Raymond Boudon e a Teoria Da Escolha Racional

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  • 7/30/2019 Raymond Boudon e a Teoria Da Escolha Racional

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    XIII Congresso Brasileiro de Sociologia

    29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE)

    GT 28: Teoria Sociolgica

    As "boas razes" e as diferenas entre o individualismo metodolgico de

    Raymond Boudon e a teoria da escolha racional.

    Bruno Sciberras de Carvalho

    UFRJ

    contato: [email protected]

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    Muitas vezes, os campos tericos do chamado individualismo metodolgico e da

    escolha racional so confundidos. Entretanto, tais vertentes podem ser diferenciadas tanto

    em relao a seus axiomas quanto a seus entendimentos normativos, sobretudo se algumas

    consideraes do socilogo francs Raymond Boudon, pensador fundamental na

    configurao da primeira vertente, so levadas em conta. Essa diferenciao importante

    para uma reflexo sobre certas direes da teoria social contempornea, pois implica

    pensar o que significa a interao de pressupostos tradicionais das Cincias Sociais com

    uma ontologia proveniente da Economia. A crtica de Boudon ao paradigma da racionalidade

    maximizadora permite contrastar uma vertente que procura problematizar as relaes

    complexas entre a agncia e a estrutura social com uma perspectiva que especifica a priori

    um mesmo tipo de comportamento para todos os indivduos.

    A teoria da escolha racional, que tem encontrado atualmente recepo substantiva

    nas Cincias Sociais, parte dos problemas colocados por seus precursores Kenneth Arrow,

    Anthony Downs, William Riker, James Buchanan, Gordon Tullock e Mancur Olson. A teoria

    busca ressaltar, sobretudo, as falhas das anlises que desconsideram, segundo os autores,

    os reais fundamentos da ao social, caracterizados pelas atividades voltadas para a

    satisfao de interesses prprios. Assim, a ao social normal deve ser tida como resultante

    do raciocnio pessoal que relaciona de modo eficiente meios escassos com fins construdos

    autonomamente. Dois pontos destacam-se em tal concepo. O primeiro a noo de uma

    reflexo consciente e constante dos custos e benefcios de todas as conseqncias das

    atividades ordinrias. O segundo ponto a idia de que os agentes transformam o mundo e

    as pessoas em mecanismos operacionais para a obteno de seus interesses particulares.

    A noo de racionalidade vinculada, ento, idia de consumidor da teoria econmica,

    sendo referida geralmente conduta que busca trs elementos bsicos: riqueza, prestgio e

    poder. Na verdade, a escolha racional reflete a tentativa de levar tais pressupostos, antes

    pensados como restritos s atividades econmicas, para o exame abrangente da realidade

    social e poltica.A partir do conhecimento desses elementos comportamentais, a escolha racional

    aponta a possibilidade de previso das decises que sujeitos racionais tomam em situaes

    de escolha. Tal capacidade de previso fundamenta uma metodologia positiva,

    supostamente no normativa, que separa os fatores importantes das aes de dados

    secundrios. Deve-se descrever o comportamento das pessoas em um imaginado estado

    puro, no qual podem ser removidas muitas das caractersticas no essenciais do processo

    social que so notadas em uma observao direta e no controlada. A teoria da escolha

    racional sugere explicar muito por meio de conceitos simples, criticando teorias pautadaspor concepes que seriam errneas, como "estrutura", "vontade geral" ou "socializao". O

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    estabelecimento de padres predeterminados de ao conduz ao abandono de postulados

    que abrangem valores ou crenas abstratas e diversas.

    Boudon critica a predeterminao da ao humana nesse paradigma economicista.

    Ainda que reitere (BOUDON, 2002a) a relevncia da teoria da escolha racional em explicar

    parte dos fenmenos da modernidade, sustenta a necessidade de conceber a racionalidade

    dos indivduos de um ponto de vista mais adequado. A princpio, Boudon destaca a

    importncia em apontar certas inconsistncias de teorias "culturalistas" e "psicologistas".

    Assim, a relativa influncia da escolha racional resultaria do fato de procurar indicar de

    forma clara mecanismos e origens na explicao das aes, sem recorrer a noes, tais

    como "efeitos de socializao", que estariam incapacitadas de descrever quaisquer

    fundamentos das atividades humanas, inscrevendo-as em um esfera misteriosa e

    teoricamente intangvel. coerente a perspectiva metodolgica, em parte estimulada pela

    escolha racional, que atenta a caractersticas gerais da ao subjetiva, pois, ao contrrio do

    que especificam certas vertentes estruturalistas, "todo grupo, toda sociedade conhece

    oponentes; os cticos esto presentes em todos os tempos; os indivduos crescidos em

    ambientes de alta criminalidade raramente se tornam criminosos" (Idem, p. 757). O que

    parece a Boudon positivo na escolha racional, fundamentalmente, o fato de dar

    importncia a aspectos subjetivos e reflexivos das condutas humanas.

    Contudo, Boudon sustenta que a teoria da escolha racional falha em explicar um

    vasto conjunto de fenmenos sociais, j que a noo de racionalidade instrumental expressa

    apenas aes triviais da conduta econmica. O autor salienta a necessidade de reconstruir

    as motivaes dos agentes e refletir os fato sociais como resultados de aes que no

    incorporam sempre caractersticas utilitaristas. A fim de demonstrar as crticas de Boudon, e

    o que representam de relevante para a teoria social, exponho, primeiramente, as principais

    diferenas entre o paradigma da escolha racional e a teoria das normas sociais e da

    racionalidade cognitiva e axiolgica do individualismo metodolgico. Posteriormente, debato

    as alternativas sugeridas por Boudon, principalmente a idia de que os agentes incorporam

    crenas e teorias simplesmente porque tm "boas razes" para tal e a noo de umaracionalizao difusa. Finalmente, discuto as solues dadas pelo autor francs, procurando

    analisar de que forma sua teoria aponta consistentemente vrias falhas da viso

    economicista de racionalidade, mas apresenta proposies que carecem de preciso.

    A Crtica de Boudon Noo de Racionalidade Instrumental como Fundamento Exclusivo

    dos Fenmenos Sociais

    Boudon indica a necessidade de as teorias serem desprovidas de caixas pretas, ouseja, de no dependerem de princpios externos a si mesmas ou noes vagas para explicar

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    os fenmenos sociais. Uma teoria consistente das atividades e crenas sociais no pode,

    segundo o autor (1999b, p. 20), recorrer a idias que evocam causas irracionais, como

    processos de inculcao (presentes em certa tradio durkheimiana e marxista) ou

    processos afetivos (como na tradio freudiana ou nietzschiana). Para Boudon, uma

    perspectiva cognitivista permite algumas vantagens tericas sobre os entendimentos que

    supe a irracionalidade nos comportamentos. Em primeiro lugar, explica as aes dos

    sujeitos no por algum pressuposto de interiorizao, constrangimento ou falsa conscincia,

    mas a partir dos sentimentos de convico dos indivduos. Em segundo lugar, a teoria no

    incorpora as dificuldades que as teorias irracionais tm de no apontar de forma clara as

    causas das aes. Em terceiro lugar, a prpria caracterstica social das crenas e

    comportamentos o fato de que outros agentes se comportam e crem de forma similar

    facilmente verificada por uma teoria cognitivista, enquanto os entendimentos irracionalistas

    no conseguem explicar de forma adequada a disseminao social de atitudes e normas

    sociais. Segundo Boudon (Idem, p. 23), o fato de os agentes defenderem e justificarem suas

    crenas em um ambiente social sugere que toda convico se apia em um sistema

    interativo de razes percebido como consistente. Assim,

    se admitimos que uma crena coletiva [...] se instala porque fazsentido para os indivduos, ou seja, se admitimos que ela seimplanta porque eles possuem razes de adot-la, essasrazes no so por definio nem objetivas nem puramentesubjetivas no sentido de serem efeito de idiossincrasias. por

    isso que proponho qualific-las de transsubjectives (Idem, p.23).

    Boudon chama ateno para duas direes essenciais do individualismo

    metodolgico. Por um lado, ele distingue-se das anlises holistas que no observam a

    relao necessria dos fenmenos coletivos com as razes individuais, tratando certas

    instituies, como um partido ou uma organizao religiosa, como dotados de conscincia

    ou vontade prpria (BOUDON, 1991, p. 50). O fundamental questionar os trabalhos que

    descrevem os indivduos como portadores passivos de idias e fatos coletivos, de forma que

    suas atitudes seriam inteiramente determinadas pelo meio social. Boudon critica, sobretudo,a capacidade explicativa de teorias estruturalistas que se baseiam em entendimentos

    tautolgicos, em que a prpria evocao de estruturas sociais coercitivas explica

    comportamentos ou atitudes que, por sua vez, so a nica prova de existncia dessas

    mesmas estruturas. Por outro lado, e o mais importante para se distanciar de paradigmas

    utilitaristas, Boudon (Idem, p. 46) desvincula sua metodologia de uma apreciao normativa

    sobre o individualismo moderno. O autor procura sustentar que a noo de individualismo

    possui um significado inteiramente diferente se ela aparece no contexto da sociologia ou da

    tica ou naquele da teoria do conhecimento. Boudon (1999a, p. 135) explicita que a teoria

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    da racionalidade que prope no se constitui a partir de um carter atomista. Somente a

    metodologia o , pois as razes que os indivduos incorporam possuem valor devido ao fato

    de alcanarem reconhecimento generalizado em determinada sociedade. Pode-se dizer que

    se trata, portanto, de um argumento epistemolgico que no fundamenta um

    posicionamento ontolgico. O individualismo metodolgico somente prescreveria a

    necessidade, se visada a explicao de um fenmeno, de reconstruir as motivaes

    subjetivas e refletir o fato social em questo como resultante da agregao de

    comportamentos individuais. O plano meramente metodolgico no pressupe que a se

    analise a sociedade como um conjunto de tomos, mas que se perceba a relao entre as

    aes e o contexto social, e exatamente tal contexto que possibilita identificar e justificar

    uma ao como racional.

    Ainda que Boudon admita que a teoria da escolha racional proponha, em certos

    casos, explicaes desvinculadas de argumentos que tomam a forma de caixas pretas,

    elas examinariam fenmenos especficos e circunscritos, em que os indivduos adotam o

    comportamento conseqencial que tem em vista apenas os benefcios das decises. Assim,

    a escolha racional no pode entender situaes em que os atores raciocinam a partir de

    princpios ou opinies, em vez de listar as conseqncias pessoais de suas aes. Boudon

    (2002a) identifica trs grandes classes de fenmenos que escapam s explicaes

    vinculadas aos pressupostos da racionalidade instrumental. Em primeiro lugar, salienta que

    h atitudes que expressam crenas no triviais, muito distanciadas da conduta de

    maximizao de benefcios. Enquanto o ato de atravessar a rua com cuidado a fim de

    aumentar as prprias chances de vidas parece uma ao trivial, passvel de ser explicvel

    por intermdio da teoria da escolha racional, existiriam outras situaes determinadas por

    crenas, ou particularmente por teorias, que tm por objetivo estrito compreender a

    realidade de um contexto da forma mais satisfatria possvel. O sujeito acredita nessas

    teorias simplesmente porque lhe parecem verdadeiras para entender e dar sentido a

    situaes definidas espacial e temporalmente, o que implica no fato de a racionalidade

    gerada nesses momentos ser de tipo cognitivo e no instrumental. Deve-se notar quequando Boudon denomina essas crenas ou teorias de satisfatrias, no se aproxima da

    tese clssica de Herbert Simon, muito debatida no campo da escolha racional, acerca de

    uma racionalidade limitada (bounded rationality), relacionada com um conjunto sempre

    reduzido de informaes disponveis nas situaes sociais. O autor (1999a, p. 93) lembra

    que o agente pode estar no somente confrontado com um dficit de informao, mas

    vinculado a um problema o qual deve resolver a partir de uma teoria que envolve os

    recursos cognitivos que dispe. Os atores buscam um sistema de boas razes para a

    resoluo dos problemas que a realidade cotidiana impe, de modo que

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    a racionalidade do ator ordinrio lembra mais, portanto, aracionalidade que evocam os filsofos da cincia do queaquela da economia neoclssica. O que se trata de maximizarou otimizar aqui no uma diferena entre custos e benefcios,mas sim a fora de um sistema de argumentos (BOUDON,1999a, p. 93-94).

    A conseqncia que os argumentos admitidos e defendidos pelos agentes resultam

    do sistema de razes que predomina em um contexto cognitivo especfico, de forma que a

    maioria das pessoas tende a possuir as mesmas respostas para as mesmas questes.

    Assim, para questionar a tendncia da escolha racional de qualificar certas atitudes que no

    correspondem ao seu quadro analtico de irracionais, como o problema do paradoxo do voto

    tantas vezes demonstra, necessrio admiti-las a partir de uma teoria mais abrangente

    sobre a racionalidade. Isto requer negar as tentativas de compreender certos

    comportamentos que no cabem nos pressupostos instrumentais como provenientes desimples enquadramentos mentais (frames) que seriam externos aos indivduos e, portanto,

    inexplicveis (BOUDON, 2003, p. 44-45). Segundo Boudon, a partir das proposies de

    racionalidade cognitiva e axiolgica que se pode construir entendimentos sociolgicos que

    engendram explicaes finais que no pedem novos dados sem explicao ou pressupostos

    no citados anteriormente.

    A segunda grande crtica de Boudon s explicaes da escolha racional refere-se

    impotncia da teoria em entender os comportamentos que se apiam em crenas

    prescritivas e no conseqencialistas. Para Boudon (2002a, p. 762), os fatos de que os

    agentes geralmente votam, mesmo sabendo da insignificncia de seu ato para o resultado

    final, ou que dividem somas de dinheiro que acham, agindo contra seus interesses prprios,

    seriam representaes de casos banais que sugerem atitudes que do pouca importncia

    para as suas conseqncias. Por outro lado, Boudon chama ateno para a ocorrncia de

    vrias situaes que os indivduos consideram relevantes e essenciais, de modo que se

    tornam inquestionveis mesmo sem os afetar diretamente. A questo do roubo, por

    exemplo, indicaria que certos fenmenos tornam-se incompreensveis se restritos ao quadro

    analtico da escolha racional. H uma certeza de que o roubo ruim, mesmo que ele gere

    efeitos reais apenas para um contingente pequeno de uma comunidade, e mesmo que sua

    ocorrncia esteja longe de acontecer para certos sujeitos ou grupos sociais. Para Boudon,

    as explicaes que definem a avaliao negativa dos indivduos como um sentimento de

    medo pessoal seriam inconsistentes. O autor (1999a, p. 122; 1999c, p. 111-112) sustenta

    que a desaprovao dos agentes em relao ao roubo sofrido por um indivduo distante

    condiz antes com um sentimento de indignao do que com a sensao de medo. Alm

    disso, a indignao geralmente no se refere aos dados quantitativos do prejuzo

    acarretado, mas aos danos sofridos pela vtima. Nesse sentido, no possvel entender o

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    fenmeno normativo somente por suas conseqncias, mas sim pelas razes que criam o

    julgamento de valor de que o roubo , por si mesmo, ruim, dado que contraria princpios

    essenciais a partir dos quais as sociedades se constituem. Assim,

    a ordem social est baseada no fato de que toda retribuio

    social consentida a um indivduo deve, em princpio,corresponder a uma certa contribuio de sua parte. Seno, oprincipio mesmo da relao social se acha em questo. Ora, oroubo uma retribuio positiva que o ladro se atribui sexpensas de sua vtima, tendo recorrido a um constrangimentoilegtimo. Assim fazendo, ele contradiz uma regra essencial queest na base de todo sistema social [] Portanto, o roubo tocondenado porque existem razes fortes para o condenar(BOUDON, 1999a, p. 121).

    Finalmente, Boudon chama ateno para a falha das anlises utilitaristas em

    entender fenmenos distantes de qualquer caracterstica egosta, como o fato de que todoespectador de Antgonacondena Creonte e aprova a protagonista, ainda que tal ato no

    obedea a critrios de ganhos ou desejos individuais. Esse caso exemplificaria um conjunto

    de situaes em que os agentes devem avaliar conjunturas desconectadas de exclusivismos

    e de referncias pessoais. Assim, mesmo que os custos a nvel pessoal sejam irrisrios ou

    gerem conseqncias negligenciveis, os atos oportunistas de governantes sempre

    resultam em indignao social, at em pases com possibilidades remotas de serem

    atingidos por nveis elevados de tais comportamentos. Pode-se notar que governantes que

    no cuidam adequadamente das prticas de corrupo tendem a ter suas oportunidadespolticas restringidas. A percepo ordinria demonstra que, independentemente do

    contexto, a corrupo ou trfico de influncia so assuntos graves para a maior parte os

    indivduos, tratados de forma minuciosa, com despesa de tempo e informaes para que

    tais aes no voltem a se repetir. Na medida em que so fenmenos que ocasionam

    poucas conseqncias pessoais, a desaprovao somente pode ser explicada, segundo

    Boudon, pelo fato de contrariarem regras fundamentais e no exclusivistas do pacto social,

    geralmente fundadas em concepes formais de troca legtima (BOUDON, 1999c, p. 112).

    O que uniria essas atitudes ou fenmenos o fato de envolverem reflexes que,longe de serem concebidas por um clculo isolado e restrito ao interesse prprio, se referem

    ao sentido, mais ou menos consciente, que os atores do a suas aes. Se existe a

    maximizao de algo nas condutas, ela estaria relacionada com algo para alm dos custos e

    benefcios. A tentativa exemplar de alguns trabalhos da escolha racional de resolver o

    paradoxo do voto chamando ateno para o fato de que a absteno provoca danos

    reputao dos indivduos parece exatamente destacar esferas sociais externas aos clculos

    pessoais. Tratando a reputao como se fosse um custo a ser evitado, as anlises acabam

    construindo argumentos ad hoc e contraditrios, dado que no h motivos para que a

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    absteno seja vista de forma negativa se os agentes so efetivamente racionais e sabem

    da inutilidade do voto (BOUDON, 1999c, p. 111) Segundo Boudon, os indivduos buscam

    geralmente razes e teorias adequadas s situaes que enfrentam no cotidiano. Nesse

    sentido, apenas em certos casos a racionalidade implica atitudes que refletem a

    maximizao de meios e fins pessoais. Na maior parte das vezes, a racionalidade se

    relacionaria com dados cognitivos, em que as crenas e teorias que fundamentam as aes

    aparecem como verdadeiras, ou ainda com qualidades axiolgicas, de modo que as

    mesmas crenas e teorias so justificadas e legitimadas atravs de peculiares argumentos.

    Para a compreenso das caractersticas cognitivas e axiolgicas da racionalidade, que na

    verdade possuem diferenas muito sutis, somente o individualismo metodolgico que no

    pressupe a ao instrumental em todas as esferas da vida poderia ser consistente. Para

    Boudon, o fato de a escolha racional se limitar a concepes conseqencialistas e egostas

    resulta na passagem de uma mera estratgia metodolgica centrada no indivduo para a

    idia de um sujeito universal que no apreende questes sociais fundamentais do

    comportamento humano.

    As Boas Razes e o Processo Evolutivo das Normas

    Segundo Boudon, a soluo para o impasse apresentado pela teoria da escolha

    racional na explicao de vrios fenmenos est na anlise das racionalidades cognitivas e

    axiolgicas. Na medida em que procura dar certa dignidade ao papel da racionalidade nas

    prticas cotidianas, tal soluo se relaciona com a crtica do autor s pesquisas que supem

    que apenas um observador controlado pode perceber adequadamente a realidade,

    enquanto os indivduos ordinrios a apreenderiam de forma ilusria (1999a, p. 21-22). Por

    outro lado, o problema torna-se mais complexo quando certas teorias enfatizam argumentos

    relativistas e sustentam a impossibilidade de fundao de certezas, questionando a crena

    dos agentes sobre a existncia de verdades e valores objetivamente fundados. Assim, o

    individualismo metodolgico de Boudon reflete dois posicionamentos essenciais: um quesubverte a inteno de definir leis objetivas sobre a realidade social e outro que rejeita

    posicionamentos pluralistas a partir da idia de um processo geral de racionalizao. A

    forma como o autor une essas duas direes, em princpio diversas, torna-se central para

    avaliar a diferenciao que faz entre sua teoria e o paradigma da escolha racional, ainda

    que essa mesma unio engendre alguns problemas.

    Contrariando posies relativistas, Boudon (Idem, p. 19-20) questiona o que no seu

    entender forma o trilema de Mnchhausen em relao aos princpios das crenas

    ordinrias. O trilema composto a partir da hesitao em escolher uma das seguintesproposies: 1- renunciar a apoiar os princpios das crenas sociais, os considerando como

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    indemonstrveis; 2- procurar demonstrar que esses princpios se apiam em outros

    princpios, que, por sua vez, se apiam em outros princpios, em um processo infinito, sendo

    ento necessrio voltar primeira suposio; 3- ou procurar, de modo circular, demonstrar

    tais princpios a partir de suas conseqncias. Boudon nega as perspectivas que sustentam

    a irresoluo entre essas alternativas, argumentando, de modo sucinto, que estaramos mal

    em aceitar a idia de que os mitos devem ser tidos por representaes do mundo to

    vlidas quanto as teorias cientficas (1999a, p. 25). A sada do trilema est, ento, na

    admisso parcial do terceiro princpio, ou seja, de que o processo de conhecimento , em

    certo sentido, circular. Todo conhecimento ou teoria partiria de um sistema circunstancial

    de boas razes, dado que seus argumentos superam de maneira incontestvel, em

    determinado momento e espao, entendimentos concorrentes. Por sua vez, as razes,

    mesmo no sendo primrias em seu contedo, possuem um carter de princpio. Assim, a

    real resoluo do trilema, que admite uma objetividade relativa das teorias ou crenas,

    fundamenta-se na verificao da falsidade do problema posto, pois a distino entre

    princpios e conseqncias somente pode ser efetiva ou absoluta se o pensamento pode ser

    deduzido de princpios primrios. Sendo tal ideal impossvel, admiti-se que o pensamento

    deve ser considerado como uma rede complexa de argumentaes, de modo que o princpio

    de um entendimento pode ser visto como uma conseqncia em outro raciocnio.

    Entretanto, Boudon no quer dizer que os princpios prescritivos ou normativos das

    teorias ou crenas no possam ser racionalmente discutidos ou mesmo negados quando

    comparados com a realidade. Ainda que no exista um conjunto de critrios que permitam

    entender um grande sistema de razes como universalmente vlido, pode-se perceber que

    determinadas teorias ou crenas so superiores em relao a outras. Isto a partir de

    avaliaes especficas, variveis de um caso a outro, dado que "h critrios que permitem

    emitir julgamentos avaliativos relativos (T1 mais aceitvel do que T2), mas no h critrios

    que permitem enunciar julgamentos avaliativos absolutos (T1 verdadeiro)" (BOUDON,

    2002a, p. 764). Assim, o problema central de vrios entendimentos sociais seria que no

    admitem que o indivduo possa ter razes prprias para adotar valores ou crenas, de modoque se torna um ente passivo de determinaes causais. As teorias fidestas, por exemplo,

    mostram que os valores ou princpios no possuem necessidade de serem fundados, pois

    seriam da mesma natureza que as evidncias intuitivas de nossos sentidos. A perspectiva

    ctica assume que os valores ou normas no podem ser fundados na revelao, nem na

    intuio ou na razo. Outra corrente, chamada por Boudon de causalista, considera que as

    normas manifestam processos biolgicos, sociais ou psicolgicos que se inscrevem de

    maneira direta e espontnea nos agentes, sendo quase incompreensveis.

    Muitas vezes, essas correntes, e tambm a escolha racional, se uniriam em torno depressupostos que qualificam algumas atitudes dos agentes como irracionais. Boudon

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    (1999b, p. 38-39) exemplifica sua crtica a esses modos de explicao recorrendo aos

    argumentos de Tocqueville acerca das novas idias que questionavam o antigo regime na

    Frana. Mesmo achando incorretos os argumentos ento elaborados, Tocqueville

    demonstraria como os agentes tinham razes particulares para suas crenas, constituindo

    uma lgica de acordo com o contexto social da poca. Assim, a nfase nos poderes da

    razo e a desqualificao da tradio refletiriam um sentido que dava coerncia s prticas.

    O que importa a Boudon, especificamente, que esse tipo de procedimento analtico no

    recorre a fatores intangveis tais como imitao, fanatismo, cegueira, tradicionalismo,

    inculcao, etc., mas simplesmente s boas razes que os agentes tinham para adotar e

    legitimar as crenas dos filsofos da poca.

    Boudon (Idem, p. 50) sugere a hiptese de que a influncia das teorias que recorrem

    a aspectos irracionais deve-se simplicidade de seus modelos. Assim, certos autores se

    contentam em simplesmente nomear eventos que se impem sobre os indivduos, deixando

    de lado a tentativa de identificar suas particularidades e seus contedos. Isto pode ser

    percebido na idia de que os indivduos no conseguem perceber o mundo tal como ele ,

    como em certas concepes de alienao e falsa conscincia, ou na noo de fatores

    emocionais a concorrerem com a lgica instrumental. Alm disso, Boudon chama ateno

    para o fato de que se o conceito de interiorizao, largamente usado na Sociologia, deve

    ter relevncia porque deve ser visto como um efeito e no uma causa das aes e razes

    individuais. O interessante para o autor que o procedimento analtico voltado para fatores

    irracionais tenderia, por vezes, a expor um contedo positivista que demarca uma linha clara

    entre o procedimento cientfico e o pensamento ordinrio, pensando

    que somente as crenas cientficas, ou de modo geral aquelasque podemos tratar como concluses de raciocniospersuasores, podem ser explicadas pelas razes que asfundam. As outras, na medida em que no se baseiam emrazes slidas, podem ser apenas iluses [] O positivismoconduz os autores, portanto, para uma viso dual do esprito.Ele conteria crenas baseadas em razes (cujas crenascientficas representariam o paragon) e crenas produzidas por

    causas (que no possuem o estatuto de razes) que soilusoriamente percebidas pelos sujeitos como baseadas emrazes (1999a, p. 52).

    Segundo Boudon (1999b, p. 48), ainda que a qualificao de positivista tenha

    adquirido um vis reconhecidamente negativo na teoria contempornea, h vrios trabalhos

    que continuam a se pautar por princpios de pureza. Essa direo legitima-se por uma teoria

    causal primria que define, assim como os entendimentos mecanicistas da fsica, uma

    gnese comum para todos fenmenos sociais. Contrariando tal perspectiva, Boudon

    ressalta que as explicaes cientficas obedecem mesma ordem axiolgica das descriesdos agentes ordinrios. Crenas fortes, verdadeiras ou falsas, se encontram tanto na

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    histria cultural das sociedades quanto na evoluo cientfica. Assim, a antiga crena

    cientfica de que a Terra quadrada to falsa quanto a crena dos alemes da repblica

    de Weimar que votaram no partido nacional-socialista como forma de alcanarem o

    progresso social (BOUDON, 1999a, p. 65). Os fatores que tornam uma teoria exitosa seriam

    os mesmos nas crenas apoiadas na dimenso intelectual-terica e nas crenas da esfera

    prtica-tica.

    Contra suposies positivistas e procurando incorporar o que constitui no seu

    entender o maior legado da metodologia weberiana, Boudon enfatiza a necessidade de uma

    epistemologia que observe as razes dos agentes em suas relaes sociais. Para o

    individualismo metodolgico ser consistente, as crenas cientficas ou ordinrias devem ser

    compreendidas a partir do sentido que tm para os agentes. Dessa forma, o autor (Idem, p.

    55) critica as teorias da racionalidade utilitarista, derivadas da cincia econmica, que

    admitem princpios ltimos de ao e tratam a realidade das normas e valores como dados

    prontos, sem a necessidade de serem devidamente explicados e analisados. Isto no quer

    dizer que o agente tenha controle total sobre suas crenas, que podem ser mais ou menos

    confusas ou se encontrarem em um nvel mais ou menos consciente, mas que elas devem

    estar fundadas em razes slidas e coerentes, diretamente articuladas com o ambiente

    social.

    Por outro lado, Boudon sugere uma tendncia universal de racionalizao que

    pautaria as teorias e crenas ordinrias. Segundo o autor (Idem, p. 185-188), a

    racionalidade implica, ao lado da dimenso compreensiva e contingente das razes dos

    atores, um processo de evoluo que condiz com a prescrio de determinadas crenas

    como sendo irreversveis, no sentido de serem reconhecidamente mais legtimas e melhor

    justificadas em qualquer contexto. Esse processo descrito por Boudon como uma

    racionalizao difusa em que certos sistemas de razes desqualificam outros ao longo da

    histria. Assim,

    muitas idias, proposies, valores, Stellungnahmen,resultantes da dimenso axiolgica nos parecem hoje

    evidentes porque so resultantes de processos de inovao ede seleo social que obedecem aos mesmos princpiosdaqueles que guiam a produo e a seleo das idias emmatria intelectual-terica, e notadamente em matriacientfica (Idem, p. 186).

    Um exemplo claro do processo de racionalizao difusa seria o desenvolvimento da

    idia de cidadania no mundo ocidental, que se tornou para Boudon uma manifestao

    irreversvel com a mesma fora do princpio de inrcia na esfera intelectual-terica (Idem,

    p. 186-187). Do mesmo modo, a idia de pessoa e, posteriormente, de indivduo, alcanam

    ao longo dos sculos a mesma relevncia. Por conseguinte, na maior parte das sociedades,

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    as instituies s seriam aceitas e legitimadas pelo indivduo se este tem o sentimento de

    que sua dignidade est sendo respeitada. Tais idias seriam adotadas porque seus

    argumentos tm fora e coerncia maiores que as teorias que apoiavam ordens

    hierrquicas. No mesmo sentido, Boudon (1999a, p. 189) cita a noo de separao dos

    poderes e a idia de que os conflitos, quando regulamentados, so bons para o

    funcionamento de um sistema poltico. Uma das questes essenciais que envolvem todas

    essas idias na evoluo moral e poltica seria a realizao de um programa difuso definido

    pelo respeito ao indivduo e a suas particularidades, o que caracterizaria a prpria noo

    moderna de individualismo (BOUDON, 2002b, p. 43).

    O fundamental que a racionalidade torna-se uma instncia que pressupe algo

    singular e universal, mesmo com a diversidade cultural. Uma das principais preocupaes

    de Boudon refere-se ao relativismo que predominaria no s no campo cientfico como no

    comportamento e nas justificativas do cidado ordinrio, de modo que "qualquer que seja o

    contedo da opinio de outrem, necessrio acolh-la de modo positivo" (BOUDON, 1999a,

    p. 309). Contra tal perspectiva, o autor (Idem, p. 190) prope, por exemplo, o desafio de

    saber se os relativistas e multiculturalistas aceitariam de forma inquestionvel fatos tais

    como a exciso, a definio das mulheres em um estatuto inferior, que a magia valha a

    mesma coisa que a cincia ou que certos setores de produo utilizem mtodos

    escravizantes. Segundo Boudon, tais idias ou mecanismos sociais envolvem raciocnios

    indiscutveis e o fato de que ainda possam aparecer em sociedades contemporneas se

    deveria apenas presena de foras histricas que contrariam, por vezes, as diretivas

    racionais.

    Portanto, para questionar raciocnios relativistas ou abordagens limitadas da ao,

    como da escolha racional, Boudon aponta a emergncia de razes com caractersticas

    distintivas de universalidade. O problema que a anlise do autor no precisa de forma

    clara qual seria o fundamento efetivo da racionalidade, se o reino das opinies e das razes

    circunstanciais ou se a dimenso das crenas irreversveis, impossveis de serem criticadas.

    Ainda que o autor sugira que a racionalidade se relaciona com ambas as direes, no hargumentos que explicitem como as esferas das prticas ordinrias e de uma reflexo

    universalizante se articulam entre si. Nesse sentido, Boudon, em um mesmo pargrafo que

    trata do relativismo como fenmeno social, revela tanto uma posio contextual e parcial

    dos agentes, pois h tambm razes fortes de resistir ao relativismo (Idem, p. 323), quanto

    uma atitude normativa que depende de um postulado inquestionvel, j que evidentemente,

    as opinies so opinies e as verdades, verdades, e importa ver que essa distino real

    (Idem, p. 323).

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    A Racionalidade entre o Universalismo e os Parmetros Contextuais

    A maior qualidade do trabalho de Boudon sobre a racionalidade parece residir em

    sua crtica ao paradigma da escolha racional como teoria explicativa das relaes sociais. A

    partir de sua nfase na falta de uma abordagem coerente da escolha racional para entender

    fenmenos eminentemente sociais, torna-se clara a diferena efetiva entre uma

    epistemologia das Cincias Sociais e um entendimento proveniente da Economia. Mesmo

    sendo uma vertente que parte de um mtodo centrado no indivduo, o individualismo

    metodolgico de Boudon considera a importncia de observar teoricamente uma esfera que

    se impem, de maneira mais ou menos efetiva e mais ou menos consciente, sobre os

    agentes. Em vrios momentos, Boudon sugere a importncia dos processos de

    socializao, ainda que sempre saliente a necessidade imperativa de estud-los a partir de

    seus microfundamentos e no conceb-los a priori. Sua teoria destaca a necessidade de

    descrio dos modos pelos quais os sujeitos incorporam efeitos sociais, procurando

    estabelecer relaes efetivas entre as dimenses da agncia e da estrutura social. Tal

    articulao sempre ausente na teoria social da escolha racional, que pressupe tanto um

    sujeito universal quanto uma instncia estrutural que no seria nada mais que uma mera

    agregao de interesses antagnicos. No h um intercmbio entre agncia e estrutura, o

    que implica a objetivao do ambiente circunstancial pautado pelas prticas instrumentais e

    pelo equilbrio econmico de mercado.

    Todavia, cabe apontar algumas questes que parecem imprecisas na proposio

    alternativa de Boudon ao modelo da escolha racional. Ao mesmo tempo em que o autor

    sugere a relevncia de categorias como "parmetros contextuais", que indicam as

    influncias que os agentes recebem dos ambientes em que esto inscritos, supe,

    principalmente a partir da idia de "racionalizao difusa", um movimento que se coloca

    acima dos prprios sujeitos, como exposto na idia de um "espectador imparcial"

    (BOUDON, 2001). Fundamentalmente, a teoria incorpora tanto um entendimento

    particularista quanto um universalista, o que gera dificuldades para entender os mecanismosda ao. Por um lado, as crenas e teorias aparecem diretamente articuladas aos ambientes

    em que surgem, sendo efetivamente incomensurveis, j os indivduos tm razes fortes e

    boas para o que crem, mas, pertencendo a contextos diferentes, uns no devem aceitar as

    crenas dos outros (BOUDON, 2003, p. 62; p. 100-101). Por outro lado, algumas crenas e

    teorias podem ser avaliadas comparativamente a partir de certo olhar racional e imparcial,

    de modo que alguns entendimentos, como o de que o Estado representa uma instncia

    privilegiada de regulao social, seria necessariamente falso, independentemente das

    posies de, por exemplo, trabalhadores e empresrios sobre tal questo (BOUDON, 2003,p. 92; 2001, p. 106-107).

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    Nesse sentido, no fica claro, por exemplo, quais mecanismos engendram o

    processo de racionalizao difusa, e o que este representa em relao possibilidade de

    uma objetividade ou evoluo dos valores. A questo se a teoria porta alguma noo de

    progresso no devidamente esclarecida. Por vezes, Boudon parece acreditar em algo

    como uma direo a crenas objetivas e a um sistema composto de razes verdadeiramente

    consistentes. Outras vezes, o autor (1999b, p. 54) sustenta um argumento no

    universalizante, em que afirma que um tipo de verdade, cientfica ou moral, s faz sentido se

    inscrita em tempo e espaos especficos. Devido conjuno de postulados diversos,

    alguns fatos sociais podem ficar sem resposta no modelo terico. Sugiro, a ttulo de

    exemplo, algumas questes: se os contextos dos quais os agentes participam so to

    importantes, por que se pressupe algo como um acordo inquestionvel? Nesse caso, quais

    so os mecanismos que engendram a evoluo e institucionalizao de idias irreversveis?

    Se a racionalidade a mesma para todos os indivduos, por que no acabam tendo as

    mesmas crenas e teorias? Ser que a definio de foras histricas, que impediriam o

    desenvolvimento e evoluo de certas idias no constituiria caixa preta que no explicaria

    efetivamente certos mecanismos sociais, algo que Boudon tanto critica em algumas teorias?

    Por que, mesmo com os processos reflexivos da contemporaneidade que deveriam

    estimular o processo de racionalizao difusa, o relativismo ainda vigora com tanta fora?

    Como explicar o ressurgimento de crenas religiosas msticas e relacionadas com fatores

    mgicos e no racionais?

    O problema que Boudon parece indicar que o nvel de nossa competncia cognitiva

    depende de certa complexidade terica, o que qualifica as crenas ou teorias de alguns

    setores sociais como efetivamente melhores que outras (cf. 2003, p. 92-93). Contudo, isso

    contraria as passagens em que o autor, para explicar seu entendimento sobre as boas

    razes, d igual dignidade e valor a todas teorias, sejam elas provenientes de esferas

    ordinrias ou cientficas. Assim, ainda que a teoria possa fazer sentido quando compreende

    crenas objetivas e estruturadas em certos campos cientficos, como os postulados

    matemticos, torna-se limitada para examinar as condutas e aes que envolvem a maiorparte da populao. Mas mesmo nas reas cientficas, principalmente nas Humanidades,

    problemtico supor algum movimento, e mais ainda qualquer seleo ou evoluo, em

    direo ao acordo acerca de determinados temas. Em certo momento, as teorias tornam-se

    incomensurveis, diferenciadas, por exemplo, quanto a suas noes liberais ou perspectivas

    de cunho mais estruturalista.

    Ainda que Boudon sugira o exame de questes fundamentais que escapam por

    completo escolha racional, e assim tenha grande relevncia para a teoria social

    contempornea que incorpora crescentemente a concepo de ao instrumental, falta emsua teoria a anlise de aspectos essencialmente polticos, relacionados com determinaes

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    sistmicas que impem socialmente certas crenas e atitudes. Deve-se destacar, nesse

    sentido, o fato exemplar de que a prpria racionalidade instrumental est diretamente

    articulada a uma peculiar dimenso econmica o mercado que objeto de disputas e

    conflitos na modernidade. Alm disso, cabe notar no somente a dimenso de um poder

    estruturado, mas tambm a capacidade de certas movimentaes polticas definirem formas

    originais de crenas e atitudes. Na medida em que Boudon se atm a irreversibilidades de

    um processo de racionalizao proveniente de uma concepo abstrata da mente e da

    cognio humana, perde referncia de fatores circunstanciais, criativos e imaginrios, que

    podem definir e dirigir as aes. A realidade social em grande parte caracterizada por um

    carter fluido e aberto, o que configura o espao sociopoltico como um campo em

    constante construo. Dessa forma, a racionalidade e as capacidades reflexivas dos

    agentes podem expressar algo alm tanto da atividade instrumental voltada para fins

    exclusivistas quanto de um processo social irreversvel.

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