais: o pontual e local corresponderia ao

urbanismo, o sistemático e prolongado no tempo em um âmbito interterritorial à

ordenação do território, na medida em que a continuação no tempo da comissão desses

delitos [delitos urbanísticos] conduz à desordem na planificação territorial, e sua

generalização pode dar lugar a uma degradação definitiva do meio físico, tanto urbano

como natural”.20

À ordenação territorial cumpre o papel de elaborar e executar planos regionais e

nacionais segundo uma racionalidade de “estratégia organizacional e política

predeterminada por um plano de governo”;21

ao urbanismo – também ao Direito

Urbanístico – compete realizar estratégias mais locais; por isso, ambos devem estar

devidamente harmonizados. Daí surge sua conceituação como uma “moderna função

pública orientada para dar uma resposta global aos problemas que a utilização do espaço

coloca, traduzindo e sendo, por conseguinte, uma matéria que obriga a uma análise

interdisciplinar”.22

3. TUTELA PENAL DA ORDENAÇÃO TERRITORIAL: SÍNTESE EVOLUTIVA

No transcorrer histórico da legislação penal brasileira, a proteção da ordenação do

território com relevo à matéria urbanística é tímida até o advento da Lei 6.766/1979, que

definiu os crimes contra o parcelamento do solo urbano, restringindo-se, por vezes, a

aspectos meramente estéticos ou tratando de delitos relativos a irregularidades de

construção, mas sem tutelar diretamente a ordenação territorial (urbana ou não).

A disciplina urbanística, especialmente a dinâmica dos loteamentos, antes da publicação

da Lei 6.766/1979, era tratada pelo Dec. 58/1932, que “continha essencialmente normas

civis, regulando as relações entre o loteador e os adquirentes de lotes, com poucas

disposições de ordem administrativa, sem nenhuma pauta penal”.23

20

Cf. BOLDOVA PASAMAR, Miguel Ángel. Los delitos urbanísticos. Barcelona: Atelier, 2007,p. 32;

VERCHER NOGUERA, A., op. cit., p. 41. 21

LIMA, André. Zoneamento ecológico-econômico à luz dos direitos sócio-ambientais. Curitiba: Juruá,

2006, p. 43. 22

OLIVEIRA, F. P., op. cit., p. 9. Nesse sentido: PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes de; MELLO

NETO, Benedicto de Souza. Aspectos gerais da tutela pena da ordenação do território nas Leis 6.766/1979

e 9.605/1998: autonomia do bem jurídico-penal ordenação do território. Revista de Ciências Jurídicas,

vol. 3, n. 1. Maringá, jan.-jun. 2005, p. 8. 23

MUKAI, Toshio; ALVES, Alaôr Caffé; LOMAR, Paulo José Villela. Loteamentos e desmembramentos

urbanos. Comentários à nova Lei de Parcelamento do Solo Urbano, Lei. 6.766, de 20.12.1979. 2. ed. São

Paulo: Sugestões Literárias, 1980, p. IX. Vide ainda CUNHA BUENO, Paulo Amador Thomaz A. da.

8

Com efeito, procurando sanar essa deficiência, teve em 1967 a edição do Dec. 271,24

que dividiu o conceito de parcelamento do solo em loteamentos e desmembramentos

urbanos, mas restringiu a aplicação desses institutos à área rural.25

A respeito afirma-se que a intervenção penal do referido Decreto existe por meio de

uma remissão, feita em seu art. 3.º, à Lei 4.591/1964, que dispõe sobre condomínios em

edificações e incorporações imobiliárias.26

Todavia, esse dispositivo sequer faz menção

específica aos delitos previstos naquela Lei. Dessa forma, não pode ser essa remissão

considerada a pioneira disposição penal em matéria urbanística, ante a inexatidão do

texto legal e aplicação de analogia para norma penal incriminadora.

A analogia é uma forma de integração do sistema jurídico utilizada na hipótese de

existir um “texto de lei obscuro ou incerto, cujo exato sentido se procure descobrir ou

esclarecer. O que há é uma ausência de lei que regule diretamente a hipótese”. Busca-se

sanar essa lacuna aplicando outra lei que regule casos semelhantes ou “subindo até os

princípios que informam esta lei, para fazer derivar deles a regra aplicável ao caso

vertente”.27

Em relação à norma penal incriminadora, isto é, aquela que define o injusto culpável e

lhe comina consequência jurídica, não é possível a aplicação de analogia, inclusive por

uma expressa restrição constitucional, decorrente do princípio da legalidade (art. 5.º,

XXXIX, CF/1988).28

Logo, a aplicação analógica dos crimes previstos na Lei

4.591/1964 à hipótese prevista no art. 3.º do Dec. 271/1967 encontra seu primeiro e

inarredável obstáculo no princípio da legalidade.

Na verdade, a Lei 6.766/1979 foi a pioneira no direto tratamento jurídico-penal da

matéria urbanística – contemplada pela ordenação do território – quanto à disciplina do

Crimes na Lei de Parcelamento do Solo Urbano: Lei 6.766 de 19 de dezembro de 1979. São Paulo: Lex,

2006, p. 26. 24

MUKAI, T; ALVES, A. C.; LOMAR, P. J . V., op. cit., p. IX. 25

LEAL, Rogério. O parcelamento clandestino do solo e a responsabilidade municipal no Brasil. Revista

de Direito da UNISC 2/7-22. Santa Cruz do Sul, dez. 1994, p. 10. 26

Cf. RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda e parcelamento do solo urbano. 4. ed. São

Paulo: Ed. RT, 1996, p. 210; MUKAI, T; ALVES, A. C.; LOMAR, P. J . V., op. cit., p. IX; TAKEGUMA, M.

S., op. cit., p. 50, CUNHA BUENO, P. A. T. A. da., op. cit., p. 30. 27

BRUNO, Aníbal. Direito penal. Parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. I, p. 222. A hipótese

que não é expressamente regulada pelo ordenamento jurídico comparte com o caso regulado pela lei

aplicável por analogia “certos caracteres essenciais ou a mesma suficiente razão, isto é, vinculam-se por

uma matéria relevante simili ou a pari” (PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Parte

geral. 9. ed. São Paulo: Ed. RT, 2009, vol. 1, p. 194). 28

PRADO, L. R., Curso de direito penal brasileiro, vol. 1, p. 195. A Constituição (1967) que vigorava à

época do Decreto 271/1967 já contemplava o princípio da legalidade no rol dos direitos e garantias

individuais (art. 150, § 2.º: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em

virtude de lei”.

9

parcelamento irregular do solo urbano, feito por meio dos tipos penais insculpidos nos

arts. 50 e 52, que serão objeto de posterior análise.

No que tange à construção ilegal, independentemente de matéria urbanística, menciona-

se o Dec. 25/1937, que em seu art. 18 tutelava o patrimônio histórico ou artístico

nacional. Não há dúvida de que esse dispositivo impunha ao agente uma sanção29

de

cunho meramente administrativo.

À exceção do Código Penal de 1890, na evolução histórica do Direito Penal brasileiro,

não se verifica a existência de preceitos normativos elaborados para tutelar a ordenação

do território, nem com específica referência à ordenação urbana. Não obstante, o

anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal de 1998 intentou disciplinar

os delitos contra a ordenação urbana, no Título XII (arts. 368 a 373), inclusive de forma

muito superior à das Leis 9.605/1998 e 6.766/1979.

Além da Lei 6.766/1979, atualmente em vigor, outro diploma legislativo contempla um

tipo penal que tutela a ordenação do território: a Lei 9.605/1998 (art. 64) – Lei dos

Crimes Ambientais.

4. AMBIENTE E ORDENAÇÃO TERRITORIAL: DELIMITAÇÃO DO BEM JURÍDICO

A tutela de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência humana em sociedade é

fundamento e limite do Direito Penal, que parte da consideração do homem como sua

essência, constituindo a eticidade uma característica indeclinável.30

A intervenção penal

na esfera de liberdade individual, em um Estado de Direito Democrático, parte

primordialmente do respeito à pessoa humana como um fim em si mesmo,31

não como

mero objeto, instrumento para consecução de fins diversos.

Os momentos de criação e aplicação da norma penal caracterizam o exercício do jus

puniendi estatal, que se encontra limitado pelo próprio Estado de Direito,32

sobretudo

por meio de princípios constitucionais, tipicamente penais ou influentes em matéria

penal,33

deduzidos de preceitos explícitos ou implícitos, bem como da concepção de

Estado de Direito Democrático consagrada pela Constituição.34

29

ARMELIN, Priscila Kutne. Patrimônio cultural e sistema penal. Curitiba: Juruá, 2008, p. 180. 30

PALLAZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal. Um estudo comparado. Trad. Gérson

Pereira dos Santos. Porto Alegre: Safe, 1989, p. 17. 31

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 4 ed. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 63. 32

Idem, Curso de direito penal brasileiro, vol. 1, p. 139. 33

PALAZZO, F. C., op. cit., p. 22. 34

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição, p. 61 e ss.

10

É assente na doutrina que o Direito Penal tem por finalidade precípua a proteção de

bens jurídicos,35

sendo que “um Direito Penal que ab initio não se propusera finalmente,

de essência, garantir a proteção os valores mais transcendentes para a coexistência

humana, seria um Direito Penal carente de base substancial e não inspirado nos

princípios de justiça sobre o que deve assentar-se todo o ordenamento jurídico e,

enquanto tal, inútil para regular a vida humana em sociedade”.36

A melhor definição de bem jurídico-penal apresenta-se, com clareza, nos seguintes

termos: “um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto

social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a

coexistência e o desenvolvimento do homem em sociedade e, por isso, jurídico-

penalmente protegido”, sendo que o quadro axiológico constitucional e o princípio do

Estado de Direito Democrático representam “o paradigma do legislador penal

infraconstitucional”.37

Tendo-se em vista que o bem jurídico-penal é extraído da realidade histórico-cultural,

calha salientar que esse bem não constitui uma categoria absoluta e estática, mas

dinâmica e relativa, referente a um determinado contexto histórico-cultural, vigente em

uma determinada sociedade.38

A referência mais significativa dessa dinamicidade da caracterização dos bens jurídicos

é o fenômeno verificado na passagem do Estado liberal ao Estado social,39

em que

35

CEREZO MIR, José. Obras completas: derecho penal. Parte general. Lima: ARA, 2006. vol. 1, p. 25;

JESCHECK, Hans-Heinrich; WEINGEND, Thomas. Tratado de derecho penal. Parte general. 5. ed. Trad.

Miguel Olmedo Cadernete. Granada: Comares, 2002, p. 7-8; CUELLO CONTRERAS, Joaquín. El derecho

penal español. Curso de iniciación. Parte general: nociones introductorias. Madrid: Civitas, 1993. vol. 1,

p. 38; PRADO, L. R., Curso de direito penal brasileiro. vol. 1, p. 65; BRUNO, A., op. cit., p. 28-29;

NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. Introdução e parte geral. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1985,

p. 5; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 5;

DOTTI, René. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 52-53; PRADO, L. R.,

Bem jurídico-penal e Constituição, p. 26; COELHO, Yuri Carneiro. Bem jurídico-penal. Belo Horizonte:

Mandamentos, 2003, p. 17; PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal

mínimo. São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 21; GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico penal. São Paulo:

Ed. RT, 2002, p. 46-47; TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas.

RBCCrim 0/75-87. São Paulo: Ed. RT, jan.-dez. 1992, p. 79. De seu turno, Miguel Reale Júnior prefere

utilizar o termo “valor” ao invés de “bem” que, segundo esse autor, “não deixa de fazer referência ao que

se possui, prevalecendo o aspecto da pertença a alguém, seja o bem material ou imaterial” (REALE

JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. I, p. 22). 36

POLAINO NAVARRETE, Miguel. El bien jurídico en el derecho penal. Sevilla: Publicaciones de la

Universidad de Sevilla, 1974, p. 22. 37

PRADO, L. R., Bem jurídico-penal e Constituição, p. 44. Adota esse autor uma postura ampla ou

eclética sobre a relação entre bem jurídico e Constituição, envolvendo além da previsão constitucional do

bem jurídico (explícita, implícita e não contraditória), ou sua decorrência da própria concepção de Estado

democrático de Direito. 38

Idem, p. 92. 39

Sobre a evolução do Estado de Direito ao Estado Democrático e Social de Direito, Cf. PRADO, L. R.,

Bem jurídico-penal e Constituição, p. 61 e ss.

11

determinados interesses de cunho supraindividual desde sempre viventes na

humanidade passam a demandar tutela jurídica mais aguda, em face das novas formas

de agressão a que foram expostos ou, ainda, com a emergência de novos interesses

transindividuais que também reclamam proteção penal.40

Na defesa de interesses essenciais à vida comunitária, a intervenção penal deve ser o

instrumento último a ser utilizado pelo legislador infraconstitucional, de sorte que seja

capaz de proteger o bem jurídico com eficácia; é o que preconiza o chamado princípio

da intervenção mínima, que se apresenta como “uma orientação político-criminal

restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do Direito Penal e da concepção

material de Estado de Direito Democrático”.41

Assim, não é correto afirmar que a utilização do Direito Penal como ultima ratio legis o

torna insuficiente. Ao contrário, “o Direito Penal bem legislado encontra um ponto de

equilíbrio entre a proteção jurídico-penalmente necessária e a liberdade dos cidadãos”.42

Em havendo outras formas de proteção do bem jurídico, igualmente ou mais eficazes, a

criminalização não se justifica, sobretudo porque a liberdade individual é direito

fundamental, sujeito a sacrifício apenas em caso de estrita necessidade.43

Ainda outra

diretiva de restrição do jus puniendi estatal concerne ao princípio da fragmentariedade,

segundo o qual apenas as formas de agressão mais graves e socialmente intoleráveis a

bens jurídicos essenciais poderão ser “objeto de criminalização”.44

Nesse passo, a Constituição deve ser a referência do legislador no momento de

selecionar os bens jurídicos merecedores e carecedores de tutela penal.45

No concernente ao reconhecimento constitucional da ordenação do território enquanto

bem jurídico-penal, nota-se que, ao contrário da diretriz agasalhada para a proteção

jurídica do ambiente (art. 225, § 3.º, CF/1988), o legislador constituinte não faz

expressa referência a um mandato de criminalização46

de condutas atentatórias à

40

Sobre as novas formas de criminalidade, vide HIRSCH, Hans Joachim. El derecho penal y procesal

penal ante las nuevas formas y técnicas de criminalidad. Derecho Penal: obras completas. Buenos Aires:

Rubinzal-Culzoni, 1999, t. II, p. 61. 41

PRADO, L. R., Curso de direito penal brasileiro, vol. 1, p. 148-149. 42

QUERALT, Joan J. El delito ecológico en España: situación actual y perspectivas de reforma. RBCCrim

9/19-32. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 1995, p. 20. 43

LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Safe, 2003, p. 39. Assim

também, SERRANO GÓMEZ, Alfonso. Derecho penal: parte especial. 4. ed. Madrid: Dykinson, 1999, p.

560. 44

PRADO, L. R., Curso de direito penal brasileiro, vol. 1, p. 149. Vide, ainda, RODRÍGUEZ LÓPEZ, Pedro,

Medio ambiente, ordenación del territorio, urbanismo y derecho penal.Barcelona: Bosch, 2007 p. 49. 45

PRADO, L. R., Bem jurídico-penal e Constituição, p. 82. 46

A expressão “mandato expresso de criminalização” foi empregada de forma inédita na doutrina jurídica

nacional por Luiz Regis Prado para designar a determinação constitucional de sancionar criminalmente

12

ordenação territorial ou mesmo ao urbanismo; isso, todavia, não implica, em absoluto, a

desconsideração da ordenação do território como bem jurídico-penal de relevância

constitucional.47

A Constituição Federal de 1988 institui, de forma detalhada, diretrizes para uma política

nacional urbana, a ser concretizada pelo poder público municipal, além de estabelecer

competências legislativas no âmbito do Direito Urbanístico e do delineamento de planos

de ordenação territorial.

É clara, pois, a importância conferida pelo constituinte à ordenação do território de um

modo geral, que compreende desde o planejamento especificamente urbanístico até

planos de desenvolvimento socioeconômico regional e nacional, reservando-lhe o

caráter de autêntico bem jurídico a ser tutelado inclusive pelo Direito Penal.

A relevância constitucional é constatável, também, para fundamentar a legitimidade do

Direito Penal, com fulcro na Constituição, para intervir diante das formas mais graves

de condutas atentatórias ao bem jurídico em apreço a partir de dois critérios: (a) o

próprio conceito de ordenação territorial, do qual se extrai a sua essencialidade para a

sobrevivência humana e sua coexistência em sociedade; (b) o quadro axiológico vazado

na Constituição, combinado com os preceitos relacionados à ordenação do território,

ainda que não específicos, como o próprio reconhecimento da função social de

propriedade (art. 170, III, CF/1988) e da diminuição das desigualdades regionais e

sociais (art. 170, VII, CF/1988), como os princípios da Ordem Econômica e Social e os

objetivos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, CF/1988), entre os quais se

inserem a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3.º, II, CF/1988), a erradicação da

pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais

(art. 3.º, III, CF/1988).

Para além de sua insofismável preeminência constitucional, a intervenção penal em

matéria de ordenação do território se faz necessária devido ao fracasso dos demais

ramos do ordenamento jurídico – mormente das normas de caráter administrativo – para

pessoas físicas por condutas lesivas e atividades lesivas ao ambiente, segundo a qual a Constituição não

faz mera declaração formal de tutela do ambiente, mas impõe a aplicação de medidas coercitivas com

relação a lesões ao ambiente, afastando “qualquer eventual dúvida quanto à indispensabilidade de uma

proteção penal do ambiente” (PRADO, L. R., Direito penal do ambiente, p. 75). 47

GÓMEZ TOMILLO, Manuel. Estado actual de la discusión en torno a los delitos sobre la ordenación del

territorio: la construcción y edificación ilegal. Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente, vol. 40,

n. 223, a. XL, Madrid, p. 35-84, ene. 2006, p. 37.

13

efetivamente tutelá-lo e em relação a condutas mais graves ou perigosas a esse bem

jurídico.48

No que concerne às incriminações no plano da ordenação do território – como se

constatou, um conceito mais abrangente, que engloba a matéria urbanística –, cumpre

ressaltar a importância dessa intervenção do Direito Penal, a qual não constitui mero

capricho do legislador, simplesmente com o fim de reforçar a legislação administrativa

já incidente sobre essa matéria.

De modo contrário, assinala-se que, diante da eficácia de um instrumento sancionatário

de cunho administrativo para restaurar o bem cultural ou paisagístico – no caso, a

demolição – a intervenção do Direito Penal só se sustentaria se houvesse o intuito de

reforçar a proibição administrativa já existente.49

Contudo, tal entendimento não convence, primeiramente porque se toma por base a

eficácia de uma sanção administrativa em restaurar o status quo ante, o que na realidade

não ocorre, pois a demolição dificilmente recuperará o bem jurídico tutelado, mormente

em se tratando de ordenação do território. Em segundo lugar, o bem jurídico

efetivamente tutelado nos delitos contra a ordenação do território é a ordenação do

território, e não o bem paisagístico ou cultural, ainda que estes últimos possam

constituir valores intrínsecos ou vinculados ao primeiro pela própria construção típica.

Por fim, uma “restauração do bem jurídico” por meio da demolição deveria significar a

reparação do dano que, realizada pelo Estado como sanção administrativa, não

configura sequer hipótese de causa de supressão total ou parcial50

de pena, não podendo

48

Nessa linha, BOLDOVA PASAMAR, M. A., Los delitos urbanísticos, p. 43; ACALE SÁNCHEZ, Maria.

Delitos urbanísticos. Barcelona: Cedesc, 1997, p. 108). 49

“Cuando un procedimiento tan sencillo como la demolición es factible recuperar el bien jurídico

paisajístico o cultural que desea proteger, el recurso al Derecho Penal sólo puede explicarse por un deseo

de reforzar la prohibición administrativa para construir. Pero entonces el injusto material se volatiliza, y

se utiliza espuriamente la amenaza de pena” (TERRADILLOS BASOCO, Juan. Derecho Penal de la empresa.

Madrid: Trotta, 1995, p. 212). De seu turno, Silva Sánchez posiciona-se criticamente em relação aos tipos

penais previstos no Código Penal espanhol, que ensejam graves problemas de legitimidade da intervenção

penal de concreção do bem jurídico e do risco jurídico-penalmente relevante, propondo uma adequação

dessas incriminações às exigências materiais da Constituição, como a concorrência de uma exposição a

perigo grave das propriedades do solo (SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. ¿Política criminal “moderna”?

Consideraciones a partir del ejemplo de los delitos urbanísticos en el nuevo Código Penal español.

RBCCrim 23/9-23. São Paulo, jul.-set. 1998, p. 23). Outros autores posicionam-se criticamente quanto à

legitimidade e eficácia da intervenção penal desse âmbito, especialmente devido à deficiência da

construção típica existente nos arts. 319 e 320 do Código Penal espanhol, que tratam dos delitos “sobre la

ordenación del território”: CARMONA SALGADO, Concepción. Delitos sobre la ordenación del territorio y

la protección del patrimonio histórico. In: COBO DEL ROSAL, Manuel (coord.). Curso de derecho penal

español. Parte especial. Madrid: Marcial Pons. vol. 2, p. 20; SERRANO GÓMEZ, A., op. cit., p. 560;

RAMÓN FERNÁNDEZ, T., op. cit., p. 268, entre outros. 50

CARVALHO, Érika Mendes de. Punibilidade e delito. São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 146-147; PRADO, L.

R., Curso de direito penal brasileiro, vol. 1, p. 648-649.

14

incidir sobre a punibilidade do delito ou a dosagem da pena, tampouco afastar a atuação

do Direito Penal.

Entender como necessária e legítima a intervenção penal na proteção da ordenação

territorial não implica, todavia, apoio à forma como o legislador desenvolve ou constrói

tais delitos (elaboração do tipo penal e atribuição de sua consequência jurídica), mas

sim, o reconhecimento da ordenação territorial como bem jurídico-penal.51

O fato de uma inadequada elaboração de tipos penais, mormente por ausência de técnica

legislativa escorreita, não pode conduzir, em absoluto, a uma generalizada ilegitimidade

de toda intervenção penal; do contrário, sempre que o legislador arquitetasse um tipo

penal imperfeito, de modo a atentar contra, por exemplo, o princípio da legalidade, da

proporcionalidade, da exclusiva proteção de bens jurídicos ou da intervenção mínima,

estar-se-ia retirando do Direito Penal a sua legitimidade para tutelar determinada

matéria.52

Para identificar a ordenação do território como um bem jurídico penal substancialmente

autônomo, é imperioso traçar, em um primeiro momento, as essenciais distinções com

relação ao bem jurídico ambiente, uma vez que impera na doutrina uma verdadeira

fusão desses conceitos, sobretudo quando se analisa o art. 64 da Lei 9.605/1998 (Lei dos

Crimes Ambientais).

A essa discussão antepõe-se a delimitação do conceito de ambiente, de sua identificação

ontológica e também jurídica, o qual é muito variável na doutrina e, por isso mesmo,

conduz a determinados equívocos, como o de englobar em um só bem jurídico todos os

aspectos que com ele muitas vezes estão relacionados, mas inconfundíveis, a exemplo

51

Assim, PRADO, L. R., Direito penal do ambiente, p. 302; COIMBRA, M.; BUGALHO, N. R; SOUZA, G. S.

A., op. cit., p. 309; CUNHA BUENO, P. A.T A., op. cit., p. 13; BOLDOVA PASAMAR, M. A., Los delitos

urbanísticos, p. 47 ;ACALE SÁNCHEZ, M., Delitos urbanísticos, p. 181-182 GÓMEZ TOMILLO, M., op. cit.,

p. 38, entre outros. 52

Entende-se que o princípio da intervenção mínima, que deve inspirar o Direito Penal, é aviltado quando

se tipificam condutas consideradas infrações leves na legislação urbanística, enquanto se deixa de

criminalizar outras especialmente mais graves, tornando, assim, a jurisdição penal um autêntico controle

de legalidade da Administração, um mecanismo de “controle do controlador” (BETRÁN ABADÍA, Ramón;

CORVINOS BASECA, Pedro; FRANCO HERNÁNDEZ, Yolanda. Los nuevos delitos sobre ordenación del

territorio y la disciplina urbanística. Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente, vol. 31, n. 151, a.

XXXI, p. 15-51. Madrid, ene.-feb. 1997, p. 18-19). Na doutrina espanhola critica-se a opção do legislador

em ter tipificado as condutas descritas nos arts. 319 e 320 do Código Penal e ter deixado de penalizar

condutas mais graves como o parcelamento de solo não urbanizável, isto é, não contemplou a totalidade

das condutas atentatórias ao regular uso do solo previstas como infrações administrativas e ainda optou

por eleger as menos graves (Cf. ROMERO REY, Carlos. Interrelaciones entre la protección penal y la

protección administrativa de la ordenación del territorio. En especial el artículo 319 del Código Penal.

Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente, Madrid, a. XXXIV, v. 34, n. 177, p. 99-120,

abr./mayo. 2000, p. 10). No Brasil, como se verá adiante, os crimes de parcelamento irregular do solo

urbano padecem de diversas imperfeições, algumas relativas à própria desnecessidade de intervenção do

Direito Penal para sancionar determinadas condutas.

15

do ambiente em relação à ordenação do território, o patrimônio cultural, o trabalho, de

modo que tudo passa a ser entendido, lato sensu, como “ambiente”.

Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que cidade e ambiente não são realidades

estanques, absolutamente separadas. É evidente que o ambiente natural interfere no

meio urbano, e vice-versa. Além disso, dentro das cidades estritamente consideradas há,

sim, recursos do ambiente natural que o Direito Ambiental e o próprio Direito

Urbanístico devem tutelar.53

Trata-se, na realidade, de fazer as devidas distinções entre os bens jurídicos ambiente e

ordenação do território, sem que isso implique uma contumaz e radical separação, uma

vez que no próprio plano ontológico esses elementos se tangenciam.

De início, calha discorrer brevemente acerca das teorias ou concepções que informam o

conceito de ambiente para diversos ramos do conhecimento humano.

De acordo com uma percepção amplíssima, globalista, totalizadora ou unitária, o

conceito de ambiente abrange tudo aquilo que envolve e condiciona a vida humana,

incluindo elementos naturais e artificiais.54

Nesse sentido, a subdivisão do interesse

entre natural, artificial e cultural55

não seria relevante para conceito de ambiente, que

englobaria todos.

Consoante uma concepção um pouco diversa, propugna-se pela distinção entre ambiente

e natureza, segundo a qual o primeiro compreenderia esta última, que, por sua vez,

opor-se-ia à ideia de cultura enquanto criação humana, pois há que separar

cientificamente o que existe independentemente da participação humana (o que é dado

ao homem) e aquilo que o homem constrói para modificar a natureza. Por outro lado,

não se pode excluir essa última distinção de uma perspectiva conceitual totalizadora, já

que, conforme esse entendimento, a natureza não congrega a cultura, mas o ambiente

pode ser natural ou cultural.56

53

Cf. FRANGETTO, Flavia Witkowski. Do caráter simplista do direito à cidade. Constituição Federal,

cidade e meio ambiente, cidade como bem ambiental. RDCI 49/114-138. São Paulo: Ed. RT, out.-dez.

2004, p. 123. 54

PRADO, L. R., Direito Penal do ambiente, p. 104-105. “Como se observa, desde esta perspectiva, todo

tiene cabida dentro del ambiente: aspectos naturales, culturales y urbanos, hasta tal punto, que el propio

hombre se constituye en ambiente” (ACALE SÁNCHEZ, M., Delitos urbanísticos, p. 38). 55

Afirma-se que o interesse natural concerne aos grupos biológicos (fauna e flora) vinculados aos

elementos naturais (água, ar e solo) imprescindíveis ao equilíbrio ambiental, enquanto que o interesse

cultural representa a participação do homem no meio ambiente – o ambiente como obra humana –, de

modo a alterá-lo ou modificá-lo (SZNICK, Valdir. Direito penal ambiental. São Paulo: Ícone, 2001, p.

420). 56

REISEWITZ, Lúcia. Direito ambiental e patrimônio cultural. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 5-6.

16

A maior parte dos doutrinadores brasileiros que se dedicam ao estudo do Direito

Ambiental – e também alguns que dissertam especificamente sobre o Direito Penal do

ambiente – corroboram a concepção totalizadora de ambiente como o “conjunto de

elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado

da vida em todas as suas formas”.57

Opera-se uma verdadeira fragmentação didática do conceito de ambiente, que não deixa

de ser totalizadora, por exemplo, em ambiente natural, cultural, artificial (ou “meio

ambiente urbano”) e do trabalho, de modo que a sustentabilidade das cidades e os

objetivos da política urbana estariam inseridos no específico conceito de meio ambiente

artificial que, segundo esse entendimento, “diz respeito ao espaço urbano que foi

construído pelo homem”.58

Para justificar a fragmentação dos elementos que comporiam o ambiente (patrimônio

ambiental natural, ecossistemas, patrimônio ambiental cultural e artificial), segundo essa

doutrina, afirma-se que “o importante é que todos esses elementos se relacionam, de

forma que a degradação de um deles importa em consequências aos demais. O uso

racional dos recursos naturais e artificiais, bem como do patrimônio cultural, é de vital

importância para a preservação do meio ambiente”.59

É evidente que esses elementos estão inter-relacionados, sobretudo no que concerne ao

espaço urbano e à influência que esse exerce no ambiente e vice-versa, porquanto

57

SILVA, José Afonso da, Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 2. Nesse

sentido: MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5. ed. São Paulo: Ed.

RT, 2007, p. 112; ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002,

p. 28; MUKAI, T., op. cit., p. 52; FIORILLO, C. A. P., op. cit., p. 247; SILVA, Américo Luís Martins.

Direito do meio ambiente e dos recursos naturais. São Paulo: Ed. RT, 2004. vol. 1, p. 52); MARQUES,

José Roberto. Meio ambiente urbano. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 18; MIGLIARI JÚNIOR, Arthur.

Crimes ambientais: concurso de pessoas, responsabilidade penal da pessoa jurídica, desconsideração da

personalidade jurídica. Campinas: Interlex, 2001, p. 26; CONSTANTINO, Carlos Ernani. Delitos

ecológicos. A lei ambiental comentada artigo por artigo: aspectos penais e processuais penais. São

Paulo: Atlas, 2001, p. 20; MILARÉ, Edis; COSTA JR., Paulo José da. Direito penal ambiental. Comentários

à Lei 9.605/98. Campinas: Millennium, 2002, p. 3; FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto

Passos de. Crimes contra a natureza. De acordo com a Lei 9.605/98. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2001, p.

20; SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela penal do meio ambiente: breves considerações atinentes à Lei 9.605

de 12.02.1998. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 13; SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da insignificância e

os crimes ambientais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 66; LECEY, Eladio. Crimes contra o

patrimônio cultural e o ordenamento territorial urbano na Lei 9.605/98. RDA 47/42-57. São Paulo: Ed.

RT, jul.-set. 2007. 58

THENNEPOHL, Terence Dorneles. Fundamentos de direito ambiental: incluindo lições de direito

urbanístico (Lei n. 10.257/01 – Estatuto da Cidade). 2. ed. Salvador: Podivm, 2007, p. 30. Nesse sentido,

também, LANFREDI, Geraldo Ferreira, et al. Direito penal na área ambiental: os aspectos inovadores do

estatuto dos crimes ambientais e a importância da ação preventiva em face desses delitos. São Paulo:

Juarez de Oliveira, 2004, p. 75; MILARÉ, Édis. A nova tutela penal do ambiente. RDA 16/90-134. São

Paulo: Ed. RT, out.-dez. 1999, p. 116; SZNICK, V., op. cit., p. 420; SÍCOLI, José Carlos Meloni. A tutela

penal do ambiente. RDA 9/131-135. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 1998, p. 134. 59

LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de

Oliveira, 2003, p. 36.

17

qualquer atividade humana é capaz de provocar impactos sobre o ambiente, de

relevância variável, especialmente no âmbito das construções, sejam estas edificações

urbanas comuns ou construções de infraestruturas, como as chamadas “obras

lineares,”60

e ainda a exploração dessas obras, as quais alterarão sensivelmente a

movimentação e desenvolvimento socioeconômico da área que as circunda.

A ligação entre ambiente e ordenação do território – inclusa aqui a matéria urbanística –

é, assim, indiscutível, não só porque estas últimas importam, de modo geral, a fixação

dos usos do solo e localização de infraestruturas, mas também pela finalidade intrínseca

a essas disciplinas de perquirir melhor qualidade de vida e, sobretudo, porque a sede e o

marco de referência dos fenômenos ambientais pode ser justamente o território.61

Do

ponto de vista jurídico, essa vinculação se revela na própria ordem normativa de tutela

do ambiente, em grande parte composta de regras jurídicas referentes ao solo, o

elemento substancial do território.62

Não obstante, o impacto que as atividades humanas

exercidas dentro do espaço urbano ou fora dele – mas relativas à ordenação territorial –

podem causar sobre o ambiente não sustenta a pretensão de incorporar ao conceito deste

último esses elementos, que lhe são externos apenas porque mantêm com ele uma

relação tangencial.

A excessiva amplitude do conceito de ambiente permite, destarte, a inserção de

elementos que não o integram consoante sua compreensão ontológica, tais como o

patrimônio cultural, histórico, o urbanismo, a ordenação territorial, a paisagem e, até

mesmo, fatores políticos, econômicos e sociais.63

Em sentido oposto situa-se a concepção restrita de ambiente, que o considera desde

uma perspectiva eminentemente física,64

isto é, dos elementos naturais que condicionam

diretamente a existência do homem: basicamente, o ar e a água. Ambiente, consoante

esse entendimento, significa recursos naturais.65

60

Para o conceito de obra linear, vide SAMPERO RODRÍGUEZ, Ángel. Afecciones medioambientales en las

obras lineares. In: CRIADO HERRERO, Regino; HERNÁNDEZ BERMEJO, Benito (eds.). Técnicas, tendencias

y aspectos de actualidad en medio ambiente. Madrid: Dykinson, 2005, p. 152. 61

MATELLANES RODRÍGUEZ, Nuria. Algunas notas sobre la dificultad de demarcar un espacio de tutela

penal para la ordenación del territorio. Revista Penal 8/60-70. Salamanca, 2001, p. 61. 62

Vide VELASCO CARDENAL, Pablo. Análisis ambiental del solo no urbanizable. Revista Aranzadi de

Derecho Ambiental 10/113-134. Navarra, 2006, p. 115. 63

PRADO, L. R., Direito penal do ambiente, p. 106. 64

Idem, p. 125. MARTÍN MATEO, Ramón. Tratado de derecho ambiental. Madrid: Trivium, 1991. vol. 1,

p. 86. 65

ACALE SÁNCHEz, M., Delitos urbanísticos, p. 39.

18

Nem uma nem outra das concepções destacadas são hábeis a definir o ambiente de

forma satisfatória, sobretudo quando se tem por escopo sua delimitação para fins de

proteção jurídico-penal.

Pela concepção totalizadora ou amplíssima, o bem jurídico-penal ambiente careceria de

contornos precisos, pois praticamente tudo estaria integrado àquele conceito, não

restando espaço algum para quaisquer outros bens jurídicos penalmente relevantes.66

Assim, afirma-se que tal conceito possui um “caráter meramente indicativo ou

programático, o que inviabiliza a elaboração de objetivos concretos com rigor lógico-

jurídico, essenciais à estruturação do sistema normativo penal”.67

Ampliar em demasia o conceito de ambiente não é conveniente sequer para a sua

proteção por outros ramos do ordenamento jurídico, uma vez que “a inexistência de uma

definição precisa, que identifique concreta e juridicamente qual o bem ambiental, não

permite que ele seja tratado como um direito autônomo, justamente porque a sua

proteção seria fracionada nos diversos direitos que garantam o bem-estar e a qualidade

de vida”.68

Do ponto de vista ecológico e político, é perfeitamente plausível uma visão abrangente

do sistema ambiental, isto é, uma contemplação integrada do território, água, ar, fauna e

flora, pois um planejamento razoável da política de conservação e melhoria do ambiente

em que a vida humana se desenvolve requer, efetivamente, uma compreensão conjunta e

harmônica da problemática estritamente ambiental e da ordenação do território, em um

esforço conjunto das ciências e dos diferentes setores públicos e privados.

No Direito, todavia, principalmente no Direito Penal, os conceitos devem revestir-se de

contornos bem mais precisos.69

Em suma, se tudo o que se relaciona direta ou indiretamente com a qualidade de vida e

bem-estar dos seres humanos for considerado uma fração de ambiente e, por

consequência, objeto de proteção do Direito Ambiental, em primeira instância, e do

Direito Penal do ambiente no que tange aos atentados mais graves a esse bem jurídico,

66

PRADO, Luiz Regis. Apontamentos sobre o ambiente como bem jurídico-penal. RDA 50/133-158. São

Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2008, p. 153; CARVALHO, Érika Mendes de. O bem jurídico protegido nos delitos

florestais. RT 776/469-481. São Paulo: Ed. RT, jun. 2000, p. 474; PALAZZO, Francesco. Principios

fundamentales y opciones político-criminales en la tutela penal del ambiente en Italia. Revista Penal 4/68-

76. Salamanca, 1997, p. 74. 67

PRADO, L. R., Direito penal do ambiente, p. 106. Nesse sentido, BOLDOVA PASAMAR, M. A.,

Fundamentos de la punición de los delitos urbanísticos en el derecho penal español, p. 85. 68

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental. Parte geral. 2. ed. São Paulo: Ed. RT,

2005, p. 70. 69

MATELLANES RODRÍGUEZ, N. Algunas notas sobre la dificultad de demarcar un espacio de tutela penal

para la ordenación del territorio, p. 61-62.

19

nenhum outro ramo jurídico subsistirá, pois, consoante essa orientação, o bem jurídico

ambiente absorveria todos os demais.70

Por seu turno, o conceito restritivo de ambiente é incompatível com a necessidade de

tutela do bem jurídico em apreço e não se coaduna com a concepção insculpida na Carta

de 1988, que, mesmo não assumindo uma acepção amplíssima, aderiu a um conceito

ontológico de ambiente, melhor explicado por uma compreensão intermédia de meio

ambiente, abrangente dos elementos naturais e de sua relação com o ser humano.71

Por fim, arremata-se que o conteúdo do meio ambiente congrega “a pureza das águas,

da atmosfera, da flora e da fauna, a preservação das áreas florestais e paisagísticas, do

solo agrícola e de outras riquezas naturais”.72

Parte-se, então, de um conceito amplo, porém não globalista ou totalizante, mas

intermediário de ambiente, que não se restringe aos elementos físicos da natureza73

e

tampouco se estende a ponto de enlaçar aspectos que, pela própria realidade, não podem

ser considerados frações do bem jurídico ambiente, como é o caso da ordenação do

território e do patrimônio cultural.

Em se tratando de tutela jurídica do ambiente, especialmente em matéria administrativa,

não raro se encontram referências, mais ou menos amplas, à disciplina urbanística,

como conceitos, distinções, apontamentos sobre zoneamento urbano e ambiental etc.

No bojo da proteção jurídico-penal do ambiente e da ordenação do território, essas

dificuldades não cessam, ao contrário, intensificam-se. Com efeito, em matéria penal, a

necessidade de delimitação precisa do bem jurídico protegido se faz ainda mais

preeminente, como antes esclarecido. Ademais, a função legislativa deve vincular-se à

realidade, o objeto de sua regulação, caso pretenda regular condutas humanas, isto é,

70

Se o conceito de ambiente englobar tudo aquilo que for suscetível de ser relacionado com o conceito de

qualidade de vida, não só o espaço físico propriamente dito estaria abarcado, mas também outros âmbitos

como o social, econômico e psicológico, de modo que “o ambiente se identificaria com o entorno vital

básico do homem, suscetível de ser alterado positiva ou negativamente, a partir de diversos ângulos de

incidência” (GÓMEZ TOMILLO, Manuel. Urbanismo. Función pública y derecho penal. Granada:

Comares, 2000, p. 23-24). Nesse sentido, RODRÍGUEZ LÓPEZ, P., Medio ambiente, territorio, urbanismo y

derecho penal, p. 220. 71

PRADO, L. R., Direito Penal do ambiente, p. 107. Nesse sentido: CARVALHO, Érika Mendes de. Tutela

penal do patrimônio florestal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 1999, p. 133-134; SILVA, Luciana Caetano

da. Fauna terrestre no direito penal brasileiro. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 117-118;

ARMELIN, P. K., op. cit., p. 158-159; PRADO, L. R.; CARVALHO, É. M. de; MELLO NETO, B. S., Aspectos

gerais da tutela pena da ordenação do território nas Leis 6.766/1979 e 9.605/1998, p. 15. 72

DOTTI, René Ariel. A proteção penal do meio ambiente. Curitiba: Instituto dos Advogados do Paraná,

1978, p. 17. 73

Sobre esse ponto, vide POLAINO NAVARRETE, Miguel. La criminalidad ecológica en la legislación penal

española. Política criminal y reforma penal: homenaje a la memoria del Prof. Dr. D. Juan del Rosal.

Madrid: Derecho Reunidas, 1993, p. 858.

20

obrigar o homem em sua consciência, que terá a liberdade de seguir o preceito

normativo ou violá-lo, sujeitando-se, neste caso, à sanção penal correspondente.74

Uma das causas de a doutrina olvidar essas distinções fundamentais reside, certamente,

na própria forma como a lei tratou essas matérias. A Lei 9.605/1998, sob a denominação

“Lei dos Crimes Ambientais”, incorporou no Capítulo V, intitulado “Dos Crimes contra

o Meio Ambiente”, uma seção referente aos “crimes contra o ordenamento urbano e o

patrimônio cultural” (seção IV, arts. 62 a 65).75

A aceitação de uma perspectiva amplíssima decorre de uma análise simplista do

conceito de ambiente, geralmente elaborada pelos estudiosos do Direito Ambiental, em

que as normas – em geral de feição administrativa – não precisam se pautar por critérios

tão rígidos quanto os exigidos para as normas penais incriminadoras, provenientes da

própria característica do Direito Penal, cuja interferência na esfera de liberdade

individual é muito mais contundente que a dos demais ramos do ordenamento jurídico.

Nessa esteira, o Direito Penal verdadeiramente garantista, o único aceitável em um

Estado Democrático de Direito, está respaldado por uma gama de princípios

fundamentais, que não só o diferenciam das demais disciplinas jurídicas, mas também

constituem um obstáculo intransponível a construções típicas que de qualquer modo

ensejem depreciação das garantias individuais diante do poder punitivo estatal.

Não é admissível, de acordo com a concepção de Direito Penal perfilhada neste estudo,

que o ambiente, para fins de proteção criminal, como bem jurídico declaradamente

relevante, seja entendido de forma genérica, imprecisa, abarcante de elementos os mais

absurdos possíveis, como o próprio espaço urbano, as construções, o trabalho (a partir

do qual se criou o “meio ambiente do trabalho”), o patrimônio cultural ou histórico.

Dessa maneira, a invenção doutrinária não terá limites e tudo poderá ser considerado

ambiente. Isso conduziria a uma verdadeira dissipação do bem jurídico ambiente e sua

regulação jurídica se tornaria praticamente impossível.

74

PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes de. Metolologia onto-axiológica e o sentido social

típico da conduta: crítica à doutrina positivista-normativa. RT 839/421-443. São Paulo: Ed. RT, set. 2005,

p. 422-423. 75

“Com efeito, a Lei 9.605/1998 não confere à ordenação do território a autonomia que lhe é própria,

corroborando na verdade um conceito amplíssimo ou globalizante de ambiente, segundo o qual, a

ordenação do território e o patrimônio cultural são partes integrantes do referido conceito. Entretanto,

considera-se que esses bens jurídicos não devem ser fundidos, ainda que intimamente relacionados,

sobretudo em se tratando de uma proteção jurídico-penal cujo arcabouço principiológico,

constitucionalmente garantido, torna imprescindível a delimitação exata e particularizada dos bens

jurídicos protegidos” (PRADO, L. R., Direito penal do ambiente, p. 300-301).

21

Por isso a precisão desse conceito se faz necessária para qualquer ramo jurídico, mas

especialmente para o Direito Penal, em atenção a princípios fundamentais de garantia

inarredáveis como o princípio da legalidade, que veda a indeterminação e a amplitude

excessiva das construções típicas e o da exclusiva proteção de bens jurídicos, uma vez

que, considerando-se o ambiente como tudo, é impossível identificar um bem jurídico

tutelado de forma específica em um tipo penal.

Tal equívoco poderia ter sido evitado caso o legislador optasse por tratar a matéria no

bojo da Parte Especial do Código Penal brasileiro, dividindo em títulos as matérias

versadas sobre cada bem jurídico-penal autônomo, por exemplo, intitulando-se um deles

como “Dos crimes contra a ordenação do território”.

Entende-se, por outro lado, que os delitos contra a ordenação do território e o

patrimônio cultural, não obstante tutelarem bens jurídicos autônomos, podem integrar o

mesmo grupo dos delitos ambientais, cada um pertencendo a um capítulo próprio e

distinto dos demais, pois alguns deles compartilham ao menos o objeto material: o

solo.76

Esse é o modelo adotado pelo Código Penal espanhol (1995), que, no Título XVI,

alberga “los delitos relativos a la ordenación del territorio y la protección del patrimonio

histórico y del medio ambiente” e em seus capítulos subdivide os “delitos sobre la

ordenación del territorio”(Capítulo I, art. 319 e 320), os “delitos sobre el patrimonio

histórico” (Capítulo II, art. 321 a 324), os “delitos contra los recursos naturales y el

medio ambiente” (Capítulo III, art. 325 a 331), os “delitos relativos a la protección de la

flora y fauna” (Capítulo IV, art. 332 a 337).

De sua parte, o legislador penal brasileiro, contrariando a tendência hoje existente em

grande parte dos países, não tem se mostrado inclinado a proceder a uma codificação

das leis penais setoriais;77

ao contrário, a elaboração de leis penais extravagantes de

76

BOLDOVA PASAMAR, M. A., Los delitos urbanísticos, p. 42-43. 77

A essencialidade do bem jurídico ambiente, da ordenação do território e do patrimônio cultural conduz

à discussão referente à localização sistemática das normas incriminadoras, que tutelam esses bens

jurídicos. Nesse passo, em razão da essencialidade dos bens jurídicos em comento, mais correto seria que

estivessem alocados no Código Penal, cujo processo legislativo para alteração é mais dificultoso,

inviabilizando, ao menos em parte, o fenômeno da hipercriminalização (Cf. PRADO, L. R., Direito penal

do ambiente, p. 77 e ss.). Equivocada a referência feita por Érika Pires Ramos à obra de Luiz Regis

Prado, afirmando que este último, em sua obra publicada em 1992, posicionou-se favoravelmente à

inserção dos crimes ecológicos em legislação setorial (RAMOS, Érika Pires. Direito ambiental

sancionador: conexões entre as responsabilidades penal e administrativa. In: KRELL, Andréas J. (org.);

MAIA, Alexandre da. (coord.). A aplicação do direito ambiental no Estado Federativo. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2005, p. 108). O referido autor apresenta na obra mencionada os dois modelos de proteção

legal do ambiente: o unitário, que reúne e integra a legislação penal de preferência no Código Penal, de

modo separado e autônomo; e a tipificação por meio de leis setoriais, denominada legislação de tipo

22

conteúdo criminalizador, isto é, a criação de tipos penais em legislação esparsa, parece,

muitas vezes, ser a vocação primeira do legislador brasileiro.

Se a Lei 9.605/1998 tivesse ao menos a denominação correta e não operasse uma

verdadeira indistinção entre ordenação do território e patrimônio cultural, tratando-os

em uma mesma seção (art. 62 a 65), mais perceptível seria a autonomia desses bens

jurídicos entre si e em relação ao ambiente, facilitando sua precisa e necessária

individualização.

Não carece de importância prática a opção do legislador por uma dessas posturas, pois

isso se refletirá de imediato na consideração do bem jurídico tutelado pelos crimes

contra a ordenação do território existentes, bem como na classificação de tais delitos

quanto à materialidade.

Ora, se a perspectiva adotada pelo legislador é amplíssima ou global, o ambiente

congregará todos os aspectos naturais, culturais, artificiais e urbanos, portanto o bem

jurídico protegido nos delitos contra a ordenação territorial ou contra o patrimônio

cultural deveria ser entendido como o próprio ambiente, com ênfase a valores

urbanísticos, culturais, históricos, paisagísticos etc.

Destarte, ainda a partir dessa percepção, o delito de construção não autorizada que, por

exemplo, não chegue a lesar efetivamente o bem jurídico ambiente, mas o exponha a

perigo, caracterizar-se-á, por óbvio, como um delito de perigo, e não de lesão.78

O mesmo ocorre quanto à tomada de postura em sede doutrinária, uma vez que,

admitindo-se um conceito amplíssimo de ambiente, que reúna elementos artificiais,

naturais, culturais, de trabalho etc., dever-se-ia reconhecer o ambiente como bem

jurídico tutelado pelos delitos contra a ordenação do território, tanto o crime constante

no art. 64 da Lei 9.605/1998, quanto os relativos ao parcelamento do solo urbano (Lei

6.766/1979), ainda que se admita ênfase a determinados elementos, como valores

paisagísticos, culturais etc.

Do exposto se infere que a ordenação do território enquanto bem jurídico-penal atingiu

plena autonomia e substancialidade. Tal bem possui titularidade transindividual e cunho

mosaico. (PRADO, Luiz Regis. Direito penal ambiental: problemas fundamentais. São Paulo: Ed. RT,

1992, p. 35 e 38). Ao final, posiciona-se expressamente contrário à utilização desta última forma de tutela

penal e favorável ao critério unitário: “O posicionamento acima tracejado – critério unitário – permite

obter maior unidade e harmonia, além de superior coordenação, facilitando em muito o conhecimento e a

interpretação dos elementos que compõem a tipologia penal do ambiente” (p. 37); “Não é conveniente,

nem oportuno remeter à legislação extravagante a tutela penal de um bem jurídico essencial como o

ambiente” (p. 39). 78

ACALE SÁNCHEZ, M. Cuestiones claves de los delitos urbanísticos desde una perspectiva comparada.

Revista de Derecho Urbanístico y Medio Ambiente, , p. 95.

23

difuso, é essencial à qualidade de vida e pleno desenvolvimento da personalidade do

homem (caráter relativamente antropocêntrico), logo pode e deve ser tutelado

independentemente de outros bens e valores.79

4.1 O conceito de ordenação territorial enquanto bem jurídico-penal

Em linhas anteriores, delimitou-se um conceito de ordenação territorial, bem como sua

distinção com relação ao urbanismo.

Importa, nesse momento, a necessidade de se reiterar a importância da ordenação do

território enquanto bem jurídico-penal autônomo e dotado de substancialidade própria,

pois, tal como ocorre na tutela do ambiente, é necessário que se determine com precisão

qual bem jurídico é protegido pela norma penal incriminadora.

O motivo dessa afirmação é que a ordenação do território em sentido amplo, para fins

de tutela jurídico-penal, pode padecer de extrema amplitude e incerteza, e, em alguns

delitos, não estaria implicado sequer indiretamente.80

Nesse passo, identificar a ordenação do território como o bem jurídico protegido nas

normas penais incriminadoras albergadas pelos diplomas legislativos referidos, apesar

da ênfase a aspectos tipicamente urbanísticos, culturais, ecológicos, paisagísticos etc.,

supõe reconhecer uma forma de vida que confere especial relevância à potencialização

dos espaços comuns, em detrimento dos individuais, buscando-se o equilíbrio entre

interesses públicos e particulares, partindo-se da concepção do indivíduo – no caso, o

proprietário do solo – enquanto membro da coletividade, que, nessa condição, possui

direto interesse na utilização racional daquele espaço.81

É dizer: a consideração da

ordenação territorial como bem jurídico-penal não se fundamenta em uma concepção

79

PRADO, L. R, Direito penal do ambiente, p. 301-302; PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes

de; MELLO; NETO, Benedicto de Souza. Aspectos Gerais da tutela penal da ordenação do território nas

leis 6.766/79 e 9.605/98: autonomia do bem jurídico-penal ordenação do território. Revista de Ciências

Jurídicas, vol. 3, n. 1, p. 5-29. Maringá: Publicação oficial do Curso de Mestrado em Direito –

Universidade Estadual de Maringá, jan.-jun. 2005, p. 12. 80

LÓPEZ RAMÓN, Fernando. Aspectos administrativos de los delitos urbanísticos. Revista de Derecho

Urbanístico y Médio Ambiente, Madrid, a. XXXI, v. 31, n. 151, p. 53-62, ene./feb. 1997,p.55; ROGRÍGUEZ

LÓPEZ, P., Medio ambiente, territorio, urbanismo y derecho penal, p. 45-46. A ordenação do território em

sentido técnico não se restringe à distribuição física do espaço ou do solo, mas também à planificação

econômica e social desse espaço. Por isso, afirmar que o bem jurídico tutelado é a ordenação do território

constitui excessiva generalização (Cf. LESMES SERRANO, Carlos; ROMÁN GARCÍA, Fernando; JORDÁN DE

URRÍES, Santiago Milans del Bosch y; ORTEGA MARTÍN, Eduardo. Derecho penal administrativo

(ordenación del territorio, patrimonio histórico y medio ambiente). Granada: Comares, 1997, p. 32). 81

ACALE SÁNCHEz, M., Delitos urbanísticos, p. 205-206.

24

individualista, mas, ao contrário, substancialmente coletiva, de necessário equilíbrio – e

não de embate – entre esses interesses.82

Primeiramente, cumpre destacar alguns posicionamentos que, respeitadas as devidas

variações, inclinam-se, de um modo geral, a entender que o bem jurídico tutelado nos

delitos contra a ordenação do território corresponde à legalidade da ordenação do

território ou, de forma mais específica, da normativa urbanística,83

conduzindo a

intervenção penal ao puro descumprimento de normas de cunho administrativo, isto é,

sem qualquer dado adicional apto a respaldar essa peculiar forma de proteção jurídica,

relegando-lhe um papel simplesmente instrumental.84

Tratar-se-ia, portanto, de delitos

de mera desobediência administrativa.85

Conforme afirmado anteriormente, no fundamento ou base das incriminações deve

haver a tutela de bens jurídicos essenciais ao indivíduo e à coletividade. De acordo com

a concepção de bem jurídico-penal aqui perfilhada, não é possível admitir que a garantia

de normas administrativas em sentido amplo (inclusive normas específicas provenientes

da autoridade competente) ou de sua vigência seja entendida como autêntico bem

jurídico. Logo, esses delitos não tutelariam bem jurídico algum, mas a própria norma,

82

Interessante destacar a posição doutrinária que, partindo de um conceito mais amplo de urbanismo,

compreende o bem jurídico tutelado nos delitos em referência como sendo o próprio urbanismo,

entendido este último como um setor da ordenação territorial que vem a cumprir as seguintes funções: “a)

criação, manutenção e melhoria dos núcleos de população; b) ordenação e gestão jurídica das atividades

de planejamento territorial, regime do solo, execução de construções e edificações etc.; c) e isso com a

finalidade específica de tornar possível a vida em comum dos homens em uma sociedade urbana”

(RODRÍGUEZ LÓPEZ, P., Medio ambiente, territorio, urbanismo y derecho penal, p. 94). como se vê, o fato

do urbanismo e, de conseguinte, o direito urbanístico, não se restringir exclusivamente às margens da

zona urbana propriamente dita, ele possui um âmbito de atuação mais pontual e local que a ordenação

territorial. 83

LÓPEZ RAMÓN, F. op. cit., p. 54; destacando o posicionamento de López Ramón, mas não tomando

posição de forma cabal a esse respeito: ROMERO REY, Carlos. Interrelaciones entre la protección penal y

la protección administrativa de la ordenación del territorio, p. 106. No sentido do texto: CARMONA

SALGADO, C. Delitos sobre la ordenación del territorio y la protección del patrimonio histórico, p.18;

BETRÁN ABADÍA, R, et al; CORVINOS BASECA, P.; FRANCO HERNÁNDEZ, Y. Los nuevos delitos sobre

ordenación del territorio y la disciplina urbanística, p. 24; Gómez Tomillo, de seu turno, não entende que

o bem jurídico tutelado seja a normativa em matéria de ordenação territorial, que possuiria uma existência

independente da verificação de condutas infratoras, mas sim a adequação a essa normativa das condutas

realizadas pelos agentes que intervêm na conformação do território, a legalidade de suas atuações

(GÓMEZ TOMILLO, M. Estado actual de la discusión en torno a los delitos sobre la ordenación del

territorio: la construcción y edificación ilegal, p. 47. Mediante abordagem diversa, propugna-se que o

bem jurídico é a utilização correta do solo, assim qualificada pelas previsões da normativa urbanística, ou

seja “a utilização do território que se adeque ao regime previamente concebido pelo legislador

constitucional, previamente definido pelo legislador ordinário e, se for o caso, previamente concretizado

pela autoridade administrativa competente para isso, por ter sido assim habilitada pelo legislador”

(LESMES SERRANO, C. et. al., op. cit., p. 32-33). 84

BOLDOVA PASAMAR, M. A., Los delitos urbanísticos, p. 85; Idem, Fundamentos de la punición de los

delitos urbanísticos, p. 83; SILVA SÁNCHEZ, J.-M., ¿Política criminal “moderna”? Consideraciones a

partir del ejemplo de los delitos urbanísticos en el nuevo Código Penal español, p. 11. 85

MATELLANES RODRÍGUEZ, N., Algunas notas sobre la dificultad de demarcar un espacio de tutela penal

para la ordenación del territorio, p. 65.

25

consequência inconcebível em um Direito Penal que se pretenda democrático e

garantista, de acordo com os parâmetros delineados pelo Estado Democrático de

Direito.

Outra proposição doutrinária afirma que o bem jurídico tutelado nos crimes contra a

ordenação territorial é o “normal cumprimento das normas administrativas para o uso

racional do solo”.86

Nesse caso, deve-se ter em conta que o bem jurídico não é

propriamente o sistema administrativo (as normas de ordenação territorial) de utilização

racional e distribuição das finalidades do solo, mas esse sistema “racionalmente

interpretado e submetido ao adequado controle judicial”.87

Por outro lado, a partir de uma perspectiva de integração ou equilíbrio entre o exercício

do direito de propriedade e o interesse da coletividade, sustenta-se que o sentido da

tutela da ordenação territorial seja “a promoção do conteúdo social do direito de

propriedade, com aproveitamento por parte da coletividade dos benefícios gerados: para

que existam zonas verdes, vias, bens de interesse comunitário, é preciso que todos os

proprietários participem desse trabalho, não tanto cedendo parte de seu direito de

propriedade à comunidade, mas deixando de apropriarem-se da parte social de um

direito que não lhes pertence”.88

Todavia, essa proposta não contempla, ou pelo menos não esclarece, hipóteses fáticas

em que o objeto material do delito urbanístico seja o solo de domínio público.

Considerando-se que o “conteúdo social” do direito de propriedade deve ser

regulamentado por meio de disposições normativas, o que se tutela, na verdade, é a ação

da Administração Pública de limitar o direito de propriedade a favor da coletividade,

com base em diretrizes legais.89

Além disso, a exagerada amplitude da função social da propriedade impede sua

caracterização como autêntico bem jurídico-penal; sua identificação dependerá de uma

série de fatores, circunstâncias, âmbitos, possibilidades e necessidades práticas tão

variáveis que dificilmente será possível precisar com clareza qual é essa função.90

86

VERCHER NOGUERA, A., op. cit., p. 58. 87

Idem, p. 59. 88

ACALE SÁNCHEZ, M., Delitos urbanísticos, p. 208; VERCHER NOGUERA, A., op. cit., p. 56. 89

GÓMEZ TOMILLO, M., Estado actual de la discusión en torno a los delitos sobre la ordenación del

territorio: la construcción y edificación ilegal, p. 46-47. 90

VERCHER NOGUERA, A., op. cit., p. 57.

26

De outra parte, afirma-se que o bem jurídico tutelado nos delitos de construção ilegal

constantes no Código Penal espanhol91

não é a função social da propriedade, mas a

função social do solo, seja este público ou privado.92

A função social do solo deve ser

entendida como finalidade de sua utilização ou aproveitamento racionais, e se

expressará na consecução de uma distribuição equilibrada das atividades humanas sobre

o território e na redução dos desequilíbrios regionais.

Nessa perspectiva, convém destacar que o conceito de ordenação do território para sua

delimitação enquanto bem jurídico-penal deve ser mais que o seu conceito como

“função pública” de correção dos desequilíbrios regionais, devendo ser entendido como

uma finalidade perquirida pelos diversos segmentos da Administração e da sociedade

em geral de proteção das funções sociais associadas ao solo.93

Assim, por meio dessa assertiva não se preconiza a mera tutela de função94

e o conceito

de ordenação do território enquanto bem jurídico-penal é perfeitamente compatível com

um Direito Penal garantista, o único aceito em um autêntico Estado Democrático de

Direito.

5. CONCLUSÕES PRINCIPAIS

É indubitável a relevância da ordenação territorial como a utilização ou aproveitamento

racional do solo (urbano ou não) para a vida digna do homem e o desenvolvimento de

todas as suas potencialidades.

Impõe-se, então, sua tutela pela lei penal, de forma restrita e cuidadosa, em absoluto

respeito aos princípios penais fundamentais.

A ordenação do território deve ser entendida como o desenvolvimento das atividades

humanas em determinado espaço geográfico (urbano ou rural) e abrange finalidades

igualmente mais amplas, tais como a harmonização daquelas atividades, o

desenvolvimento equilibrado entre as regiões e a distribuição racional das atividades

econômicas no território.

91

Essa comparação é feita unicamente com o fim de elucidar os posicionamentos da doutrina espanhola,

que abundantemente discorre sobre esse tema, acerca do sentido ou conteúdo do bem jurídico “ordenação

do território”. 92

BOLDOVA PASAMAR, M. A., Fundamentos de la punición de los delitos urbanísticos, p. 88. 93

Idem, Los delitos urbanísticos, p. 95. 94

A função em si “é uma operação ou relação axiologicamente neutra, correspondente a alguma coisa (a

um elemento qualquer). Não se confunde, portanto, com a ideia de bem jurídico, já analisada, como

entidade dotada de substância real e peculiar, valorada e adstrita ao homem como ser social. Assinala-se,

corretamente, que o bem jurídico não é apenas objeto de referência, mas também de preferência, visto que

neste último aspecto consubstancia um valor, um sentido” (PRADO, L. R., Bem jurídico-penal e

Constituição, p. 49-50).

27

Trata-se de um bem jurídico substancialmente autônomo, constitucionalmente

reconhecido e merecedor de tutela penal, de natureza transindividual, de cunho difuso,

que não se confunde com outros bens jurídicos cujo valor venha a lhe dar sustentação,

especialmente o ambiente.

Sustenta-se, pois, uma concepção sistemática diferenciadora dos bens jurídicos penais

ordenação do território, ambiente e patrimônio cultural, em sintonia com os ditames da

moderna ciência do Direito Penal.