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37 Ano VII - Nº 7 - Outubro 2006 Seria a fotografia a mediação da mentira ou uma cicatriz dos fatos? Ana Paula da Rosa * Palavras-chave: Fotografia Representação Guerra no Iraque Resumo Cada vez mais o século XXI se configura como o século das imagens, imagens estas que não são a reprodução fiel da realidade. A fotografia, que sempre foi vista como um retrato do real, não faz outra coisa senão representar o mundo. Ela não é, portanto, os olhos de quem não presenciou o fato, mas uma simulação do que se viu. Com base nesta concepção, este trabalho procura, a partir de duas fotografias sobre a guerra no Iraque — uma delas publi- cada no jornal paranaense Gazeta do Povo e outra integrante da exposição “Cicatrizes: Iraque um ano depois”, de Anderson Schnei- der —, levantar alguns aspectos a respeito da construção do olhar. O texto clássico de Ronald Barthes, “A câmara clara”, somado às posições de Dietmar Kamper, compõe a base teórica deste artigo, que resulta na questão, ainda sem resposta definitiva: seria a fotografia a mediação da mentira ou uma cicatriz dos fatos? * Jornalista, especialista em Estudos e Estratégias de Comunicação pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e mestranda em Comunicação e Linguagens na Uni- versidade Tuiuti do Paraná (UTP). Professora e coordenadora de Publicidade e Propaganda na Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – Celer Faculdades -SC

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Seria a fotografiaa medicao da mentira ou uma cicatriz dos fatos?

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Ano VII - Nº 7 - Outubro 2006

Seria a fotografi a a mediação da mentira ou uma cicatriz dos fatos?

Ana Paula da Rosa*

Palavras-chave:

Fotografi a

Representação

Guerra no Iraque

ResumoCada vez mais o século XXI se confi gura

como o século das imagens, imagens estas

que não são a reprodução fi el da realidade. A

fotografi a, que sempre foi vista como um retrato

do real, não faz outra coisa senão representar o

mundo. Ela não é, portanto, os olhos de quem

não presenciou o fato, mas uma simulação do

que se viu. Com base nesta concepção, este

trabalho procura, a partir de duas fotografi as

sobre a guerra no Iraque — uma delas publi-

cada no jornal paranaense Gazeta do Povo

e outra integrante da exposição “Cicatrizes:

Iraque um ano depois”, de Anderson Schnei-

der —, levantar alguns aspectos a respeito da

construção do olhar.

O texto clássico de Ronald Barthes, “A

câmara clara”, somado às posições de Dietmar

Kamper, compõe a base teórica deste artigo,

que resulta na questão, ainda sem resposta

defi nitiva: seria a fotografi a a mediação da

mentira ou uma cicatriz dos fatos?

* Jornalista, especialista em Estudos e Estratégias de Comunicação pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e mestranda em Comunicação e Linguagens na Uni-versidade Tuiuti do Paraná (UTP). Professora e coordenadora de Publicidade e Propaganda na Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – Celer Faculdades -SC

Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

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Key words:

Photography

Representation

War on Iraq

AbstractMore and more the XXI century sets itself

up as a century of pictures, pictures that are not

a faithful reproduction of reality. Photography,

which have always been seen as a portrait of

real, does no other thing than represent the

world, it is not, thus, the eyes of who did not

see the fact, but a simulation of what was seen.

Grounding in these conception, this paper sear-

ches, from two pictures about the war on Iraq,

one published by the local newspaper Gazeta

do Povo and one integrating the exposition Ci-

catrizes – Iraque um ano depois (Scars – Iraq

one year later) by Anderson Schneider, to raise

some aspects about the looking construction.

Ronald Barthes’ classic text, A Câmara

Clara, added to the Dietmar Kamper’s positions

compose the theoretical basis of this paper

which is a looking refl ection that results in the

question, still without a defi nite answer, would

photography be the mediation of lie or a scar

of the facts?

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Ano VII - Nº 7 - Outubro 2006

Cicatrizes de guerraCicatriz, no dicionário Silveira Bueno, recebe

a defi nição de “vestígio de uma ferida já curada”. O

fotógrafo Anderson Schneider poderia atribuir inú-

meros signifi cados à palavra a partir de suas próprias

experiências, mas pelo que mostra em seu trabalho,

cicatrizes são bem mais que vestígios. Na exposição

intitulada “Cicatrizes: Iraque um ano depois” a analogia

da palavra com as fotos, tiradas um ano após a guerra

contra o terror ter iniciado no Iraque, é bem outra. As

imagens mostram uma mistura de humanismo com o

espetáculo da dor, mas em momento algum retratam

feridas já curadas. Schneider buscou a realidade, a

sua realidade, já que toda fotografi a é um processo

de construção do real. Para quem se permite apenas

observar as imagens, com olhos de ver, elas chocam.

E por que as fotografi as de Schneider chocam tanto?

Talvez porque tenham sido feitas por outro ângulo do

olhar, oferecendo outras opções para quem já tem as

retinas fatigadas de ver sempre o mesmo.

Com relação às fotografi as publicadas, seja em

periódicos paranaenses ou exibidas em rede de televi-

são, o que quase sempre está em primeiro plano são

os destroços da guerra, os tanques em ação, o patrio-

tismo norte-americano contra os “bandidos terroristas”

que ceifam vidas em troca de crenças, que morrem e

matam infringindo todas as leis ocidentais possíveis.

Pelo discurso norte-americano implícito em muitas das

imagens de fotojornalismo, é “preciso salvar o mundo” e

já se sabe quem serão os heróis. No entanto, o Iraque é

um país em cinzas, que não parece ressurgir como uma

Fênix. São milhões de desempregados, elevados índices

de mortalidade infantil, inúmeros casos de câncer. O

país é o retrato do caos e é exatamente este caos que

Schneider mostra — as cicatrizes vivas.

No entanto, a exposição não mostra o real e sim

uma representação, ou seja, uma realidade forjada,

fabricada por meio do olhar do fotógrafo e da lente

do equipamento utilizado. Para Arlindo Machado, “a

imagem, não vindo diretamente do homem, pressupõe

sempre uma mediação técnica para exteriorizá-la, ela

é sempre um artifício para simular alguma coisa a que

nunca podemos ter acesso direto” (1997, p.221). Neste

mesmo sentido, Jacques Aumont afi rma que o “espec-

tador induz um julgamento de existências sobre essas

fi guras da representação e atribui-lhe um referente real.

O espectador acredita não que o que vê é real, mas

que o que vê existiu, ou pôde existir, no real” (1993,

p.111). Na verdade, o que se tem visto é que o mundo

se transformou em imagem, ele não existe dissociado

das imagens que o constituem.

Real passado é ainda real?Não há realidade pura, inocente, sem a mediação

técnica, mas como saber se a guerra do Iraque existiu

da forma como foi apresentada? Como comprovar aquilo

que os olhos vêem nos jornais, nas redes de televisão?

As imagens, em especial a fotografi a, sempre tiveram

essa “força” de ser os olhos do mundo, de captar os

momentos presentes atribuindo-lhes uma característica

documental, de veracidade e perenidade. Ledo engano:

o mundo é cego, já que a fotografi a não pode “apreen-

der” a realidade. Ela apenas transforma feixes de luz

em uma imagem que não é o objeto ou o fato em si,

mas a sua representação, a sua simulação.

Embora muito já se tenha falado sobre a cons-

trução da realidade por meio da fotografi a, o mesmo

princípio parece se tornar ainda mais pertinente para a

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fotografi a de guerra apresentada nos veículos de comu-

nicação, onde se sabe muito pouco sobre o referente

representado. Roland Barthes (1984) afi rma que

o referente da foto não é o mesmo que o dos outros sis-temas de representação. Chamo de referente fotográfi co não a coisa facultativamente real a que me remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografi a. A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto (imitações). Na foto jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado (BARTHES, 1984, p.115).

Barthes via a fotografi a como unária ao acreditar

que por ela ter sido produzida em uma única seqüên-

cia, havia captado o real. Para ele, a foto pode mentir

quanto ao sentido, mas jamais quanto à existência. O

autor acredita num “real no estado passado”, como

se fosse possível, por mágica, reter o real passado.

Mas se o real é passado ainda seria real? Ao captar

a imagem de um referente no passado, nada mais se

está fazendo do que construí-lo, do que criar um novo

objeto. Ao olhar uma das dezenas de fotografi as da

exposição de Anderson Schneider não se pode garantir

que o espectador está vendo o “isso foi”. Não se está

vendo o momento real congelado no tempo, mas sim

uma representação do Iraque.

Ao olhar as fotos hoje, em 2006, elas não sig-

nifi cam a realidade tal qual é, mas sim a realidade tal

como foi criada com toda a carga intencional do fotó-

grafo, todo o aparato técnico envolvido e até mesmo

com os olhos da cultura de quem a lê e para quem ela

foi produzida. Sobre a não-realidade da fotografi a se

pode utilizar uma noção bastante amadora para ilustrar:

o fotógrafo, quando utiliza a câmara fotográfi ca, inde-

pendentemente de qual tecnologia disponha, sempre

se depara com um desvio. Quantas vezes aquilo que

se vê pelo visor do equipamento não coincide com a

fotografi a que se tem pronta? É que aquilo que se vê,

o referente, não é imobilizado diante da câmara como

acreditava Barthes, mas sim simulado.

Da representação às funções da ima-gem

Se, de acordo com a semiótica de linha francesa,

a linguagem (entendida aqui como um todo de sentido,

não apenas como verbal, mas também como não-ver-

bal) já é uma representação, ela não pode, portanto,

retratar fi elmente a realidade. Neste sentido, as fotogra-

fi as que ilustram e complementam os textos jornalísticos

não são a verdade, mas sim tentam causar um efeito

de verdade, já que o discurso jornalístico é baseado na

tentativa de transformar os fatos selecionados como

noticiáveis em algo que “pareça verdadeiro”.

Apesar de seguir a linha da semiótica de Peirce,

por se preocupar mais com uma semiótica dos signos do

que dos sentidos, Martine Joly (2002) afi rma que uma

imagem é, antes de mais nada, “algo que se assemelha

a outra coisa”. Para Joly,

a primeira conseqüência dessa observação é constatar que esse denominador comum da analogia, ou da semelhança, coloca de imediato a imagem na categoria das representa-ções. Se ela parece é porque ela não é a própria coisa: sua função é, portanto, evocar, querer dizer outra coisa que não ela própria, utilizando o processo da semelhança. Se a imagem é percebida como representação, isso quer dizer que a imagem é percebida como signo. Segunda conseqü-ência: é percebida como signo analógico. A semelhança é seu princípio de funcionamento. Antes de prosseguirmos no questionamento do processo de semelhança, é possível constatar que o problema da imagem é, de fato, o da semelhança, tanto que os temores que suscita provêm precisamente de suas variações: a imagem pode se tornar perigosa tanto por excesso quanto por falta de semelhança (JOLY, 2002, p.39).

Com esta afi rmação, Joly destaca que a seme-

lhança exagerada com o objeto representado pode

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gerar certa confusão, mas que a falta desta semelhança

torna a representação toda — a imagem — inútil. De

que serve a representação se ela não for realizada

de forma inteligível? Eis que entra a infl uência dos

estereótipos culturais e do papel do “operator”, como

defi niu Barthes, para transformar a representação em

algo compreensível e de fácil assimilação. O fotógrafo

é que irá, baseado em sua percepção consciente ou

inconscientemente, selecionar o que será representado.

É ele que irá, por meio de toda a técnica e capacidade

de olhar — o “feeling” dos repórteres fotográfi cos —,

criar uma foto que é um simulacro do real. Porém, se a

imagem é um simulacro, uma representação, entendida

por várias pessoas, não só por quem constrói a imagem,

é porque existe um acordo social sobre o objeto retra-

tado, acordo este que muitas vezes a própria imagem

contribui por fortalecer, estreitar.

Dietmar Kamper (2002) apresenta três funções

da imagem: a de presença mágica, a de representação

artística e a de simulação técnica, as quais se encontram

interligadas em alguns momentos e aspectos.

Ambígua desde o começo, imagem signifi ca,

entre outras coisas, presença, representação e simu-

lação de uma coisa ausente. Se se admitem diversas

combinações históricas com diversas pronúncias, a si-

tuação oferece motivos sufi cientes para distinções mais

precisas. Presença é a dimensão mágica; representação

reúne forças da imitação, da capacidade de colocar as

imagens como imagens, o inteiro arsenal dos disfarces

engenhosos; e simulação é um assunto da ilusão,

incluída a auto-ilusão, que em contato com as leis de

mercado e da abstração da troca tem atualmente sua

conjectura favorável. A cooperação e o contraste entre

presença, representação e simulação constituem ao

mesmo tempo o objeto e o horizonte da refl exão, onde

o objeto não tem em si nada de objetivo e o horizonte

tem em si pouco de defi nido (KAMPER, 2002, p.12-13).

A dualidade da imagem — e aqui o termo ima-

gem é utilizado enquanto fotografi a — está exatamente

nesta presença representada. Com a representação e

a simulação técnica se está substituindo o objeto real

que se ausenta da fotografi a tão logo ela é produzida. E

mediante estas afi rmações de que o mundo é mediado

por imagens nunca plenamente reais, sempre fabrica-

das, construídas, torna-se quase inconcebível viver sem

imagens, pois é pela visibilidade que as coisas passam

a existir. Do contrário, desaparecem.

Duas visões diferentes do mesmo temaNa tentativa de exemplifi car o exposto anterior-

mente, segue uma breve análise descritiva de duas

fotografi as sobre os confl itos no Iraque. A primeira

delas (Foto 01) foi publicada no jornal Gazeta do Povo

do Paraná. A outra (Foto 02) integra a exposição “Cica-

trizes: Iraque um ano depois”, de Anderson Schneider.

Retomando Barthes, que enfatiza que as fotografi as de

reportagens são fornecidas de uma só vez, a imagem

publicada na edição de 8 de maio de 2005, p.25, provém

das agências de notícias Reuters/AE/AP, que distribuem

essa informação para os jornais que pagam por este

serviço em todo o mundo.

A fotografi a que ilustra a foto-legenda, intitulada

“Resistência explosiva”, mostra um carro-bomba destruí-

do, sendo que ao redor policiais observam os danos. No

plano do conteúdo estão em jogo categorias semânticas

como guerra x paz e morte x vida. A guerra está

fi gurativizada no carro-bomba e a paz (pelo que já se

sabe do contexto) nos soldados americanos. Já a morte

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está representada na imagem pelo carro destruído e

pelos escombros, enquanto a vida pode ser associada

às árvores que são o pano de fundo.

Ampliando a análise para o plano da expressão,

mesmo que a fotografi a seja de fotojornalismo e, por-

tanto, a priori, feita não com fi ns artísticos, a plastici-

dade da imagem também leva a algumas analogias que

se relacionam com o plano do conteúdo. As categorias

topológicas presentes na imagem são primeiro plano

x segundo plano e focado x desfocado. Portanto

tem-se:

Plano do conteúdoGuerra x Paz

Morte x Vida

Plano da expressão1º plano x 2º plano

Focado x Desfocado

Esta relação entre os planos da fotografi a e a sua

composição focado ou não focado não constituem, se-

gundo Pietroforte (2004), uma relação semi-simbólica,

pois diz respeito apenas ao plano da expressão, ao que

é visível plasticamente, sendo que para ser semi-simbó-

lica é necessário que haja uma relação categorial com

o plano do conteúdo. E é exatamente o que acontece

ao relacionar respectivamente os valores morte x vida

com os destroços de um carro-bomba, ou seja, primeiro

plano, e as árvores do segundo plano. Partindo desta

idéia, é possível sim determinar um semi-simbolismo

entre as categorias de conteúdo (guerra x paz, vida x

morte) com as categorias plásticas (primeiro plano x

segundo plano e focado x desfocado).

A segunda imagem a ser analisada também trata

da guerra no Iraque, porém ela é de autoria do fotógrafo

paranaense Anderson Schneider, que fez fotografi as do

Iraque em 2004 com fi ns artísticos.

No plano do conteúdo, as categorias semânticas

retratadas também são morte x vida, guerra x paz,

além de infância x vida adulta. A morte está fi gura-

tivizada por meio dos objetos destruídos, espalhados

pela rua; e a vida, pelas crianças. Já a guerra pode ser

associada aos destroços; a paz, à brincadeira de balan-

ço. A oposição entre infância e vida adulta está também

representada na brincadeira e na criança (lado direito)

que ganha um doce versus os homens e mulheres que

observam o local, na tentativa de reconstruí-lo.

Foto

1

Foto

2

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Ano VII - Nº 7 - Outubro 2006

As categorias topológicas presentes no plano

da expressão são movimento x estático, claro x

escuro. Na categoria espacial, direito x esquerdo.

O movimento está identifi cado pelo balanço que corta

o céu; já o estático, pelos prédios do fundo. A oposição

entre claro e escuro está explicitada pelo céu e pelos

prédios (tons claros) e pelas pessoas, principalmente

as crianças que estão em primeiro plano (tons escu-

ros). Já no que diz respeito à disposição espacial, no

lado direito há as crianças; no esquerdo, os adultos,

como se houvesse uma separação entre dois mundos.

Tem-se então:

Plano do conteúdo

Guerra x Paz

Morte x Vida

Infância x Vida adulta

Plano da expressão

Movimento x Estático

Claro x Escuro

Direito x Esquerdo

Aprofundando a análise, fi ca visível a relação

semi-simbólica nesta imagem de Anderson Schneider,

pois há uma relação direta entre o plano do conteúdo e

o plano da expressão. Um exemplo disso é a categoria

semântica infância x vida adulta, que está diretamente

relacionada com a categoria topológica direito e es-

querdo. Por meio desta relação é possível identifi car na

fotografi a uma espécie de separação dos mundos, como

se as crianças estivessem alheias à guerra, num local

paralelo, distinto daquele infeliz dos adultos. É como

se a infância e suas brincadeiras fossem uma válvula

de escape para toda a dor e sofrimento proporciona-

dos pelos confl itos. Outra relação também possível é

entre a categoria guerra x paz e as categorias plásticas

movimento x estático. A guerra está nos destroços,

nos prédios estáticos; já a vida está no movimento do

balanço, da brincadeira infantil.

Assim, depois de ressaltados esses aspectos que

reforçam a presença do semi-simbolismo em ambas as

fotografi as, é possível fazer um comparativo entre as

duas visões sobre o mesmo tema, já que as diferenças

entre as fotos são muitas. A Foto 02, que compõe a

exposição “Cicatrizes: Iraque um ano depois”, não sig-

nifi ca mais ou menos realidade, mas há uma mudança

na forma de representar a guerra contra o terror. O

fotógrafo-artista se preocupa com as pessoas: são elas

que aparecem em primeiro plano na sua percepção da

guerra, quando ele é ao mesmo tempo “operator” e

“spectador” (novamente usando termos de Barthes). Ao

que tudo indica, para Schneider as cicatrizes não são os

vestígios dos destroços dos carros-bomba, mas as pró-

prias feridas abertas. A escolha das imagens em preto &

branco também tem razão de ser, já que a falta de cor

atribui à fotografi a um caráter de “parecer verdadeiro”,

sem a maquiagem da cor. É a imagem na sua crueza,

porém tão simulacro quanto qualquer outra.

A Foto 01, ao trabalhar com um enquadramento

mais aberto, faz com que haja distanciamento e, por

isso, certo ar de objetividade se instala, ao contrário

da fotografi a de Schneider, que revela o subjetivismo.

Ao detalhar as diferenças entre as duas fotos é preciso

recorrer novamente ao plano do conteúdo e da expres-

são. No plano do conteúdo, as duas imagens abordam

as categorias semânticas guerra x paz e morte x vida.

Porém, a Foto 02 traz ainda a categoria infância x vida

adulta. No entanto, as maiores distinções estão no

plano da expressão, na plasticidade. A foto publica-

Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

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da no jornal Gazeta do Povo não é, aparentemente,

posada, enquanto a foto da exposição é. A primeira é

fotojornalística, a segunda é artística, sendo que isto

pode ser percebido pela composição do texto: na Foto

02 há preocupação com detalhes, luzes, nuances, e

na Foto 01 a preocupação é com a forma de mostrar

o fato em si.

Ainda no plano da expressão é possível apontar

a luz como um aspecto distinto entre as imagens. A

fotografi a do carro-bomba é “chapada”, fria, sem con-

trastes de luz e sombra, mesmo sendo colorida. Já a

fotografi a das crianças no balanço é forte, foi valorizada

exatamente pela luz, deixando o rosto negro da menina

em contraste com o céu claro. Apesar de tão opostas

do ponto de vista da produção, as duas fotos retratam

bem a guerra. Porém, a foto artística faz com que o

espectador se sinta envolvido, numa co-presença, o que

a primeira imagem já não consegue mais em virtude de

sua banalização, já que carros-bombas em atentados

são muito freqüentes na mídia impressa. Portanto, a

representação pode ser fundada sobre relações de

objetividade e subjetividade, criando, por conseguinte,

efeitos de sentidos de presença ou não.

Enfi m, em ambos os casos, seja na fotografi a

de agências de notícia ou na produzida por Schneider,

é possível atribuir o “isso foi” de Barthes, mas além

disso é possível dizer que as imagens foram construí-

das de formas diferentes, com visões diferentes de um

mesmo fato, da guerra em si, o que comprova que os

estereótipos culturais e o modo de organizar e difundir

os discursos infl uenciam signifi cativamente na forma

de perceber e representar o referente. Portanto, o real

passado já não é mais real, já que ao realizar a fotogra-

fi a o objeto puro desaparece, se perde, e é impossível,

senão ingenuamente, acreditar que, porque o ser ou

coisa existiu, é verdadeiro.

Considerações fi naisA fotografi a é uma construção realizada pelo fo-

tógrafo e que recebe a infl uência de processos químicos

envolvidos no ato de pré e pós-produção da imagem,

sendo que a compreensão só é possível em função dos

valores sociais comuns que permitem ou propiciam a

interpretação. Toda fotografi a é, não o objeto em si — já

que ele não pode ser apreendido, retido pela objetiva

— mas um jogo fi ccional em que o real se encontra

simulado. Dispondo os conceitos no quadrado semiótico,

seria possível dizer que o real, como ele é compreendido

e aceito, só se dá quando há uma espécie de plenitude

presencial, ou seja, no ato da fotografi a. Essa plenitude

é a do fotógrafo que, diante do fato (aqui, em específi co

na guerra do Iraque), decide o momento de apertar o

botão da máquina fotográfi ca, defi ne o enquadramento

e qual fato será transformado em imagem. Essa plenitu-

de presencial se daria na relação entre o real, o objeto

propriamente dito, e o seu simulacro, que no caso é a

imagem fotográfi ca. Assim, esse curto espaço que liga

o referente à fotografi a é preenchido pela plenitude

da presença do ser que vê, embora tão logo ele faça

a fotografi a sua presença desapareça, pois o próprio

aparelho acaba por ocupar este espaço. Quando o

referente é transformado em fotografi a, ele torna-se

não-real, pois não se pode saber o que ocorre ao objeto

assim que ele é mediado. Jean Baudrillard já dizia que

o objeto some tão logo se funde à imagem.

Seguindo essas noções semióticas, por outro

lado, toda fotografi a, que é o simulacro do objeto, se

relaciona com o não-simulacro, ou seja, com o próprio

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Ano VII - Nº 7 - Outubro 2006

referente. Há sempre esta tensão entre o que foi sim-

plesmente construído e o que existiu. O não-simulacro

é aquilo que tem a aparência visível, é o fato jornalístico

em si, a guerra no caso deste estudo. O simulacro, ao

contrário, é o não-real fi gurativizado em um signo, em

uma forma simbólica que pode ser e deve ser compre-

endida por todos que a recebem. Contudo, é possível

questionar o que acontece quando a tensão se dá en-

tre o não-simulacro e o não-real. Neste sentido, resta

apenas um espaço vazio, uma vez que o oposto do

simulacro se constitui no próprio referente e o oposto

do referente, no não-real. Desta forma, há apenas uma

vacuidade, como se não houvesse a possibilidade de

mediação do fato. Apresentando esses elementos no

quadrado, tem-se:

Portanto, o real só é possível de ser percebido

— se é que podemos dizer que o real existe depois de

toda esta longa explanação a respeito do tema, pois

o ser transformado em linguagem já passa a ser uma

representação — enquanto acontece, já que o real

passado de Barthes, implícito na fotografi a, não é mais

real. Na sociedade atual é a visibilidade que permite

afi rmar se um objeto existiu, ainda que representa-

do, e por isso as fotografi as de guerra tornam-se tão

importantes, porque elas legitimam a própria guerra.

E para se dizer que algo existiu é preciso que haja a

sua representação, sendo que para tanto a presença

do fotógrafo, do referente em si ou do espectador, é

fundamental. Já o não-simulacro somado ao não-real

mostra que o “fato” não ocorreu, que há um espaço

vazio, neutro. Ao mesmo tempo, se um objeto ou fato

é “real” e não se constitui como um simulacro, há a

aparência do visível, enquanto um simulacro que não

é real se transforma num novo signo, numa forma

simbólica, assim como a fotografi a, que não raras ve-

zes passa a substituir e ocupar o espaço e o papel do

referente. Quando se pensa sobre a guerra do Iraque

é comum que a imagem fotográfi ca da guerra retorne

à mente, como se o carro-bomba em chamas ou as

crianças entre os destroços signifi cassem a própria

guerra, pois a experiência está limitada à experiência

da imagem mediada.

Essa constatação foi o fi o condutor deste breve

artigo que, apesar de abordar um tema já bastante

discutido, continua sem ser esgotado. É preciso ainda

aprofundar o olhar sobre as imagens de guerra, sobre a

fabricação imagética do mundo. Afi nal, se já é consenso

que a fotografi a simula, ela parece continuar nutrindo

certo ar de encantamento, exercendo um poder sobre

quem vê.

A questão que continua sem resposta é: seriam

as fotografi as cicatrizes dos fatos? Se a defi nição da

palavra cicatriz no dicionário é vestígio, como citado

anteriormente neste artigo, seria possível dizer que

a fotografi a está deixando um vestígio, uma marca

do fato/objeto e recompondo o referente, o qual não

podemos mais tocar.

E seriam as fotografi as a mediação da mentira?

É possível dizer que sim, pois conforme as modalidades

veridictórias, se o que parece ser, mas não é verdadei-

ramente, é uma mentira; logo, a fotografi a, ao consti-

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tuir-se de uma representação, simulada tecnicamente,

como diz Kamper, é uma mediação da mentira, um novo

“produto” que não é a verdade nem o real, mas toma

sua forma, se parece com ela. O mais correto seria

dizer que a fotografi a, que desperta tantos interesses e

que mexe com os sentimentos e as leituras de mundo

de cada pessoa, está em constante tensão, como o

demonstrado abaixo.

Ora a fotografi a, nos seus vários usos e inter-

faces, parece a mediação da mentira; ora simula o

segredo por não parecer e ser. E às vezes, por que

não dizer, parece a própria verdade principalmente

quando a imagem adquire a força de um documento,

de algo que já não temos como provar senão pela

imagem construída. Assim, a verdade é um conceito

não aplicável em sua totalidade à fotografi a, pois ela

nunca é exatamente aquilo que parece. Por exemplo:

a fotografi a de Schneider, das crianças brincando em

meio aos destroços da guerra, não é a verdade propria-

mente dita, ela apenas se parece com a verdade, pois

foi construída pela técnica, pelo olhar do fotógrafo. A

destruição do carro-bomba, em contrapartida, poderia

ser uma mentira, algo simplesmente construído para se

olhar e direcionar a visão da guerra, porém os objetos

representados às vezes são tão verdadeiros que nem se

parecem. Enfi m, a verdade em fotojornalismo é sempre

um fantasma, algo que se persegue insistentemente

como se fosse parte inerente do próprio ofício, assim

como a tão falada imparcialidade é perseguida pelo tex-

to. Verdade e mentira andam de mãos dadas e por isso

é tão difícil responder se a fotografi a é uma mediação

da mentira. Talvez a resposta seja sim se for levado em

conta apenas o aspecto da recriação do referente pela

fotografi a. Ao mesmo tempo, a resposta pode ser não,

pois parte-se do pressuposto que mentir é sempre um

ato pensado com interesses claros e pré-estabelecidos.

No que tange à imagem fotográfi ca da guerra, indepen-

dentemente do lado que se defende ou dos valores em

que se acredita, o simples ato de direcionar o aparelho

fotográfi co visando a “feitura” de uma fotografi a já é

um ato pensado, mesmo que a fotografi a em si, seus

ângulos, detalhes, cores e texturas sequer tenham sido

imaginados. O certo é que a intenção do fotógrafo de

mentir ou de dizer a verdade pouco importa. O que

importa e é essencial na sociedade atual é compreen-

der os sentidos apresentados pelas fotos exibidas na

mídia, porque toda imagem tem sempre algo a dizer

e que escapa de um simples olhar. Da exposição de

Schneider e das fotos publicadas pelos meios impressos

fi ca a impressão de que o Iraque é uma cicatriz, que

ainda sangra.

Referências Bibliográfi cas

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, São Paulo: Papirus, 1993.

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Ano VII - Nº 7 - Outubro 2006

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