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Entrevista

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Ano VIII - Nº 8 - Outubro 2007

Ano VIII - Nº 8 - pág 91 - pág 95 - Outubro 2007Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

Entrevista

Juremir Machado da Silva (PUC-RS)

Nascido em 1962 na cidade gaúcha de

Santana do Livramento, Juremir Machado da

Silva é escritor, jornalista e historiador. Possui

graduação em História e Jornalismo pela Pon-

tifícia Universidade Católica do Rio Grande do

Sul (1984). É doutor em Sociologia pela Uni-

versidade René Descartes, Paris V, Sorbonne

(1995). Em Paris, durante seu doutorado, foi

colunista e correspondente do jornal Zero Hora,

onde escreveu até 2004. Atualmente é professor

titular da Pontifícia Universidade Católica do

Rio Grande do Sul (PUC-RS) e coordenador do

Programa de Pós-Graduação em Comunicação

da Faculdade de Comunicação Social (Fame-

cos), da própria PUC-RS. Integra os conselhos

editorais das revistas Galáxia, Sociétés (Paris),

Famecos (Porto Alegre), Communicare (São

Paulo) e Hermès (Paris). Tem 18 livros indivi-

duais publicados, entre os quais A miséria do

jornalismo brasileiro (2000), As tecnologias do

imaginário (2003) e Getúlio (2004); traduziu

obras de Jean Baudrillard (Power Inferno e

Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da

imagem), Michel Maffesoli (A transfiguração

do político e O mistério da conjunção: ensaios

sobre comunicação, corpo e socialidade) e

Edgar Morin (O Método 3: o conhecimento do

conhecimento; O Método 4: as idéias – habitat,

vida e costumes; O Método 5: a humanidade da

humanidade: identidade humana e O Método

6: a ética).

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Baudrillard foi um pensador à frente do seu tem-

po? Ou um espelho de seu tempo?

Diria que Baudrillard foi as duas coisas. Conseguiu espe-

lhar como ninguém a sua época, trouxe à tona o avesso

dessa época. De alguma maneira ele conseguia mostrar

as entranhas da realidade e isso fez dele um pensador

incompreendido, um tipo visionário que enxergava mais

do que os outros, e justamente esse olhar aguçado, essa

extraordinária capacidade de percepção e sensibilidade

o transformou numa espécie de pensador incômodo, um

tanto deslocado. Além dessa capacidade de observação,

Baudrillard tinha um estilo muito particular: a forma de

expressão, a ironia, a capacidade afinada de perceber

paradoxos, contradições e absurdos da sociedade fez

dele um pensador sutil, elegante, refinado, complexo

e certamente muito divertido. Muitas pessoas o viam

como um intelectual rabugento, mas na verdade era um

sujeito que tinha ao mesmo tempo um olhar irônico e

impiedoso sobre o mundo.

De que maneira o problema do pós-modernismo,

analisado particularmente por filósofos franceses

como Lyotard e Baudrillard, é pertinente para as

sociedades emergentes como as latino-america-

nas? Existe diferença entre o pós-moderno do

“lado de cima do Equador” e o do “lado de baixo

do Equador”?

É uma pergunta muito interessante pelo seguinte: a

pós-modernidade, embora tenha sido pensada princi-

palmente por intelectuais do chamado primeiro mundo,

por exemplo os franceses, ela não é uma especificidade

de países ricos. Porque a pós-modernidade não é um

diagnóstico positivo das coisas, ela é uma espécie de

constatação das diferentes realidades com as suas

contradições. Nesse sentido até se pode dizer que os

países emergentes, do “lado de baixo” ou do Sul, são

precursores da pós-modernidade se a gente entender

a pós-modernidade, por exemplo, por ecletismo, mis-

tura, mestiçagem, uma espécie de barroco, confusão

de estilos, cruzamento de coisas inconciliáveis, uma

espécie de carnavalização da vida. O Brasil é muito mais

pós-moderno do que a França. A pós- modernidade não

quer dizer que um país, por ser ou não pós-moderno,

estaria mais próximo de resolver seus problemas ou de

ser uma sociedade adequada. A pós-modernidade é, ao

mesmo tempo, uma desconfiança em relação às pro-

messas de paraíso na terra e também uma espécie de

constatação daquilo que é constitutivo das sociedades:

a contradição, o paradoxo até mesmo a desigualdade.

A pós-modernidade não é uma defesa disso, nenhuma

proposta de um mundo perfeito. Ela é muito mais uma

descrição de como a sociedade se comporta e de como

os projetos que pretendiam resolver as contradições

da sociedade se apresentaram, se transformaram e se

tornaram projetos totalizantes e, como soluções, se

tornaram problemas ainda piores do que os existentes.

A pós-modernidade pode estar em todos os lugares.

Certamente um indivíduo brasileiro que é católico, mas

também freqüenta o candomblé; que é racionalista,

mas que usa uma fitinha de Nosso Senhor do Bonfim

no pulso; ou que é um sujeito sofisticado, mas que viaja

pelo mundo acredita e gosta de determinadas práticas

culturais afro-brasileiras é mais pós-moderno do que um

racionalista emperdenido francês, que anda sempre no

seu trilho, ou um alemão, inglês ou americano. Não me

parece que a pós-modernidade seja uma questão de

pobres ou ricos. Ela pode existir e seus traços podem

aparecer tanto em culturas ricas como pobres, possi-

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velmente com diferenças. A sociedade alemã, francesa,

inglesa, é diferente da sociedade brasileira, mas numa

série de elementos elas se parecem. Por exemplo, na

desconfiança em relação ao que hoje se chama de nar-

rativas legitimadoras, por exemplo, o marxismo. A idéia

de que se poderia ter uma sociedade com todos os seus

problemas superados, harmônica. As sociedades, hoje,

são mais abertas, mais livres. A própria moral se dissol-

veu um pouco, não é mais uma moral do sacrifício. É

cada vez mais uma moral à la carte, em que se os meus

valores não incomodarem os outros, eu posso continuar

com eles, embora eles não sejam do agrado dos outros.

Tudo isso é a pós-modernidade, esse afrouxamento da

rigidez moral e cívica de outros tempos.

Há intelectuais que se dizem incompetentes

empiricamente para a compreensão prática das

idéias do pós-modernismo francês. Afirmam não

experimentar a realidade descrita e criticada

pelos filósofos do pós-modernismo. Tratar-se-ia

de um erro das idéias?

Não acredito que existiriam idéias de pós-modernos

franceses a serem aplicadas de alguma forma. Pelo

contrário, os pós-modernos franceses simplesmente

descrevem o que a sociedade já faz. Peguemos um

exemplo: a juventude brasileira criou uma expressão

para descrever um tipo de comportamento que é co-

mum entre eles, o “ficar”. Então, numa mesma noite,

uma menina ou um menino beija vinte, trinta pessoas.

Essa atitude não existia antes. Antigamente ela seria

rigorosamente reprimida ou considerada como imoral,

desqualificada, pensariam que ela era uma prostituta,

enfim, seria julgada por algum tipo de tribunal moral

ou de comportamento. Este atitude do “ficar” entre os

jovens se caracteriza por ser presenteísta, de fruição,

sem maiores compromissos, de prazer rápido, efêmero

e sem maiores conseqüências. Essas observações não

são idéias que um filósofo inventou e que alguém tem

que pregar, ou aplicar. É uma realidade que um filósofo

percebe e descreve. Alguns podem criticar e acusar uma

promiscuidade: a sociedade perdeu os seus valores,

a sociedade não tem mais referência, estamos todos

atolados na crise... e preferem lamentar. Enquanto

outros constatam e descrevem que os valores mudam

e o que antes servia como imperativo moral hoje não

tem mais nenhuma importância. Existe uma série de

outras situações comportamentais em que os valores

são definidos dessa maneira. Houve um tempo em

que simplesmente imaginar a idéia de um casamento

homossexual seria uma heresia, e hoje em dia cami-

nhamos, mesmo aqui no Brasil, para a aceitação do

casamento homossexual. O que isto significa? Cada vez

mais nós aceitamos que a própria sexualidade é uma

escolha do próprio indivíduo. Eu escolho. Eu me coloco

no mundo com a minha opção sexual e ninguém tem

nada com isso, desde que eu não prejudique terceiros.

Então, o que isto nos mostra? Um tipo de moral diluída.

Alguns a chamariam de moral à la carte e isso não é

pregação de ninguém. É constatação, é olhar para a

sociedade e descrevê-la. Estamos em uma sociedade,

como diria Bauman [Zigmunt], mais líquida. As coisas

fluem mais rapidamente, mudam mais rapidamente.

Há mais liberdade individual para definir seus padrões

de comportamento.

Há relação entre o conceito de massa formulado

por Baudrillard e o da Escola de Frankfurt?

Os frankfurtianos fizeram um trabalho interessante

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de crítica à indústria cultural e a tudo o que hoje nós

chamaríamos de sistema midiático. Em algum momento

tornaram-se não só redundantes como um tanto para-

nóicos. A massa dos frankfurtianos é um amontoado de

pessoas imbecis, dominadas, manipuladas, incapazes

de qualquer exercício de inteligência e de resistência

ao violento poder dos meios de comunicação. A massa

para Baudrillard é muito mais inteligente. É uma mas-

sa que, principalmente por indiferença, neutraliza os

meios de comunicação. Para Baudrillard, os meios de

comunicação não dominavam a massa, nem a massa

dominava os meios de comunicação: havia uma neu-

tralização recíproca. A massa divertia-se com os meios

de comunicação e os abandonava, assim como ela faz

com os ídolos sempre que se sente, por algum motivo

ou por alguma falta de razão, fatigada. A massa para

Baudrillard não tem o mesmo sentido que tem para

os frankfurtianos. Os filósofos da Escola de Frankfurt

queriam educar a massa, acreditavam em uma espécie

de vanguarda elitista iluminista para levar a sociedade

ao seu fim correto. Para Baudrillard nada disso existia.

Ninguém iria educar ninguém, e a massa desconfia

muito mais dos seus educadores do mundo, como

diria Nietzsche, do que dos próprios meios de comuni-

cação. Os pós-modernos em geral criticam a Escola de

Frankfurt por ela ser uma teoria da manipulação, e os

frankfurtianos, normalmente, criticam os pós-modernos

com o argumento de que estes são alienados e aceitam

a realidade tal qual ela é. São oposições, existe um certo

conflito entre eles.

Certas frases de Baudrillard soam como slogans.

Em que medida a retórica desse pensador mimetiza

a linguagem publicitária que ele próprio critica?

Isso é verdade. Ainda que os publicitários nunca tenham

tido a inteligência e a capacidade do Baudrillard para

fazer slogans. O Baudrillard era melhor do que qualquer

publicitário para fazer slogans. Mesmo assim é uma ob-

servação interessante. Ele escrevia com fórmulas. Isso

também pode se dizer de Nietzsche, de qualquer um que

seja capaz de fazer fórmulas. As fórmulas do Baudrillard

têm conteúdo dentro e as dos publicitários não.

A natureza eminentemente fluida da linguagem,

objeto e código incontornável das ciências huma-

nas, torna este campo especialmente vulnerável

a “imposturas intelectuais”? Ou a emergência de

tais críticas corresponde aos derradeiros suspiros

do positivismo?

O próprio da vida intelectual é criticar. Não existe ne-

nhum sistema que resolva todos os problemas, que

não vai enfrentar nenhum tipo de refutação. A vida

intelectual é feita de confrontos. Uma idéia, uma teoria

surge e logo surge outra para refutá-la ou para tentar

fazer isso. A própria dinâmica da vida das idéias é essa.

Como diz Michael Maffesoli, o herético de ontem é o

canônico de hoje. Existem pensadores que dominam

a época e depois vão sendo deixados de lado, afas-

tados, superados, novos pensadores se implantam.O

mundo intelectual é como qualquer outro: as idéias

são vencidas e depois vêm outras para substituí-las

nesse grande mercado das idéias. Nós também não

precisamos acreditar em tudo o que ele diz. Baudrillard

foi um pensador que construiu seu espaço, enfrentou

adversários, se implantou. Tem quem goste e quem

não goste. Tem, na linguagem do Pierre Bordieu, o

seu capital intelectual. Mas certamente ele também

vai ser superado, virão outros, mas ele certamente

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ficará na memória de alguns, terá valor para estes e

não para outros. O mercado é isso: cada um vai lá, faz

o seu lance, apresenta as suas idéias e tem quem as

aceite e quem não compre. Tem intelectual que vai ter

um valor de mercado excepcional, vai ser uma estrela,

como o próprio Baudrillard, e têm outros que não vão

ter nenhum. Alguns terão um período de ascensão e

depois entrarão em decadência. O valor sobe ou desce,

é uma verdadeira bolsa de valores intelectuais.

Se há um erro do pós-modernismo, qual seria

esse erro?

Na maior parte das vezes é difícil dizer o que é uma idéia

errada ou idéia certa, mas em alguns casos é possível.

Se alguém disser que o Lula é um ditador, não há hoje

condições, dentro dos critérios conhecidos do que é

democracia e ditadura, de afirmar que isso é verdade.

Se alguém diz isso, a meu ver está errado. Agora, há

casos mais complexos em que é mais difícil, ou quase

impossível, tomar uma decisão. Por exemplo, quem

está certo: os frankfurtianos ou os pós-modernos? Cada

um tem argumentos, teses para sustentar. Qual a visão

sobre a mídia está certa: a dos pós-modernos ou dos

frankfurtianos? Está certa a concepção de massa dos

frankfurtianos ou dos pós-modernos? Como podemos

tomar uma decisão sobre dizer o que está certo ou

errado? Eu tenho dificuldades em perceber como se

faz isso. No momento em que a pessoa se apaixona

por um dos lados, por uma das razões e percursos de

vida, passa a defender isso como verdade. Agora, se há

verdade de fato, eu não sei. Em determinadas situações,

se me perguntares assim: “É verdade que a terra gira

em torno do sol?”, [eu respondo] parece que sim. São os

dados que temos hoje. Ninguém vai contestá-los. Pelo

menos não agora. Talvez mais tarde, cientificamente,

venham a ser contestados. Se perguntares: anatomi-

camente, quantos sexos existem no mundo? Dois. São

coisas que não cabem muita contestação. São dados

empíricos, concretos, de difícil refutação. Porém, no que

poderíamos chamar de um segundo plano de percepção

da chamada realidade, é bem difícil dizer o que é certo

ou errado. É certo a monogamia, ou a poligamia? Como

saber? Quem pode decidir? Pode ser que para um gru-

po seja interessante praticar a poligamia. Para outros

pode ser um problema moral etc. Como decidir, então,

de uma vez por todas, se a poligamia ou a monogamia

é a prática certa ou errada? Tem gente que acha que a

homossexualidade é errada. Como posso afirmar isso?

Há situações em que a possibilidade de uma decisão

em termos de certo e errado tende a se reduzir a uma

simplificação. Isto é mais visível na produção cultural e

artística: o que é um filme ruim? Por exemplo, Tarantino.

Ele é um bom ou mau cineasta? É possível dizer o que é

certo ou é errado na obra estética de um autor?