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    (RE)APRENDENDO A OLHAR

    A cincia no corresponde a um mundo a descrever.

    Ela corresponde a um mundo a construir. "

    Bachelard

    O objetivo principal deste livro ensinar o "olhar cientfico" e mostrar que apesquisa no se reduz a certos procedimentos metodolgicos. A pesquisa cientficaexige criatividade, disciplina, organizao e modstia, baseando-se no confronto

    permanente entre o possvel e o impossvel, entre o conhecimento e a ignorncia.Nenhuma pesquisa totalmente controlvel, com incio, meio e fim previsveis. A

    pesquisa um processo em que impossvel prever todas as etapas. O pesquisador estsempre em estado de tenso porque sabe que seu conhecimento parcial e limitado - o"possvel" para ele.

    No meu entender, no existe um nico modelo de pesquisa. Neste livro

    apresentarei um dos caminhos possveis: o caminho que tenho buscado seguir. Assim,quando falo de Metodologia estou falando de um caminho possvel para a pesquisacientfica. O que determina como trabalhar o problema que se quer trabalhar: s seescolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar.

    Anteriormente as cincias se pautavam em um modelo quantitativo de pesquisa,em que a veracidade de um estudo era verificada pela quantidade de entrevistados.Muitos pesquisadores, no entanto, questionam a representatividade e o carter deobjetividade de que a pesquisa quantitativa se revestia. preciso encarar o fato de que,mesmo nas pesquisas quantitativas, a subjetividade do pesquisador est presente. Naescolha do tema, dos entrevistados, no roteiro de perguntas, na bibliografia consultada ena anlise do material coletado, existe um autor, um sujeito que decide os passos aserem dados. Na pesquisa qualitativa a preocupao do pesquisador no com arepresentatividade numrica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento dacompreenso de um grupo social, de uma organizao, de uma instituio, de umatrajetria etc. Neste livro irei me deter na pesquisa qualitativa, na qual venhotrabalhando desde 1988.

    bom lembrar que ns, estudiosos brasileiros, estamos pouco acostumados aoverdadeiro debate de idias. Entendemos como ataques pessoais muitas crticas que

    podem contribuir para o amadurecimento de nosso trabalho. A socializao dopesquisador exige um exerccio permanente de crtica e autocrtica. Espero encontrarleitores-alunos dispostos a viver intensamente esta experincia decisiva: a de expor seus

    trabalhos a uma crtica permanente.Este livro , na verdade, um difcil (e espero prazeroso) desafio: um exerccio paraaprender a pensar cientificamente, com criatividade, organizao, clareza e, acima detudo, sabor.

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    PESQUISA QUALITATIVA EM CINCIAS SOCIAIS

    Ao se pensar nas origens da pesquisa qualitativa em cincias sociais, corre-se orisco de se perder num caminho longo demais, que procurando as origens das origensno chega jamais ao fim. Poderia chegar a Herdoto, que, descrevendo a guerra entre a

    Prsia e aGrcia, se dedicou a esboar os costumes, as vestimentas, as armas, os barcos, ostabus alimentares e as cerimnias religiosas dos persas e povos circunvizinhos.

    No pretendo fazer um caminho to longo mas, para situar a questo da utilizaode tcnicas e mtodos qualitativos de pesquisa nas cincias sociais dentro de umadiscusso filosfica mais ampla, acredito ser importante elucidar o debate entre asociologia positivista e a sociologia compreensiva.

    Os pesquisadoras que adotam a abordagem qualitativa em pesquisa se opem aopressuposto que defende um modelo nico de pesquisa para todas as cincias, baseadono modelo de estudo das cincias da natureza. Estes pesquisadores se recusam alegitimar seus conhecimentos por processos quantificveis que venham a se transformar

    em leis e explicaes gerais. Afirmam que as cincias sociais tm sua especificidade,que pressupe uma metodologia prpria.

    Os pesquisadores qualitativistas recusam o modelo positivista aplicado ao estudoda vida social. O fundador do positivismo, Augusto Comte (1798-1857), defendia aunidade de todas as cincias e a aplicao da abordagem cientfica na realidade socialhumana. Com base em critrios de abstrao, complexidade e relevncia prtica, Comteestabeleceu uma hierarquia das cincias, em que a matemtica ocupava o primeirolugar, e a sociologia ou "fsica social", o ltimo, precedida, em ordem decrescente, daastronomia, fsica, qumica e biologia. Para Comte, cada cincia dependia dodesenvolvimento da que a precedeu. Portanto, a sociologia no poderia existir sem a

    biologia, que no poderia existir sem a qumica, e assim por diante.Nesta perspectiva, na qual o objeto das cincias sociais deve ser estudado tal qual

    o das cincias fsicas, a pesquisa uma atividade neutra e objetiva, que busca descobrirregularidades ou leis, em que o pesquisador no pode fazer julgamentos nem permitirque seus preconceitos e crenas contaminem a pesquisa.

    mile Durkheim (1858-1917), preocupado, como Comte, com a ordem nasociedade e com a primazia da sociedade sobre o indivduo, tambm se posicionou afavor da unidade das cincias. Tomando "os fatos sociais como coisas", Durkheimdefendia que o social real e externo ao indivduo, ou seja, o fenmeno social, como ofenmeno fsico, independente da conscincia humana e verificvel atravs daexperincia dos sentidos e da observao.

    Durkheim acreditava que os fatos sociais s poderiam ser explicados por outrosfatos sociais, e no por fatos psicolgicos ou biolgicos, como pretendiam algunspensadores de seu tempo. Defendendo a viso da cincia social como neutra e objetiva,na qual sujeito e objeto do conhecimento esto radicalmente separados, Durkheim teveuma influncia decisiva para que as cincias sociais tenham adotado o mtodo cientficodas cincias naturais.

    Na segunda metade do sculo passado, alguns pensadores, influenciados peloidealismo de Kant, reagiram criticamente ao modelo positivista de conhecimentoaplicado s cincias sociais, acreditando que o estudo da realidade social atravs demtodos de outras cincias poderia destruir a prpria essncia desta realidade, j queesquecia a dimenso de liberdade e individualidade do ser humano.

    A sociologia compreensiva, que tem suas razes no historicismo alemo,distinguindo "natureza" de "cultura", considera necessrio, para estudar os fenmenos

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    sociais, um procedimento metodolgico diferente daquele utilizado nas cincias fsicase matemticas. O filsofo alemo Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi um dos primeiros acriticar o uso da metodologia das cincias naturais pelas cincias sociais, em funo dadiferena fundamental entre os objetos de estudos das mesmas. Nas primeiras, oscientistas lidam com objetos externos passveis de serem conhecidos de forma objetiva,

    enquanto nas cincias sociais lidam com emoes, valores, subjetividades. Estadiferena se traduz em diferenas nos objetivos e nos mtodos de pesquisa. ParaDilthey, os fatos sociais no so suscetveis de quantificao, j que cada um deles temum sentido prprio, diferente dos demais, e isso torna necessrio que cada caso concretoseja compreendido em sua singularidade. Portanto, as cincias sociais devem se

    preocupar com a compreenso de casos particulares e no com a formulao de leisgeneralizantes, como fazem as cincias naturais.

    Por meio de dois conceitos, Dilthey diferenciou o mtodo das cincias naturais -erklaren -, que busca generalizaes e a descoberta de regularidades, do das cinciassociais verstehen -, que visa compreenso interpretativa das experincias dosindivduos dentro do contexto em que foram vivenciadas.

    O maior representante da chamada sociologia compreensiva Max Weber (1864-1920), que se apropriou da idia de verstehen proposta por Dilthey. Para Weber, o

    principal interesse da cincia social o comportamento significativo dos indivduosengajados na ao social, ou seja, o comportamento ao qual os indivduos agregamsignificado considerando o comportamento de outros indivduos. Os cientistas sociais,que pesquisam os significados das aes sociais de outros indivduos deles prprios, sosujeito e objeto de suas pesquisas. Nesta perspectiva, que se ope viso positivista deobjetividade e de separao radical entre sujeito e objeto da pesquisa, natural quecientistas sociais se interessem por pesquisar aquilo que valorizam. Estes cientistas

    buscam compreender os valores, crenas, motivaes e sentimentos humanos,compreenso que s ode ocorrer se a ao colocada dentro de um contexdesignificado.

    Esta discusso filosfica mais geral, que difere nas cincias sociais das demaiscincias, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento das tcnicas todosqualitativos de pesquisa social.

    Frdric Le Play, contemporneo de Comte, foi um primeiros a estudar arealidade social dentro de uma perspectiva cientfica que considerava a observaodireta, controlvel e objetiva da sociedade como o mtodo mais adequado pesquisasocial. Em La Rforme Sociale en France (1864), Le Play expe o mtodo dasmonografias, que se caracteriza por ser uma tcnica, ordenada e metdica, deobservao direta da sociedade. Trouxe de sua experincia de mineralogista, na qual

    estava habituado a colher amostras de jazidas para serem analisadas, a preocupao deobservar diretamente e analisar sistematicamente as famlias operrias localizadas nosdiferentes pases da Europa onde pesquisou. De seus registros minuciosos e ordenadosresultou um conjunto de monografias reunidas emLes ouvriers europens (1855).

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX, os estudos dos antroplogos nassociedades "primitivas" foram determinantes para o desenvolvimento das tcnicas de

    pesquisa que permitem recolher diretamente observaes e informaes sobre a culturanativa. As sociedades estudadas diretamente por esses antroplogos so sociedades semescrita, longnquas, isoladas, de pequenas dimenses, com reduzida especializao dasatividades sociais, sendo classificadas como "simples" ou "primitivas" em contraste coma organizao "complexa" das sociedades dos pesquisadores.

    O primeiro antroplogo a conviver com os nativos foi o americano Lewis HenryMorgan, um dos mais expressivos representantes do pensamento evolucionista. Jurista

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    de formao, em 1851 publicou The League of Ho-d-no-sau-nee, or Iroquois,considerado o primeiro tratado cientfico de etnografia. Mas foram os trabalhos decampo de Franz Boas, entre 1883 e 1902, e, particularmente, a expedio de Bronislaw

    Malinowski s ilhas Trobriand, que consagraram a idia de que os antroplogosdeveriam passar um longo perodo de tempo na sociedade que esto estudando para

    encontrar e interpretar seus prprios dados, em vez de depender dos relatos dosviajantes, como faziam os "antroplogos de gabinete".Nos primeiros trinta anos do sculo XX, o trabalho de campo passou a orientar as

    pesquisas antropolgicas. Boas, um gegrafo de formao, crtico radical dosntroplogos evolucionistas, ensinou que no campo tudo deveria ser anotadometiculosamente e que um costume s tem significado se estiver relacionado ao seucontexto particular. Ensinou tambm o "relativismo cultural": o pesquisador deveriaestudar as culturas com um mnimo de preconceitos etnocntricos. Para Boas, o queconstitui o "gnio prprio" de um povo repousa sobre as experincias individuais e,

    portanto, o objetivo do pesquisador compreender a vida do indivduo dentro daprpria sociedade em que vive. Boas foi o grande mestre da antropologia americana na

    primeira metade do sculo XX. Formou toda uma gerao de antroplogos, como RalphLinton, Ruth Benedict e Margaret Mead, considerados representantes da antropologiacultural americana, que utilizam mtodos e tcnicas de pesquisa qualitativa somados amodelos conceituais prximos da psicologia e da psicanlise1.

    A primeira experincia de campo de Malinowski foi em 1914, entre os mailu naMelansia. Impedido de voltar Inglaterra, no incio da Primeira Guerra Mundial, elecomeou sua pesquisa nas ilhas Trobriand, de 1915 a 1916, retornando em 1917 parauma estada de mais um ano. Esta longa convivncia com os nativos teve uma influnciadecisiva na inovao do mtodo de pesquisa antropolgica. Argonauts of the WesternPacific, publicado em 1922, um verdadeiro tratado sobre o trabalho de campo. Aconvivncia ntima com os nativos passou a ser considerada o melhor instrumento deque o antroplogo dispe para compreender "de dentro" o significado das lgicas

    particulares caractersticas de cada cultura. Malinowski demonstrou que ocomportamento nativo no irracional, mas se explica por uma lgica prpria que

    precisa ser descoberta pelo pesquisador. Colocou em prtica a observao participante,criando um modelo do que deve ser o trabalho de campo: o pesquisador, atravs de uma

    estada de longa durao, deve mergulhar profundamente na cultura nativa,impregnando-se da mentalidade nativa. Deve viver, falar, pensar e sentir como osnativos.

    Malinowski, considerado o pai do funcionalismo, acreditava que cada cultura temcomo funo a satisfao das necessidades bsicas dos indivduos que a compem,

    criando instituies capazes de responder a estas necessidades. A anlise funcionalconsiste emanalisar todo fato social do ponto de vista das relaes de interdependncia que

    ele mantm, sincronicamente, com outros fatos sociais no interior de uma totalidade. Aconduta de observao etnogrfica, assim como a apresentao dos resultados sob aforma mono grfica, obedecem aos pressupostos do mtodo funcional.

    Grande parte da renovao das cincias sociais se deve s influncias (diretas ouindiretas) dos mtodos de pesquisa de Malinowski. Argonauts of the Western Pacific

    1 A expresso "culturalismo" ou "teoria culturalista da personalidade" foi empregada pela primeira

    vez nos anos 50 para se referir s pesquisas americanas sobre as relaes entre cultura epersonalidade. As primeiras I "tas pesquisas remontam aos anos 30 e 40 (Mead, 1928; Benedict,1935; Linton, 1945).

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    provocou uma verdadeira ruptura metodolgica na antropologia priorizando aobservao direta e a experincia pessoal do pesquisador no campo.

    Malinowski sugeriu trs questes para o trabalho de campo: o que os nativosdizem sobre o que fazem? O que realmente fazem? O que pensam a respeito do quefazem?

    Por meio do contato ntimo com a vida nativa, exaustivamente registrado nodirio de campo, Malinowski buscou as respostas destas questes preocupando-se emcompreender o ponto de vista nativo.

    Para Malinowski, a antropologia era o estudo sendo o qual compreendendo o"primitivo" poderamos chegar a compreender melhor a ns mesmos. A rica exrinciade campo de Malinowski, assim como suas propostas metodolgicas, influenciaramdecisivamente aplicao de tcnicas e mtodos de pesquisa qualitativa em cinciassociais. '

    Na dcada de 1970, surge nos EUA, inspirada na idia weberiana de que aobservao dos fatos sociais deve levar compreenso (e no a um conjunto de leis), aantropologia interpretativa. Um dos principais representantes u abordagem

    interpretativa Clifford Geertz, que prope um modelo de anlise culturalhermenutico: o antroplogo deve fazer uma descrio em profundidade (descrodensa) das culturas como textos vividos, como teias de significados que devem serinterpretados. De acordo com Geertz, os "textos" antropolgicos o interpretaes sobreas interpretaes nativas, j que ) nativos produzem interpretaes de sua prpriaexperiencia. Tais textos so "fices", no sentido de que so fices, (no falsos ouinventados). Esta perspectiva se traduz em um permanente questionamento doantroplogo a respeito dos limites de sua capacidade de conhecer o grupo que estuda ena necessidade de expor, em seu texto, suas dvidas, perplexidades e os caminhos quelevaram a sua interpretao, percebida sempre como parcial e provisria.

    Geertz inspirou a tendncia atual da chamada antropologia reflexiva ou ps-interpretativa, que prope uma reflexo a respeito do trabalho de campo nos seusaspectos morais e epistemolgicos. Esta, antropologia questiona a autoridade do textoantropolgico e prope que o resultado da pesquisa no seja fruto da observao pura esimples, mas de um dilogo e de uma negociao de pontos de vista, do pesquisador e

    pesquisados.

    A ESCOLA DE CHICAGO E A PESQUISA QUALITATIVA

    A Universidade de Chicago surgiu em 1892 e em 1910 o seu departamento desociologia e antropologia tornou-se o principal centro de estudos e de pesquisas

    sociolgicas dos EUA. Em 1930, o termo Escola de Chicago foi utilziado pelo primeiravez por Luther Bernard, em Schools of sociology. Por este termo, designa-se umconjunto de pesquisas realizadas, a partir da perspectiva interacionista, particularmentedepois de 19152 na cidade de Chicago. Um de seus traos marcantes a orientaomultidisciplinar, envolvendo, principalmente, a sociologia, a antropologia, a ciencia

    politica, a psicologia e a filosofia. O departamento de sociologia e antropologia daUniversidade de Chicago esteve unido at 1929, o que sugere que as pesquisasetnogrficas contriburam para dar legitimidade s tcnicas e mtodos qualitativos na

    pesquisa sociologia em grandes centros urbanos.J desde o final do sculo XIX, o interacionismo simblico3 exercia uma profunda

    influncia sobre a sociologia de Chicago, atravs da presena de George Herbert Mead e

    2Aps 1935, acentuou-se o conflito entre uma sociologia quantitativista, que viria a se tornardominante nos EUA, e a sociologia qualitativa que se produzia na Escola de Chicago.

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    do filsofo americano John Dewey. Dewey, que lecionou em Chicago de 1894 at 1904,trouxe para o interacionismo o pragmatismo, uma filosofia de interveno social que

    postula que o pesquisador deve estar envolvido com a vida de sua cidade e se interessarpor sua transformao social.

    Mead, considerado o arquiteto da perspectiva interacionista, lecionou na

    Universidade de Chicago do final do sculo passado at 1931. Sua perspectiva tericafortemente marcada pela influncia da psicologia social e de Georg Simmel, que trouxepara a sociologia a filosofia de Kant, apresentada em Mind, Self and Society4.

    Para Mead, a associao humana surge apenas quando cada indivduo percebe ainteno dos atos dos outros e, ento, constri sua prpria resposta em funo destainteno. Tais intenes so transmitidas por meio de gestos que se tornam simblicos,ou seja, passveis de serem interpretados. A sociedade humana se funda em sentidoscompartilhados sob a forma de compreenses e expectativas comuns. O componentesignificativo de um ato acontece atravs do role-taking: o indivduo deve se colocar nolugar de outro. Ao afirmar que o indivduo possui um self, Mead enfatiza que, damesma forma que interage socialmente com outros indivduos, ele interage consigo

    mesmo. O self representa o outro incorporado ao indivduo. formado atravs dasdefinies feitas por outros que serviro de referencial para que o indivduo possa ver a

    si mesmo.

    Enfatizando a natureza simblica da vida social, Mead postula que so asatividades interativas dos indivduos que produzem as significaes sociais. Umaconsequncia importante deste postulado que o pesquisador s pode ter acesso a essesfenmenos particulares, que so as produes sociais significantes dos indivduos,quando participa do mundo que se prope estudar. O interacionismo simblico, aocontrrio da concepo durkheimiana que defende que as manifestaes subjetivas no

    pertencem ao domnio da sociologia, afirma que a concepo que os indivduos tmdo mundo social que constitui o objeto essencial da pesquisa sociolgica.

    O interacionismo simblico destaca a importncia do indivduo como intrprete domundo que o cerca e, consequentemente, desenvolve mtodos de pesquisa que

    priorizam os pontos de vista dos indivduos. O propsito destes mtodos compreenderas significaes que os prprios indivduos pem em prtica para construir seu mundosocial. Como a realidade social s aparece sob a forma de como os indivduos vem estemundo, o meio mais adequado para captar a realidade aqueleque propicia ao pesquisador ver o mundo atravs "dos olhos dos pesquisados".

    A pesquisa da Escola de Chicago tem a marca do desejo de produzirconhecimentos teis para a soluo de problemas sociais concretos que enfrentava acidade de Chicago. Grande parte de seus estudos refere-se os problemas da imigrao eda integrao dos imigrantes sociedade americana, delinquncia, criminalidade,desemprego, pobreza, minorias e relaes raciais.

    Devido sua forte preocupao emprica, uma das contribuies mais importantesda escola de Chicago foi o desenvolvimento de mtodos originais de pesquisaqualitativa: a utilizao cientfica de documentos pessoais, como cartas e diriosntimos, a exploraco de diversas fontes documentais e o desenvolvimento do trabalhode campo sistemtico na cidade.

    3Em 1937 Blumer criou o termo interacionismo simblico e sistematizou seus pressupostos bsicosem Symbolic Interactionism, Perspective and Method, onde discute os mais importantes aspectos da

    interaao simblica tentando ser fiel ao pensamento de Mead.4Mead no publicou, em vida, uma obra sobre a sua teoria? Seus quatro livros foramorganizados, aps a sua morte em 1931, a partir de palestras, aulas, notas e manuscritos.

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    O estudo de W. I. Thomas e F. Znanlecki, sobre a vida social dos camponesespoloneses nos EUA, um timo exemplo da sociologia praticada pela Escola deChicago. The Polish Peasant iti Europe and America (1918-1920) um estudo daemigrao da emigrao de camponeses poloneses e dos seus problemas. de assimilaonos EUA. Os dois pesquisadores reuniram dados coletados na Polnia e nos Estados

    Unidos: artigos de Jornais dirios, arquivos de tribunais e de associaes americano-polonesas, fichrios de associao de assistncia social, cartas trocadas entre famliasque viveram nos Estados Unidos e na Polnia, alm do longo relato autobiogrfico deum imigrante polons.

    Thomas e Znaniecki dedicaram todo um volume de The Polish Peasant5 a umaautobiografia escrita por um imigrante polons em Chicago. Essa autobiografia foicotejada com outras fontes, como cartas familiares, jornais dirios e arquivos.Aplicando um dos princpios do interacionismo simblico, os dois pesquisadoresacreditavam que atravs do registro da vida de um imigrante poderiam penetrar ecompreender por dentro" o seu mundo.

    Grande parte da produo da Escola de Chigago foi orientada por Robert Park,

    que, antes de se tornar professor de sociologia em Chicago de 1914 a 1933, foi durantevrios anos, jornalista, atividade que influenciou seus mtodos de pesquisa e de seusdiscpulos. Park considerava a cidade como o laboratrio de pesquisas sociolgicas porexcelncia.

    Muitas pesquisas de Chicago voltaram-se para um problema candente nos EUA:os conflitos tnicos e as tenses raciais. Pesquisas sobre as comunidades de imigrantes,sobre os conflitos raciais entre brancos e negros, sobre criminalidade, desvio edelinqncia juvenil, tornaram a sociologia de Chicago famosa em todo o mundo.

    Frederic Thrasherpublicou, em 1923, sua tese de doutorado sobre as gangues deChicago. John Landesco publicou, em 1929, uma obra-com uma vasta pesquisa sobre acriminalidade de Chicago, a partir de histrias de vida de gngsteres. Uma das obrasmais famosas da Escola de Chicago, The Jack-Roller: A delinquent boy's own story,

    publicada em 1930, baseada na histria de vida de um jovem delinquente de dezesseisanos, Stanley, que Clifford Shaw acompanhou durante seis anos, dentro e fora da priso.Logo depois, em 1931, Shaw publicou The natural history of a delinquent career, sobre

    m adolescente acusado de estupro. Em 1937, Edwin utherland publicou umestudo, baseado no relato autobiogrfico de um ladro profissional, sobre sua vidacotidiana e suas diferentes prticas (roubo, estelionato, fraude, extorso etc.). Estesestudos demonstram a preocupao dos pesquisadores de Chicago em analisar os graves

    problemas enfrentados pela cidade a partir do ponto de vista dos indivduos que sovistos socialmente como os principais responsveis.

    The Polish Peasant, em 1918-1920, inaugurou o perodo mais expressivo dasociologia qualitativa de Chicago, que, em 1949, com a publicao de Theamericansoldier, de Samuel Stouffer, deu lugar a um perodo de crescente utilizao detcnicas de pesquisa quantitativa na sociologia americana. Stouffer, desde 1930,defendia a estatstica como um mtodo de pesquisa mais eficaz e mais cientfico do quea histria de vida ou o estudo de caso.

    Apesar da importncia e originalidade das pesquisas qualitativas da Escola deChicago, no se pode deixar de lado suas pesquisas quantitativas. Em 1929, Shaweoutros pesquisadores publicaram uma obra sobre a delinquncia urbana em querecensearam cerca de 60 mil domiclios de "vagabundos, criminosos e delinquentes" deChicago, para demonstrar as taxas de criminalidade em diferentes bairros.

    5The Polish Peasant in Europe and America tem mais de 2.200 pginas, distribudas em cincovolumes.

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    E. Burgess, um dos nomes mais representativos da Escola de Chicago, apontava,em 1927, que os mtodos da estatstica e dos estudos de caso no so conflitivos masmutuamente complementares e que a interao dos dois mtodos poderia ser muitofecunda. Afirmava que as comparaes estatsticas poderiam sugerir pistas para a

    pesquisa feita com estudos de caso, e que estes poderiam, trazendo luz os processos

    sociais, conduzir a indicadores estatsticos mais adequados. preciso destacar que a sociologia da Escola de Chicago abriu caminhos para asociologia como um todo, principalmente no que diz respeito utilizao de mtodos etcnicas de pesquisa qualitativa. O trabalho de campo tornou-se uma prtica de pesquisacor- rente tambm na sociologia e no apenas na antropologia. Tambm proporcionouvrios temas de pesquisa sociologia contempornea e desenvolveu novas correntestericas, como as teorias do rtulo e do desvio. Dentre os estudos mais representativosdesta corrente esto os de Howard Becker e Erving Goffman. Outsiders: studies in thesociology of deviance (1963), de Howard Becker, sobre msicos profissionais fumantesde maconha, discute os processos pelos quais os desviantes so definidos como tais pelasociedade que os cerca, mais do que pela natureza do ato que praticam. The Presentation

    of Self in Everyday Life (1959), de Goffman, analisa os "desempenhos teatrais" dosatores sociais em suas aes do dia-a-dia.

    A Escola de Chicago abriu caminho para correntes tericas que, mesmo nopodendo ser diretamente associadas a ela, no deixam de apresentar certa influncia desua abordagem metodolgica, como a fenomenologia sociolgica e a etnometodologia.A primeira busca sua fundamentao na filosofia de Husserl, que faz uma crtica radicalao objetivismo da cincia. O argumento de Husserl o mesmo de W. Dilthey e MaxWeber: os atos sociais envolvem uma propriedade - o significado - que no est

    presente em outros setores do universo abarcados pelas cincias naturais. Proceder auma anlise fenomenolgica substituir as construes explicativas pela descrio doque se passa efetivamente do ponto de vista daquele que vive a situao concreta. Afenomenologia quer atingir a essncia dos fenmenos, ultrapassando suas aparnciasimediatas. O pensamento fenomenolgico traz para o campo de estudo da sociedade omundo da vida cotidiana, onde o homem se situa com suas angstias e preocupaes. Aetnometodologia apia-se nos mtodos fenomenolgicos e hermenuticos com oobjetivo de compreender o dia-a-dia do homem comum na sociedade complexa. HaroldGarfinkel estabeleceu as bases metodolgicas e o quadro conceitual da etnometodologiaem Studies in Ethnomethodology, publicado em 1967 nos EUA. Garfinkel define suateoria como uma forma de compreender a prtica artesanal da vida cotidiana,interpretada j numa primeira instncia pelos atores sociais. A etnometodologia procuradescobrir as prticas e representaes segundo as quais as pessoas negociam,

    cotidianamente, a sua insero nos grupos. A sociologia de Garfinkel repousa sobre oreconhecimento da capacidade reflexiva e interpretativa de todo ator social. Estas duasescolas, a fenomenologia e a etnometodologia, inserem-se na tradio metodolgicaqualitativa ao tentar ver o mundo atravs dos olhos dos atores sociais e dos sentidos queeles atribuem aos objetos e s aes sociais que desenvolvem.

    Fonte:GOLDENBERG, Miriam, A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa emCincias Sociais. 3 ed. Rio de Janeiro. Record, 1999.

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