Rccs 4166 91 Nuno Portas Hestnes Ferreira Conceicao Silva Sobressaltos Em Lisboa Anos 1960

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Revista Crítica de Ciências Sociais 91 (2010) Debate social e construção do território ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Jorge Figueira Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceição Silva: Sobressaltos em Lisboa, anos 1960 ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Aviso O conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusiva do editor. Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digital desde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquer exploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e a referência do documento. Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casos previstos pela legislação em vigor em França. Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a edição eletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França) ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Referência eletrônica Jorge Figueira, « Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceição Silva: Sobressaltos em Lisboa, anos 1960 », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 91 | 2010, posto online no dia 16 Outubro 2012, consultado o 30 Janeiro 2013. URL : http://rccs.revues.org/4166 Editor: Centro de Estudos Sociais http://rccs.revues.org http://www.revues.org Documento acessível online em: http://rccs.revues.org/4166 Este documento é o fac-símile da edição em papel. © CES

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  • Revista Crtica de CinciasSociais91 (2010)Debate social e construo do territrio

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    Jorge Figueira

    Nuno Portas, Hestnes Ferreira,Conceio Silva: Sobressaltos emLisboa, anos 1960................................................................................................................................................................................................................................................................................................

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    Referncia eletrnicaJorge Figueira, Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceio Silva: Sobressaltos em Lisboa, anos 1960, RevistaCrtica de Cincias Sociais [Online], 91|2010, posto online no dia 16 Outubro 2012, consultado o 30 Janeiro 2013.URL: http://rccs.revues.org/4166

    Editor: Centro de Estudos Sociaishttp://rccs.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessvel online em: http://rccs.revues.org/4166Este documento o fac-smile da edio em papel. CES

  • Revista Crtica de Cincias Sociais, 91, Dezembro 2010: 77-89

    JORGEFIGUEIRA

    NunoPortas,HestnesFerreira,ConceioSilva:SobressaltosemLisboa,anos1960

    nos anos 1960, a arquitectura portuguesa vai disseminar -se em vrias experincias antagnicas. nuno Portas, hestnes ferreira e Conceio silva demonstram que o projecto de arquitectura no decorre de uma doutrina, e que a cultura arquitectnica um campo crescentemente complexo. Portas rompe com a tradio Beaux Arts, que em Portugal tambm a da arquitectura moderna, em nome de uma proficincia da anlise e do sistemtico; hestnes ferreira integra uma histria poetizada na arquitec-tura moderna, seguindo a porta aberta por louis Kahn, com quem trabalha; Conceio silva reflecte uma relao permevel e inclusiva com o mercado, tambm das ima-gens, que a partir dos anos 1980 ser comum na prtica da arquitectura. A resposta cientfica, a exigncia potica e o dilogo comrcio/arte que as trs experincias denotam, respectivamente, constituem, ainda hoje, uma aspirao particular para a jovem arquitectura portuguesa.

    Palavras-chave: anos 60; arquitectura moderna; arquitectura portuguesa; lisboa.

    Na arquitectura portuguesa dos anos 1960 alguma coisa comea a acontecer. No de rompante, nem com manifestos. Se o Porto segue o seu caminho ntimo, e de frica e Macau pouco se sabe, em Lisboa, a placa outrora com-pacta do Movimento Moderno, conforme consagrada no Congresso de 48, comea a mover -se. Nuno Portas, Hestnes Ferreira e Conceio Silva representam trs movimentos distintos, at antagnicos, em muitos aspec-tos. Mas tm em comum a procura de alternativas inatingvel perfeio e centro -europeia racionalidade da arquitectura moderna, que est, alis, na Europa e na Amrica a ser contestada em muitos ngulos, em nome da Histria, do senso comum, ou da avassaladora Segunda Era da Mquina.

    Nas suas diferenas, nas suas diversas coreografias, Portas, Hestnes e Conceio Silva demonstram que o campo est aberto, e que mesmo num pas perifrico e de cara amarrada como Portugal, alguma coisa tem que acontecer. Porque no superfcie que a crise do moderno surge, mas estrutural e implacavelmente. Representam, por isso, trs importantes etapas para a arquitectura portuguesa, cuja aco e efeito ainda hoje se fazem sentir.

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    Como veremos, Portas rompe com a tradio Beaux Arts, que em Portu-gal tambm a da arquitectura moderna, em nome de uma proficincia da anlise e do sistemtico; Hestnes Ferreira integra uma histria poetizada na arquitectura moderna, seguindo a porta aberta por Louis Kahn, com quem trabalha; Conceio Silva reflecte uma relao permevel e inclusiva com o mercado, tambm das imagens, que a partir dos anos 1980 ser comum na prtica da arquitectura. Paradoxalmente, embora cada uma destas aborda-gens tenha referentes muito claros no contexto internacional, demonstram uma capacidade de emancipao, isto , de reflexo terica e de adaptao contextual de que ainda hoje a arquitectura portuguesa devedora.

    NunoPortasometaprojectonapassagemdaarquitecturaparaacidadeNuma extraordinria antecipao, Nuno Portas anuncia j em 1959 (Portas, 1959: 13 -14) aquilo que se torna claro em A arquitectura para hoje, o livro que publica em 1964, e que ser o seu eixo central de actuao: a importncia da demanda metodolgica e a promoo de uma abordagem cientfica, em detrimento da intuio e da artisticidade como modelos para a arquitectura.

    Portas pretende ento investigar a hiptese de um metaprojecto capaz de superar o impasse que decorre da runa do racionalismo e da ecloso de

    NunoPortas(1969),A cidade como arquitectura.Lisboa,LivrosHorizonte

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    novos formalismos, visionrios ou no. semelhana do que acontecia na arquitectura moderna antes do Estilo Internacional se impor como cultura de projecto, esta abordagem sistmica pretende evitar a discusso estilstica tida como frvola e circunstancial. De qualquer modo, a superao do estilo no passa agora pela canonizao de um estilo ltimo como culminar da histria, mas a ateno dada ao processo, seguindo a investigao da Escola/Labo-ratrio da Universidade de Cambridge. O trabalho deste ncleo de investi-gao, como escrever Portas mais tarde, produziu uma verdadeira inovao nos mtodos [...] alargando e aprofundando a racionalidade de que o moder-nismo se reclamava abrindo ento as janelas da teoria aos domnios da lgica e da matemtica, da biofsica e das cincias humanas (Portas apud Krger, 2005: 11) O metaprograma e o metaprojecto de que Portas fala, por reflexo destas experincias, significava a formulao do problema arquitec-tnico como uma equao com todas as necessrias variantes colocadas em jogo. O resultado, nesse caso, seria o mais correcto, desde logo porque no dependia da falvel intuio do arquitecto. Embora a matriz da aportao portuguesa seja ento claramente centrada no manuseamento formal de ele-mentos modernos e tradicionais, na linha da crtica de Bruno Zevi a Ernesto Rogers, comeando a haver sinais de um certo reconhecimento internacional,1 o trabalho de Portas no LNEC, onde ingressa em 1962, d o passo em frente no sentido da ruptura com a tradio artstica da arquitectura em Portugal. Portas passa do antirracionalismo zeviano para o culturalismo de Rogers, e avana no sentido da assuno dos princpios da Escola de Cambridge e das propostas de Christopher Alexander.

    J em 1963, a propsito de uma experincia pedaggica na ESBA [Escola Superior de Belas Artes] do Porto, Portas defende a necessidade de uma reflexo antropolgica sobre o contedo das formas espontneas se for feita sem iluses (Portas, 1963: 17), dir -se -ia, sem arquitectura, e crtico dos modelos em voga: um regionalismo falso at s entranhas e um moderno retomado do estilo internacional por via brasileira (Portas, 1963: 16 -17). J nesta altura, Portas tem conscincia precoce de uma emi-nente apropriao banal dos contedos do Inqurito:

    Sobretudo aps a publicao da Arquitectura Popular em Portugal, cremos encontrar, com frequncia crescente, uma propenso ao rstico, uma espcie de esttica de tradi-cionalismo e bom senso [...] mas que no tem sequer o suporte de uma ideologia popu-lista como o experimentaram os italianos do famoso Triburtino. (Portas, 1963: 17)

    1 A obra de Fernando Tvora e lvaro Siza publicada em 1964 na World Architecture One (org. John Donat. London: Studio Vista); trata -se da primeira publicao internacional das suas obras.

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    O problema tambm que, para Portas, o Inqurito no tem um registo suficientemente cientfico e interdisciplinar para ser utilizado segundo as exigentes premissas que se querem adoptar. Portas defende o estudo mais do que o desenho e as suas iluses: as sociedades que se organizam no podero, cremos, aceitar que a criao dos seus prprios espaos seja mais feita de instinto ou ao sabor do sentimento, sobre um rpido organograma distributivo (Portas, 1963: 18). O processo tem que ser racionalizado, o que evitar o racionalismo; a sistematizao da informao torna possvel a sua interpretao em forma; forma que tende assim a ser estrutural, isto , a objectivar as necessidades vitais do homem (Portas, 1963: 18).

    O livro que publica em 1969, A cidade como arquitectura, traduz a evo-luo do seu pensamento, como resultado das investigaes no LNEC e tambm da sua experincia pedaggica na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, na segunda metade da dcada. A progresso que se sugeria no livro de 1964, no sentido da pesquisa do aprofundamento dos mecanismos do projecto mais do que a discusso da semntica das obras,2 agora assu-mida. O que significar, na prtica, um distanciamento das questes da arquitectura no sentido de um aprofundamento da questo urbana.

    Com a passagem da crtica para as questes metodolgicas do projecto ocorre tambm uma mudana de objecto de estudo: do edifcio, como artefacto, para a cidade, como territrio. A chave zeviana mantm -se porm como referncia cultural, no antagonismo face ao esquema rgido de Braslia [] que sofre neste momento a contestao de tendncias de expanso (Portas, 1963: 24), a que agora se pode acrescentar a crtica s derivas visionrias a Oriente (os Metabolistas) e a Ocidente (Archi-gram) (Portas, 1963: 24), que se fazem sentir nesses anos. Portas reitera a crtica ao moderno, recorrendo a uma expresso rossiana (Rossi, 1995: 35 -39) superar relaes determinsticas de ingnuo funcionalismo (Portas, 2007: 122) e recusa a arbitrariedade no -relacional dos forma-lismos contemporneos (idem), ou seja, a objectualidade fantstica das propostas visionrias.

    Na prtica, Portas quer superar tout court o formalismo estilstico na arquitectura, que afirma tratar -se de um campo quase desprovido de feed--back (Portas, 2007: 122). Como consequncia, o arquitecto uma figura socialmente pouco responsvel, desobrigando -se da prestao de contas sociedade e com tendncia a isolar -se perigosamente de outros caminhos pelos quais os homens avanam (idem). Da tambm a importncia da

    2 essa alterao que Portas refere no posfcio que escreveu para A cidade como arquitectura [1969]: a sintaxe, em vez das semnticas que dominavam o meu livro anterior (Portas, 2007: 207).

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    sociologia enquanto forma de anlise sistematizada das consequncias da arquitectura. Para sair da esfera artstica que tende a isentar o arquitecto de compromissos sociais e de uma aferio sistemtica do que produz, preciso encontrar um sistema que organize o projecto, viabilizando, nesse sentido, a accountability das suas premissas e resultados. A nfase colo-cada na concepo de um processo de projectar, em vez de um pro-jecto (Portas, 2007: 34), de acordo com o considervel esforo de clarificao metodolgica comummente conhecido pela designao de mtodos sistemticos de projecto (Portas, 2007: 43). Para Portas, esse tipo de investigao significa uma descontinuidade vital com a teoria da arqui-tectura, sempre polarizada na descrio de intenes e linguagens fun-cionalismo, empirismo, racionalismo permitindo sair da discusso do resultado para a avaliao do processo de organizao de um objecto (idem). Assim se abriria uma nova fronteira, superando de vez o obs-curantismo de tendncias formalistas de escolas (idem). De acordo com as premissas do estruturalismo, ento em voga, Portas visa encontrar aquilo que decisivo no interior daquilo que aparente, fixar uma estru-tura que possa ser conhecida, dominada e comunicada. Para que haja o feedback, que permite a construo de um processo ciberntico, neces-sria a conscincia de uma lngua comum que assegure coerentes estru-turas de signos, ou uma base de sintaxe arquitectural (Portas, 2007: 32) A ideia de um metaprojecto ou de um metaprograma (Portas, 2007: 33) significa ento a fixao dessa sintaxe como instrumento que permite a avaliao e resposta dos casos em questo antes ainda ou para l das pre-ocupaes formais convencionalmente arquitectnicas.

    Em qualquer dos casos, a dmarche de inspirao estruturalista de Por-tas acompanhada pela refutao clara de qualquer fundamento demirgico na aco do arquitecto ou possibilidade redentora por efeito da arquitec-tura. Isto mesmo deixado claro na referncia a Chombart de Lauwe, que Portas identifica como tendo posto em causa o problema da legitimidade do arquitecto impor um estilo de vida, por progressista que fosse o seu pro-jecto social (Portas, 2007: 137). Embora o ttulo do livro, A arquitectura como cidade, tenha ressonncias rossianas, de facto, os seus contedos so muito diversos. O que interessa a Nuno Portas , desde ento, a matriz do seu posicionamento, o processo que leva forma e no a potica da forma, como acontece com Aldo Rossi. Da a passagem, que ser patente nas dca-das seguintes, e ainda hoje, para as temticas do urbanismo em detrimento da objectualidade arquitectnica.

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    HestnesFerreiraahistriaatravsdaportaabertaporLouisKahnO trabalho de Ral Hestnes Ferreira com Louis Kahn, entre 1962 e 1965, alarga o quadro geocultural da arquitectura portuguesa nos anos 1960. Depois de construir a Casa em Albarraque (1960 -1961), de influncia aaltiana, e de passar por Helsnquia, onde trabalhou no atelier de Bacckmann, Hestnes vai para a Amrica em 1962, estagiando com Paul Rudolph na Universidade de Yale. Hestnes conta que a escola funcionava no ltimo andar do Museu de Yale do Kahn e um belo dia o curso deslocou -se a Filadlfia para visit--lo (Ferreira, 1973: 3). Transferindo -se para l depois da visita, Hestnes passa um ano no curso de Master da Universidade da Pensilvnia e dois no atelier de Kahn. Esta experincia permitiu -lhe, como afirma, conhecer a fora moral e a posio profissional de Kahn, que embora estando em antagonismo com os valores estereotipados e vulgares do meio americano [...] tambm amado pelos seus concidados (idem). Afirma ter reencon-trado a, os valores da integridade estrutural e construtiva que tinha observado em Aalto, sendo tambm marcado pelo interesse de Kahn na explorao do conhecimento dos grandes exemplos do passado e em particular pela construo romana que descrevia em termos maravilhados (Ferreira, 1973: 3 -4). tambm a personalidade de Kahn que o impressiona: um homem que se preocupava to pouco com os haveres [...] e estvamos

    RalHestnesFerreira,CasaemQueijas,Arquitectura,129,Abril1974,capa

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    ainda em 1964, longe dos Woodstock. Naquilo que considera serem os primeiros sintomas de contestao sociedade de consumo [...] Kahn era um percursor (Ferreira, 1973: 4).

    De facto, para l das experincias que radicalizam o projecto no sentido da anlise cientfica ou das propostas fantsticas, os anos 1960 so tambm atravessados por Kahn, figura capaz de integrar as conquistas da arquitec-tura moderna na sensibilidade cultural que emerge no ps -guerra, interes-sada tambm naquilo que no muda, para l daquilo que est a mudar. Kahn realiza uma improvvel mediao americana entre o moderno e a tempora-lidade mediterrnica da histria da arquitectura. Diramos que regressa ao momento em que Le Corbusier, em Vers une Architecture (1923), coloca os prismas geomtricos face ao Coliseu e ao Panteo para demonstrar a sua ancestralidade, que pode agora ser assumida sem a mediao clssica. Aban-donando a retrica modernista, Kahn permite -se abraar tudo e regressar ao princpio. Como dir Hestnes: O Kahn defendia que a Arquitectura una. Recusava essa coisa de dizer: acabou a arquitectura Moderna comeou a no sei o qu... (Ferreira, 2002: 281). O dictum o que quer ser um edifcio? significa a negao do determinismo formal da funo que emblemtico da arquitectura moderna. Para Kahn, a arquitectura a conformao de uma instituio que preexiste a escola, por exemplo num determi-nado lugar e tempo. Num momento de desejo (ou de silncio), o desenho d expresso arquitectura que surge como luz (Kahn, 1973: 131). Est encontrado aquilo que o edifcio quer ser.

    Atravs de Hestnes e depois de Manuel Vicente, apesar da distncia e da diferena cultural, a influncia de Kahn faz -se sentir na cultura arqui-tectnica portuguesa. J em 1962, Portas tinha -o apresentado na revista Arquitectura como uma alternativa vivel ao impasse racionalista e s deri-vas estilsticas italianas, sublinhando o carcter reflexivo, introspectivo e profundo da sua abordagem:

    Para Kahn a revolta contra uma estagnao da arquitectura no vem, como noutros, de se ter subestimado a arte nova ou de deixar cair a actividade profissional numa repetio montona de clichs mas de se no pensar uma obra at ao mago, de se no lhe procurar a forma de um modo estrutural e significante. (Portas, 1962: 23)

    Depois de regressar da Amrica, Hestnes d conta da realidade americana em dois artigos: Algumas reflexes sobre a Cidade Americana (Ferreira, 1966: 1 -8) e Aspectos e correntes actuais da arquitectura Americana (Ferreira, 1967: 148). E a Casa de Queijas (1968 -1973) j reflexo da lio kahniana, na gravidade telrica do tijolo, uso de arcos e afirmao domstica.

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    Tanto os vos como a cobertura reproduzem a ideia ancestral de casa. Os arcos achatados remetem directamente para a construo romana; as chamins em tijolo para tradies islmicas ou ibricas. Mas no se trata de um regresso revivalista ao passado. O que o projecto de Kahn pressupe, e Hestnes integra, uma inveno que investe nos temas tradicionais das cul-turas mediterrnicas. Este relativismo e esta incluso colocam -nos no limiar da cultura ps -moderna. Nada realmente verdadeiro, mesmo se parece ser. Se os elementos arqutipos remetem para a tradio, o desenho novo, asse-gurando a continuidade das conquistas da arquitectura moderna. As tcnicas construtivas artesanais so invadidas por uma liberdade formal e grfica. Numa primeira abordagem, estamos perante a presena de casas comuns, reproduzindo as duas guas do telhado domstico. Numa abordagem mais prxima, evidente que cada elemento, cada momento da casa desenhado com a erudio de arquitecto: as guardas, as chamins, as janelas, todos os elementos remetem para uma tradio laboriosamente reinventada. Se numa primeira impresso o edifcio surge como construo arqutipa, o requinte e a complexidade do desenho coloca -nos na segunda metade do sculo XX.

    Como afirmou Alexandre Alves Costa, Hestnes chegou ao Mediterr-neo por um longo e sinuoso caminho, do Porto Finlndia, da ordem dos Modernos a Kahn, a Roma, universalidade da ordem compositiva. Che-gou mais tarde a Itlia do que muitos outros da sua gerao porque nunca lhe interessaram as razes estilsticas que tanto os entusiasmaram (Costa, 2007: 125). Este complexo itinerrio alarga a geografia da arquitectura por-tuguesa, mesmo se Hestnes se instala num espao temporal paradoxalmente pouco permevel ao tempo que passa. Hestnes resolutamente pr -Robert Venturi, assumindo que a gerao de Kahn estabeleceu a ponte com a grande arquitectura do passado, o que at conduziu s vezes a atitudes estreis e historicistas (Ferreira, 1973: 5). A sua abordagem mantm -se, desde ento, firmemente kahniana, potica e fundacional, sem descer, como notoriamente Venturi desceu, realidade. Diz Venturi: Kahn respeitava a direco de Las Vegas que Denise e eu tommos, mas no a podia aceitar para ele prprio (Venturi, 1991: 98). A arquitectura de Hestnes perma-nece num tempo parte, ainda hoje, fazendo justia sua filiao e sua demanda temporal que, por definio, no pode incluir o efmero.

    ConceioSilvaprimeirasimpressesnomercadodasimagensO trabalho do Atelier de Francisco Conceio Silva, das primeiras lojas de 1954 e 1955 at o projecto de Tria, interrompido com a Revoluo de 1974, enquadra -se bem no fim da normativa racionalista e da sua exigente tica herica. Multidisciplinar, formalmente permevel, a obra do Atelier

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    Conceio Silva d lugar a abordagens que reflectem a sensibilidade pop, mas tambm a aspectos pouco habituais na arquitectura portuguesa, como o organicismo lrico de um ltimo Frank Lloyd Wright no plano do Com-plexo Turstico do Sal -Shell, em S. Pedro do Estoril (1967); ou uma suges-to metabolista no Plano de Ocupao de Avenida de Roma (1971) e no plano de Urbanizao do Vale do Restelo (1973). A sugesto de uma cons-truo aditiva, fetiche dos anos 1960 o Montreal 67 de Safdie, o Nagakin Capsule Tower (1972) de Kurokawa , ser alis retomada no projecto de Chelas (Zona J, 1975 -1978), de Toms Taveira.

    O Atelier Conceio Silva, do ponto de vista organizacional como na abordagem do projecto, adopta o clima de prosperidade econmica e de usufruto liberal que a passagem dos anos 1950 para 1960 consagra nos pases desenvolvidos. Entende as experincias da vanguarda arquitectnica como fontes que permitem desenvolver um produto competitivo, bem informado e up -to -date. Faz a mediao entre as necessidades de um mercado que em Portugal incipiente e um cosmopolitismo a que se aspira. A partir da segunda metade da dcada de 1960 encontra alguma verosimilhana nas tentativas que o regime faz no sentido da implementao de um capitalismo

    AtelierConceioSilva,LojaValentimdeCarvalho,Arquitectura,108,Maro/Abril1969,70

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    liberal, de que o surto turstico sinal prtico. A manifesta disposio de ir ao encontro do que a sociedade quer, num projecto de mediao e j no de vanguarda, rompe com a tradio politicamente resistente e profissio-nalmente austera que move a melhor arquitectura portuguesa. Estas duas perspectivas tiveram alis o seu cisma no Encontro Nacional de Arquitectura de 1969, como est documentado (Fernandez, 1988: 173). A produo do Atelier Conceio Silva traduz uma adeso ao tempo presente, pretendendo introduzir e incentivar no pas, a partir da arquitectura, valores emergen-tes nas sociedades desenvolvidas: o design, a moda, o conforto, o lazer, a seduo da imagem e o primado do consumo.

    A abordagem de Francisco Conceio Silva decorre inicialmente da tra-dio moderna. Em 1971 rev a grande emoo que foi visitar as obras modernas no Porto (Silva, 1971: 43). Mas evolui no sentido de considerar o arquitecto como um gestor, em detrimento da figura do artista: o arquitecto era um chefe de orquestra. [...] Aquele que dominava a totali-dade da concepo do projecto arquitectnico ou da obra. [...] Num campo que eu hoje considero, necessariamente, como completamente ultrapassado. Um campo quase potico [] de eleitos (Silva, 1971: 43). Nesse sentido, assume uma viso empresarial que lhe permite, a partir do Hotel Balaia (Albufeira, 1965 -1967) onde foi responsvel pelo conjunto da obra , criar uma empresa de construes, com um sector grfico [...] que fez surgir mais tarde uma agncia de publicidade [] e ainda um sector de engenharia [...] e sector de investimentos (Silva, 1971: 45). A abordagem tecnocrtica no negada: so garantidos prazos, so garantidos custos [...] o ser feio ou bonito... pode ser importante mas est assim numa terceira ou quarta importncia (Silva, 1971: 45).

    O Hotel do Mar (Sesimbra, 1956), capa na revista Arquitectura em 1963 (Silva, 1963: 22 -27), tinha revelado esse processo de mediao entre a arqui-tectura erudita detalhes italianizantes e aspectos brutalistas com assu-midos pressupostos comerciais. A publicao de Decorao de trs lojas em Lisboa (Leal, 1966: 83 -87), em 1966, na revista Arquitectura reflecte o investimento na arquitectura de interiores e sinaliza o encontro com o gosto do pblico no sentido da eficcia comercial da imagem arquitect-nica. Em 1967, a publicao das Lojas Rita e Maison Louvre permite a Carlos Duarte reflectir sobre esse tema, em antecipao de questes que se colocaram centralmente mais tarde. O trabalho do arquitecto destina--se a um pblico real e no pode ser uma simples forma de afirmao de conceitos estticos abstractos (Duarte, 1967: 262). Carlos Duarte aborda o gosto do momento e as leis do mercado como elementos que se impem na reflexo arquitectnica:

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    Um gosto feito, entre outras coisas, de entusiasmos e adeses pelo vesturio, pela msica pop, pelos ltimos modelos de automveis, pelos posters e por mil e uma coisas (incluindo as correntes experimentais na literatura, no cinema e nas artes plsticas) tudo matrias fteis (evidentemente) que no merecem o favor das pessoas srias. (Duarte, 1967: 263)

    De facto, Carlos Duarte esboa j nesse artigo um programa de contesta-o ao minimalismo como estratgia moderna, que decorre de Venturi, mas ser retomado repetidamente uma dcada mais tarde, como consagrao da condio ps -moderna na arquitectura:

    Com ou sem o seu favor, o design liberta -se aos poucos das tcnicas de rarefaco, das tutelas dos Mies, de Eames e dos escandinavos e surge -nos agora como um espectculo, uma festa alegre, colorida, cheia de calor e imaginao, fantasia e juventude. (less is more? less is less!). Com grande escndalo dos ltimos puritanos, multiplica -se em descobertas e redescobertas (do fin de sicle) e no despreza tambm as ninharias que constituem j hoje uma tradio do folclore urbano. (idem)3

    O Atelier Conceio Silva utiliza as vrias ramificaes estilsticas dos anos 1960, no quadro de uma economia de mercado que esboava os primei-ros passos. Colocando -se para l da resistncia do atelier de vo de escada, vive numa espcie de permanente primavera marcelista, perante os atavis-mos da sociedade portuguesa. De algum modo, nessa mediao e precrio equilbrio , entre a alta cultura e as preocupaes comerciais surge como precursor daquilo que se chamar a democratizao do gosto, a disponi-bilizao do erudito ao usufruto colectivo. Paulo Martins Barata encontra, sob o espectro da resposta eficaz e empresarialmente correcta, elementos neo liberty de BBPR [...] da metafrica Torre Velasca (Barata, 2000: 55) no Hotel do Mar, atravessando a adopo de James Stirling, e descrevendo o Plano de Ocupao da Avenida de Roma em correspondncia histrica com as utopias de mobilidade urbana de Yona Friedman (LArchitecture Mobile, 1968) e Ron Herron (Walking City, 1964) (Barata, 2000: 63).

    A faceta multidisciplinar do Atelier Conceio Silva singular tambm nos seus resduos bauhausianos de controlo total do ambiente. A pers-pectiva de uma integrao da prtica artstica numa produo industrial revela essa feio. De facto, a colaborao com artistas Rolando S Nogueira (1921 -2002), entre outros revela a filiao na prtica moderna de integrao das artes, conceito somente superado, com um resultado

    3 Segundo Carlos Duarte, Conceio Silva nestas obras abandona um design de rigor moderno [...] para aceitar as sugestes de Kings Road e de Saint Germain (Duarte, 1967: 263).

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    muito particular, na Loja Valentim de Carvalho (Toms Taveira, 1966 -1969). No ps -25 de Abril, o atelier de vo de escada ganhar outra dimenso, tentando integrar tambm o senso comum e o gosto do cliente e encon-trar, no mercado das imagens, a sua viabilidade.

    No encerrado espao portugus dos anos 1960, estas trs experincias demonstram uma sagacidade prpria da arquitectura portuguesa. Exem-plificam algumas das principais coordenadas da turbulenta cultura arqui-tectnica dos anos sessenta, no contexto internacional: a procura de uma abordagem cientfica que permita identificar e enfrentar a complexidade da cidade moderna (Portas); a incluso da histria da arquitectura, abrindo o campo das formas e dos modelos construtivos como sada do impasse da arquitectura moderna (Hestnes); a permeabilidade aos mecanismos do mer-cado oferta/procura, publicidade/consumo no entendimento da arqui-tectura como produto (Conceio Silva). No entanto, no espao curto da arquitectura portuguesa estes trs plos no se tocam e at se repelem. Nesse sentido, criam campos magnticos com graus distintos de assimilao e con-sequncia. Mas, tambm por isso, mostram como a arquitectura portuguesa responde crise do moderno, num movimento de reinveno e emancipao.

    Descentrando -se e desencontrando -se, a arquitectura portuguesa con-tempornea ganha substncia terica e capacidade experimental e deixa de funcionar em perca face ao centro; liberta -se da fixao no modelo centro -europeu racionalista e passa a incluir outras nuances geoculturais.

    Desde ento, a aproximao cientfica que Portas reivindica desde os anos sessenta tem sido testada particularmente na rea do urbanismo; o principal legado desta abordagem a importncia dada ao desenho e tratamento do espao pblico, que se viu reflectida na Expo98 e se tentou replicar no programa Polis. De Hestnes podemos dizer que configura a noo do arqui-tecto como portador de uma grafia pessoal que interpreta e reconstri o mundo, atravs do desenho, da geometria e da construo. Isto , um arqui-tecto intemporal, solitrio mas interveniente, motivado por questes sociais. Hestnes representa uma certa moralidade da figura do arquitecto. Concei-o Silva move -se nos antpodas de uma potica pessoal, em nome da efi-ccia do conjunto de aces que se gera no interior ou externamente arquitectura. A permeabilidade ao mercado significa uma vocao populista que , no entanto, mediada com a qualidade da resposta projectual. De facto, esta intermediao cultural tende hoje a escapar prtica empresarial da arquitectura. Nesse sentido, a resposta cientfica, a exigncia potica e o dilogo comrcio/arte que as trs experincias denotam, respectiva-mente, constituem, ainda hoje, uma aspirao particular para a jovem arqui-tectura portuguesa.

  • nuno Portas, hestnes ferreira, Conceio silva: lisboa, anos 60 | 89

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