Rastros Genealógicos de Danca: Para pensa um corpo dançante - Ferraz Wagner

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FERRAZ, Wagner; BELLO, Samuel Edmundo Lopes. Rastros Genealógicos de Dança: para pensar um corpo dançante. Informe C3, v. 1, p. 162-176, 2014. Disponível em: http://informec3.weebly.com/blogue/informe-c3-edicao-16 .

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  • Informe C3, Porto Alegre, v. 05, n. 16, Ago/dez, 2014. (ISSN: 2177-6954) - www.processoc3.com 1

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    artigo 07

    RastRos genealgicos de dana:

    paRa pensaR um coRpo danante

    Wagner Ferraz*samuel edmundo lopez Bello**

    Resumo: Este texto busca levantar questes acerca da educao do corpo que dana e das possibilidades de criao e constituio de corpos nos diferentes movimentos de vida, para assim se pensar um corpo a danar. Esses movimentos so tomados como processos educativos em que o corpo se constitui entre regras, modelos, representao e as possibilidades de inveno de uma vida artstica. Tem-se a dana como disparador para pensar um corpo danante, e no como campo a ser analisado. Para isso, traa-se um breve percurso do corpo constitudo pela dana cnica, (no)disciplinado, que se torna danante, para assim pensar outros modos de se tornar um corpo danante na perspectiva do pensamento da diferena.

    palavras-chave: corpo danante, educao, criao, dana, movimento

    abstract: This text raises some questions about the body dancing and education opportunities for the creation and constitution of bodies in the different movements of life, so think a body to dance. These movements are taken as educational processes in which the body is between rules, models, representation and the possibilities for invention of an artistic life. One gets the dance as a trigger to think a dancing body, not as a field to be analyzed. For this,

    we draw a short body constituted by the scenic route dance, (not) disciplined, which becomes dance, to think so other ways to become a dancing body from the perspective of thinking of the difference.

    Keywords: dancing body, education, creation, dance, movement

    Educar um corpo1 coloc-lo em movimento2, em movimento de vida, num fluxo de aes experimentadas que produzem conhecimentos, mas que no fixam o corpo como algo definido, esgotado, pronto, mas como danante. Esse corpo danante se constitui como ato de pensar, um pensar que

    1 Este texto foi escrito para a dissertao de mestrado Corpo a danar: entre educao e criao de corpos (defendi-da em 30/07/2014), desenvolvida por Wagner Ferraz e orienta-do pelo Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopes Bello, no Programa de Ps-Graduao em Educao (na Linha de Pesquisa Filosofias da Diferena e Educao) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Esta verso aqui publicada foi revisada e sofreu ajustes para esta revista, pois uma verso reduzida foi publicada nos anais do Seminrio de Pesquisa em Educao da Regio Sul - Reunio Cientfica Regional da ANPED (X ANPED SUL), que ocorreu na Cidade de Florianpolis no ano de 2014, sob o ttulo Educao de corpo: danar, movimentar, pensar.2 Por mais que tenha dito anteriormente que o movimento constitutivo do corpo, e que mesmo em repouso este pode estar em movimento, tambm possvel dizer que, ao incidir sobre uma materialidade corporal com prticas educativas, pode-se coloc-lo em movimento como modo de executar aes e regras que modulam condutas.

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    corporal, uma materialidade que se diferencia constantemente produzindo variaes quando experimenta a si3. E, nos processos educativos em dana, nos referimos a um corpo que no se compromete somente com o movimento cnico danante, mas que faz, dos instantes de sua existncia, experimentao.

    A dana pode ser entendida como uma potncia do pensamento, um pensamento em ato, e pensar por si s nos permite potencializar a prpria vida. Pensar por movimento pensar o prprio pensamento, desenvolver suas prprias experincias de pensamento, pois somente o movimento efetua o pensamento. E pensar exatamente esse movimento que se ope paralisia da criao, s opinies generalizantes, ao corpo alinhado e obediente. Nesse contexto, pensar por movimento engendrar esse movimento em dobras e desdobras abrindo caminhos para que o pensamento possa danar, criar e poetizar4.

    Com isso, importante destacar que, neste texto, no se tratar do corpo constitudo numa viso dualista em que corpo e mente so separados e, muitas vezes, se atribui mente um valor superior ao do corpo, tendo a materialidade corporal a marca do pecado imposta pelo cristianismo. No se trata de firmar as possibilidades de representao do corpo, mas das possveis constituies em diferentes condies, encontros e prticas/pensamentos. Um corpo como condio para vida e morte, um corpo que se afeta e que afetado, um corpo que vive as experincias tanto pelas formalidades morais e regras culturais como pelas condies que se tem para possibilidades ticas de constituio de si produzindo diferena.

    pelo e com o corpo que conduzimos a ns mesmos e encontramos possibilidades de conduzir as condutas dos outros, no corpo que se d a vida, no corpo que o prprio corpo acontece. com o corpo que se produz a si mesmo, com o corpo e no corpo que se encontra ou se vive as possibilidades de liberdade e resistncia. com o corpo que se tem condies de exercer e/ou estabelecer relaes de poder sobre outros corpos. com o corpo que se vem a realizar atos polticos. no corpo que tudo isso se d, mas o corpo no , o corpo vem a ser5.

    3 Mas como um corpo experimenta a si mesmo? Ao realizar uma ao, o corpo no experimenta a ao, mas experimenta um si que se constitui na realizao de tal ao.4 MUNHOZ, 2011, p. 29.5 FERRAZ e BELLO, 2013, p. 255-256.

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    A educao de um corpo pode ser pensada nas diferentes atividades constituidoras desse corpo, ou seja, em todas as prticas realizadas por este. Nesse texto, tomo a dana como atividade para pensar essa educao, tanto uma educao que incide sobre a materialidade e produz condutas no mbito corporal como uma educao de si como possibilidade singular de existir. Tomo a construo deste texto como um conjunto de pistas que do o que pensar6 sobre dana e corpo danante. Mas de que dana se trata?

    Pensamos aqui com a dana cnica. Muitas das Danas7, ditas, reconhecidas ou at convencionadas como de esttica contempornea, muitas vezes, produzem estranhamento, colocam a pensar, por se distanciarem das fadas, prncipes, princesas e faunos dos repertrios clssicos de bal. Essas Danas podem ser pensadas como possibilidades de (des)organizao, tanto artstica quanto corporal, produzindo um corpo danante que se afasta da ideia de corpo como espao para uma moral da dana. Entende-se por moral, na dana, as regras a serem seguidas por todos, com poucas possibilidades para a criao.

    (Des)organizar estruturas, no ato de danar ou de criar em dana, conduz a pensar o corpo de diferentes modos, um corpo que desacomoda, que perturba, que posto no movimento de constituio se diferenciando. A sensao de desacomodo dos formatos estveis incomoda, produz uma dana violenta, que provoca estranhamento por no produzir a sensao romntica de conto de fadas. Mas, assim, cria condies de possibilidades para outras criaes, para uma dana que pode ser tomada como dana das possibilidades. Dana essa que convencionada como Dana Contempornea, uma possibilidade tica de viver essa arte. A dana das possibilidades no a dana em que se pode tudo, mas a dana com a qual se pode variar os modos de danar, sem compromisso com os regramentos. uma dana que d condies para pensar os modos

    6 Para pensar com esse texto aqui apresentado a criao de um corpo a danar, destacando que esse corpo a danar no um corpo para a dana, mas uma criao conceitual pensa-da com a dana e com outros intercessores que foram coreogra-fados na dissertao citada na nota 1.7 Criaes em dana classificadas como Dana Contempornea que so criadas com suas especificidades, pois uma dana, mesmo sendo classificada como dana contempornea, tem seu posicionamento nessa categoria por convenes, e no por questes tcnicas especficas, como no caso de muitas outras danas. Por isso pode-se falar de muitas danas contemporneas.

    de ensinar e aprender e a singularidade da criao artstica de cada um, mais do que os modos pr-estabelecidos de danar.

    um corpo de uma dana cnicaA dana cnica aquela produzida,

    pensada, pesquisada, criada e ensaiada para acontecer em uma cena artstica, seja em um palco italiano8 (caixa preta), em um espao pblico, em uma arena, na rua, em uma casa, em um espao destinado para as artes. Independente de tcnica, estilo, escolha esttica, a dana cnica essa que no est na ordem de uma dana social danada em festas por diferentes motivos, sendo o mais comum a diverso. Seja o bal clssico, a dana moderna, a dana contempornea, as danas folclricas/dana de salo com o intuito de apresentao cnica, seja a dana jazz e tantas outras, podemos entender todas como dana cnica. Todas so produtoras de um corpo que poderamos chamar de corpo cnico, mas o que interessa aqui o processo de educao desse corpo, trata-se de uma disciplina corporal por meio da dana.

    O bal (dana clssica) se caracteriza, entre outras coisas, por regras e pela codificao de movimentos corporais que so reconhecidos em qualquer lugar do mundo. Da Itlia do sculo XV, em Florena, em festas nos palcios, ao sculo XVIII, passou por modificaes disciplinares nas quais, at hoje, pode-se perceber uma organizao do poder sobre a materialidade corporal9. Pierre Beauchamp10 (1636-1705) criou cinco posies bsicas dos ps para esta dana: todo e qualquer passo e movimentos iniciam ou terminam nas respectivas posies. So regras com suas verdades aplicadas anatomia humana, uma disciplina dos gestos, das atitudes, do uso do espao e de clculos de tempos. Para os braos e cabeas tambm foram codificados movimentos especficos para acompanhar

    8 Palco tradicional onde o pblico assiste ao espetculo de frente. Normalmente possui trs lados fechados, como se fosse uma caixa, e se mantm tudo no escuro para poder trabalhar com a iluminao.9 O poder aqui , pensando com Foucault, um poder no hierrquico, mas um poder que se d nas relaes, ou como podemos dizer: Relaes de poder. No um poder de algum que decide e outros obedecem, mas relaes de poder em que se busca fazer com que os outros desejem o que se quer que eles desejem.10 Charles-Louis-Pierre de Beuchamps foi um dos principais nomes na elaborao de uma codificao da dana clssica.

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    as posies e movimentos de ps. No todo, trata-se de um rigoroso adestramento11 de corpos um treinamento, um modo de educar os corpos para essa arte , mas, ao mesmo tempo, trata-se da construo de uma dana acadmica com uma esttica admirada at os dias de hoje e, automaticamente, da produo de um determinado tipo de corpo til12 para essa dana.

    uma dana idealizada para corpos especficos que realizem os movimentos danantes13 regidos pela tcnica, o que, de certa forma, com base nos ideais que se busca atingir, restringe alguns corpos, posicionando-os em um lugar de no adequados para essa dana. uma dana tradicional, que se deve ensinar e aprender como ela foi criada, pois essa sua proposta. Um corpo que realiza de formas diferenciadas a dana clssica, que no consegue alcanar o que foi idealizado na proposta desta, pode ser at considerado no adequado para essa atividade. No possui condies para ser admirado ou no capacitado para esta arte, mas pode buscar viver, intensamente, o treinamento com o intuito de normatizar, de construir um corpo pela padronizao de movimentos danantes.

    preciso tornar-se um corpo em que as tcnicas de adestramento produzam efeitos nos comportamentos. Precisa-se aprender a representar essa tcnica, chegar o mais prximo possvel do modelo tomado como verdadeiro. Existem propostas que buscam outras possibilidades no prprio bal, pensando as materialidades corporais de formas diferenciadas, mas nem sempre reconhecidas e legitimadas: so criadas por professores que buscam produzir o bal clssico preocupando-se com a potncia de cada corpo, que pensam o corporal nas suas singularidades. Porm, para se reproduzir o bal14, precisa-se investir no controle do corpo, para que este se torne fora til e, ao mesmo tempo, produtivo e submisso, precisa-se educar o corpo para essa prtica.

    A busca por realizar outras formas de dana que no sejam o bal, na tentativa de

    11 FOUCAULT, 1987, p. 11912 FOUCAULT, 1987, p. 11913 Movimentos danantes so diferentes de movimentos cotidianos. Uma pessoa caminhando na rua no est executando movimentos danantes, mas a movimentao dessa caminhada pode servir de inspirao para a produo de uma cena artstica, pode ser coreografada. O movimento da caminhada, quando ensaiado para ser apresentado, quando se define ritmo, intensidades, dinmicas, direes e intenes, pode se tornar um movimento danante.14 Mas no s o bal, isso passa por muitas danas.

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    possibilitar que outros corpos, ditos diferentes, pudessem danar, abriu espao para a criao de outras danas/tcnicas com suas regras: A Dana Moderna15. A dana moderna (ou as danas modernas) surge, cronologicamente, depois da dana clssica. Apesar de ser efeito do pensamento de uma determinada poca no sentido de dar possibilidades para criao, tambm tem como forte caracterstica a codificao, a padronizao e a normalizao de alguns movimentos que se do atravs de exerccios que constituem as tcnicas dessas danas. Mas, ao mesmo tempo, do condies para compor com seus cdigos e com a criao de outros movimentos, apontando sempre para os chamados princpios, com exceo da precursora Isadora Duncan (18771927), que trabalhava com movimentos que ela chamava de livres, tendo como referncia a natureza. Martha Graham (18941991) desenvolveu uma tcnica que tem como princpios contrao e relaxamento, Dris Humphrey (1895-1958) aponta para queda e recuperao. E h muitos outros que foram precursores desse movimento (Dana Moderna), como Loie Fuller (18621928), Ruth St Dennis (18791968); Emile Jacques Dalcroze (18651950); Mary Wigman (18661973) e Rudolf Von Laban (18791958), criaram suas especificidades em suas danas, trabalhando com o corpo e sobre o corpo e suas foras, intensificando sua utilidade, sua docilidade, sempre precisando de sua submisso16 para a realizao dessas danas.

    Na dcada de 60, destaca-se Merce Cunninghan (1919 2009), bailarino e coregrafo que estudou dana com Martha Graham e teve muitos trabalhos em parceria com o msico John Cage (1912 1992). Aos 34, que funda a Merce Cunningham Dance Company. Criou uma linguagem considerada inovadora, onde coreografia, msica e cenografia eram construdas independentemente uma da outra, e no havia mais uma narrativa na dana. Fez algo inusitado: introduziu o mtodo do acaso, que consistia em criar algumas

    15 A Dana Moderna emergiu nos ltimos anos do sculo XIX e se destacou nos primeiros anos do sculo XX. Existem vrias danas modernas com intenes distintas. Os bailarinos, em algumas dessas danas, danam descalos, trabalham movimentos de contrao, toro, desencaixe etc. Os movimentos so entendidos como mais livres, embora sigam uma tcnica organizada.16 Submisso pensada aqui, com Foucault, como a condio de se submeter a uma prtica para se tornar til a esta.

    sequncias (trechos, partes) de dana e sorte-las para escolher qual seria usada na criao coreogrfica17. Cunningham citado por alguns como quem mudou os rumos da dana moderna, sendo considerado um precursor da dana ps-moderna. Para alguns, tido como um dos primeiros coregrafos contemporneos.

    Na mesma dcada, ligado ao estdio de Merce Cunninghan, em Nova York, se constitua um grupo de coregrafos, ps-modernos, irreverentes, que pensava a dana inserida nas grandes mudanas no campo social e poltico daquela poca. Esse grupo se chamou Judson Dance Theatre18, (...) utilizam movimentos cotidianos sob a alegao de que todo movimento dana19. Fizeram parte desse grupo: Yvonne Rainer (1934), Steve Paxton (1939), Trisha Brown (1936), Simone Forti (1935), Willian Forsythe (1949), entre outros.

    Esse movimentos na histria da dana, possibilitam pensar que o corpo sempre foi a condio para se dar a dana, e sempre foi a prpria materialidade a condio para se pensar e criar outros modos de danar, rompendo com a dominncia de uma determinada dana tomada como a verdade a ser buscada em diferentes momentos histricos. E assim se deu a necessidade de inventar a dana contempornea, criada, historicamente, depois das danas clssica (bal clssico) e moderna, como outra forma de investimento no corpo, com mais espao para a produo da diferena e para a produo de diferentes estticas, buscando se diferenciar das danas tradicionais que regiam o mundo da dana, como a dana clssica.

    dana contempornea: a dana das possibilidades

    Por mais que se trate de um perodo histrico, o que fica muito evidente nas danas citadas anteriormente so suas particularidades, sendo essas conhecidas e classificadas por suas caractersticas tcnicas, seus modelos a serem representados. Tanto a dana clssica

    17 RENGEL e LANGENDONCK, 2006, p. 62.18 Os artistas desse grupo trouxeram para a arte fundamentos diferentes e instigantes. Observavam os movimentos de animais, as aes cotidianas das pessoas, as relaes de peso do corpo em contato com outro corpo, usavam a improvisao de movimentos e apresentavam suas danas no mais de forma linear, mas sim como um videoclipe. O objetivo era fazer com que o pblico juntasse os pedaos e extrasse um significado para o trabalho apresentado. RENGEL e LANGENDONCK, 2006, p. 67.19 MARQUES, 2012, p. 182.

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    como as danas modernas so tcnicas de normatizao dos corpos em que o controle se d atravs de seu exerccio - mas no s isso - que apontaro para determinados resultados estticos propostos por cada uma, todas essas danas, sempre, apresentando suas identidades que podem ser percebidas em diferentes lugares e tempos, podendo haver pequenas alteraes. Mas isso vai se embaralhar, desorganizar, deslocar com a inveno20 da j mencionada dana contempornea. A dana contempornea no uma escola, tipo de aula ou dana especfica, mas sim um jeito de pensar a dana.21 Um jeito de pensar a dana diferente a cada dana criada, um jeito de pensar a dana criando diferena; no apenas um jeito, mas modos de criar danas, modos que criam a dana que trato aqui por dana das possibilidades. Pensar a dana contempornea como dana das possibilidades d condies para pensar processos de criao em dana que apresentaro singulares resultados cnicos e que muitas vezes esto em devir. Porm, essa dana ainda mantm o carter disciplinar, com seus treinos e ensaios.

    Faz-se dana contempornea no Japo, em Taiwan, na Frana, na Alemanha, na Holanda, na Blgica, nos Estados Unidos e no Brasil. Em cada um desses pases h coregrafos de caractersticas distintas que realizam trabalhos corporais conhecidos como dana contempornea, mas que poderiam ser classificados de forma diferente22.

    Com criaes de diferentes danas de esttica contempornea produzem-se modos do danar, desorganizando o que j se fazia em dana, reorganizando constantemente o que se faz sem fixar em algo (em muitos casos), podendo-se pensar em algo transitrio, em devir provocando estranhamentos. atravs do estranhamento que possvel sair do lugar comum, do lugar de costume, de um lugar de possvel fixao, do lugar onde se

    20 Uso o termo inveno fazendo referncia a Foucault, que tomou este termo de Nietzsche. Em Verdade e as Formas Jurdicas, 2002, p. 16., Foucault dir que o O conhecimento, foi portanto, inventado. A ideia de inveno se contrape de origem: dizer que o conhecimento foi inventado dizer que ele no teve origem e que, portanto, no h no conhecimento uma adequao ao objeto, uma relao de assimilao, mas sim uma relao de dominao. Quando algo inventado, trata-se de dizer de um pequeno momento de emergncia, e no de algo que j estava l. E assim penso que em algum momento a dana contempornea teve sua emergncia e a esttica que se diferenciava de tudo o que era produzido at ento foi tomada como verdade, e isso foi entendido como Dana Contempornea. 21 TOMAZZONI, 2006.22 SIQUEIRA, 2006, p.107.

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    encontra os modos, desenhados pelo corpo, de fazer dana, j estruturados e traduzidos em receitas. Ento, de acordo com o que foi apresentado sobre essa dana, os corpos que se do danantes por esta, podem ser corpos livres, no formatados por cdigos danantes, pois cada coreografia ou espetculo de dana contempornea d condies para diferentes constituies de corpos? Por mais que se pense nas possibilidades de constituio de corpos com essa dana, assim mesmo possvel produzir corpos dceis. Foucault nos diz que um corpo dcil quando pode ser submetido, utilizado, transformado, aperfeioado, exercitado23. E isso possvel com o bal clssico, com a dana moderna, com a dana jazz, com danas folclricas e tambm com a dana contempornea.

    Porm, em algumas danas de esttica contempornea, o corpo passa a ser pensado nas suas possibilidades e potncias, e no em possibilidades criadas para se encaixar nesse corpo. H menos ateno para uma disciplina rigorosa sobre o corpo e mais, talvez, uma busca por um olhar para si mesmo, um cuidado consigo a finalidade ocupar-se consigo24 , um inventar o seu modo de criar danas e de danar, danar por si mesmo. Como no caso da coregrafa alem Pina Bausch (1940 2009). Pina teve um trabalho de dana-teatro (Tanztheater), movimento que iniciou na poca da Rudolf Van Laban e Kurt Joos, mas o trabalho dessa coregrafa atravessou dcadas, sempre se destacando e sendo referncia no cenrio contemporneo. As obras de Pina Bausch mostram pessoas comuns andando nas ruas. Os danarinos ensaiam esses movimentos exausto, at que paream bem naturais. Porm, situaes inesperadas so introduzidas para provocar o pblico25. Pina acreditava que pela repetio dos movimentos se chegava sua transformao. Hoje muitas cias de dana, bailarinos, grupos, coletivos desenvolvem propostas de danas contemporneas, cada um com seu modo de danar, alguns apontando para algumas convenes e outros buscando sua singularidade.

    corpo (no)disciplinado na dana

    As danas mais disciplinares podem ser pensadas como a imagem de uma garrafa com

    23 CARDIM, 2009, p. 135.24 VALLE, 2012, p. 283.25 RENGEL e LANGENDONCK, 2006, p. 66.

    uma forma bem especfica, em que ser um bom sujeito da dana aquele cujo corpo, com seus gestos, condutas e comportamentos, se encaixar perfeitamente dentro da garrafa. Se o corpo no se encaixar na garrafa, este corpo no serve para certa dana proposta em determinada situao. J em muitas danas contemporneas como se se pensasse o corpo como criador de sua prpria garrafa, que serve especificamente para esse corpo que a produziu, e a produzir muitas vezes de diferentes formas. Cada corpo, nas possibilidades de movimentao, criar, construir, inventar sua prpria garrafa, e isso muitas vezes baguna, desorganiza, produz estranhamento, pois no se trata de regras e formatos a serem repetidos, mas de regras e formatos que, ao se repetirem, so refeitos, so criados de forma diferenciada, criados o tempo todo para cada dana e que, em muitos casos, deixam de valer a cada nova proposta ou a cada dia.

    A dana contempornea produzida pelo corpo que se constitui nas experincias dessa prpria dana, nas experimentaes de seus modos de danar, modos esses que se do em cada proposta e em cada coreografia26. Pois a dana, quando compreendida como possibilidade de composio de movimentos danantes, de composio de um corpo que se d danante, se produz no entre o que se compreende por danar (vir a ser/ato) e dana (efeito do danar), um entre de infinitas possibilidades, onde o danar e a dana so desfeitos para se refazer. Isso como tentativa de no correr o risco de viver o danar como algo fixo, como um caminho certo e acomodvel, que facilmente pode se tornar o lugar do estrangulamento, o lugar do fim, um lugar sem possibilidades de desdobramentos.

    Essas danas, como possibilidades do danar, indicam modos de movimentar/pensar/criar danas, um ato de pensar que se d como ato de criao, um pensar da no representao, um pensar que produz um pensamento que dana, que produz um corpo que dana, que produz um corpo que varia em si mesmo, que se diferencia de si na experincia, que acontece, que efeito de toda sua construo e aes. Um danar no ato de pensar que se d como constituio de corpo, podendo, assim, ser

    26 Mesmo assim essas danas mantm um carter disciplinar ao criar outros modos de danar. Ao mesmo tempo em que criam possibilidades de produzir outros modos de danar, criam tambm os modos de operar esteticamente com essa dana. Ou seja, criam os modos de realiz-la, de faz-la, de transmiti-la a outros para produzir determinados movimentos danantes e cenas artsticas.

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    pensado e vivido fora da cena artstica da dana, que pode ser pensado na vida e nas diferentes prticas, uma cambalhota do pensamento27, uma constituio de uma materialidade corporal e intensidade corprea que se faz danante. Essas danas do condies para ver que o danar pode se dar, tambm, fora da cena artstica, como uma dana do movimento do ato de pensar (e isso tambm na cena artstica), mantendo um carter disciplinar, docilizando um corpo e, ao mesmo tempo, livre para a criao.

    A dana pode ser entendida como uma potncia do pensamento, um pensamento em ato, e pensar por si s nos permite potencializar a prpria vida. Pensar por movimento pensar o prprio pensamento, desenvolver suas prprias experincias de pensamento, pois somente o movimento efetua o pensamento. E pensar exatamente esse movimento que se ope paralisia da criao, s opinies generalizantes, ao corpo alinhado e obediente. Nesse contexto, pensar por movimento engendrar esse movimento em dobras e desdobras abrindo caminhos para que o pensamento possa danar, criar e poetizar28.

    Com Foucault, podemos falar que pensar o prprio pensamento, cuidar de si, tomar-se objeto de ao e do conhecimento, com regras de conduta e princpios que precisam ser conhecidos, para, dessa forma, buscar se singularizar atravs da valorizao de si prprio e do conhecimento de si. Se conhecer, atravs do cuidado de si, se constituir como sujeito de suas verdades, sejam essas verdades efeitos de uma ou outra dana.

    ... preciso ir em direo ao eu como quem vai em direo a uma meta. E esse no mais um movimento apenas dos olhos, mas do ser inteiro que deve dirigir-se ao eu como nico objetivo. Ir em direo ao eu ao mesmo tempo retornar a si: como quem volve ao porto ou como um exrcito que recobra a cidade e a fortaleza que a protege29.

    E essas verdades se reinventam ao repetir a experincia de si num corpo que se constitui no danar, no movimento danante, que se repete e se refaz constantemente, que repete diferentes modos de viver, diferentes tcnicas, que repete o que vive, para se reconhecer como um corpo de alguns instantes. Talvez um corpo que dana a vida, muitas vezes, de variados

    27 GIL, 2004, p. 133.28 MUNHOZ, 2011, p. 29.29 FOUCAULT, 2010a, p.192.

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    modos. O vir a ser de um corpo no movimento do danar do pensar, do agir, que se produz como arte, arte de si, arte da experincia de si, do impensado, dos modos de se fazer corpo nas relaes consigo mesmo e com as verdades se inventar.

    Ao perder a conscincia o corpo pensa em sua mais potente intensidade. O pensamento surge no movimento e se desloca em uma infinidade de gestos que cortam o tempo, as fronteiras, os limites, aceleram a intensidade. O pensamento convocado s categorias de uma vida danante torna-se ao e criao. Desse modo, o pensamento no separado do corpo, mas se engendra por meio do movimento, em uma multiplicidade de sensaes que levam o pensamento a danar. O pensamento, ento, o movimento de sua prpria intensidade, efetuando-se em si mesmo, tornando-se corporal30.

    O corpo no apenas o local da disciplina dos movimentos, gestos e das condutas, o corpo a condio para se disciplinar a si mesmo na necessidade de cada ao vivida, e assim produzir rupturas e produzir um si que varia em si mesmo.

    um corpo danante

    Um corpo danante, pensado a partir das artes cnicas, pode ser entendido como um corpo que se constitui atravs de prticas31 no mbito da dana, um modo de vida que nem sempre est na execuo de uma tcnica especfica dessa arte, mas no viver a dana em diferentes possibilidades e potencialidades.

    A dana se d no corpo, por meio e atravs deste, ela (...) que mostra que o corpo capaz de arte32, torna o corpo arte e o corpo faz de sua arte, dana. O corpo que dana, que executa o que se compreende por dana academicamente, tecnicamente ou historicamente, potente para questionamentos sobre o que pode um corpo, sobre a potncia de agir, sobre a experincia e a (des)organizao na constituio de uma materialidade. Um

    30 MUNHOZ, 2011, p. 26.31 ... Foucault entende por prticas a racionalidade ou a regularidade que organiza o que os homens fazem (sistemas de ao na medida em que so habituados pelo pensamento), que tm um carter sistemtico (saber, poder, tica) e geral (recorrente) e, por isso, constituem uma experincia ou um pensamento. CASTRO, 2009, p. 338.

    32 BADIOU, 2002, p. 94.

    corpo que varia de si mesmo no ato de danar. O corpo danante vem a ser efeito dos modos de danar, efeito das possibilidades do danar. E esse corpo danante, em muitas pesquisas sobre dana cnica, compreendido como o corpo treinado pela e para a dana.

    Nas produes em dana, tanto artsticas quanto de pesquisa acadmica, essa noo de corpo treinado pela e para a dana apresenta indcios da constituio de um corpo que se d no ato de danar constitudo para sua prpria arte. Com o pensamento da diferena talvez seja possvel pensar um corpo danante para as vivncias cnicas e para a vida de modo amplo. Assim, possvel pensar um corpo danante que se d em materialidade e intensidade, que tem o movimento constitutivo de si, uma potncia que pode dar condies para vir a ser um corpo danante e/ou vir a ser um corpo de outras experincias, produzindo diferena, diferenciao em si, produzindo possibilidades no corpo para experimentar a si mesmo.

    Para, inicialmente, pensar um corpo danante, treinado pela e para a dana, tradicionalmente pensando nas produes em dana, se faz importante olhar para a proposta de Dantas (2011), a qual, numa perspectiva fenomenolgica, busca ancorar reflexes tericas sobre o corpo danante na prtica coreogrfica contempornea. A autora, no artigo O corpo danante entre a teoria e a experincia: estudo dos processos de realizao coreogrfica em duas companhias de dana contempornea, descreve concepes de corpo elaboradas nas obras Aquilo de que somos feitos (Lia Rodrigues Companhia de Danas) e March aux puces, nous sommes usags et pas chers (Dona Orpheline Danse), que se deram atravs de um estudo dos processos de realizao das duas coreografias.

    Para esse estudo a autora tomou como referncia quatro modelos de corpo: corpo objeto (Lesage e Foster), corpo dionisaco (Nietzsche), corpo fenomenolgico (Merleau-Ponty) e corpo social (Bourdieu), destacando o corpo danante como corpo treinado, heterogneo, autnomo, ntimo, energtico, engajado, vulnervel e amante. Com a fenomenologia de Merleau-Ponty, Dantas esclarece que esta filosofia possibilita abordar o corpo danante a partir da experincia dos bailarinos e dos coregrafos, fazendo pensar sobre as relaes que os bailarinos estabelecem com seu corpo e os modos como eles os vivem. Os possveis tensionamentos entre o corpo concebido como objeto e o corpo concebido como experincia

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    (ou corpo vivido) mantm-se quando se aborda a construo de corpos danantes, ou seja, o tornar-se bailarino33.

    Ao analisar o espetculo Aquilo de que somos feitos, a autora constatou a presena de diferentes concepes de corpos danantes, que foram elaboradas pelos bailarinos e pela coregrafa e que so convocadas para dar vida coreografia34. O corpo danante treinado e tambm autnomo, atento, cultiva suas caractersticas pessoais, um corpo em estado de alerta. As concepes do corpo danante como corpo treinado, heterogneo e autnomo se referem formao e ao treinamento de cada intrprete em cada companhia 35. Isso se d em uma construo de corpo a partir de diferentes experincias, podendo envolver bal, dana moderna, but, danas africanas e afro-brasileiras, educao somtica, prticas esportivas, teatro fsico e performance. A partir da noo de corpo danante apresentada por Dantas, compomos outras noes de corpo danante, utilizando a noo de sujeito, subjetivao e experincia de si proposta por Foucault.

    corpo danante/sujeito

    O corpo danante referido anteriormente aponta para um modo de constituio de corpo que treina com sua prpria dana para se tornar um bailarino/danarino, mas alargando essa viso de corpo danante, pensando que se tornar um bailarino/danarino por meio dessas prticas d condies para pensar um sujeito da dana ou um sujeito danante. O que vem a ser um sujeito danante? Talvez seja mais adequado localizar de que noo de sujeito (no) se trata. No se trata do sujeito transcendental, fonte inesgotvel que justifica tudo o que fazemos e o que somos, senhor de toda a verdade, em essncia, sujeito conhecedor. Mas, sim, dentro de uma perspectiva foucaultiana, trata-se de um sujeito que vem a ser uma composio, produto de um jogo de foras, dos jogos de verdade36.

    O sujeito: No uma substncia. uma forma, e essa forma nem sempre , sobretudo, idntica a si mesma. Voc no tem consigo prprio o mesmo tipo de relaes quando voc se constitui como sujeito poltico que vai votar ou tomar a palavra em uma

    33 DANTAS, 2011, p. 07.34 DANTAS, 2011, p. 09.35 DANTAS, 2011, p. 13.36 PEREIRA e BELLO, 2011, p. 101-102.

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    assembleia, ou quando voc busca realizar o seu desejo em uma relao sexual. H, indubitavelmente, relaes e interferncias entre essas diferentes formas do sujeito; porm, no estamos na presena do mesmo tipo de sujeito37.

    Assim, possvel pensar o corpo danante treinando para sua dana como modo de construir a si mesmo no encontro e nas vivncias com outras atividades de sua vida. Um corpo danante que se d por meio de prticas danantes, nos saberes e modos de viver a dana, um sujeito que se constitui nas diferentes experincias danantes em diferentes momentos de sua vida. No se constitui de uma forma fixa, estvel ou como resultado de uma essncia fundadora, no como construo identitria, mas como efeito do danar, tendo o ato de danar como modo de subjetivao, como possibilidade de vir a ser sujeito dessa arte.

    O sujeito danante produz o seu prprio corpo treinado pela e para a dana e o corpo danante condio para a constituio do sujeito danante. So esses corpos que so autorizados a danar em determinados meios artsticos, so esses corpos que carregam consigo a dita excelncia artstica, so esses corpos detentores de cdigos especficos de tcnicas danantes tradicionais ou de modos de danar produzidos especificamente para uma determinada criao. So esses corpos que evidenciam uma verdade que se d pela execuo da dana to treinada. Um corpo que d conta de todo o aprendizado e adestramento resultante dos treinamentos, das repeties na busca de modos especficos de fazer dana, esse considerado um corpo danante, um bailarino, um danarino... Trata-se de uma verdade sobre ser um corpo danante de uma dana cnica, de uma dana que est na ordem da execuo tcnica, na ordem da criao de outros passos ou cenas, um corpo que produzido e preparado para determinadas situaes, um corpo que carrega, porta, possui marcas de danas, um corpo que dana o que aprende como dana, que educado para a dana e que muitas vezes no envolve o danar como: escrever dana, falar dana, pintar dana, mas se foca no ato de danar como verdade para a constituio de si, como verdade para se constituir um sujeito danante.

    O corpo danante o corpo submetido a um modo de vida produzido no encontro com as

    37 FOUCAULT, 2010c, p. 275.

    prticas danantes, seja no treinamento de uma tcnica, nos ensaios de uma coreografia, no processo de criao de um espetculo, nos anos de preparao em aulas de dana. Um corpo que vai se tornando um corpo para a dana e pela prpria dana, que vai se configurando como um sujeito dessa prtica, no de forma fixa, mas encontra nos modos de subjetivao, com a dana, possibilidades para produzir sua vida de movimentos.

    corpo danante de outras formas

    Outra possibilidade de corpo danante, ainda na dana cnica, o corpo que vive a dana de outras formas que no so apenas o treinamento para a realizao coreogrfica, mas vive a dana, tambm, para alm dos treinos tcnicos e coreogrficos. Um corpo que se faz dana e que faz diferentes danas, de outras maneiras, ou que escreve dana, ou que pinta dana, ou que fala sobre dana, que pesquisa dana, que vive a dana fora ou inserido nos treinamentos e ensaios, mas para alm desses tambm, um pensar a dana, um pensamento dana. Um corpo que vive a dana de forma diferente do que se diz como prtica de dana. Dantas destaca que uma das dificuldades de se escrever sobre dana a intensa teorizao sobre o corpo. ... como teorizar sobre a dana e sobre o corpo danante sem se distanciar abusivamente da sua experincia?38.

    Partindo dessa possibilidade de pensar uma teorizao da dana, prope-se pensar a teorizao de corpo como parte de diferentes prticas, um corpo danante de uma prtica-terica ou de uma teoria-prtica experincia. um corpo que no vai ao encontro das ideias de corpo em que este pensado como separado da mente/alma: no se trata de dualidades, como a diviso teoria e prtica, no se trata de uma experincia como sinnimo de experimentao prtica, no se trata de um corpo que representao de um modelo verdadeiro a ser alcanado, de um corpo que suporte para sua essncia. Mas um corpo que se d matria pensante, um corpo que se d no ato de pensar, um corpo que pensa a si mesmo no prprio ato de danar, um corpo que teoriza suas aes, suas experincias enquanto vivncias, e que pratica e experimenta a si ao danar.

    38 DANTAS, 2011, p. 03.

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    Um corpo danante, alm de treinado para determinada dana, pode vir a ser um corpo que busca pensar de outros modos os atos de danar, escrever, desenhar, pintar, falar sobre dana, um corpo que vive a dana em condies que nem sempre so as preparaes para um processo coreogrfico. Corpo, ato de pensar e experincia no so separados no ato de danar.

    Nesse caso, se vem a ser danante no momento em que se estiver danando uma coreografia, quando se estiver pensando no que coreografar, quando se estiver estudando dana, ensaiando, pesquisando dana, falando sobre dana, ensinando dana, produzindo um espetculo de dana, construindo um figurino para a dana, pensando dana com a dana ou no, realizando algo ligado aos modos de vida que envolvem alguma dana, suas verdades legitimadas e os modos de danar, modos de pensar o danar. Sem definir se se bailarino, danarino, performer, professor, escritor, pesquisador ou qualquer outra classificao ou nomeao. O danante faz dana, modos de pensar a dana, em diferentes condies, com e sem as especificidades previamente estabelecidas, mas est envolvido nas prticas/pensamentos de dana ou ligado s danas e aos modos de danar.

    corpo danante e o pensamento da diferena

    Tradicionalmente regrados, muitos modos especficos de fazer danas esto na busca de se aproximar ao mximo de modelos e identidades, operando na ordem da representao. Pensar o corpo que dana na diferena onde a diferena pensada em si e no por meio da identidade, no por relaes de comparao, mas a diferena pela diferena em si, a diferena enquanto potncia pode ser uma possibilidade de no se fixar nas representaes dessa arte. Deixa-se, assim, de pensar a dana apenas como algo produzido por um corpo anatmico39 em movimento, por sujeitos detentores de saberes especficos e guardies de experincias cumulativas. Assim, o corpo que dana potncia para a criao, e no uma estrutura que tida como produtora de erros ou acertos, o corpo em que novas imagens so produzidas e articuladas atravs

    39 Corpo anatmico em movimento para expressar as tantas vezes em que o corpo descrito apenas como anatomias e disciplinas correlatas, como fisiologia, cinesiologia e outras.

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    da escrita, que convidada a danar40, da fala que convidada a danar, do pensar que convidado a danar, do viver a dana e se tornar danante, criando outros modos de danar, de se tornar danante, de pensar a dana violentando as imagens prontas do pensamento.

    Pensar um corpo danante como criador da diferena nas possibilidades em dana, e no um corpo disponvel apenas para a representao na dana, indica que o corpo que dana est em constante movimento entre os modos de danar e as criaes em dana. E nesse entre que o ato de criar acontece e que os danantes se constituem de forma diferenciada dos corpos treinados somente para e pela dana. Mas os corpos treinados tambm podem se diferenciar se afastando, tantas vezes, dos resultados cnicos que buscam sempre representar tcnicas, repertrios, personagens e/ou formatos de danas nomeados como linguagens e identidades de profissionais e grupos. No se trata de uma crtica aos modos de danar que elegem tcnicas como verdades, mas sim de indicar que se pense, tambm, em outras formas danantes, em outras possibilidades do corpo se mover.

    ... dizer que o corpo capaz de arte no quer dizer fazer uma arte do corpo. A dana aponta para essa capacidade artstica do corpo, sem por isso definir uma arte singular. Dizer que o corpo, como corpo, capaz de arte, mostr-lo como corpo-pensamento. No como pensamento preso em um corpo, mas como corpo que pensamento41.

    Alguns grupos, cias, coregrafos, diretores e professores de dana buscam criar suas danas no colocando como modo verdadeiro e nico seus aprendizados tcnicos em dana, seus modos de pensar e fazer suas danas; criam condies para experimentar movimentos e produes nas cenas artsticas e fora delas, que se do de diferentes formas. No fixando no corpo cdigos danantes, mas colocando-o a criar danas, com as possibilidades potentes artsticas danantes, na relao com as verdades que constituem suas danas, no que se aprende e no que no se aprende, no que se vive e se experimenta, no que acontece.

    A potncia artstica de cada um vem a ser possibilidade de produzir em si novos modos de danar, ou modos de desfazer as danas

    40 RODRIGUES, 2011, p. 08.41 BADIOU, 2002, 94.

    para voltar a cri-las de outras maneiras, abre espao para o exerccio tico, ... como em relao constituio do indivduo como sujeito de suas aes supe aceitar a variabilidade e a diversidade, pensar a tica como criao de e a partir da liberdade e pensar o sujeito como obra, obra de si mesmo, obra de arte.42

    pelo exerccio tico, como modo de cada um fazer sua prpria dana em negociao com os modos ditos verdadeiros de danar, que o corpo disponvel para essa arte busca condies de fuga dos movimentos codificados resultantes de anos de prticas/tcnicas de treinos e ensaios, de adestramentos que o constituram como um sujeito danante fixo, dado e estvel. Para, assim, vir a ser um danante que acione o ato de danar e crie uma dana que se atualiza no corpo constantemente, uma dana que no se d somente como movimentao anatmica, mas com todas as possibilidades de vir a ser um danante.

    O corpo no processo de criao em dana, no que vem sendo chamado de dana contempornea, pode ser um local de atualizao de uma dana. Pois, no processo de criao em dana (contempornea), esse corpo pode vir a apresentar novas formas de danar, que no sejam nenhuma forma previsvel ou j conhecida, para assim criar o no pensado, compor de diferentes formas. Na produo do no pensado/criado em dana, os corpos dos danantes se tornam arte. Um corpo produtor da arte, um corpo que a prpria arte a ser admirada e no um objeto artstico, mas um corpo danante. Um corpo danante da dana contempornea se d em uma configurao tica e esttica.

    O que me surpreende o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos, e no a indivduos ou vida; essa arte algo especializado ou feito por especialistas que so artistas. Entretanto, no poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lmpada ou uma casa? Por que deveria uma lmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e no a nossa vida?43.

    Um corpo danante nem sempre est voltado a realizar uma coreografia ou danar em um salo de festa, mas a colocar o pensamento em movimento. Um danante pensa a dana no

    42 NASCIMENTO, p. 02. 43 FOUCAULT, 2010b, p. 306.

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    corpo, no ato de danar enquanto possibilidades de movimento que mobilizam sua vida e que se d num corpo que se constitui no danar. Com esse corpo danante que me refiro que vejo possibilidades de pensar outros modos de danar que possam ser teis para a constituio dos danantes, mas que tambm podem ser pensados fora da cena da dana. Pela dana, com dana, pelos modos de educao dos corpos produzindo vazamentos para pensar o corpo danante.

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    *Wagner Ferraz: Mestre em Educao pela UFRGS. Ps-Graduado em Educao Espe-cial. Ps-Graduado em Gesto Cultural. Gra-duado em Dana. Atuou como Coordenador do Dana do Estado do RS no IEACEN/SE-DAC - 2011/2012. Foi Professor e Coordena-dor de Cursos Livres do INDEPin nas reas de Cultura, Artes e Moda . Coordenador do Processo C3 e editor do Peridico Eletrnico Informe C3. J dirigiu, coreografou e atuou como bailarino em vrios espetculos, perfor-mances, festivais e mostras de dana sendo premiado vrias vezes. Integrou o elenco da Cia Terps Teatro de Dana (2006/2007). Mi-nistrou aulas e oficinas de dana no ensino co-mum e no ensino especial para pessoas com e sem deficincia. Coordenador dos Estudos do Corpo. Organizador do livro Parafernlias I: Diferena, Artes e Educao (2013). Autor do livro: Ditos e Malditos desejos da clausu-ra Processo de Criao da Terps Teatro de Dana (2011); Organizador do livro Estudos do Corpo: Encontros com Artes e Educao (2013). Autor do livro O Trabalho do Figurinis-ta Projeto, Pesquisa e Criao (2013). Ende-reo para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/7662816443281769

    **samuel edmundo lopez Bello: Pos-sui licenciatura em Matemtica. Mestrado em Educao pela Universidade Federal do Paran (1995) e Doutorado em Educao: Educao Matemtica pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Atualmente professor Associado II da Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul do Departamento de Ensino e Currculo e do PPGEDU - UFR-GS. Foi Coordenador institucional do PIBID UFRGS (2011-2013). Lider do Grupo de pes-quisa: Educao Matemtica e formao de professores do CNPq. Linha de pesquisa: Currculo, linguagens e subjetivaes. Ende-reo para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/4997543978760163

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    Foto: Wagner Ferraz