Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

10
RAZÕES E REVOLUÇÕES: AS TESES DE T. S. KUHN (Manuel Maria Carrilho) 1. O que é a ciência? Com The Structure of Scientific Revolutions (1962), Thomas S. Kuhn propunha uma nova, e global, problematização da ciência, da sua natureza e das suas principais características. As teses então avançadas não deixaram, até hoje, de ser analisadas e discutidas, dando origem a uma imensa bibliografia crítica que marca grande parte dos debates entretanto travados na comunidade epistemológica. Procuraremos aqui analisar as teses centrais de Kuhn, destacando as que se revelaram não só mais inovadoras mas também heuristicamente mais fecundas; seguidamente, considerar-se-ão algumas das principais críticas que aquelas teses suscitam, assim como as respostas de Kuhn, procurando apurar o sentido epistemológico deste debate, focando em particular o problema da incomensurabilidade e do relativismo. O carácter inovador das ideias de T. S. Kuhn deve-se fundamentalmente ao facto de ele ter reformulado toda a orientação da pergunta: o que é a ciência? Esta reformulação tem como objectivo caracterizar, na sua especificidade, a actividade científica, libertando a imagem da ciência (e do cientista) das idealizações e generalidades que a acompanhavam desde o século XVIII, e cujos traços principais são a identificação do trabalho científico com a actividade crítica e inventiva, por um lado, e a representação do seu desenvolvimento em termos de uma continuidade sem falhas, de uma cumulatividade sem excepções, por outro. Começando pela própria noção de ciência, é preciso distinguir dois tipos duas modalidades do trabalho científico: a ciência normal e a ciência extraordinária. A ciência normal é a que se efectua no âmbito de um paradigma aceita pela comunidade dos seus membros, e ela consiste essencialmente numa actividade de resolução de enigmas (puzzle-solving activity), procedendo a aplicações e solucionando problemas previstos ou previsíveis no seu quadro paradigmático. E, contrariamente ao que uma idealização corrente pretende fazer crer, os cientistas procuram a todo o custo manter-se neste regime de

Transcript of Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

Page 1: Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

RAZÕES E REVOLUÇÕES: AS TESES DE T. S. KUHN (Manuel Maria Carrilho)

1. O que é a ciência?

Com The Structure of Scientific Revolutions (1962), Thomas S. Kuhn propunha uma nova, e global, problematização da ciência, da sua natureza e das suas principais características. As teses então avançadas não deixaram, até hoje, de ser analisadas e discutidas, dando origem a uma imensa bibliografia crítica que marca grande parte dos debates entretanto travados na comunidade epistemológica.

Procuraremos aqui analisar as teses centrais de Kuhn, destacando as que se revelaram não só mais inovadoras mas também heuristicamente mais fecundas; seguidamente, considerar-se-ão algumas das principais críticas que aquelas teses suscitam, assim como as respostas de Kuhn, procurando apurar o sentido epistemológico deste debate, focando em particular o problema da incomensurabilidade e do relativismo.

O carácter inovador das ideias de T. S. Kuhn deve-se fundamentalmente ao facto de ele ter reformulado toda a orientação da pergunta: o que é a ciência? Esta reformulação tem como objectivo caracterizar, na sua especificidade, a actividade científica, libertando a imagem da ciência (e do cientista) das idealizações e generalidades que a acompanhavam desde o século XVIII, e cujos traços principais são a identificação do trabalho científico com a actividade crítica e inventiva, por um lado, e a representação do seu desenvolvimento em termos de uma continuidade sem falhas, de uma cumulatividade sem excepções, por outro.

Começando pela própria noção de ciência, é preciso distinguir dois tipos duas modalidades do trabalho científico: a ciência normal e a ciência extraordinária. A ciência normal é a que se efectua no âmbito de um paradigma aceita pela comunidade dos seus membros, e ela consiste essencialmente numa actividade de resolução de enigmas (puzzle-solving activity), procedendo a aplicações e solucionando problemas previstos ou previsíveis no seu quadro paradigmático. E, contrariamente ao que uma idealização corrente pretende fazer crer, os cientistas procuram a todo o custo manter-se neste regime de actividade, só o abandonando o quando a isso são obrigados, isto é, quando a solidez de um determinado paradigma baqueia face a um excessivo número de factos rebeldes, de anomalias.

Abre-se nestas circunstâncias um período de crise, que se caracteriza pela consciência que a comunidade adquire das insuficiências do paradigma até aí vigente e pela ausência de um paradigma alternativo satisfatório. Este só surgirá com uma profunda mutação, com uma revolução científica, que traz consigo um novo paradigma abrindo assim um novo período de ciência normal.

2. Ciência normal, comunidade, paradigma

Muito sumariamente, é esta a orientação tematizada por Kuhn na abordagem da ciência feita em A Estrutura das Revoluções Científicas; vê-lo-emos seguidamente mais em detalhe, ao analisarmos as noções centrais atrás referidas. Fá-lo-emos em dois blocos: em primeiro lugar procuraremos esclarecer as noções de ciência normal, comunidade e paradigma; depois, as de crise, ciência extraordinária e revolução científica.

Para Kuhn a ciência normal consiste «na pesquisa solidamente baseada numa ou em várias descobertas científicas passadas, descobertas que uma determinada comunidade científica considera suficiente como ponto de partida para outros trabalhos» (Kuhn, 1970, p. 10). Mas de onde vem a suficiência aqui referida? Ela é fornecida por conjuntos de vários

Page 2: Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

elementos que surgem como mananciais de exemplos da própria actividade científica, dando deste modo origem à constituição de tradições de investigação. Os principais elementos a que Kuhn se refere são as leis, as teorias, as suas aplicações, os dispositivos experimentais utilizados; e é este conjunto que se designa pela noção de paradigma, cuja existência condiciona o aparecimento e o desenvolvimento da actividade científica normal: «os homens cujas pesquisas se fundam no mesmo paradigma obedecem às mesmas regras e às mesmas normas na prática científica. Este compromisso e o consenso aparente que ele suscita são os pré-requisitos da ciência normal, isto da génese e da continuação de uma particular tradição de pesquisa» (ibid., p. 11).

Este quadro é, como facilmente se reconhece, um quadro moderno. Isso deve-se ao facto de a ciência moderna se diferenciar profundamente das actividades que se designam como científicas na pré-modernidade, diferenciação que decorre de, nestas, não haver um paradigma dominante, mas vários paradigmas mais ou menos equivalentes. Tomando o exemplo da óptica, Kuhn mostra como desde a Antiguidade até Newton nenhuma teoria da luz se impôs às outras, todas coexisti do numa parcial explicação dos fenómenos e numa radical diversidade paradigmática, considerando uns que a luz resulta da emanação de partículas dos corpos, outros que o que é essencial é a alteração do meio entre os corpos e o olho, outros ainda real ando a interacção entre o meio e as emanações oculares. E as diferentes explicações articulavam-se, naturalmente, com diferentes filosofias, por um lado, e com diferentes recortes no mundo dos fenómenos, por outro.

A instauração da ciência normal termina com esta situação porque ela corresponde à imposição de um paradigma que - e este aspecto é nuclear - é partilhado por uma comunidade científica. Veja-se o que se passa com a electricidade no século XVIII: na primeira metade do século proliferaram as teorias e as experiências sobre a electricidade feitas, entre outros, por Gray, Du Fay, Franklin. E esta proliferação, apesar de manifestar uma comum inspiração da filosofia mecânico-corpuscular, faz-se com base em teorias extremamente diversas. Será só com os trabalhos de Franklin que surge uma teoria que - capaz de explicar o que as diversas teorias anteriores explicavam e de resolver os problemas que elas não resolviam – se impõe como um paradigma. Deste facto, decorrerão ainda dois outros, o desaparecimento das teorias e escolas anteriores (o que se deve à conversão ou à marginalização dos seus anteriores defensores); uma redefinição do domínio da investigação disciplinar (dado que a emergência de um novo paradigma permite e exige uma revisão de vários aspectos do real).

Revela-se assim um forte entrosamento entre o paradigma e a ciência normal: a emergência de um paradigma é também o aparecimento de um sinal, o do sucesso possível, que a ciência normal procura realizar alargando o âmbito dos factos explicáveis pelo paradigma. É este o seu objectivo nuclear: «a ciência normal não tem nunca por objectivo fazer surgir novos tipos de fenómenos; (...) os cientistas também não têm normalmente por objectivo a invenção de novas teorias, e são muitas vezes intolerantes em relação às que outros inventaram. Pelo contrário, a investigação da ciência normal procura a articulação dos fenómenos e das teorias que o paradigma já fornece» (ibid., p. 24). E o que pode parecer, nesta descrição da actividade científica, uma limitação excessiva da criatividade dos cientistas, não é senão a própria condição, pela precisão e profundidade que permite atingir, do desenvolvimento científico.

A ciência normal realiza, no essencial, três tarefas: determinar quais os factos significativos num determinado âmbito paradigmático, estabelecer a concordância dos factos com a teoria e garantir o rigor, a precisão da teoria. Estas tarefas devem conduzir a uma crescente aplicação do paradigma que orienta a ciência normal, trabalho que Kuhn caracteriza como u a actividade de resolução de enigmas (puzzles).

Um enigma, na conceptualização de Kuhn, é um problema. Não um problema qualquer, mas um problema que satisfaça duas condições: a de ter uma solução e a de respeitar

2

Page 3: Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

determinadas regras quanto à natureza da solução e aos modos de a atingir. Estas regras, porque estabelece imperativos diversos (tanto de ordem teórica e conceptual como instrumental ou metodológica), estão na base da proposta kuhniana de conceber a ciência normal como uma actividade a e resolução de enigmas: é «porque fornecem ao praticante de uma especialidade que atingiu a maturidade regras que lhe dizem o que são o mundo e a ciência que ele se pode concentrar com segurança nos problemas definidos para ele por essas regras e pelos conhecimentos do momento» (ibid., p. 42). Há portanto uma íntima proximidade entre o paradigma e as regras que governam a actividade de um grupo científico. Mas essa proximidade não deve ser entendida como numa assimilação nem como uma identificação: as regras são mais dificilmente detectáveis, nomeadamente pela amplitude da sua influência, do que os paradigmas, o que leva Kuhn a subscrever a ideia defendida por Michael Polany, no seu Personal Knowledge (Chicago, 1958) de que o êxito do cientista depende, em grande parte, de um tipo de conhecimento particular, os conhecimentos tácitos, que se adquirem pelo exercício prático, não pela explicitação teórica. A ciência surge assim, na tematização kuhniana, como uma actividade extraordinariamente específica e que se desenvolve no âmbito de limites - institucionais, sociais cognitivos (cf. atrás, p. 39) - muito precisos.

3. Crise, ciência extraordinária e revolução

Como já referimos, a ciência normal não tem por objectivo descobrir novos factos nem inventar novas teorias: a sua tarefa central ' a resolução de enigmas. No entanto, isso acontece; novos e inesperados fenómenos surgem, novas teoria, são propostas. Kuhn distingue estes dois tipos de novidades, designando por descobertas as novidades de factos e por invenções as novidades teóricas. Ambas se prendem com a detecção, feita no decurso da actividade científica normal, de anomalias, «com a impressão que a natureza contradiz, de um ou outro modo, os resultados esperados no quadro do paradigma que governa a ciência normal. Seguidamente procede-se à exploração, mais ou menos prolongada, do domínio da anomalia. E o episódio só se encerra quando a teoria do paradigma é reajustada de modo a que o fenómeno anómalo se torne esperado» (Kuhn, 1970, p. 52). Este reajustamento garante a continuidade da ciência normal mantendo-se em vigor o seu paradigma. Nem sempre, todavia, se consegue este resultado. Deve-se aqui notar que a própria ciência normal é, pelo extremo rigor e detalhe da sua informação, pela crescente satisfação dos instrumentos utilizados, um extraordinário detector de anomalias. É a importância destas, e a sua resistência às soluções de que, num dado momento, um paradigma dispõe, que provocam a abertura de uma crise (Kuhn ilustra este processo com as crises da astronomia copernicana, da química do século XVII, crise que precede a formulação da teoria de Lavoisier sobre a combustão do oxigénio, e da física dos finais do século XIX).

A crise é, nesta perspectiva, a condição fundamental da emergência de uma nova teoria. M. s esta não surge imediata nem facilmente. Em primeiro lugar, porque os cientistas defendem o seu paradigma, numa adesão profunda que os leva a negar às anomalias o estatuto, e o valor, de provas pertinentes. Depois porque nenhum paradigma, sejam quais forem as dificuldades que enfrente, é abandonado enquanto não houver um outro que o possa substituir com sucesso: o abandono de um paradigma, sustenta Kuhn, é sempre simultâneo da adopção de um outro; «rejeitar um paradigma sem lhe substituir simultaneamente um outro é rejeitar a própria ciência» (ibid., p. 79).

O aparecimento de anomalias, resistentes ao trabalho da ciência normal, instaura pois progressivamente uma situação de crise: a anomalia é cada vez mais reconhecida como tal por um número crescente de cientistas, podendo eventualmente tornar-se mesmo no tema central

3

Page 4: Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

da ciência em cujo âmbito surgiu; proliferam as tentativas de solução, ameniza-se o cumprimento das regras paradigmáticas, procura-se «ao acaso», recorre-se a outros saberes, nomeadamente à filosofia, abre-se, no limite, a questão dos próprios fundamentos do paradigma até então vigente. Numa palavra, a ciência normal dá lugar à ciência extraordinária que, ou conduzirá à sua normalidade anterior (o que pode acontecer eliminando a anomalia ou «congelando-a»), ou dará origem à emergência de uma nova teoria com pretensões paradigmáticas. Nesta situação, e caso um novo paradigma se imponha, dá-se uma profunda reorganização de todo o domínio científico respectivo; o novo paradigma - trata-se de um ponto central nas teses de Kuhn - não surge no desenrolar de um processo cumulativo cuja origem se encontra no paradigma anterior, mas como algo de radicalmente novo, que Kuhn propõe que se compreenda à imagem do que se passa com a mutação de formas em que, onde antes se via uma ave, se passa, bruscamente, a ver um antílope: é nisto que consistem as revoluções científicas.

Ao designar estas mutações por revoluções, Kuhn pretendeu destacar que, tal como aconteceu no domínio político, a opção entre vários paradigmas é, no essencial, «uma escolha entre modos de vida da comunidade que são incompatíveis. É por isso impossível que esta escolha seja simplesmente determinada pelos procedimentos de avaliação que caracterizam a ciência normal, um. vez que estas dependam em parte de um paradigma particular que, precisamente, é posto em questão» (ibid., p. 94): e a incompatibilidade entre paradigmas é bem ilustrada, pensa Kuhn, pelos exemplos dos trabalhos de Ptolomeu e Copérnico, no caso da astronomia, ou dos de Newton e Einstein, no da física. A teoria que fornece o novo paradigma não é uma apenas mais ampla do que a anterior; ela transporta consigo uma diferença de fundo que as torna irreconciliáveis, pois ela produz novos recortes do mundo dos fenómenos, suscita a adopção de novos métodos, redefine o próprio domínio da pesquisa, refaz o mapa dos problemas e das soluções: «ao apre der um paradigma, o homem de ciência adquire simultaneamente uma teoria, métodos e critérios de juízo, em geral numa inextrincável combinação. É por isso que com as mudanças de paradigmas há geralmente um significativo deslocamento dos critérios que determinam a legitimidade dos problemas assim como das soluções propostas» (ibid., p. 109).

O objectivo nuclear de Kuhn é compreender em que é que consistem essas imensas transformações que ele designa por revoluções científicas. Toda a conceptualização referida conflui neste objectivo, que Kuhn considera tanto mais importante quarto ele foi, na imagem dominante da ciência que se construiu a partir dos séculos XVII-XVIII, secundarizado ou esmo anulado. Para isso contribuíram vários factores, de que se devem destacar a influência dos manuais científicos e das obras de vulgarização, assim como a dos trabalhos filosóficos que adoptam a imagem da ciência difundida por estes meios. O que eles têm de comum é a anulação das vicissitudes teóricas e práticas da história científica, facto que decorre de uma estratégia de anulação da história efectiva da ciência e de promoção de uma visão linear, contínua e cumulativa do desenvolvimento científico.

Ao estudar as revoluções científicas Kuhn procura destacar alguns elementos essenciais à compreensão da história da ciência. Uma revolução ocorre, pode ocorrer, quando o poder heurístico de um paradigma vacila face a certo tipo de fenómenos, pondo em causa a prática da ciência normal. Se as anomalias não são passíveis de ser reconduzidas à resolução de enigmas, aquela situação transforma-se progressiva mas irreversivelmente numa crise, com as concomitantes tentativas de formular uma nova teoria que permita substituir o paradigma anterior. O sucesso nesta tentativa define uma revolução, mas não só: ele traça entre os dois paradigmas um abismo que Kuhn tematiza através da noção de incomensurabilidade.

Ora, o que significa a tese de que os paradigmas que, respectivamente, precedem e decorrem de uma revolução, são incomensuráveis? Em primeiro lugar, que os adeptos de um e outro dos paradigmas estão em conflito sobre os próprios problemas que se trata de

4

Page 5: Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

solucionar, assim como sobre as soluções aceitáveis: por exemplo, os trabalhos de Lavoisier eliminam o problema, nuclear para os químicos anteriores, da semelhança dos metais; Newton dispensa, na teoria do movimento, o problema da causa das forças de atracção entre partículas. Seguidamente, que a incomensurabilidade decorre do diferente uso das noções e dos conceitos que fazem os defensores dos paradigmas em conflito: pense-se no que se passou com a noção de espaço nos debates entre os defensores e os críticos da relatividade. Por fim, que os «adeptos de paradigmas concorrentes se entregam às suas actividades em mundos diferentes. Um contém corpos que caem lentamente numa queda entravada, o outro pêndulos que repetem indefinidamente o seu movimento. Num as soluções são compostos, no outro são misturas. Um está contido numa matriz de espaço que é plano, o outro curvo. Trabalhando em mundos diferentes os dois grupos de cientistas vêem coisas diferentes quando olham na mesma direcção a partir do mesmo ponto» (ibid., p. 150).

Incomensuráveis, os paradigmas não permitem transições graduais de aceitação: ou se aceitam ou não, sem meio termo possível que, eventualmente, a lógica aconselhasse ou a experiência caucionasse. O processo de adesão a um novo paradigma é, assim, próximo da conversão. Ele supõe o exercício de um tipo de argumentação específico em que as técnicas de persuasão têm um papel relevante mas também extremamente diversificado, e no sucesso do qual se revela crucial o facto de o novo paradigma permitir previsões impossíveis no âmbito do anterior: ao descobrirem-se, sessenta anos depois da respectiva previsão, as fases de Vénus, as conversões ao copernicanismo multiplicaram-se. (Igualmente importantes são também as considerações de «elegância» ou «simplicidade» de uma teoria, sobretudo no caso das matemáticas.)

Como Kuhn salienta, os debates entre paradigmas não dizem tanto respeito à efectiva resolução de problemas como à possibilidade de o virem a fazer: trata-se de convencer a comunidade das suas potencialidades, pois nesse caso «o número e o valor dos argumentos em seu favor aumentarão; os seus adeptos tornar-se-ão mais numerosos e o estudo do novo paradigma desenvolver-se-á. Gradualmente, o número de experiências, de instrumentos, de artigos e de livros baseados neste paradigma multiplicar-se-á» (ibd, p. 159): a revolução científica consolida-se dando origem a um novo período da ciência normal, de cuja prática se excluem então - excluindo-se simultaneamente da ciência - os que, seja por que razões for, não transitaram de paradigma.

Assim entendida, a revolução científica permite uma abordagem particular da noção de progresso - e de verdade. A ciência, diferentemente de outros saberes - como a arte ou a filosofia -, progride. Mais: a ciência e progresso são duas noções estritamente entrosadas, numa intimidade que torna difícil determinar se «uma especialidade progride porque é uma ciência ou é uma ciência porque faz progressos» (ibid., p. 162). O que se revela aqui não é que só a ciência progride, mas que ela reúne características específicas de progresso que são, sem dúvida, ais nítidas do que as que se manifestam noutras áreas ou disciplinas. Um aspecto decisivo é o de na ciência, no seu regime normal, não haver (ao contrário do que acontece em filosofia ou na arte) conflitos sobre os seus fundamentos ou sobre os seus objectivos, sobre os seus problemas ou sobre os seus tipos de soluções, o que torna possível o desenvolvimento de um tipo de eficácia praticamente sem rival. Por outro lado a comunidade científica goza de uma grande independência em relação ao seu exterior, o que lhe permite fazer a economia das solicitações e das exigências que recaem sobre outras actividades. Mas o elemento mais decisivo é o tipo de aprendizagem que caracteriza a ciência, em que os manuais substituem, por um lado, a literatura científica original e, por outro, procedem à eliminação da história, produzindo cientistas extremamente capazes de realizarem as tarefas da ciência normal.

Mas o progresso não caracteriza apenas a ciência normal; pelo contrário, ele é o resultado mais manifesto da ciência extraordinária. Quando um grupo abandona um paradigma para adoptar um outro, ele renuncia simultaneamente, diz Kuhn, «à maioria dos

5

Page 6: Razões e Revoluções [Kuhn] - M. M. Carrilho

livros e dos artigos baseados nesse paradigma e que deixam de ser para os especialistas referências válidas. Não há nada na formação científica que seja o equivalente do museu artístico ou da biblioteca dos clássicos (...). Mais do que os especialistas dos outros domínios da criação, eles chegam a acreditar que o passado desemboca em linha recta no estado actual e mais avançado da sua disciplina. Em suma, que este é um progresso» (ibid., p. 67). São pois os traços mais específicos da actividade científica, quer no seu regime normal quer no extraordinário, que melhor caracterizam e definem a noção de progresso. O que Kuhn defende é que isto não implica a concepção corrente de que o progresso te um fim, e que esse fim é o de uma cada vez maior proximidade da verdade: pretende-se assim separar a noção de progresso da persistente teleologia que a acompanha desde a sua emergência. O que afinal é fácil se se adoptar uma posição epistemológica evolucionista, que substitua, no estudo do conhecimento, a consideração dos seus fins (e das suas origens) pela do seu desenvolvimento. Inspirando-se em textos antecipadores de Darwin, Kuhn encontra uma forte analogia entre a evolução dos organismos e a das ideias científicas: «o claro resultado de uma sucessão destas selecções revolucionárias, separadas por períodos de pesquisa normal, é o conjunto de instrumentos notavelmente adaptados que designamos por conhecimento científico. Os sucessivos estados deste processo de desenvolvimento são marcados por um aumento da precisão e da especialização. E todo o processo se desenrolou, como supomos que acontece na evolução biológica, sem orientação para fim preciso, sara uma verdade científica fixada permanente, de que cada estádio do conhecimento científico seria um melhor exemplar» (ibid., pp. 172-173).

Manuel Maria Carrilho, Itinerários da racionalidade, Lisboa, Pub. D. Quixote, pp. 113-127.

6