RC&MA ed43 - 04fev · cificamente o duo homem-animal. Para o professor de filosofia Clau-dio...

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  • Nº 43 – 2013– ANO VIIICapa: Lawrence Berkley NtLab

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    Pós-humanismo: o ser humano e o animal se hospedam um ao outroA idéia fundamental do pós-humanismo - empenhado na compreensão profunda da realidadehumana - é a concepção da interdependência entre o homem e o animal. Os bichos deixam de sermeros agentes utilitários. Entrevista com Claudio Tugnoli por IHU Online

    50 anos de Silent SpringAo questionar as conseqüências dos agroquímicos, que representam grave ameaça ao meioambiente e à saúde pública, a bióloga americana Rachel Carson inaugurava a era dos movimentosambientalistas. Por Roberto Berlinck

    Transgênicos: a rotulagem e a flexibilização geralA tentativa de se acabar com a rotulagem e monitoramento dos alimentos transgênicos indicam quea Lei de Biossegurança nacional passa a favorecer o interesse do agronegócio e não da população.Entrevista com José Maria Ferraz

    Lagoa Viva 2012: Prêmio Honra e Mérito AmbientalPersonalidades, projetos, programas e entidades que contribuem de forma relevante para solucionaros graves problemas ambientais da atualidade foram laureados no 13º Aniversário do Instituto Culturale Ecológico Lagoa Viva.

    Meio ambiente: preservação é luta políticaEm um cenário de escassez de recursos naturais e dado o declínio da ordem unipolar que emergiuno final da Guerra Fria, como olhar a próxima fase em termos geopolíticos? Arriscamos a voltar à“caverna de Olduvai”? Por Renan Vega Cantor

    Redução da pobreza na América LatinaEm 10 anos houve uma redução de 58 milhões de pessoas no número de pobres da AméricaLatina, segundo o relatório Panorama Social da América Latina, da Cepal. Confira o quedetermionou tal mudança para melhor. Por José Eustáquio Diniz Alves

    O perigo do colapso ambientalA Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta aumento dademanda por recursos naturais não renováveis e alinhava as funestas consequências ambientais aserem enfrentadas em 2050. Por José Eustáquio Diniz Alves

    Amazônia: devastação brutalAtlas da Raisg mostra que de 2000 a 2010 a Floresta Amazônica perdeu 240 mil km2: umatragédia ambiental, econômica e social que empobrece o país e repercute em esfera global.Por Instituto Socioambiental-ISA

    A civilização do lixoO mundo moderno gera mais refugo do que carboidrato básico. O resultado é uma autênticacascata de “lixos”, uma torrente de detritos na qual São Paulo desponta como o terceiro pólogerador de lixo planetário. Entrevista com Maurício Waldman/IHU

    Como a economia está matando o planetaDiante do caos planetário instalado, a revista New Scientist abre o jogo num relatório que provaser insustentável nosso modelo de desenvolvimento, formulando questões e motivando reflexãocrítica para que tenhamos futuro. Por Henrique Cortez

    ‘Novo’ Código Florestal: Enfim algo se fez!Pesquisadora da Embrapa Pantanal pondera sobre a afronta à Política Nacional de Meio Ambiente ede Recursos Hídricos, às legislação vigentes, à ética e à moral dos que insistem em destroçar oCódigo Florestal para favorecer o mercado. Por Débora Calheiros

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    Editada e impressa no Brasil.

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    Colaboraram nesta ediçãoClaudio Tugnoli

    Comissão Econômica para AméricaLatina e Caribe/CEPAL

    EcoDebateEcoportal.net

    Henrique CortezIHU Online

    Instituto por Instituto Socioambiental/ISAJosé Eustáquio Diniz Alves

    José Maria FerrazKarina Toledo/Agência FAPESP

    Maurício WaldmanObservatorio Petrolero Sur

    OCDEPortal Inovação Unicamp

    Red Amazónica de Información Socioam-biental Georreferenciada/RAISG

    Roberto BerlinckRoberto Naime

    Renan Vega CantorThe NewYork Times

    Caros amigos,

    A conscientização para os problemas gerados pela predatória inge-rência humana no meio ambiente acabou por abrir uma nova frentede avaliação das relações Homo sapiens e biodiversidade – mais espe-cificamente o duo homem-animal. Para o professor de filosofia Clau-dio Tugnoli, a idéia fundamental do pós-humanismo, empenhado numacompreensão profunda da realidade humana, é precisamente a con-cepção da interdependência entre as espécies. O animal não podemais ser percebido como ser inferior e mero instrumento de fruição.Em entrevista, Tognoli revela como a zooantropologia contribui paraconsolidar a concepção que estende a noção de pessoa também aosanimais. Um avanço fundamental para a integração harmoniosa e nãodestrutiva do meio ambiente.

    Nesta edição relembramos a importância de Rachel Carson, cujaobra Silent Spring constitui o marco inicial do movimento ambien-talista ao denunciar as consequências nefastas da utilização indis-criminada de defensivos agrícolas – questionamento sempre atualfrente aos abusos e desmandos do agronegócio. No mesmo planode temerária e inconseqüente interferência na agricultura, José Ma-ria Ferraz alerta para a atual tentativa de se acabar com a rotulageme monitoramento dos alimentos transgênicos em nosso país. Fatoque indica como está funcionando nossa Lei de Biossegurança, quefavorece o interesse do agronegócio e não da população. Um assun-to grave quando se sabe que ao menos 90 por cento de todos osprodutos derivados da soja são transgênicos.

    Outra reflexão de suma importância nos é trazida pela pesquisado-ra Débora Calheiros, da Embrapa, acerca do absurdo processo derevisão do Código Florestal, cujos defensores ignoram argumentoscientíficos e agem nos bastidores do poder pela aprovação de nor-mas que acelerarão desaparecimento de nosso patrimônio ambien-tal, já brutalmente devastado como comprova o Atlas Amazôniasob Pressão, também assunto desta edição.

    Por fim, três artigos analisam o modelo econômico que está matando oplaneta via exaustão dos recursos não-renováveis, empobrecimento ecriação de “lixos”. Caso nós, cidadãos do mundo, não atuemos paraestancar a insânia no gerenciamento ambiental, o futuro pode nos levarde volta à “caverna de Olduvai”. Afinal, como mostra o ativista pelademocracia política Renan Veja Cantor, “os Haitis já estão aqui”.

    Helio CarneiroEditor

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    o ser humano e o animalEntrevista comClaudio Tugnolipor IHU Online

    IHU ON-LINE - O QUE É ZOOANTROPOLOGIA?Claudio Tugnoli – A zooantropologia existe como disciplina espe-cífica há uns vinte anos. Ela se desenvolve em particular na Europae nos Estados Unidos com o objetivo de fornecer uma resposta aosproblemas da interação homem/animal, sobretudo, para compensara carência desta relação e para satisfazer a explosão do interesserelacional com o mundo animal. A zooantropologia tirou grandevantagem das pesquisas desenvolvidas no campo da bioética ani-mal e da afirmação da tese continuísta, que considera as diferençasde habilidades e prestações entre animais humanos e não-huma-nos como diferenças de grau, não de natureza. A zooantropologiatem, pois, contribuído para consolidar esta concepção, que esten-de a noção de pessoa também aos animais.

    Para o professorde filosofia itali-ano, a idéia fun-damental dopós-humanis-mo, empenhadonuma compre-ensão profundada realidade hu-mana, é precisa-mente a concep-ção da interde-pendência entreo homem e oanimal.

    Pós-humanismo:

    se hospedam um ao outroNão se exagera quando se consideram a zooantropologia e a bio-ética animal como uma verdadeira e própria revolução de ordemfilosófica, ética e pedagógica. É a própria noção de vida que foiposta em discussão e a relação homem-animal foi refundamentada.A revolução é recente e ainda está em ato. Limito-me a assinalar acontribuição de Peter Singer nesta direção. Em Rethinking Lifeand Death: The Collapse of Our Traditional Ethics, 1994, Singerobserva que por pelo menos um século a teoria evolucionista deDarwin (A origem do homem é de 1871) nem sequer arranhou aconcepção tradicional que assinala um status especial aos sereshumanos, criados à imagem e semelhança de Deus.

    Faz agora trinta anos, teve início um processo de difusão de uma

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    nova consciência ecológica, determinada pelos sinais alarmantesde danos consistentes provocados ao ecossistema pelas ativida-des humanas. Um outro passo em frente foi realizado graças aosteóricos da libertação animal, os quais expressaram a exigência depôr o problema da igualdade não só no interior da espécie huma-na, mas também com respeito às outras criaturas sensitivas.

    Os teóricos da libertação animal se bateram para superar os limi-tes estreitos de uma moral restritiva, com o objetivo de estendertambém aos animais não-humanos o reconhecimento de interes-ses e direitos. Além disso, acrescenta Singer, um melhor conheci-mento dos grandes símios exigiu a superação de velhos esque-mas, que atribuíam a posse da inteligência somente aos animaishumanos. A idéia de uma demarcação nítida entre animais huma-nos e não-humanos se desfez definitivamente quando foi possí-vel dar-se conta de que muitos símios superiores são capazes deinteligência instrumental e até de usar uma linguagem (entender eusar um elevado número de sinais coordenados entre eles).

    O movimento de pensamento que funciona sob o nome de liberta-ção (ou liberação) animal foi reforçado pelos estudos experimen-tais que reduziram decisivamente a distância entre animais huma-nos e não-humanos. Além da inteligência, cujo uso e posse po-dem ter muitos graus, nós e os animais compartilhamos de aspec-tos decisivos da vida material e da organização social de um terri-tório: a busca de alimento, a conquista de um parceiro, a realiza-ção de uma posição de liderança ou o incremento de status, aproteção da família e a defesa do próprio território. Temos emcomum com os outros animais, observa Singer, até mesmo osprincípios morais fundamentais que disciplinam o nosso compor-tamento, como, por exemplo, a regra da reciprocidade, os deverespara com os consangüíneos e os freios ao comportamento sexual.

    As últimas pesquisas da biologia e da genética demonstram queo homem pertence à mesma família e ao mesmo gênero dos chim-panzés e dos gorilas: um resultado revolucionário com respeito àclassificação de Lineu, que atribui aos humanos não só uma es-pécie existente por si (Homo sapiens), mas também um gêneroseparado (Homo) e até uma família separada (Hominidae). Mas, aclassificação de Lineu obedece unicamente ao desejo de separaro homem dos outros animais. Também a definição de espéciecomo grupo de indivíduos interfecundos foi desmentida pela exis-tência de espécies que se revelaram interférteis. É possível queespécies diversas não possam mais reproduzir-se por causa dodesaparecimento dos tipos intermédios.

    Entre um ser humano e um chimpanzé não há reprodução; poder-se-ia coligar este limite ao número diverso de cromossomos dochimpanzé (48) e do homem (46). Todavia, é sempre Singer queargumenta, duas diversas espécies de símios que vivem na Malá-sia e na Indonésia, como o siamango e o gibão, resultaram interfe-cundos, não obstante o número diverso dos cromossomos (res-pectivamente 50 e 44). Isso impede excluir que homens e chim-panzés possam resultar interfecundos.

    IHU ON-LINE - QUAL SERÁ O ESPAÇO QUE OUTRAS ESPÉCIES ANIMAISTERÃO NO MUNDO PÓS-HUMANO? O HOMEM CONTINUARÁ SENDO OCENTRO DAS QUESTÕES?C.T. – Os indivíduos humanos são chamados com o termo “pes-

    A zooantropologia temcontribuído para consolidara concepção que estende

    a noção de pessoatambém aos animais.

    soa”, como se isso fosse sinônimo de “ser humano”. No textos debioética, no entanto, o termo “pessoa” é usado para indicar umindivíduo que possui certas características, por exemplo, raciona-lidade e autoconsciência. Entre ser humano e pessoa não subsis-te nenhuma identidade semântica: há pessoas que não são sereshumanos (por exemplo, Deus ou outros seres pertencentes a es-pécies diversas da humana, que vivem sobre a terra ou em qual-quer outro planeta do universo) e há seres humanos que não sãopessoas (como os sujeitos anencéfalos, os indivíduos mergulha-dos no coma irreversível, ou ainda, em sentido estrito, os indiví-duos humanos assim ditos normais quando dormem).

    A teologia ocidental reconhece a qualidade de pessoa ao Pai e aoEspírito Santo, que, no entanto, não são seres humanos. Há pes-soas que são seres humanos, mas também pessoas que não o sãosem pertencerem aos nove sobre dez. Os grandes símios, escreveSinger, são pessoas sob todos os efeitos, mas no futuro poderãoemergir ulteriores e definitivos elementos de prova que permitirãoenumerar entre as pessoas também as baleias, os delfins, os ele-fantes, os cães, os suínos e outros animais, que sejam conscien-tes da própria existência no tempo e capazes de raciocínio. Enfim,se também fosse discutível a própria noção de inteligência e cons-ciência, deveríamos ainda admitir que aos animais em geral sejareconhecido que sofrem, sentem dor de muitos modos e que onosso cuidado por eles não pode depender do grau de racionali-dade e de autoconsciência que possuem.

    Racionalidade e autoconsciência – Aqui há um problema bastan-te sério, que Singer elude. Ele parece pressupor que racionalidadee autoconsciência são características que as diversas espéciespossuem em grau diverso. Uma tese que podemos definir comocontinuísta. Pode-se, todavia, sustentar que, como faz, ao invés,Felice Cimatti, uma tese oposta, descontinuísta, que assinala so-mente aos animais humanos a característica da racionalidade e daautoconsciência, negando-a totalmente aos animais não-huma-nos. Uma teoria zooantropológica, a de Cimatti, que repropõe afilosofia cartesiana. Assim, o neocartesianismo parece reproporuma barreira entre o homem e os animais, que os manteve, porlongo tempo, separados e inimigos. Mas, a pergunta de Singer,neste ponto, se torna atordoante: “Por que jamais deveremostratar como sagrada a vida de uma criança anencéfala e sentir-nos livres para matar crianças sadias para retirar seus órgãos?Por que encerrar chimpanzés em gaiolas de laboratório econtagiá-los intencionalmente com doenças humanas fatais, senos aborrece a idéia de fazer experimentos em seres humanosgravemente deficitários intelectualmente, que apresentam umnível mental análogo ao dos chimpanzés?”.

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    IHU ON-LINE - COMO PODEMOS CARACTERIZAR O SUJEITO PÓS-HUMANO?C.T. – O pós-humanismo vai além do velho humanismo, que in-siste na separação entre o homem e o animal, mostrando que, aocontrário, o animal é parceiro de consciência. Um homem mostrauma relação de parentesco com o animal, seja do ponto de vistafilogenético, seja pela abertura à hibridação animal.

    A cultura humana começou pela sinergia e pelo confronto, da partedo homem, com as habilidades e os modelos comportamentais dasdiversas espécies animais, com as quais o homem interage desdeos primórdios. A tese da dependência cultural do homem com rela-ção ao animal não implica nenhum reducionismo da parte da zoo-antropologia, que mostra quanto seja infundada a pretensão dovelho humanismo, de que a cultura seja oposta com respeito aoteriomórfico e aos modelos animais. Que a cultura seja uma eman-cipação do homem ou um dom dos deuses, como ensina o mito deProtágoras, ao qual se refere Platão no diálogo homônimo, é umailusão solipsista que induz a pensar na cultura como elemento dediferenciação do homem com respeito às outras espécies animais,sem reconhecer ao animal o papel de magister, que resulta, aoinvés, ser central ao totemismo. O homem aprende dos animais,que são mediadores e próteses no plano prospectivo, cognitivo,taxonômico, epistemológico, semiótico, estético, operativo.

    Roberto Marchesini interpretou com razão o mito de Protágorascomo “manifesto” do humanismo clássico: a reconstrução que osofista Protágoras oferece do nascimento da civilização humanaexpressa muito bem a concepção antropológica da incompletude.Segundo a tese da incompletude, a cultura seria um instrumentode compensação da falta de ser do homem. Diversamente dosanimais que foram providos (segundo Epimeteu) de uma série dehabilidades definidas e cumpridas, o homem não recebeu nenhumdom, de modo que sua natureza consiste no fato de não ter umanatureza, uma fisionomia própria.

    Na interpretação de Pico della Mirandola , o homem se distinguedos outros seres vivos pelo fato de não ter uma identidade. Ohomem não é nada, mas pode tornar-se tudo. O humanismo sem-pre tem, por conseguinte, necessidade do confronto com qual-quer alteridade para definir o homem mediante a negação, a exclu-são. O paradigma da incompletude, já bem expresso no mito deProtágoras, é representado na antropologia filosófica até o sécu-lo XX. Isso vem, no entanto, acompanhado de uma concepçãoisolacionista da evolução cultural, a qual pretende identificar umapureza identitária do ser do homem e de sua cultura que está emaberta contradição com a tese da incompletude.

    Num certo sentido, porém, a concepção pós-humanista é a aplicaçãoconseqüente da tese da incompletude. Se a essência do homemconsiste em não ter uma essência, então a sua evolução será deter-minada, desde sempre, pela contaminação, pela hibridação, pela con-jugação com a alteridade, com a adoção de modelos em condiçõesde desenvolver potencialidades desconhecidas e imprevisíveis.

    Na história, o homem encontrou a alteridade em três acepçõesfundamentais: 1) os animais; 2) os homens pertencentes a cultu-ras diversas; 3) a técnica. A evolução da cultura nada tem a vercom o isolamento, com a preservação de uma pretensa essência

    O humanismo insiste naseparação entre o homem e o

    animal. O pós-humanismo mostraque, ao contrário, o animalé parceiro de consciência.

    própria, sob o risco de adulteração e corrupção. O isolamento e adefesa das contaminações são obstáculos à evolução cultural eincompatíveis com a tese, também esta humanística, da incomple-tude. Humanistas como Heidegger e Hans Jonas consideram atécnica como uma ameaça para o homem, ao qual ela subtrairiapredicados humanos. Reduzido a ser puramente passivo pelo pro-gresso tecnológico, o homem seria desumanizado: também aqui ohomem é definido indiretamente, por negação da alteridade. Defato, subentende-se que, se não existisse a alteridade tecnológi-ca, ele poderia desenvolver sua essência de homem livremente.

    Sabemos, no entanto, que, se não se conjugasse com a alteridade,se não adotasse modelos externos, se o homem se iludisse com aidéia de poder ser discípulo de si próprio, não haveria nenhumdesenvolvimento cultural. O humanismo cultiva o mito da origina-lidade e reivindica a propriedade no momento mesmo em que esseque não tem nada de próprio, de originário, sendo incompleto evazio. A alteridade é concebida como um obstáculo à evolução e àformação de uma dimensão original própria, enquanto, em realida-de, esta é uma condição, um pressuposto para que o homem secumpra, convertendo as potencialidades em atualidade.

    A visão pós-humanística reconhece o papel essencial da alterida-de (animal, cultural, tecnológica) no processo antropopoiético. Oser-do-homem não tem nenhuma completude e perfeição que sedeva defender dos riscos de alteração; ao contrário, o homempode desenvolver-se e realizar a própria humanidade somentehibridando-se. O pós-humanismo abandona toda visão fundadana separação e na dicotomia homem/animal, cultura/natureza, tec-nológico/biológico e afirma “o estatuto dialógico da ontologiahumana” (Marchesini). O homem do pós-humanismo reconheceo próprio débito nos confrontos das alteridades humanas e refuta

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    Claudio Tugnoli – Professor do Departamento de Filosofia da dell’Uni-versità degli Studi di Bologna (Italia). É colaborador do Departamentode Ciência Humana e Social da Faculdade de Sociologia de Trento.Entre suas últimas publicações, Girard. Dal mito ai vangeli, de. Messa-ggero, Pádua 2001; Bioetica della vita e della morte, AA.VV. ; La bioeticanella scuola, Franco Angeli, Milão 2002; L’unita di tutto ciò che vive.Verso una concezione antisacrificale del rapporto uomo/animale, in C.Tugnoli (org.) Zooantropologia, Storia, etica e pedagogia dell’interazi-one uomo/animale, FrancoAngeli, Milão 2003, p. 13-74; La teoria mi-metica come superamento della logica sacrificale, in L’apprendimentodella vittima. Implicazioni educative e culturali della teoria mimetica(em colab. com Giuseppe Fornari), FrancoAngeli, Milão 2003, p. 13-137; Su verità e menzogna in senso storico, in La storia fra ricerca edidattica, ed. de B. de GErloni, Franco Angeli, Milão 2003, pp. 263-360;La magnifica ossessione, Bruno Mondadori, Milão 2005; W. Wundt,Obras, coord. e introd. de C. Tugnoli, UTET, Turim 2006. Entrevistapublicada pela IHU On-line (Instituto Humanitas Unsinos da Universi-dade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS).

    toda concepção do homem como dominador da alteridade e rejei-ta a tentação do isolamento. “A cada passo hibridante, o homemaumenta sua necessidade de alteridade, e não o seu domíniosobre a alteridade: esta consciência deve ser uma admoestaçãopara o homem do século XXI, a fim de evitar perigosas negligên-cias no confronto com a realidade externa, que o conduzam apensar como uma ilha totalmente auto-suficiente” (Marchesini).

    IHU ON-LINE - QUE VIAS ESTAMOS SEGUINDO PARA NOVOS MODE-LOS DE EXISTÊNCIA? C.T. – Na Itália, a zooantropologia obteve notáveis progressostambém no plano teórico, principalmente por mérito de RobertoMarchesini. A zooantropologia teórica procurou esclarecer o pro-fundo significado da relação homem/animal, que não se podereduzir a mero desfrutamento. A extrema variedade das espéciesvivas no plano morfofuncional, etológico e zôo-semiótico conse-gue, sim, que o animal assuma uma função formativa absoluta-mente primária para educar ao reconhecimento e à aceitação daalteridade, para potenciar e afinar a capacidade de compreensão,nos seres humanos, da linguagem dos animais. A zooantropologiaaplicada tem como objetivo de intervenção, não o homem ou oanimal tomados em si mesmos, mas a dupla homem-animal, com ofim de utilizar todos os recursos desta parceria que,costumeiramente, são ignoradas ou sacrificadas na relação inter-humana. Desfrutando dos nexos emocionais e cognitivos quecoligam o ser humano às outras espécies, a zooantropologia apli-cada solicita as valências formativas, didáticas e terapêuticas dainteração interespecífica. No plano formativo, verificou-se que ainteração com o animal aumenta o vocabulário imaginativo, facili-ta a familiarização com a diversidade, encoraja a comunicação,aumenta o grau de auto-estima.

    Centro de interesses – No plano didático, o animal é um centrode interesses insubstituível, que permite experiências cognitivo-lúdicas, conectando os diversos ambientes (escola e casa), facili-ta o conhecimento de si mesmo e da própria corporeidade, desen-volve empatia cognitiva e estimula o interesse pela realidade. Estavalência é muito útil na recuperação de sujeitos em dificuldadesde várias espécies. Um aspecto educativo sublinhado pelazooantropologia consiste em que a criança é educada a cuidar doanimal como ser indefeso que dela necessita. Resulta daqui oestímulo à colaboração com os outros e à planificação em vista deum fim, de onde resulta, também, a compreensão das necessida-des de medidas de proteção e de salvaguarda do ecossistema.

    IHU ON-LINE - QUAIS SÃO OS RISCOS TRAZIDOS PELAS TECNOCIÊN-CIAS PARA A HUMANIDADE E PARA AS OUTRAS ESPÉCIES VIVAS?C.T. – As tecnociências podem representar uma oportunidadesomente se a pesquisa estudar a fundo os mecanismos que man-têm o equilíbrio entre as várias espécies, para favorecer, não adiminuição, se possível, mas o aumento da biodiversidade. É pos-sível imaginar que o homem, depois de haver aprendido a hibridar-se com os modelos das várias espécies animais, esteja ampliandoa esfera de hibridação também com as máquinas. Não há nada deestranho ou de horrível em tudo isso, desde o momento em que ohomem, por sua natureza, é sempre dependente do ambiente.

    O horror humanístico suscitado pelo projeto de máquinas tam-bém mais inteligentes que o homem funda-se na convicção de

    que existe uma diferença objetiva, uma linha de nítida separaçãoentre o natural e o artificial. Adão, no fundo, foi apenas o primeiroandróide ou humanóide, feito à imagem e semelhança do Criador.O homem é por definição um animal capaz de imitações. As máqui-nas, como os animais, são e serão as suas próteses, os seusmediadores epistêmicos e culturais em geral. Se os outros entesvivos desaparecessem, seria uma catástrofe para o homem, a par-tir do momento em que o animal, não obstante o comportamentoexigente do velho humanismo, permanece como o carburante cul-tural do desenvolvimento cultural do homem.

    A idéia fundamental do pós-humanismo, empenhado numa com-preensão profunda da realidade humana, é precisamente a con-cepção da interdependência entre o homem e o animal, no qual ohomem e o animal se hospedam um ao outro. ■

    Adão, no fundo, foi apenaso primeiro andróide ou

    humanóide feitoà imagem e semelhança

    do Criador.

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    Em 1948 Rachel Carson, bióloga ma-rinha, já sabia das consequênciaspotencialmente devastadoras doacúmulo de defensivos agrícolas tóxicos(chamados de “biocidas” por Carson) emanimais e plantas. Convencida da impor-tância em tornar público o conhecimentosobre o perigo do acúmulo destas subs-tâncias em plantas e animais, inclusive nohomem, Carson procurou colegas para es-crever um livro sobre o assunto. Mas nãoencontrou quem se dispusesse a fazê-lo.Buscou apoio financeiro, mas também tevedificuldade em conseguir. Decidiu, assim, as-sumir a responsabilidade em escrever e pu-blicar o livro que seria considerado o marcoinicial para o surgimento do movimento am-bientalista: Silent Spring (“Primavera Silen-

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    por Roberto Berlinck

    ciosa”), que neste ano completou 50 anosde publicação em 27 de setembro.

    No seu livro, Rachel Carson retrata um pa-norama bastante completo e complexo dasconsequências da utilização indiscriminadade defensivos agrícolas como o DDT, oDDD, o BHC, organofosforados e outros.Assim que foi publicado, o livro foi divulga-do semanalmente pela revista The NewYorker, na forma de episódios. Embora a re-vista não tenha publicado a obra completa,nem foi preciso. O livro causou furor entreas empresas químicas e de defensivos agrí-colas, como a Monsanto e a Dow Química.Muitos criticaram Carson como sendo umahistérica, que havia escrito um livro sem fun-damento algum. A obra dividiu opiniões da

    sociedade americana, entre aqueles que acre-ditavam ser absolutamente necessário o usode defensivos agrícolas tóxicos, e os quepediam a regulamentação severa, e até mes-mo o abandono do uso de agrotóxicos ex-tremamente nocivos.

    O livro de Carson levantou questionamen-tos importantes quando aparentementetudo parecia certo sobre a necessidade emse produzir e utilizar substâncias químicaspara melhorar a produção de alimentos, semsaber ou prever as consequências de sefazer uso das mesmas. A autora trabalhoudurante cinco anos para escrever o livro,período em que esteve cada vez mais do-ente, tendo sido vítima de câncer de mama.Carson investiu toda sua energia para ten-

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    50 anos de Silent SpringAo estabelecer pela primeira vez as consequências nefastas da utilizacaoindiscriminada de defensivos agrícolas no ser humano, Rachel Carsonlevantou questionamentos sobre os agroquímicos que, ainda hoje, re-presentam grave ameaca ao meio ambiente e à saúde pública mundial.

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    Rachel Carson (1907-1964) começou suacarreira como bióloga no U.S. Fish and Wil-dlife Service, onde tornou-se editora-chefe detodas as publicações. Seu Silent Spring émarco inicial do movimento ambientalista.

    Roberto Gomes de Souza Berlinck é profes-sor titular no Instituto de Química de São Car-los da Universidade de São Paulo. Artigo envi-ado ao JC Email pelo autor. Artigo socializadopelo Jornal da Ciência / SBPC, JC e-mail 4637,e publicado pelo EcoDebate 06/12/2012).

    tar esclarecer a sociedade sobre o proble-ma da utilização massiva dos agrotóxicos,sendo extremamente objetiva, com umapersistência exemplar, realizando uma pes-quisa extremamente detalhada buscandodar uma visão de longo alcance para suaobra. Sua pesquisa incluiu troca de corres-pondência diária, por carta, com pesquisa-dores de todo o mundo.

    Além de apresentar informações de formaextensa, Carson escreveu seu livro em umestilo pouco comum. Ao invés de ressal-tar pontos e argumentos científicos parasustentar uma defesa contra o uso dosdefensivos agrícolas tóxicos, apresentouquestionamentos, inclusive sobre as evi-dências, levando o leitor a se envolver como assunto. Não assumiu uma posição peloleitor, mas amplificou as incertezas paraque o público se envolva, participe e tomesuas próprias decisões sobre o assunto.Mostrou, assim, ser uma questionadoraextremamente honesta.

    Rachel Carson praticamente previu a reper-cussão de sua obra, uma vez que buscouapoio, juntamente com sua editoraHoughton Mifflin, de pesquisadores doassunto que estivessem dispostos a sepronunciar favoravelmente sobre o temaantes que o livro fosse publicado. Contu-do, não viveu até que o uso do DDT fossebanido nos EUA, em 1972. Seu livro serviude ponto de partida para a implementaçãode políticas governamentais dos EUA,como a criação da Environmental ProtectionAgency em 1970, a publicação do CleanWater Act em 1972 e do Endangered Speci-es Act em 1973. Além disso, em 1966 foicriado o Environmental Defense Fund pormembros da sociedade civil, que serviu deponto de partida para o surgimento domovimento ambientalista.

    O livro vendeu mais de dois milhões decópias, graças a seu estilo didático e tam-bém pela divulgação feita pela The NewYorker. Em 1970, apenas oito anos após apublicação de Silent Spring, os americanoselegeram a poluição como sendo o princi-pal problema do país, à frente da Guerra doVietnã e dos Direitos Civis. O sucesso dosurgimento do movimento ambientalista sedeveu, ao menos em parte, pela participa-ção da população mais simples que vivianos subúrbios das cidades. Perceberam queo ambiente e seus problemas estavam dire-tamente relacionados às suas vidas.

    Algumas das principais consequências dapublicação do Silent Spring:

    ❚ A Versicol, produtora do DDT, amea-çou processar tanto a editora do livro deCarson quanto a revista The New Yorker.❚ Rachel Carson foi acusada de ser sim-patizante do comunismo por se presumirestar colocando em risco a alimentaçãodo povo norte-americano.❚ Carson teve o apoio público de John F.Kennedy, que estabeleceu um comitê na-cional para investigar as consequênciasdo uso excessivo de pesticidas.❚ O uso do DDT foi banido nos EUA.Porém, com o consentimento que as em-presas fabricantes continuassem expor-tando o produto.❚ Carson foi acusada da morte de milhõesde pessoas em todo o mundo por causada malária, que é transmitida por picadade insetos que não podiam ser mais eli-minados utilizando-se o DDT.❚ Em todo o mundo foram implementa-das regulamentações ambientais sobre

    as atividades industriais que geram resí-duos tóxicos.

    Após a publicação de Silent Spring o mo-vimento ambientalista ganhou força políti-ca, e se expandiu em todo o mundo. Hojeas questões ambientais, que foram o prin-cipal tema da ECO-92, no Rio de Janeiro,parecem ter sido deixadas de lado, em de-corrência do atual quadro econômico e porquestões políticas de importância questi-onável face às necessidades urgentes daconservação da biodiversidade e das mu-danças climáticas que afetam o planeta demaneira cada vez mais preocupante. RachelCarson, dedicada e engajada como era, nãoiria gostar nada deste atual panorama. ■

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    Entrevista com José Maria Ferraz

    IHU ON-LINE – COMO AVALIA O PROJETO DE LEI 4148/08, QUEPROPÕE A NÃO ROTULAGEM DOS PRODUTOS TRANSGÊNICOS?José Maria Ferraz – Os organismos geneticamente modificados –ou simplesmente OGMs – foram aprovados, à época, com uma sé-rie de considerações para poderem ser aprovados. Uma delas era omonitoramento dos produtos após a liberação comercial, e outraera a rotulagem dos alimentos transgênicos. Essas foram as duascondicionantes para a aprovação de sua comercialização propos-tas pelos órgãos oficiais e por autoridades que instituíram a lei.

    No entanto, o Projeto de Lei 4148/08 prevê a retirada do monitora-mento dos produtos transgênicos, e a não rotulagem dos produ-tos. O monitoramento já havia sido flexibilizado pela ComissãoTécnica Nacional de Biossegurança/CTNBio porque antes haviauma série de regras de monitoramento e, com a flexibilização, umaempresa pode pedir o não monitoramento do produto caso consi-derar conveniente. Então, não havendo monitoramento ou ocor-rendo de forma muito flexível – ou ainda, se os produtos deixarem

    A regulamentação do feijão transgênico e atentativa de se acabar com a rotulagem emonitoramento dos alimentos transgênicosindicam como está funcionando a lei de bi-ossegurança no país, que favorece o inte-resse do agronegócio e não da população.

    flexibilizaçãoa rotulagem e a

    geral

    de ser rotulados –, não será possível estabelecer uma relação decausa e efeito no sentido de identificar se determinado produtoestá, ou não, causando algum efeito à saúde da população.

    Os produtos orgânicos, por exemplo, são rotulados e todo mun-do gosta que assim seja. Então, por que não rotular os transgêni-cos, se se acredita que eles são bons? Não tem lógica não rotular,até por garantia de o consumidor poder optar se ele quer ou nãocomer determinado produto.

    IHU ON-LINE – QUAIS SÃO AS RAZÕES E JUSTIFICATIVAS PARA ALTE-RAR A LEGISLAÇÃO ACERCA DA ROTULAGEM DE PRODUTOS TRANSGÊNI-COS NESTE MOMENTO?J.M.F. – A justificativa é para não estabelecer uma relação decausa e efeito em um produto que pode gerar problemas à saúde.Trabalhos de pesquisadores franceses estabelecem claramenteuma correlação entre o milho NK603 com tumores em ratos testa-dos em laboratórios no longo prazo. Os estudos realizados no

    TRANSGÊNICOS

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    Brasil são de curtíssimo prazo, de 30 a 35 dias.Se os produtos estiverem rotulados, será pos-sível estabelecer uma relação de causa e efeitocaso aconteça algum problema.

    IHU ON-LINE – A ROTULAGEM PERMITE O MONI-TORAMENTO OGMS APÓS SUA INTRODUÇÃO NOMERCADO. COMO SERÁ FEITO O CONTROLE E OS ES-TUDOS SOBRE AS IMPLICAÇÕES À SAÚDE DOS OGMSCASO O PL SEJA APROVADO?J.M.F. – A tentativa de não rotular os produtosflexibiliza também seu monitoramento. Assim, omonitoramento acaba sendo parecido com orecall de carros: coloca-se o produto no merca-do (segundo os economistas é mais barato dei-xar o produto no mercado do que fazer um con-trole de qualidade) e, caso ocorra algum proble-ma, ele é recolhido. O fato é que isso não podeser feito com alimentos que influenciam direta-mente a saúde da população. Entretanto, a flexi-bilização do monitoramento levará a uma situa-ção dessas. O produto será comercializado e, seapresentar algum problema, será relatado e en-tão serão realizados estudos para ver se o casoprocede. Só depois disso será tomada algumaatitude. Junto disso a não rotulagem dos pro-dutos forma um pacote “extremamente interes-sante” para a flexibilização geral dos transgêni-cos no sentido de não poder estabelecer umarelação de causa e efeito do que está aconte-cendo com os OGMs.

    O que me deixa estarrecido é o fato de essa altera-ção estar sendo proposta pelo presidente da Câ-mara dos Deputados, Marco Maia (PT), que estávinculado a um partido que sempre defendeu osinteresses públicos e sociais. Mas, agora, há umainversão nos valores, porque as empresas têm in-teresse nesse governo e vice-versa.

    IHU ON-LINE – O PL 4148/08 É UMA TENTA-TIVA DE EVITAR AS PESQUISAS NA ÁREA DE TRANSGENIA?J.M.F. – Nem se trata do aprofundamento das pesquisas, porquea Agência Nacional de Vigilância Sanitária / Anvisa não tem noti-ficação para os OGMs. Ou seja, não há uma notificação como hápara os nortox, por exemplo, que quando ocorre alguma contami-nação tem de avisar a Anvisa. O grande problema é que o monito-ramento e a rotulagem foram condições sine quibus non para aaprovação, à época, do uso de OGMs no Brasil. Mas agora queaprovaram o uso, querem retirar a legislação para não haver res-ponsabilidade do que estão fazendo.

    IHU ON-LINE – COMO É FEITO O MONITORAMENTO ENTRE A RELAÇÃODE CAUSA E EFEITO DOS PRODUTOS TRANSGÊNICOS COMERCIALIZADOS?J.M.F. – A legislação que determina o monitoramento é de 2002,mas apenas há dois anos os produtos transgênicos estão de fatosendo rotulados e, mesmo assim, os que têm como base os OGMs,tais como o óleo de soja, o amido de milho e algumas rações eproteínas de soja. A lei obriga a rotulagem de produtos a partir de

    1% de conteúdo geneticamente modificado. Porém isso não éfeito. A rotulagem é obrigatória, mas não está sendo cumprida acontento. Não há fiscalização suficiente para acompanhar se es-ses produtos têm rotulagem ou não.

    IHU ON-LINE – COMO O PL 4148/08 TEM SIDO DISCUTIDO NACTNBIO? QUEM É FAVORÁVEL E QUEM É CONTRÁRIO A ESSA MUDANÇA?J.M.F. – O panorama é o mesmo daqueles que são mais críticos àliberação dos OGMs sem estudos aprofundados. Faço parte dogrupo minoritário, que não é contra o OGM por ser do contra, maspor querer a realização de estudos de longo prazo. Defendemos aprecaução porque, se existir a possibilidade de causar algum danoà saúde, tal fato deve ser verificado antes. No âmbito daCTNBio essa questão ainda não foi discutida porque surgiu derepente. Teremos uma reunião nesta semana e provavelmente otema será abordado.

    Não vejo grandes possibilidades de haver uma posição contrária àmudança. Isso porque, através de uma discussão interna, feita pore-mail, propus uma reflexão sobre o PL4148/08 para todos os mem-bros da CTNBio, e três se manifestaram. Um deles disse que a rotu-lagem era algo “nazista”, que estão querendo marcar os produtostransgênicos tal como marcaram os judeus. Ocorre que outros pro-dutos também são rotulados e não há nenhum preconceito.

    A rotulagem justamente oferece a oportunidade de o consumidoroptar pelo que ele quer consumir, e saber o que está consumindo.Todos os produtos demarcam os percentuais de proteína, sal,lipídio e todos os ingredientes. Embora a rotulagem seja lei, den-tro da CTNBio o debate será complicado.

    IHU ON-LINE – HÁ PREVISÃO DE AUTORIZAR-SE A VENDA DE NOVOSPRODUTOS TRANSGÊNICOS?J.M.F. – Existem muitos produtos transgênicos na lista aindaaguardando alguma autorização. Hoje já existem arroz e feijãotransgênicos, base de nossa alimentação, e os estudos sobre osimpactos à saúde foram realizados sem profundidade. Foram es-tudados 30 ratos por 35 dias. O problema é que todos os animaiseram machos. Sabemos que há diferenças hormonais entre ma-chos e fêmeas, e cinco deles, sem exceção, apresentaram reaçõescomo aumento de perda do fígado, diminuição dos rins e proble-mas no intestino. No mínimo era necessário realizar mais testespara ver o que continuaria acontecendo. Mas a possibilidade foidesconsiderada. A discussão não é científica; é ideológica.

    O pior é que há no mercado uma série de OGMs cruzados comoutros OGMs. Esses produtos não passam mais pela CTNBio porqueforam aprovados isoladamente. Existem produtos feitos à base de seteprodutos modificados geneticamente, que dão origem a novos produ-tos. Isso precisa ser avaliado porque sabemos que a maioria dos genesque estão no nosso corpo é silenciosa. A situação é crítica e não vejopossibilidade de mudança, a não ser que a população seja informada.

    Quase todos os produtos derivadosda soja (ao menos 90% deles)e do milho são transgênicos.

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    D.R.

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    Desenvolvido pela empresa de biotecnologia AquaBounty Tech-nologies, de Waltham (Estado de Massachusetts), o salmão doAtlântico transgênico (Salmo salar) recebeu o nome comercial deAquAdvantage Atlantic. O salmão da AcquaBounty fica prontopara o abate duas vezes mais depressa que o congênere doAtlantico e foi desenvolvido para ser criado em cativeiro. Segun-do a empresa, a diferença é a inserção, no genoma da varieda-de convencional, de uma cadeia de DNA formada por sequênci-as de nucleotídeos (ATCG) que regulam a produção de umaproteína anticongelamento pelo peixe, vindas do peixe-carneiro-americano (Macrozoarces americanus), e sequências do gene dohormônio de crescimento do salmão-rei (Oncorhynchus tshawyts-cha). Com isso, a produção do hormônio de crescimento nãodiminui no inverno. Apesar de atingir a maturidade mais cedo, oAquAdvantage Atlantic para de crescer ao atingir o tamanhoadulto do salmão do Atlântico encontrado na natureza.

    Este salmão é o primeiro animal transgênico a entrar na cadeiaalimentar dos norte-americanos — ou de qualquer outro país domundo — e pode abrir caminho para a liberação de outrosalimentos biotecnológicos de origem animal. Segundo o especi-alista Eric Hallerman, do Virginia Tech, já existirem 18 variedadesde pescados geneticamente modificados para crescer mais de-pressa em “vários países”.

    BARATEAMENTO DO PESCADO – A proposta da AquaBounty é que osalmão transgênico seja criado em um sistema de pisciculturaintensiva em tanques longe da costa dos EUA, tornando aatividade economicamente viável por reduzir os custos para oconsumidor em relação ao pescado importado do Chile ouda Noruega. Na defesa do AquAdvantage Atlantic argumen-ta-se que ele pode ajudar a suprir a “crescente demanda” porprodutos alimentícios de origem marítima sem causar novosdanos ao ecossistema.

    RISCOS AMBIENTAIS & HUMANOS – O principal deles é a possibilidadede o salmão transgênico escapar e reproduzir-se fora do cativei-ro, fato que poderá levar a alterações genéticas nas espéciesoriginais. Além disso, alguns estudiosos levantam a possibilida-de de risco para a integridade orgânica de quem dele se alimen-ta – um possível aumento no potencial para causar reações alér-gicas. Afinal, embora aprovado pelo FDA americano, o “frankens-peixe” ainda está no banco dos réus: grande número de institui-ções de defesa do consumidor, ambientalistas e renomados cien-tistas recriminam a insuficiência de estudos de longo prazo ga-rantidores da inocuidade do salmão transgênico na natureza ena boca. Todos continuam exigindo veto ao salmão genetica-mente modificado.

    Fonte: The NewYork Times e Portal Inovação Unicamp.

    IHU ON-LINE – É POSSÍVEL ESTIMAR O PERCENTUAL DE ALIMEN-TOS BRASILEIROS TRANSGÊNICOS?J.M.F. – Quase todos os produtos derivados da soja, ou aomenos 90% deles, e do milho são transgênicos. Uma parcelaequivalente a 80% do algodão também é de transgênicos.

    Associado a isso há um aumento de alterações hormonais, osurgimento de doenças degenerativas (câncer) apesar de nãotermos um dado estatístico específico. Os transgênicos sãoassociados aos agrotóxicos, então há um efeito sinérgico e asplantas passam a produzir as toxinas. Toda planta produz atoxina já liberada para alimentação. Por isso que, provavelmen-te, deu essa incidência de câncer associada ao glifosato, que éa toxina mais utilizada. Hoje, de modo geral, as plantas estãomais tolerantes ao glifosato e os OGMs utilizam herbicidas muitomais fortes. Essa é uma exigência dos OGMs, ou seja, umavenda casada entre OGMs e herbicidas. A tendência é aumen-tar o uso desses herbicidas mais poderosos, mais prejudiciaisà saúde e ao meio ambiente. Não sabemos por que o Brasil,sendo o maior produtor de alimentos do mundo, é o maiorconsumidor de agrotóxicos. É uma relação causal muito evi-dente com os OGMs.

    IHU ON-LINE – COMO A LEI DE BIOSSEGURANÇA TEM SIDO APLI-CADA DIANTE DOS NOVOS PRODUTOS TRANSGÊNICOS?J.M.F. – Ela tem sido flexibilizada porque o princípio da precau-ção tem sido violado, apesar de o Brasil ter assinado um acordointernacional. A lei de biossegurança existe com o princípio deprecaução estabelecido, mas no caso do feijão transgênico, ondeestá aplicado o princípio da precaução? Nenhum país do mun-do, por pior que fosse, iria aceitar um trabalho científico comcinco organismos, só sendo avaliados em termos de toxidade.

    A partir da regulamentação do feijão dá para se ter uma ideia decomo está funcionando a lei de biossegurança no país. Na ver-dade, ela está favorecendo o interesse do agronegócio e não dapopulação, porque só tem estimulado o uso de agrotóxico casa-do e uma insegurança quanto ao produto que está sendo colo-cado no mercado. Não é de hoje que tentam alterar a legislação.

    O PL será votado e sabemos como a maioria pensa. Boa partedos representantes está ligada aos ministérios, e os ministé-rios têm a recomendação de aprovação dos OGMs, com exce-ção do Ministério da Saúde. Para você ter uma ideia, pessoasligadas ao Ministério da Agricultura analisavam os artigoscientíficos. Neles mostravam-se os problemas de caso que seestava avaliando, mas não se colocavam essas informaçõesnos seus pareceres. ■

    José Maria Gusman Ferraz - Mestre em Agronomia pela Uni-versidade de São Paulo/USP e doutor em Ecologia pela Universi-dade Estadual de Campinas/Unicamp. Cursou pós-doutorado emAgroecologia pela Universidade de Córdoba/UCO, Espanha. Éprofessor do curso de mestrado em Agroecologia e Desenvolvi-mento Rural da UFSCar e professor convidado da UniversidadeEstadual de Campinas. Entrevista publicada pela IHU On-line(Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale doRio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS) e pelo portalEcoDebate (06/12/2012).

    SALMÃO TRANSGÊNICO:um “frankenpeixe” no banco dos réus

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    LAGOA VIVA 2012PRÊMIO HONRA E MÉRITO AMBIENTAL

    Segunda edição do evento comemorou o 13º Aniversáriodo Instituto Cultural e Ecológico Lagoa Viva

    O Prêmio Honra e Mérito Socioambiental Lagoa Viva éuma distinção de reconhecimento e estímulo às perso-nalidades, projetos, programas e entidades voltadas aocuidado do ambiente e que contribuem de forma relevan-te em defesa da vida e da busca de soluções para osgraves problemas ambientais atuais.

    Fundado em 16 de fevereiro de 2000, o Instituto Cultural eEcológico Lagoa Viva foi membro do CERH-RJ, de 2002/12e membro do Comitê Baia da Guanabara de 2004/12, pro-tagonista e atual membro como Sub-coordenador doSubcomitê de Jacarepaguá, membro do Conselho Gestordo Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), e represen-tante/sede 2000/06 da Agenda 21 da (AP4). A entidade focana revitalização e conservação permanente da Bacia Hidro-gráfica de Jacarepaguá, sendo reconhecida por sua histó-ria de articulação junto ao poder público, empresas, entida-des representativas, condomínios e comunidades locais.

    Também foi responsável pela elaboração em parceriacom o CREA-RJ, em setembro de 2000, da I Carta Náuti-ca do Sistema Lagunar de Jacarepaguá e pelo recém-formado Subcomitê da Bacia Hidrográfica deJacarepaguá. O Instituto difunde e compartilha conheci-mentos voltados ao cuidado ambiental local por meio deencontros, seminários, palestras, campanhas, mobiliza-ções, publicações, pesquisas, projetos, capacitação, ofi-cinas e sensibilização participativa da comunidade local.

    Ocorrido no Centro de Convenções do BarraShopping,Barra da Tijuca, no evento que contou com expositores dematerial reciclado foi apresentado o livro “Barra da Tijuca:Natureza & Cidade”, organizado por David Zee. Na produ-ção, a caricaturista Débora Trindade, a decoração de flo-res em Pet, da artista plástica, Cristina Silva; e as recep-cionistas vestidas com a marca Vitro - Moda Ética e Sus-tentável by Luana Ouverney.

    Denise Machado – Jornalista Pós-graduada em JornalismoCultural e Diretora de Jornalismo da Associação de Imprensada Barra (AIB) - E-mail:[email protected]

    HOMENHOMENHOMENHOMENHOMENAAAAAGEADOS DESTGEADOS DESTGEADOS DESTGEADOS DESTGEADOS DESTA EDIÇÃO:A EDIÇÃO:A EDIÇÃO:A EDIÇÃO:A EDIÇÃO:

    ■ Pajé Sapaim Kamayurá (O mensageiro do tempo)■ Programa Guardiões dos Rios (Secretaria Municipaldo Meio Ambiente do RJ■ Projeto Selo Verde – Secretaria de Estado do Ambi-ente–Governo do Estado do Rio de Janeiro■ Projeto Replantando Vida – Nova Cedae–Governodo Estado do Rio de Janero) ■ Consórcio Barra Sustentável■ Rio Barra e suas práticas voltadas para a Sustentabilidade■ Portal EcoDebate■ Revista ECO21 ■ Ingo André Haberle (Engenheiro Florestal)■ Engenheiro Fernando Almeida (ex- PresidenteCEBDS) ■ Marcelo Szpilman (Biólogo Marinho / Instituto Eco-lógico Aqualung ■ Biólogo Ricardo Freitas Filho (Instituto Jacaré) ■ Vilmar Berna (Ambientalista – REBIA)■ Felipe Brasil (Consultor de Meio Ambiente)

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    por Renan Vega Cantor

    preservação é luta política

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    Sempre deixei-me impressionar pela Te-oria de Olduvai, de Richard Duncan,embora alguns considerem que o autor quea propôs seja um lunático. Mas se olhar-mos para as coisas racionalmente, essa te-oria é muito consistente. Vivemos na Civi-lização do Petróleo, uma exceção fugaz ini-ciada num determinado lugar e tempo – osEUA da década de 1920 –, e que o autorafirma irá durar quase exatamente um sécu-lo cronológico. Neste século, houve abun-dância de petróleo, no sentido de que sepôde acessar o recurso e garantir o modode vida capitalista para um número signifi-cativo de indivíduos. Duncan nos diz queisso vai durar exatamente um século.

    E, então, o que vai acontecer? O retorno àtradicional história da humanidade: quan-do terminar a bolha energética de petróleo,voltaremos à caverna de Olduvai, na Tan-zânia, onde foram encontrados os mais an-tigos restos humanos, e onde se acreditaque viveram os primeiros homens. E comoviviam eles? No escuro. Claro que fazer talafirmação nestes dias de reinado de luz eenergia pode soar apocalíptico ou mesmodemente. Mas se voltarmos o olhar para omodus vivendi da sociedade industrial con-temporânea, a previsão não é ilógica.

    Cada dia aumenta mais o consumo de ener-gia em todo o mundo, o que é consequente

    após o desaparecimento da União Soviéti-ca, a queda do Muro de Berlim e a imposi-ção do mercado capitalista global com sualógica produtivista e consumista generali-zada, e seu estilo de vida. O mundo tor-nou-se um grande supermercado, ondetem-se de consumir tudo o que existe.

    Em termos de energia, isso é expresso, porexemplo, na generalização do carro, já que aquantidade de automóveis que rolam atual-mente não tem precedente histórico. Há tam-bém casos extremos, como o da China, onde oque acontece em Pequim pode ser considera-do um ecocídio diário. Autores como ThomasFriedman, analista do culto ao consumo, di-zem que em Pequim milhares de carros novospassam a circular todos os dias.

    E se compararmos a Pequim atual com ade 25 anos atrás, observamos uma trans-formação que teria exigido muito mais tem-po para ser explicada: como uma cidadeque foi a capital mundial da bicicleta eonde não havia carros, congestionamen-tos, acidentes de trânsito e poluição setransformou num dos centros mundiaisde engarrafamentos e poluição produzi-dos por veículos automotores. Este é omodelo que está sendo imposto em to-das as cidades do planeta graças ao usointensivo de automóveis e tudo o queisso implica.

    Sob essas condições, o que está aconte-cendo no capitalismo é o mesmo que ocorrecom alguém que sabe ter à sua frente umabismo, e em vez de evitá-lo acelera em suadireção... algo típico dos economistas. Emvez de adiarmos a chegada ao abismo, ace-leramos a aproximação via todas as formasde consumo. Pior, diante do quadro afirma-se que todas as advertências não passamde alarmismo já que em outros momentossemelhantes o capitalismo foi capaz de en-contrar a alternativa energética necessária,e que agora as coisas não serão diferentes.É assim que raciocinam os otimistas.

    No entanto, há dois aspectos geopolíticosque devem ser mencionados: uma coisa éo discurso público, outra o interno. No dis-curso público defendido por multinacio-nais, políticos e acadêmicos argumenta-senão ser verdade que o petróleo está se es-gotando: afirmação que voltou a ganharforça em vista de os Estados Unidos teremaumentado sua produção de petróleo.

    Assim, têm-se argumentos para afirmar queo petróleo não está se esgotando. Mesmo ojornalista inglês George Monbiot, autor deum livro sobre o aquecimento global, diz queas teses sobre o pico e a decadência do pe-tróleo são falsas, e que foram articuladas porpartidários do movimento ambiental. Mon-biot considera não ser verdade a ocorrência

    Em um cenário de es-cassez de recursosnaturais e dado o de-clínio da ordem uni-polar que emergiu nofinal da Guerra Fria,como olhar a próxi-ma fase em termosgeopolíticos?

    Meio ambiente: UN PHOTO

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    de um pico do petróleo; ao contrário, há tan-to óleo que poderemos até mesmo nos assarcomo sardinhas na imensidão das supostasnovas jazidas petrolíferas descobertas .

    Esta também é a afirmação dos que negam ofim da era do petróleo para desinformar e ani-quilar a magnitude do que está em jogo e emprol do exercício da lógica capitalista. Mas,no discurso interno, criptografado, os políti-cos dizem coisas completamente diferentes.Concretamente, o que afirmam as multinacio-nais e os líderes políticos dos estados impe-rialistas, a começar pelos Estados Unidos?

    Todos sabem que o petróleo está se esgo-tando, e não apenas o petróleo como tam-bém muitos outros recursos naturais. Atémesmo o Departamento de Estado e o De-partamento de Defesa dos EUA desenvol-veram estudos sistemáticos nos quais re-pertoriam os metais e minerais estratégi-cos, e indicam as necessidades de tais bens.Os relatórios vão mais fundo ao afirmar quehá recursos estratégicos de que os EUAsão 100 por cento dependentes, o que sig-nifica que tais recursos devem ser obtidosem outros países. Em seguida, vem a análi-se dos recursos naturais dos quais depen-de os EUA em 50 por cento.

    E todos os recursos estratégicos se situamnesta faixa. Os estudos também fazem umacategorização dos recursos mais necessári-os e considerados de segurança nacional.Ou seja, que tais recursos são vitais para aeconomia dos EUA. Em alguns destes rela-tórios está assinalado que, no caso do nãoacesso a tais recursos, os Estados Unidosse reservam o direito de utilizar todos os mei-os militares, incluindo bombas atômicas, paraconsegui-los.

    Obviamente, isso não é de domínio público.Nem os políticos, os acadêmicos ou os por-ta-vozes de multinacionais ousam se pro-nunciar a respeito. Trata-se de informaçãopara o consumo interno, pois relacionadaao controle geopolítico e geoestratégico domundo. Eles estão cônscios de que os re-cursos materiais e energéticos estão a es-gotar-se e, por isso, mapeiam o planeta emáreas vitais, áreas estratégicas e áreas dereserva. Na geopolítica mundial desenrola-se uma guerra mundial por recursos.

    Acredito ser muito importante a tese defen-dida por Michael Klare em muitos de seuslivros: existe uma guerra não declarada de

    recursos nunca reconhecida como tal; umconflito que tem se acentuado com a entra-da na cena internacional de novos atores,sobretudo China e Índia. Afinal, os mila-gres chinês e indiano significam apenas queestamos vendo mais do mesmo: a formaçãode um capitalismo semelhante ao da revolu-ção industrial inglesa no século XVIII.

    Isso é o que está acontecendo naquelespaíses. E para que isto seja possível torna-se necessário o que é inevitável em termosfísicos: matéria e energia. O que os chinesesestão fazendo, e em menor escala os india-nos, é procurar fontes de energia e matéri-as-primas. Os chineses já realizam incursõesna África, e a divisão territorial do Sudão é aprimeira conseqüência.

    Aqui, na América Latina, os chineses têmfeito acordos com a maioria dos governos,incluindo os chamados governos progres-sistas, para garantir o controle de importan-tes fontes de minerais, começando pelo pe-tróleo. Como se trata do mesmo padrão civi-lizatório, a China é movida com a mesma fontede energia – petróleo. Assim, o que é certo éo esgotamento do petróleo. Uma perguntaque não quer calar: se a China lamentavel-mente embarcou na trilha do capitalismo, oque terá de fazer para mantê-lo?

    O que estamos apontando não é muito po-pular, já que não se pode afrmar que o mode-lo chinês se apresenta como uma alternativa,como a última palavra em termos de cresci-mento. No entanto, há os que aplaudem aChina, que assim pode tornar-se um país he-gemônico, impulsionando outro tipo de ca-pitalismo e coisas afins.

    Ocorre uma disputa geopolítica pela apropria-ção de recursos e os conflitos mundiais maisimportantes estão relacionados direta ou indi-retamente com o controle das fontesenergéticas e os recursos minerais. E já se co-meça a ver, em relação à teoria de Olduvai, queem alguns pontos, como no Haiti, embora empequena escala, já ocorre dura realidade.

    O Haiti é um país que deve ser estudado,porque é uma amostra do que o resto domundo deve aguardar: um país devastadoambientalmente; que em 200 anos ficou comapenas dois por cento da cobertura vegetaloriginal; onde desapareceram ecossistemas;onde a terra é praticamente um deserto; ondea energia só beneficia uma pequena mino-ria, enquanto o grosso da população vivena escuridão total, morrendo de fome e depobreza; um território ocupado militarmentepela ONU e pelos EUA, e submetido a pla-nos de atualização da dívida.

    É ou não uma antecipação ao retorno à ca-verna de Olduvai? Na realidade, o Haiti jáocorre em muitos países, em regiões ondea fonte de energia básica ainda é a madeiraou o carvão. Os fatos indicam que existeuma segmentação energética por classe, jáque, em última análise, a diferenciação declasse se manifesta pelo consumo de ener-gia. Ou seja, no padrão de vida das classesdominantes com acesso à piscina própria,casas confortáveis, vários automóveis,produtos de consumo de microeletrônica,enfim tudo que indica o status do consu-mo de energia.

    Internacionalmente, existem parâmetros parao nível de consumo vital mínimo de energianecessário à subsistência de um ser humano.Quando comparamos o consumo de caloriasde um residente do Haiti e de um americanomédio, as diferenças são surpreendentes.

    Tais afirmações são difíceis de engolir por-que se trata da dura realidade e ninguémaprecia más notícias. As pessoas gostamde exaltar as vitórias ou as grandes con-quistas da humanidade, e os triunfos indi-viduais. Mas em algum momento as reali-dades desagradáveis devem ser conside-radas, embora, hoje, quem o faça seja cha-mado de arauto do mau agouro. ■

    Renan Vega Cantor – Pesquisador, historia-dor, economista diplomado na Universidade Pa-ris VIII e professor titular da Universidade Pe-dagógica Nacional de Bogotá, Colômbia, diretorda Revista CEPA (Centro Estratégico do Pensa-mento Alternativo. Conhecido mundialmente porsua incansável luta pela democracia políticaeintransigente defesa dos movimentos sociais.Artigo original “La preservación del medio am-biente es, en primer lugar, una lucha política” foipublicado no Observatorio Petrolero Sur, http://www.opsur.org.ar, e socializado pelos portaisEcoportal.net e EcoDebate (07/12/2012).

    A Civilização doPetróleo, iniciada

    em 1920, vai acabarem um século...

    em 2020

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    Redução da pobreza na América Latina

    por José Eustáquio Diniz Alves

    Houve uma grande mudança nos últimos 30anos. A pobreza cresceu em termos absolu-tos e relativos entre 1980 e 1990. Em 1980 haviana América Latina e Caribe 136 milhões de pesso-as em situação de pobreza, sendo 62 milhões deindigentes (extrema pobreza). Em termos relati-vos à população total, estes números representa-vam 40,5% de pobres e 18,6% de indigentes.

    Com a crise econômica, a desvalorização cambial e oaumento do desemprego na chamada “década perdi-da” o número de pobres cresceu para 204 milhões depessoas e o número de indigentes passou para 95milhões no final da tal desastrosa década. Em ter-mos relativos, o percentual de pobreza atingiu opercentual recorde de 48,4% e o percentual da extre-ma pobreza chegou também ao recorde de 22,6%.Ou seja, em 1990, quase 1 em cada dois latino-americanos viviam em condições de pobreza e qua-se 1 em cada 4 viviam em situação de indigência.

    Na década de 1990 a pobreza continuou subin-do em termos absolutos, mas começou a cair emtermos relativos. Em 2002, o número total depobres na região atingiu o pico de 225 milhões eo número de indigentes atingiu o recorde de 99milhões de pessoas. Mas em temos relativos apobreza entre 1990 e 2002 caiu de 48,4% para43,9% e a indigência caiu de 22,6% para 19,3%.Ou seja, o número absoluto de pessoas em situ-ação de vulnerabilidade subiu, mas em um ritmomenor do que o crescimento da população daAmérica Latina e Caribe (ALC).

    Porém, as notícias mais alvissareiras vieram apartir de 2003 quando as tendências dos indica-

    Em 10 anos houveuma redução de 58milhões de pessoas nonúmero de pobres daAmérica Latina, segun-do o relatório Panora-ma Social da AméricaLatina, da Cepal.

    José Eustáquio Diniz Alves – Doutor em de-mografia e professor titular do mestrado em Estu-dos Populacionais e Pesquisas Sociais da EscolaNacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE.Apresenta seus pontos de vista em caráter pesso-al. E-mail: [email protected]. Publicadono portal EcoDebate (05/12/2012).O relatóriocompleto pode ser baixado em http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/5/48455/PanoramaSocial2012DocI-Rev.pdf

    dores de pobreza começam a cair consistente-mente tanto em termos numéricos como em ter-mos percentuais. Nos últimos 10 anos, entre 2002e 2012, o número de pobres da ALC caiu de 225milhões para 167 milhões e o número de indigen-tes caiu de 99 milhões para 66 milhões. Em ter-mos relativos houve uma queda da pobreza de43,9% para 28,8% e uma redução da indigência de19,3% para 11,4%, no mesmo período.

    A crise econômica de 2009 não chegou a reverteras tendências de ganhos nas condições de sub-sistência. Tudo indica que a ALC vai conseguiratingir as metas dos Objetivos do Desenvolvi-mento do Milênio (ODM) de reduzir o percen-tual de pobreza e indigência pela metade entre1990 e 2015. Outros indicadores também me-lhoraram, como a redução da mortalidade infan-til e o aumento da esperança de vida, além dascondições de educação e moradia.

    Entre as nações, o Uruguai é o país que apresen-ta os menores índices de pobreza e indigência daregião. Mas foram Argentina, Peru, Brasil e Ve-nezuela que apresentaram os maiores ganhos naredução das condições de vulnerabilidade de suaspopulações nos últimos 10 anos.

    A despeito de a ALC ser a região mais desigualdo mundo, o relatório da Cepal mostra que hou-ve uma redução da desigualdade social no conti-nente. As condições atuais são favoráveis para acontinuidade da redução da pobreza e da indi-gência, pois a ALC foi favorecida pela mudançados termos de intercâmbio, devido à valorizaçãodo preço das commodities e está em fase avan-

    çada da transição demográfica. Paralelamente,houve um processo de redemocratização na ALCe um aumento do gasto social voltado para aspopulações mais carentes.

    Além disto existe um rico ativo ambiental, poisa região possuía, em 2008, pegada ecológica percapita de 2,7 hectares globais (gha) para umabiocapacidade per capita de 5,6 gha, segundo orelatório Planeta Vivo, da WWF. Porém, emborahaja superávit ambiental no continente, o mode-lo econômico que incentiva o consumismo e aexploração de matérias-primas (para utilizaçãointerna e externa) tende a agravar a degradaçãoda natureza e a reduzir a biodiversidade.

    A despeito de todos os problemas, aAmérica La-tina e Caribe possui condições humanas e ecoló-gicas para avançar no desenvolvimento sustentá-vel, em sua concepção não antropocêntrica. Res-ta saber se as decisões políticas dos governos daALC vão ser tomadas e efetivadas no sentido deaproveitar a janela de oportunidade que está aber-ta, buscando dar um salto de qualidade na vidahumana e não-humana da região. ■

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    AMÉRICA LATINA: EVOLUCÃO DA POBREZA E DA INDIGÊNCIA,1980-2012

    Fuente: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), sobre la base de tabulaciones especiales delas encuestas de hogares de los respectivos países.a Estimación correspondiente a 18 países de la región más Haití. Las cifras que figuran sobre las secciones superioresde las barras representan el porcentaje y el número total de personas pobres (indigentes más pobres no indigentes).Las cifras relativas a 2012 corresponden a una proyección

    AMÉRICA LATINA (18 PAÍSES): PESSOAS EM SITUAÇÃO DE POBREZA E INDIGÊNCIA, 2002, 2010 E 2011

    Fuente: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), sobre la base de tabulacionesespeciales de lasencuestas de hogares de los respectivos países.a Áreas urbanas.b Cifras del Departamento Administrativo Nacional de Estadística (DANE) de Colombia.c Las cifras de 2010 y 2011 no son estrictamente comparables con las de años anteriores.d Cifras del Instituto Nacional de Estadística e Informática (INEI) del Perú.

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    (Em porcentagem)

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    Há anos os ambientalistas aler-tam sobre os perigos do colap-so ambiental provocado pelocrescimento populacional eeconômico. O atual padrão deprodução e consumo da huma-nidade já é insustentável. Acontinuidade do crescimentosó torna as coisas piores.

    Mas o alerta mais recente nãofoi dado por ativistas radicais,mas pela Organização para aCooperação e o Desenvolvi-mento Econômico – OCDE. Orelatório “Previsões ambien-tais para 2050: as consequ-ências da inação”, divulgadoem meados de março de 2012,mostra que o mundo caminhapara um colapso ambiental,caso não haja mudança de rota.Os custos da inação podem serincalculáveis para as economi-as, o ser humano e a biodiver-sidade. Os dados são alarman-tes sobre as tendências dasmudanças climáticas, da degra-dação ambiental, da demandapor água e sobre os impactosda poluição na saúde humana.

    Energia – Segundo o estudo,a demanda mundial por ener-gia deve crescer 80% até 2050,sendo que 85% dessa energiadeve continuar sendo oferta-da por combustíveis fósseis.Desta forma, as emissões deCO2 vão aumentar 50%, incre-mentando o efeito estufa e po-dendo elevar o aquecimentoglobal a uma temperatura en-tre 3°C e 6°C, números bemacima dos 2ºC estimados comotoleráveis pelo Painel de Mu-danças Climáticas da ONU.

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    TE O perigo do colapso ambiental

    por José Eustáquio Diniz Alves

    RELATÓRIO DA ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMENTOECONÔMICO/OCDE1 APONTA O AUMENTO DA DEMANDA POR RECURSOSNATURAIS NÃO RENOVÁVEIS E AS CONSEQUÊNCIAS AMBIENTAIS EM 2050.

    José Eustáquio Diniz Alves – Co-lunista do Portal EcoDebate Doutorem demografia e professor titular domestrado em Estudos Populacionaise Pesquisas Sociais da Escola Naci-onal de Ciências Estatísticas –ENCE/IBGE; Apresenta seus pon-tos de vista em caráter pessoal. E-mail: [email protected] Pu-blicado em EcoDebate (13/04/2012).

    REFERÊNCIA:1 – O relatório OECD. Environmental Outlook to 2050: TheConsequences of Inaction pode ser baixado em http://www.oecd.org/e n v i r o n m e n t / o e c d e n v i r o n m e n t a l o u t l o o k t o 2 0 5 0 t h econsequencesofinaction.htm

    Poluição do ar – A poluição doar agravará os problemas desaúde pública, se somando àfalta de acesso ao saneamentobásico. O número de mortesprematuras relacionadas a ma-les causados pela poluição doar deverá mais do que dobrar,especialmente em países comoChina e Índia (que são os que

    apresentam maior crescimentoeconômico). Atualmente, as do-enças respiratórias associadasà poluição matam milhões de in-divíduos por ano.

    Água potável – O crescimento dademanda por água potável irá seagravar e aumentar o estresse jáexistente. A OCDE estima que a

    demanda deverá crescer 55%,especialmente para uso na in-dústria (+400%), usinas terme-létricas (+140%) e uso domicili-ar (+130%). O aumento na de-manda deve elevar a escassez hí-drica e aumentar os riscos deconflitos e guerra pela água.

    Biodiversidade – As florestas,que são fundamentais para osciclos hídricos, devem perder es-paço até 2050, devendo haver umencolhimento de 13% da cober-tura vegetal, com enorme perdada biodiversidade e a extinção deespécies vegetais e animais.

    A OCDE considera que a solu-ção para minimizar o colapsoambiental passa pela implemen-tação da economia verde, paratornar mais sustentáveis a agri-cultura, a indústria e a matrizenergética mundial. Porém, umaeconomia verde nos padrõespredatórios do consumismo glo-bal não vai resolver o problema.

    Para evitar o colapso será pre-ciso soluções bem mais radi-cais. Todavia, pelo andar dacarruagem, o caminho que aRio+ 20 trilhou segue a mesmavia que leva ao precipício enada indica que haverá umamudança de rota para evitar ocolapso ambiental. ■

    Saúde e Meio Ambiente

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    Amazônia:

    DE 2000 A 2010 A FLORESTA AMAZÔNICA PERDEU 240 MIL KM2: UMA TRA-GÉDIA AMBIENTAL, ECONÔMICA E SOCIAL QUE REPERCUTE EM ESFERA GLOBAL.

    OAtlas Amazônia sob Pressão, lançado em dezembro último em San-ta Cruz de La Sierra, Bolívia, pela RedeAmazônica de Informação Socioambi-ental Georreferenciada apresenta umretrato dramático da cobertura vegetalda maior floresta tropical nos nove paí-ses onde ela está presente. As pressõese ameaças à Amazônia indicam que pai-sagens de florestas, a diversidade soci-al e ambiental e de água doce estão sen-do substituídas por paisagens degra-dadas, savanizadas, áreas mais secas emais homogêneas.

    devastação brutalA análise do desmatamento mostra que, entre2000 e 2010, foram suprimidos cerca de 240mil km2 de floresta amazônica, o que repre-senta o dobro da Amazônia equatoriana ou atotalidade do território do Reino Unido. O atlasalerta que se as ameaças identificadas em pro-jetos rodoviários (estradas ou multimodais),de petróleo e gás, mineração e hidrelétricasse tornarem pressões no futuro próximo, atémetade da Amazônia atual poderia desapare-cer. “Se todos os interesses econômicos quese sobrepõem se concretizarem nos próximosanos, a Amazônia vai se tornar uma savanacom ilhas de floresta”, diz o coordenador

    geral da Raisg, Beto Ricardo, do InstitutoSocioambiental (Brasil), uma das organiza-ções que compõem a rede.

    As pressões e ameaças à Amazônia mos-tram que as paisagens de floresta, da diver-sidade socioambiental e de água doce estãosendo substituídas por paisagens degrada-das, savanizadas, áreas mais secas e maishomogêneas. Encontramos um arco do des-matamento que se estende do Brasil para aBolívia, uma área de pressão sobre a água,de exploração de petróleo na Amazônia An-dina e um anel periférico de mineração.

    Queimada de floresta para pasto,São Félix do Xingú, Pará, Brasil.© Daniel Beltra/Greenpeace, 2008

    por Instituto Socioambiental-ISA

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    Fonte: Informe do Instituto Socioambiental/ISA(http://www.socioambiental.org) republicadopelo portal EcoDebate (05/12/2012). A publi-cação pela Raisg (www.raisg.socio-ambiental.org), tem como principal objetivosuperar visões fragmentadas da Amazônia sul-americana e fornecer uma visão abrangentedas pressões e ameaças para toda a região.Fotos: Amazonía Bajo Presión © RAISGRed Amazónica de Información SocioambientalGeorreferenciada-www.raisg.socioambiental.org

    O Atlas traz um conjunto de seis pressõese ameaças sobre a Amazônia na última dé-cada – estradas, petróleo e gás, hidrelétri-cas, mineração, desmatamento e focos decalor – analisados por cinco diferentes uni-dades territoriais: a Amazônia, o Amazo-nas de cada país, Áreas Naturais Protegi-das, Bacias Hidrográficas e Territórios In-dígenas. Essas análises são feitas em 55mapas, 61 tabelas, 23 gráficos, 16 boxes e73 fotografias. Toda esta informação e aná-lise está organizada em capítulos temáti-cos, com um total de 68 páginas.

    Nesta oportunidade não foi possível incluira análise de temas relevantes como a mine-ração ilegal e a extração de madeira e agri-cultura devido à falta de informação quali-ficada e cartograficamente representávelpara todos os países da Amazônia. Quan-do esses fatores forem incluídos a situa-ção geral pode ser ainda mais adversa.

    Esta publicação é uma contribuição da so-ciedade civil para o debate democráticosobre as pressões na Amazônia, particu-larmente na questão do desmatamento atu-almente sob avaliação por diversos gover-nos nacionais e em nível intergovernamen-tal pela Organização do Tratado de Coope-ração Amazônica (OTCA).

    A Amazônia apresentada nesta publicaçãoé um território de alta diversidade socio-ambiental em rápida mudança. Ele cobreuma extensão de 7,8 milhões de km2, cercade 12 macrobacias e 158 sub-bacias com-partilhadas por 1.497 municípios, 68 depar-

    1 Pasto e agricultura naexpansão das fronteirasamazônicas. Cultivo desoja avançando sobre aselva, Mato Grosso. ©Ton Koene, 2009

    2 Uma das 140madeireiras instaladasem Tailândia, Pará.©Paulo Santos, 2008

    3 Operação de controleda exploração madeireirailegal, Belém, Pará. ©Paulo Santos, 2010

    4 Lote de madeira ilegalconfiscada em Belém, Pará.© Paulo Santos, 2010

    tamentos/estados/províncias em oito paí-ses: Bolívia (6,2%), Brasil (64,3%), Colôm-bia (6,2%), Equador (1,5%), Guiana (2,8%),Peru (10,1%), Suriname (2,1%) e Venezuela(5,8%), além da Guiana Francesa (1,1%).

    Na Amazônia vivem cerca de 33 milhões depessoas, incluindo 385 povos indígenas, al-guns em situação de “isolamento”. São 610ANPs e 2344 TIs que ocupam 45% da super-fície amazônica, não incluindo os proprietári-os de terras pequenas, médias e grandes,empresas de vários tipos, instituições de pes-quisa e desenvolvimento, bem como organi-zações religiosas e da sociedade civil.

    CONHEÇA A RAISGDesde sua fundação, o principal objetivoda Raisg (iniciativa regional que promoveo acesso à informação e propõe desafiosfuturos) é incentivar e facilitar a coopera-ção entre as instituições que já trabalhamcom sistemas de informações georreferen-ciadas socioambientais nos oito países daAmazônia e da Guiana Francesa. Atualmen-te, a rede tem 11 instituições associadas(raisg.socioambiental.org/instituciones). Aproposta da rede sempre foi criar um ambi-ente propício para o desenvolvimento delongo prazo, cumulativo e descentralizado,que permite compilar, construir e publicarinformação e análise sobre a dinâmica con-temporânea da (Pan) Amazônia.

    Este atlas tem como objetivo consolidaruma visão ampla e inclusiva regional quevai além da Amazônia no Brasil, e inclui oambiente andino e amazônico guianenses.

    É um esforço histórico para analisar a ques-tão do desmatamento em toda a Amazôniausando uma metodologia padronizada.

    O trabalho para a implementação depen-deu de várias reuniões físicas em São Pau-lo, Lima, Belém, Bogotá e Quito, desde2009, e teve o apoio de instituições como aFundação Rainforest da Noruega, a Fun-dação Ford, a Fundação Avina e a Skoll.

    Um dos principais desafios para as insti-tuições envolvidas na Raisg será calcularo desmatamento acumulado até 2000, anotomado como base na primeira ediçãodo Amazônia sob Pressão.

    Atualmente, a Raisg está em processo dedesenvolvimento de um plano de trabalho2013-2015, que inclui: rotina de manutençãoe atualização, desenvolvimento, difusão eanálise de dados para as pressões e amea-ças, a expansão de temas de trabalho, esta-belecer acordos de cooperação com outrasredes para gerar produtos conjuntamente ea criação de redes sub-regionais. ■

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    Oprojeto South AmericanBiomass Burning Ana-lysis (SAMBBA) é resultado deuma parceria entre a USP, oInstituto Nacional de Pesqui-sas Espaciais (Inpe), a Univer-sidade de Manchester, no Rei-no Unido, e o UK-Met-Offi (serviço meteorológico britânico). A iniciativa conta com apoio do Natural Environment Re-search Council (Nerc), da Inglaterra, que ajudou a financi-ar a aeronave. Os equipamentos usados na coleta de da-dos foram cedidos por diversas universidades britânicas.

    No Brasil, os experimentos são financiados pela FAPESP, pormeio de dois projetos de Auxílio à Pesquisa – Regular, umcoordenado por Paulo Artaxo, professor da USP e um doscoordenadores do SAMBBA, e outro por Karla Longo, do Inpe.

    Tanto os pesquisadores britânicos como os brasileiros sen-tiam a necessidade de melhorar a previsibilidade dos mo-delos climáticos para a região amazônica. Ben Johnson,do Met Office do Reino Unido, destaca que a Amazôniaestá entre as quatro maiores regiões do globo em termosde queima de biomassa. “Realizamos experimentos seme-lhantes em países como Canadá e África do Sul. As previsõesde nosso serviço de meteorologia abrangem todo o globo eesperamos, com esses dados da América do Sul, melhorar aqualidade das previsões”, disse à Agência FAPESP.

    PlanejamentoPlanejamentoPlanejamentoPlanejamentoPlanejamento – Para atingir o objetivo são analisadosdados de satélites, projeções feitas pelos modelos climáti-cos já existentes e informações da Aerosol Robotic Ne-twork (Aeronet) – rede que em parceria com a USP e aagência espacial dos Estados Unidos (Nasa) – faz medi-ções frequentes da coluna de aerossóis (partículas sólidasde fumaça) sobre a Amazônia. “Combinamos todas essasinformações para decidir aonde voar e que tipo de vôofazer. Podemos fazer medições a 150 metros de altitude,para analisar as propriedades da fumaça recentementeemitida, ou a 12 quilômetros de altitude, para ver as altera-ções físico-químicas sofridas pela fumaça envelhecida etransportada pela convecção”, explica Artaxo.

    O avião de pesquisa é equipado com espectrômetros demassa, monitores de ozônio, gases de efeito estufa e

    Para entender como as emissões de queimadas na Amazônia estão alterando o clima local e planetário, pesquisado-res brasileiros e britânicos tem sobrevoado a região desde o outubro de 2012 para coletar dados sobre a composiçãoquímica e propriedades físicas da fumaça. Verificam ainda de que forma os gases e as partículas sólidas lançados noar modificam a composição das nuvens, alteram a química da atmosfera e interagem com a radiação solar.

    AMAZÔNIA, QUEIMADAS E CLIMA

    fotômetros de absorção eespalhamento de luz, alémdo Lidar, laser que mede adistribuição vertical de par-tículas de aerossóis a cadasegundo. “Os equipamentosfazem medidas extremamen-

    te precisas e em alta resolução temporal. No caso dos ga-ses de efeito estufa (CO2, CH4, N2O), por exemplo, a mar-gem de incerteza é de 0,1%”, diz Artaxo. São analisadastanto as emissões resultantes do desmatamento quantoas relacionadas à prática de queimadas da agricultura ede manutenção de pastos. “Embora esses dois tipos dequeimadas se concentrem em regiões diferentes da Amazô-nia – desmatamento ao norte, na região do norte do MatoGrosso, e agricultura mais próximo da fronteira com o Cer-rado –, as emissões estão relativamente perto e se misturamna atmosfera”,informa Artaxo.

    Um dos objetivos do estudo é avaliar a diferença entre essesdois tipos de emissões e a contribuição de cada um delespara o efeito estufa e as mudanças climáticas na região.“Medimos a quantidade de sulfato, de nitrato e de materialorgânico na fumaça em tempo real. Também analisamos aspropriedades físicas das partículas sólidas, como tamanhodesde 10 nanômetros e os coeficientes de absorção e deespalhamento de radiação. Tudo isso está relacionado com oimpacto das emissões sobre o clima e o balanço radiativoterrestre”, relata Artaxo. Também são medidas as concentra-ções de monóxido de carbono, de ozônio, de óxidos denitrogênio e de compostos orgânicos voláteis. “Existe umaenorme gama de compostos orgânicos voláteis e muitos delesnunca foram medidos em queimadas no Brasil.”

    Após o término da coleta de dados, terá início o processode análise da grande quantidade de informações e deaprimoramento dos modelos climáticos que, segundo oscientistas, deve durar cerca de quatro anos. “Modelos cli-máticos são representações numéricas dos processos quí-micos e físicos que acontecem na atmosfera. É necessário,portanto, conhecer bem os fenômenos para construir umconjunto de equações que os representem de forma preci-sa”, destaca Longo. Também participam da coordenaçãodo SAMMBA os pesquisadores Hugh Coe e Saulo Freitas,da Universidade de Manchester e Inpe, respectivamente.

    Fonte: Karina Toledo/Agência FAPESP. Artigo publicado pelo EcoDebate (02/10/2012).

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    Entrevista com Maurício Waldman/IHU

    O mundo atual gera mais refugoque carboidrato básico. Contudo,esta notável volumetria de resíduosparece não satisfazer a obsessão emmaximizá-la. O resultado é umaautêntica cascata de lixos, na qualSão Paulo desponta como o tercei-ro pólo gerador do planeta.

    IHU ON-LINE – DE MODO GERAL, COMO VOCÊ DEFINE OPROBLEMA DO LIXO NA SOCIEDADE MODERNA?Maurício Waldman – Há um problema mundial relacionado aolixo que é inegável. Neste prisma, um dado que chama a atenção éfornecido pela literatura técnica relacionada com o tema. Admite-se que atualmente exista um descarte mundial de 30 bilhões detoneladas de resíduos por ano. Seria meritório advertir que oslixos já assumiram os contornos de uma calamidade civilizatória.Em termos mundiais, apenas a quantidade de refugos municipaiscoletados – estimada em 1,2 bilhões de toneladas – supera nosdias de hoje a produção global de aço, orçada em 1 bilhão detoneladas. Por sua vez, as cidades ejetam rejeitos – 2 bilhões detoneladas – que superam no mínimo em 20% a produção planetá-ria de cereais, demonstrando que o mundo moderno gera maisrefugo que carboidrato básico.

    Contudo, mesmo esta notável volumetria de resíduos parece nãosatisfazer a obsessão em maximizá-los. O resultado disso é uma au-têntica cascata de lixos. Exemplificando, a população norte-america-

    Fotos: Brasília-Catadores recicláveis Marcello CasalJr/ABr

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    na cresceu quase 2,5 vezes entre 1960 e 2000. Porém, o já magnânimodescarte dos Estados Unidos praticamente triplicou desde 1960.

    Adicionalmente, outras peritagens mostram que no ano 2020 aUnião Europeia estará descartando 45% mais rebotalhos do queem 1995. Na União Europeia, um pormenor candente é que o lixodomiciliar se expandiu, inclusive em países com evolução popu-lacional pouco expressiva. No caso espanhol, sete anos (1996-2003) foram suficientes para incrementar os refugos em 40%.

    IHU ON-LINE – E NO BRASIL, COMO SE SITUA ESTE PROBLEMA?M.W. – Malgrado uma nebulosa peça acusatória culpabilizar ospaíses do Norte pela geração do lixo, o Brasil – ao lado de outrasnações do hemisfério Sul – ocupa uma incômoda posição na ques-tão dos refugos. No caso, tanto pelas proporções como pela médiaper capita. Na verdade, o lixo brasileiro supera a maioria das naçõesperiféricas. Não seria demasiado sinalizar que conquanto corres-ponda a 3,06% da população mundial e 3,5% do PIB global, o Brasilseria, por outro lado, origem de um montante estimado entre 5,5%do total mundial dos resíduos sólidos urbanos. Dito de outro modo:o país é um grande gerador mundial de lixo e deve assumir suaresponsabilidade em contribuir para com a resolução do problema.

    IHU ON-LINE – QUAIS OS PRINCIPAIS E MAIS URGENTES DESAFI-OS A SEREM ENFRENTADOS?M.W. – A situação não admite vacilação e precisamos adotar de ver-dade os famosos quatro “Rs” : repensar, reduzir, reutilizar e reciclar.A ordem de aplicação é exatamente essa, começando com repensar eterminando com reciclar. Repensar a sistemática de ejeção dos lixos éfundamental, pois o problema, apesar de normalmente visto como umaproblemática econômica, é, em larga escala, um tema também pavimen-tado por injunções sociais, políticas e culturais.

    No caso brasileiro, o país vivencia nos últimos 20 anos uma esca-lada na desova de descartes de uma forma que não têm preceden-tes. Entre 1991 e 2000, a população brasileira cresceu 15,6%. Porém,o descarte de resíduos aumentou 49%. Sabe-se que em 2009 a