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Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação 52 Resumo: As migrações são fenômenos do espaço público porque é nele que as mesmas ganham forma, assumindo contornos específicos. Ao mesmo tempo, convertem-se em uma questão midiática visto que é por meio deste dispositivo que ganham visibilidade e reconfigurações di- versas. A centralidade midiática pode ser obser- vada nas mais diversas práticas sociais, ocasio- nando reestruturações de ordens distintas e múltiplas apreensões de sentido por parte dos atores sociais. Isso nos leva a pensar que, ao ampliar as possibilidades de experiências com os usos das mídias e promover reformulações em diferentes esferas, esse processo pode es- tar reconfigurando, também, às experiências identitárias. Ou seja, na especificidade das cons- truções identitárias, estas acabariam hibridizando-se nos processos socioculturais, transformando a mídia em seu espaço de reconfiguração e negociação. Surge aí a neces- sidade de compreender as dinâmicas que rela- cionam identidade imigrante e processos midiáticos, testando a hipótese de que os meios participam, de forma protagonista, nas constru- ções simbólicas e identitárias. Rejane de Oliveira * A midiatização da identidade argentina enquanto experiência sociocultural e identitária e as diferentes apropriações midiáticas dos sujeitos imigrantes argentinos *. Graduada em Jornalismo pela UFSM, Mestre em Educação pela UFSM e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Vínculo institucional: Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Integrante do Projeto de Cooperação Internacional: “Mídia e Interculturalidade: estudo das estratégias de midiatização das migrações contemporâneas nos contextos brasileiro e espanhol e suas repercussões na construção midiática da União Européia e do Mercosul”, financiado pela CAPES. Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS. Palavras-chave: Midiatização Mediações Identidade Argentina

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A midiatizacao da identidade argentina enquanto experiencia sociocultural e identitaria e as diferentes apropriacoes midiaticas dos sujeitos imigrantes argentinos

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Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

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Resumo:

As migrações são fenômenos do espaço

público porque é nele que as mesmas ganham

forma, assumindo contornos específicos. Ao

mesmo tempo, convertem-se em uma questão

midiática visto que é por meio deste dispositivo

que ganham visibilidade e reconfigurações di-

versas. A centralidade midiática pode ser obser-

vada nas mais diversas práticas sociais, ocasio-

nando reestruturações de ordens distintas e

múltiplas apreensões de sentido por parte dos

atores sociais. Isso nos leva a pensar que, ao

ampliar as possibilidades de experiências com

os usos das mídias e promover reformulações

em diferentes esferas, esse processo pode es-

tar reconfigurando, também, às experiências

identitárias. Ou seja, na especificidade das cons-

truções identitárias, estas acabariam

hibridizando-se nos processos socioculturais,

transformando a mídia em seu espaço de

reconfiguração e negociação. Surge aí a neces-

sidade de compreender as dinâmicas que rela-

cionam identidade imigrante e processos

midiáticos, testando a hipótese de que os meios

participam, de forma protagonista, nas constru-

ções simbólicas e identitárias.

Rejane de Oliveira*

A midiatização da identidade argentinaenquanto experiência sociocultural eidentitária e as diferentes apropriaçõesmidiáticas dos sujeitos imigrantesargentinos

*. Graduada em Jornalismo pela UFSM, Mestre em Educação pela UFSM e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação

da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Vínculo institucional: Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Integrante do Projeto de Cooperação Internacional: “Mídia e Interculturalidade: estudo das estratégias de

midiatização das migrações contemporâneas nos contextos brasileiro e espanhol e suas repercussões na construção midiática da União Européia e do Mercosul”,

financiado pela CAPES. Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS.

Palavras-chave:

Midiatização

Mediações

Identidade Argentina

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Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

A midiatização constitui, atualmente, um conceito

de grande relevância social, pois remete a questões do

espaço público, onde se negociam e se disputam os sen-

tidos ofertados à sociedade. No entanto, ao mesmo tempo

que a mídia se remete a questões do espaço público, ela

própria se constitui em um espaço público a partir da

produção, mediação e veiculação de sentidos no contex-

to social. A mídia faz a mediação discursiva entre os

diferentes campos sociais e a sociedade como um todo.

Essa mediação se dá a partir do momento em que o

campo midiático propõe questões e promove um diálogo

social.

Passamos, então, a vivenciar a passagem da cul-

tura massiva para uma cultura mediática (Mata, 1999).

As mídias, ao se tornarem parte integrante das vidas

dos indivíduos, seja como fonte de informação, entrete-

nimento ou construção de imaginários, passam a exer-

cer, em certa medida, um papel estruturador das práti-

cas sociais.

A emergência do campo dos media1 se dá, se-

gundo Rodrigues (2000), na segunda metade do século

XX e sua autonomização passa a ocorrer, efetivamente,

a partir dos anos 80. Essa “efetivação” do campo é ace-

lerada pelo avanço das tecnologias de informação e co-

municação. Contudo, isso se constitui apenas em um dos

fatores das reconfigurações das relações sociais, visto

que o processo de midiatização é bem mais complexo,

pois engloba modificações de caráter simbólico e envol-

ve implicações nas matrizes culturais e na própria pro-

dução e construção de sentidos.

Neste estudo específico, as matrizes culturais es-

tão sendo compreendidas como as marcas da experiên-

cia social dos imigrantes argentinos, que são ativadas e

reorganizadas nas interações com os diferentes agentes

e instituições sociais. A partir da compreensão desse

contexto, onde os sujeitos desta pesquisa estão em cons-

tante interação com uma gama de instituições sociais,

optamos por focar a atenção em um tipo de interação

específica, ou seja, as interações que os imigrantes ar-

gentinos estabelecem com a instituição midiática, por

meio da mediação da identidade étnica. A opção por essa

mediação específica deve-se ao fato de entendermos que,

além das matrizes culturais se constituírem por via das

mediações, elas mesmas se convertem em mediações

para as construções e reconfigurações identitárias. Ou

seja, as matrizes culturais, ao se constituírem enquanto

marcas, nas experiências sociais dos sujeitos, passam a

ser reconstruídas e reconfiguradas nas interações soci-

ais destes grupos sociais. Ao mesmo tempo em que se

constituem por mediações sociais, são elas mesmas

agentes de mediação nas interações sociais de que par-

ticipam.

Essa observação é fundamental para compreen-

dermos que, apesar do campo midiático possuir um pa-

pel importante na constituição das relações sociais, a

produção de realidades não é uma característica exclu-

siva da mídia. Os atores sociais estão vinculados com

outras tantas instituições que não apenas a instituição

midiática e constroem múltiplas formas de mediação

social, (re)elaborando experiências que são constante-

mente tensionadas. Estas diferentes relações tanto com

a instituição midiática como com as demais instituições

da vida cotidiana (levando em conta que estas últimas

também estão impregnadas de realidades midiáticas e

configuradas como um ethos midiatizado) resultam nas

“marcas ou matrizes produtoras e organizadoras de sen-

1 O entendimento de campo, enquanto espaço de disputa e domínio de experiência, é inicialmente problematizado por Bourdieu (1998a e 1998b) ao imprimir estudos

acerca do poder simbólico. Mas é Rodrigues (1990 e 2000) quem começa a pensar o conceito de campo social numa perspectiva comunicacional. Os estudos do autor

caminham no sentido de estabelecer bases teóricas para a utilização do conceito aplicado aos processos midiáticos, entendendo a mídia como um campo social com

processualidades, normas, estratégias e visibilidades específicas. Nos últimos anos, outros pesquisadores vêm contribuindo para a compreensão do conceito de campo

social aplicado aos processos midiáticos, dentre eles podemos destacar os estudos de Esteves (1998) e Fausto Neto (1999).

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tido”, como propõe a pesquisadora Maria Cristina Mata

(1999).

O processo de midiatização suscita múltiplas ques-

tões importantes. Uma das questões que merece refle-

xão é a necessidade de os demais campos sociais terem

de se submeter às “regras” do campo midiático para

atingir públicos e instâncias desejadas, bem como as

negociações e movimentos que isto implica. Pensando

por meio dessa perspectiva, a midiatização seria uma

complexa interação dos campos sociais sob a coordena-

ção dos medias, ou seja, o processo em que as experi-

ências dos diferentes campos sociais são selecionadas e

hierarquizadas segundo a lógica midiática. Outra ques-

tão relevante é pensar que estas inúmeras relações en-

tre os campos não acontecem de maneira uniforme, pois

cada uma delas possui suas especificidades, o que ga-

rante a diferenciação2. Nessa direção, o desafio para nós,

enquanto pesquisadores do campo, aponta para a ne-

cessidade de compreender como os medias vão operar

no redimensionamento da experiência social identitária

e quais as implicações que este movimento vai trazer.

Na concepção de Mata (1999), o processo de

midiatização da sociedade não significa apenas mudan-

ças de ordem temporal e espacial das interações, mas

alterações nos próprios modos de pensar, nas matrizes

e modelos culturais, numa racionalidade produtora e

organizadora de sentidos. Pensamos que seja nessa or-

dem que o processo de midiatização passa a reconfigurar,

também, as experiências identitárias, onde a diversida-

de dos vínculos sociais constrói uma multiplicidade de

representações culturais. O campo midiático passa a

ocupar um lugar estratégico na construção das identida-

des, assumindo um papel central como fonte de infor-

mação e de construção de imaginários. Nesse emara-

nhado de relações, diferentes formas simbólicas con-

vergem, ocorrendo uma multiplicidade de representa-

ções culturais em função da diversidade característica

dos vínculos sociais. Isso ocorre porque as mídias não

apenas ampliam e aceleram as possibilidades de circu-

lação de mensagens, como também introduzem novas

formas de sociabilidade, marcando novos vínculos dos

atores entre si e entre eles e as instituições. De uma

maneira mais global, são justamente essas possibilida-

des que pretendemos investigar, ou seja, as diferentes

construções (da identidade argentina) que o campo

midiático (Jornal Zero Hora) promove, bem como as

reconfigurações que se processam na recepção.

Para pensar essas construções, uma noção que

se torna fundamental é o conceito de ethos, proposto

por Sodré (2002). Na perspectiva do autor, o ethos en-

volve os hábitos, as condutas e as regras de um deter-

minado grupo social, significa “a consciência atuante e

objetivada de um grupo social - onde se manifesta a

compreensão histórica do sentido da existência, onde

têm lugar as interpretações simbólicas do mundo - e,

portanto, a instância de regulação das identidades indi-

viduais e coletivas”. Essa conceituação é pertinente para

a pesquisa por acrescentar à compreensão da proble-

mática os modos de agir numa sociedade onde a mídia

assume um papel fundamental, ou seja, num ethos

midiatizado. No caso específico desta pesquisa, estamos

pensando o ethos como uma construção resultante das

interações da realidade midiática com as experiências

socioculturais dos sujeitos imigrantes argentinos. Isto é,

o ethos se conforma numa ambiência perpassada por

matrizes culturais e envolve um conjunto de valores, prá-

2 As relações entre os campos sociais não se dão de maneira uniforme, justamente porque o campo não está sendo aqui entendido num sentido espacial e sim

tensional, ou seja, o que se busca compreender são os confrontos entre campos autônomos, onde cada um deles, a partir de suas especificidades, busca regular um

determinado domínio da experiência (noção proposta por Rodrigues, 2000).

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ticas e repertórios que são acionados na interação com

o produto midiático. Isso significa dizer que, estudar a

recepção de um produto midiático sob o prisma de um

ethos midiatizado implica reconhecer que este receptor,

além de estar inserto em processos socioculturais, exer-

ce um papel ativo e desenvolve práticas contextualizadas

e profundamente dinâmicas.

Após a visualização desse fenômeno significativo

da realidade, no qual a mídia se converte em um espaço

de reconfiguração das identidades migrantes, cabe

explicitarmos os recortes realizados, onde o grupo de

sujeitos pesquisados e o produto midiático selecionado

para análise convertem-se em um, entre tantos ângulos

relevantes, das dinâmicas que relacionam identidade

migrante e processos midiáticos.

O primeiro recorte realizado foi em relação ao

grupo de imigrantes estudado. Optamos por centrar a

atenção nos redimensionamentos que a midiatização da

identidade argentina vai trazer para esses sujeitos re-

ceptores. Nesse sentido, uma das questões que norteia

este estudo é saber como a experiência da imigração

argentina altera as modalidades de consumo e usos das

mídias e que reconfigurações promove na recepção.

A escolha dos imigrantes argentinos como grupo

a ser estudado deve-se à significativa presença do mes-

mo no contexto sociocultural. Segundo dados do Censo

de 2000, o Brasil conta hoje com um total de 28.821

imigrantes paraguaios, 27.530 imigrantes argentinos e

24.739 imigrantes uruguaios. Os dados que analisam as

migrações vindas para o Rio Grande do Sul mostram

que, dentre os países do Mercosul, o Uruguai é o país

com o maior número de imigrantes no Estado (16.637),

seguido da Argentina (4.477) e do Paraguai (738).

Esses dados fizeram com que o primeiro grupo a

ser pensado como objeto empírico de pesquisa tenha

sido os uruguaios. No entanto, nossa hipótese de que os

dados fornecidos pelo Censo de 2000 possam ter sido

alterados nos últimos cinco anos frente à crise que asso-

lou a Argentina ainda no final dos anos 903 e que provo-

cou a emigração de milhares de pessoas4, principalmen-

te entre os anos de 2000 e 2002, contribuindo para um

aumento no número atual de imigrantes no Brasil5, fez

com que nos voltássemos para um segundo grupo de

imigrantes: os argentinos.

Após a seleção do objeto empírico da investiga-

ção, uma nova questão se fez presente: em qual produ-

to midiático o processo de midiatização da identidade

argentina seria observado? Para responder a essa inda-

gação optamos pela realização de uma pesquisa

exploratória, a fim de definir uma mídia que fosse rele-

vante do ponto de vista do consumo, mas também perti-

nente para o problema da pesquisa.

Ao estabelecer um segundo contato6 com o obje-

to empírico da investigação, algumas reformulações (fruto

das descobertas e das pistas coletadas ao longo da in-

cursão exploratória) mostraram-se necessárias. Sem

dúvida, uma das reformulações mais significativas foi a

mudança no produto midiático a ser analisado. A idéia

3 O Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina divulgou, em 22/07/2000, que cerca de 4 milhões dos 35 milhões de argentinos estavam sem emprego

ou trabalhavam em condições precárias. A crise que atingiu o país iniciou ainda nos anos 90, com a hiperinflação. Em 1991, durante o governo Menem, foi lançado

o Plano de Conversibilidade, que objetivava zerar a inflação com um câmbio fixo no país (peso valendo US$1). A paridade entre peso e dólar estimulou os

investimentos estrangeiros no país. Ainda em 91, a Argentina voltou a crescer, mas financiou sua expansão com uma crescente dívida externa, o que gerou um déficit

fiscal de US$8,5 bilhões em 1999. Em dezembro do mesmo ano, tomou posse o presidente Fernando de la Rua, com a promessa de tirar o país da crise. Seu governo

propôs um pacote para estimular o crescimento e reduzir o déficit fiscal, porém o objetivo não foi atingido. (Fonte: Jornal Folha de São Paulo e Jornal Zero Hora).4 Em 26 de fevereiro de 2002, o Jornal Folha de São Paulo divulgava o êxodo de mais de 160 mil argentinos nos dois últimos anos. O Jornal Zero Hora (03/03/02)

também apontou o “maior êxodo de argentinos da história”. Segundo ZH, o número de argentinos que deixou o país entre janeiro de 2001 e janeiro de 2002 chegava

a 86 mil pessoas e era superior ao número de exilados da época da ditadura.5 De acordo com a Polícia Federal, vivem hoje no Brasil 42.534 imigrantes argentinos. (Fonte: documento de número 08430.003600/2004-11, enviado para esta

pesquisadora, no dia 08 de março de 2004.)6 A primeira incursão exploratória ocorreu entre os meses de abril e maio de 2004 e tinha como objetivo mapear elementos da cultura e da identidade dos argentinos,

identificando representações dos imigrantes acerca do Brasil, questões de alteridade, critérios de pertencimento/distinção e construção de sentidos em relação à mídia.

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inicial era de se trabalhar com a mídia televisiva, por ser

uma mídia assistida por cem por cento dos entrevista-

dos. No entanto, percebemos que os mesmos não con-

seguiam identificar programas televisivos onde fossem

tratadas questões da Nação Argentina ou sobre os ar-

gentinos. Assim, essa mídia era relevante somente do

ponto de vista do consumo, mas não era pertinente para

o problema da pesquisa. Por outro lado, visualizamos

uma mídia impressa (Jornal Zero Hora), que além de

apresentar um consumo bastante significativo (80,6%),

foi apontada como uma das poucas mídias onde são tra-

tadas questões sobre o imigrante e sobre a Nação Ar-

gentina como um todo7.

Para além desses resultados da pesquisa

exploratória, outro fator de grande relevância para a

escolha da mídia impressa como universo de investiga-

ção é a importância que a mesma assume no cenário

atual, conseguindo conviver com as mais novas

tecnologias e se mantendo como uma mídia ordenadora

do espaço público. O jornal impresso, especificamente,

é um veículo que, apesar de não pertencer às chamadas

novas mídias, converte-se em um fórum (no sentido pro-

posto por Mouillaud, 2002) que tem a participação de

muitas vozes do espaço público e, ao mesmo tempo,

tem sua própria voz.

Ao tomar a mídia impressa como objeto de estu-

do, faz-se necessário compreender alguns aspectos de

sua natureza. Um primeiro ponto a ressaltar é a sua

natureza mercadológica, ou seja, esta mídia está imersa

em um mercado que oferece produtos simbólicos. Um

segundo ponto é o fato desta mídia constituir-se em um

espaço privilegiado de poder, circulando modelos de iden-

tificação e organizando modos de compreensão da rea-

lidade. Nesse sentido, podemos dizer que os meios im-

pressos, muitas vezes, funcionam como agentes de con-

trole, ainda que sejam interativos ou desempenhem a

função de intermediar (um exemplo disso no Jornal Zero

Hora é a publicação de algumas cartas de leitores). Como

bem explica Mouilland (2002), não há um “todo-infor-

mativo”, ou seja, a informação é o que é possível mos-

trar, mas também o que está marcado para ser percebi-

do. É nesse sentido que alguns autores (Mouilland, 2002

e Traquina, 2004) trazem o conceito de “enquadramento”,

de Goffman, aplicado às notícias. Metaforicamente, as

modalidades de poder funcionariam como “molduras” ou

“enquadramentos”, e assim como o quadro que procede

de um enquadramento que o precedeu, a informação

também é produto de uma estrutura anterior.

A partir desse entendimento, poderíamos dizer que

os acontecimentos, quando transformados em notícias,

são interpretados em enquadramentos que derivam, em

grande parte, desta noção de consenso, que se pressu-

põe compor a vida cotidiana dos sujeitos. Neste estudo,

o conceito de enquadramento converte-se em uma idéia

chave para a compreensão das produções noticiosas

acerca da identidade argentina, pois se constitui em uma

idéia organizadora que é acionada para dar sentido ao

acontecimento, influenciando todo o processo de sele-

ção e construção da notícia. Para Goffman (1975), os

enquadramentos organizam e selecionam os cortes ar-

bitrários do fluxo da atividade cotidiana.

Bourdieu denominou essa perspectiva que selecio-

na os “cortes” da vida cotidiana de “óculos”, “estruturas

invisíveis que organizam a percepção” (Bourdieu, 1998)

através dos quais os jornalistas vêem certas coisas e

não vêem outras, são seus valores-notícias. Wolf (2002),

7 Conforme os dados coletados no segundo exploratório, 71% dos 31 imigrantes argentinos entrevistados vêem o jornal impresso como uma mídia significativa no

tratamento da questão argentina.

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ao analisar os valores-notícias, afirma que estes estão

presentes em todo o processo de produção midiática,

desde a seleção dos acontecimentos até o processo de

elaboração da notícia. Pensando por esse viés, preten-

demos trabalhar a hipótese de que os acontecimentos

midiáticos são pré-construídos, pois se “encaixam” em

formas que já são construções do espaço e do tempo.

Parto do pressuposto de que o jornal impresso, assim

como outras mídias, faz parte de um ciclo que recebe

um real já “selecionado”. No entanto, por se tratar de

um ciclo será (apenas) um operador entre os conjuntos

de operadores sócio-simbólicos existentes. Também não

será necessariamente o último, como muitos pensam,

pois o sentido que constrói e leva ao seu leitor será

reconfigurado pelo receptor e recolocado em circulação8.

No que tange aos aspectos da natureza da

mídia impressa, um último e importante ponto que me-

rece ser analisado é a mídia impressa enquanto cultura

midiática, ou seja, com seus próprios modos operativos,

um meio constituinte e constitutivo da sociedade, gera-

dor de ambiências sociais. No momento em que a mídia

impõe suas normas, surge uma nova realidade (media-

da e midiatizada), incorporada nas compreensões de

mundo, o que leva a um rompimento de uma gama de

determinados conhecimentos ou identificações e a afir-

mação de outros. No caso específico da imigração ar-

gentina, à medida que seu agendamento vai sendo

publicizado pelas práticas midiáticas, o tema toma uma

visibilidade e uma face própria. Esse terceiro aspecto da

natureza midiática remete-nos à compreensão das mídias

como um dos dispositivos instituidores do espaço públi-

co, onde as mídias não só atribuem visibilidade aos fatos

como propõem modos de fazer o cotidiano. Mais do que

informar, as mídias acabam reconstituindo o real de

acordo com suas próprias regras, criando um “novo real”,

agora virtualizado9. É nesse sentido que Fausto Neto

(1999) propõe que as mídias não só anunciam a noção

de realidade, mas convertem-se, elas mesmas, em um

lugar onde a realidade não somente passa por elas como

também se faz nelas. O mesmo autor relembra que

apesar de diferentes campos como a medicina, a políti-

ca e a religião não dependerem do campo das mídias

para a sua existência, encontram neles a “instância de

consolidação de sua respectiva estruturação enquanto

campos portadores de saberes” (Fausto Neto, 1999,

p.17).

O jornal impresso é um espaço e, ao mesmo tem-

po, sujeito da enunciação, uma vez que se apropria das

falas (e do saber) de outros campos e as transforma na

sua própria fala, enunciando-as segundo suas próprias

estratégias. Isso posto, um dos esforços empreendidos

será no sentido de analisar como o Jornal Zero Hora

vem articulando a existência e os discursos das várias

instituições nos sentidos construídos acerca da identi-

dade argentina. Pretendemos mostrar que o discurso

produzido por essa mídia não é um simples somatório

dos discursos de outros campos e sim um novo discur-

so, que é único e próprio do campo midiático. É nesse

emaranhado de relações que a identidade argentina vem

sendo tecida e reconfigurada.

Voltando a falar nas especificidades da pesquisa,

é importante lembrar que esta investigação não preten-

de ser um estudo exclusivo da produção noticiosa,

tampouco somente uma análise dos fenômenos

midiáticos impressos ou um estudo da recepção das no-

tícias construídas pelo Jornal Zero Hora acerca dos imi-

8 Essa relativização da importância das mídias, no entanto, não apaga o reconhecimento de suas inúmeras especificidades e, tampouco sua capacidade de promoção

de visibilidade social para as demais instituições.9 Sodré (2002).

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grantes argentinos. O objetivo maior da pesquisa é, jus-

tamente, verificar as amarras estabelecidas no proces-

so comunicacional, levando em conta os diferentes ele-

mentos envolvidos nesse processo, de modo a tentar

compreender a produção dos sentidos construídos pelo

Jornal acerca dos imigrantes argentinos e as diferentes

leituras realizadas por esses imigrantes durante o pro-

cesso de recepção, leituras essas perpassadas por inú-

meras mediações. Nesse sentido, vale ressaltar que o

Jornal Zero Hora não está sendo pensado somente como

um meio e sim como partícipe na constituição e reco-

nhecimento das identidades coletivas, como um

dinamizador das vivências de estratégias identitárias10.

Essa observação ressalta o fato de que a

investigação em questão se coloca como um estudo de

comunicação midiática inserto em processos

socioculturais11, o que significa que as relações entre

mídia impressa e identidade cultural argentina não se-

rão compreendidas enquanto um fenômeno isolado e sim

em um universo mais amplo, o sociocultural. Nesse sen-

tido, a questão a ser pensada é: que perspectiva de aná-

lise podemos construir para compreender esses proces-

sos socioculturais, dinamizados por meio de

atravessamentos e interações com o universo midiático?

A perspectiva de análise que pretendemos cons-

truir para compreender os diferentes processos

socioculturais e, especialmente, a construção da identi-

dade argentina, passa pela necessidade de compreen-

der os usos que os receptores fazem dos conteúdos

massivos na relação com suas práticas cotidianas, ou

seja, que construções são possíveis a partir das leituras

feitas da mídia e não os efeitos dos meios sobre elas. A

partir desta pontuação, podemos dizer que os usos que

os receptores farão são indissociáveis de sua situação

sóciocultural. Os sujeitos reelaboram e ressignificam os

conteúdos massivos conforme sua experiência cultural.

Os processos de negociações identitárias para os quais

esse estudo se volta são processos comunicacionais.

Segundo Martín-Barbero (1997), a cultura é a grande

mediadora desses processos, não havendo relações di-

retas entre seus componentes (emissor, meio, mensa-

gem e receptor) e sim relações mediadas pelas culturas

em que estão inseridos.Las mediaciones son ese ‘lugar’ desde donde es posible compreender la interación

entre el espacio de la producción y el de la recepción: lo que se produce en la

televisión no responde unicamente a requerimientos del sistema industrial y a

estratagemas comerciales sino también a exigencias que vienen de la trama

cultural y los modos de ver (Martín-Barbero, 1992, p.20)

Esse conceito pode nos trazer algumas pis-

tas acerca de como estudar a mídia. A partir da obser-

vação de que a produção midiática não é fruto somente

do sistema industrial, e que utiliza também construções

oriundas de suas práticas e dos usos sociais, é possível

estudar a mídia como um processo de mediação. Devido

ao fato do acesso às produções de sentido das mensa-

gens ser plural (envolvendo questões contextuais e de

reconhecimento), o receptor acaba formulando seus pró-

prios juízos sobre o que está sendo apresentado no dis-

curso jornalístico. Nessa perspectiva, os medias, ao

mesmo tempo em que são dispositivos de midiatização,

também se constituem em instâncias de mediação. Ao

articular os argumentos das partes envolvidas numa no-

tícia, por exemplo, o jornalista possibilita ao leitor uma

formação de juízos a respeito do que está sendo noticia-

do em forma de discurso jornalístico12. Pensemos, en-

tão, que implicações uma realidade mediada (e

10 Esses processos de constituição e reconhecimento da identidade (através dos processos de produção de sentidos midiáticos) marcam os sujeitos migrantes. E,

algumas vezes, as práticas distintivas dos sujeitos são midiaticamente retomadas como critérios para determinar o “ser imigrante” e/ou o “ser argentino”.11 A própria concepção de mídia adotada nesta investigação prioriza os usos sociais deste dispositivo em detrimento da simples utilização da técnica. Neste sentido,

entendemos por mídia um dispositivo tecnológico de produção e reprodução de mensagens associado a determinadas condições de produção e a determinadas

modalidades (ou práticas) de recepção dessas mensagens. (Verón, 1997, p.12)

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midiatizada) pode trazer para a concretude deste objeto

de investigação. Visualizamos uma questão que nos pa-

rece ser central: não podemos saber, a priori, que cons-

truções serão possíveis numa relação entre produto

midiático (Jornal Zero Hora) e receptor (imigrante ar-

gentino), uma vez que essa relação é intermediada por

múltiplas mediações, promovendo leituras e significações

diferenciadas e imprevisíveis, pois dela dependerá a si-

tuação relacional e a experiência cultural deste sujeito.

Há a necessidade de incorporar elementos macros que

são independentes do contexto onde se dá a relação,

identificando quais as principais fontes que irão influir no

contexto e na relação entre as partes envolvidas no pro-

cesso.

As competências culturais13 vão apontar

para as “gramáticas” que os receptores acionam para

se relacionar com a mídia impressa, são os lugares a

partir dos quais os receptores passam a ver, sentir e

construir os imaginários, ou seja, que “median la lectura

de los diferentes grupos sociales” (Martín-Barbero, 1997,

p.32). Essa noção nos permite compreender que as

vivências dos imigrantes argentinos vão implicar nas prá-

ticas, nos repertórios e nos conhecimentos que confor-

mam a maneira a partir da qual vão se relacionar com a

mídia impressa. Essas vivências socioculturais serão acio-

nadas na interação com o produto midiático e implicar

nas atribuições de sentidos14. A competência cultural, no

entanto, não deve ser entendida como um esquema de

regras e rotinas já consolidadas, pois é profundamente

dinâmica.

O que se coloca, então, é uma proposição que

desconstrói a idéia de um receptor passivo15 e observa-

se o processo comunicacional não somente a partir dos

meios, mas também a partir das múltiplas mediações

envolvidas16. A partir da oferta midiática, o sujeito re-

ceptor passa a construir suas próprias processualidades.

As leituras ofertadas nos textos midiáticos são perpas-

sadas por múltiplas mediações, construídas ao longo de

sua trajetória com a sociedade, a família, a escola e a

própria mídia.

A partir desse pressuposto, esta investigação se

preocupa não somente em compreender o processo de

recepção midiática, mas também (e principalmente) as

relações que perpassam as apropriações midiáticas. No

caso do imigrante argentino, enquanto sujeito receptor

de textos midiáticos, as relações estabelecidas com o

midiático não se dão somente no momento da leitura do

Jornal Zero Hora, por exemplo, pois envolvem media-

ções que circundam o cotidiano destes receptores. Para

além do momento do contato com o texto midiático, es-

tes receptores estão inseridos em processos onde as

práticas cotidianas, a religião, o ambiente familiar e de

trabalho, entre outras tantas mediações acabam partici-

pando ativamente do sentido que é construído.

Outro fator importante a ser lembrado é que es-

sas mediações não dizem respeito somente ao sujeito

receptor imigrante, pois se dão, também, na produção

midiática, por parte daqueles que concebem a oferta

midiática. Na concepção e na veiculação dos textos

midiáticos, há o atravessamento de inúmeras mediações.

12 Mesmo que essa “abertura” seja perpassada pela ideologia da empresa jornalística e pelas experiências e subjetividades do repórter.13 Terminologia cunhada por Martín-Barbero (1997)14 Percebemos que a noção de competência cultural aproxima-se do conceito de habitus, proposto por Bourdieu (1994), que conforma esquemas de percepção,

apreciação e ação. O habitus funciona como uma espécie de materialização da memória coletiva, o que, de certa maneira, garante sua continuidade nas gerações

seguintes. Essa continuidade, no entanto, não se dá de forma automática e linear, pois é marcada por ações e iniciativas individuais e coletivas dos atores sociais que

vão conformando seus modos de pensar, viver e agir em comum.15 Percepção anteriormente trabalhada na pesquisa em comunicação, onde se aceitava a passividade como característica inerente ao receptor.16 A importância e a abrangência do fenômeno da mediação também podem ser mensuradas pelo deslocamento do interesse por parte dos pesquisadores do campo

da comunicação dos efeitos diretos dos meios para a tentativa de compreensão das relações inerentes ao processo comunicacional. Um exemplo desse deslocamento

é a teoria trabalhada por Martín-Barbero (1997), que propõe um deslocamento dos meios (suporte) para as mediações (relações simbólicas que decorrem desses

vínculos, produzindo sentidos múltiplos e não efeitos diretos).

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Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

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Sendo assim, nesta pesquisa, estamos compreendendo

o discurso jornalístico enquanto uma prática

comunicacional, culturalmente mediada. Stuart Hall

(2001), nos seus estudos sobre identidade, afirma que o

sujeito é discursivamente construído. Nessa mesma li-

nha de pensamento, Woodward (2000) entende que “os

discursos e os sistemas de representação constroem os

lugares a partir dos quais os indivíduos podem se

posicionar e a partir dos quais podem falar” (Woodward

In: Silva, 2000, p.17).

Mas, então, como analisar esse discurso produzi-

do pelos medias e, mais especificamente, o discurso pro-

duzido pelo Jornal Zero Hora acerca da identidade ar-

gentina? Eliseo Verón (1996) nos traz algumas pistas

nessa direção. Primeiramente, o autor esclarece que não

há uma única maneira de se analisar um discurso e sim

diferentes tipos de observações, de acordo com a pro-

blemática inscrita na investigação. Outra questão expos-

ta pelo autor é que não devemos analisar o discurso em

si e sim observá-lo em relação às suas condições produ-

tivas.

A leitura que pretendemos fazer do jornal Zero

Hora não é uma leitura qualquer e sim uma leitura inte-

ressada, com um objetivo específico, que é analisar como

os sentidos acerca da identidade cultural argentina vêm

sendo construídos. O exercício necessário para alcançar

tal objetivo vai além do simples deslocamento das pala-

vras do texto para análise, exige pensar que sentidos

estão sendo mobilizados, quem são seus enunciadores,

quais as intenções que estão por trás dos discursos elei-

tos e como estes se encontram disponibilizados no jor-

nal, como chegam ao receptor.

Uma questão importante a ser lembrada é que o

discurso jornalístico possui traços distintivos que defi-

nem sua natureza e o seu modo de funcionamento, o

que faz com que ele se diferencie dos discursos dos ou-

tros campos sociais. “Ao contrário de outros discursos, o

discurso mediático é antes um discurso de natureza

exotérica, isto é, compreensível independentemente da

situação interlocutiva particular”. (...) Este traço “asse-

gura a relação de mediação entre todos os domínios da

experiência e entre todos os campos sociais”. (Rodrigues,

1999)

Nesta pesquisa, ao analisarmos o discurso

jornalístico da mídia selecionada, consideraremos os tex-

tos como constitutivos de práticas sociais, inseridos em

contextos específicos. Segundo Pinto (1999, p.08), ao

participar de práticas sociais, os sujeitos assumem o papel

de sujeitos, “de agentes das ações de produção, circula-

ção e consumo dos textos”. Perspectivas teóricas como

essa contribuem para que possamos observar com mai-

or clareza a dimensão sócio-histórica dos textos

midiáticos em torno dos quais se constroem as estraté-

gias de midiatização da identidade argentina. Ao mesmo

tempo essas teorias nos fornecem referências teóricas

e metodológicas para olhar o processo de construção

noticiosa, a fim de que possamos compreender como se

dão as ofertas discursivas acerca da identidade argenti-

na e as possíveis representações históricas presentes

neste discurso midiático.

Entendendo dessa maneira, e levando em conta a

especificidade de nosso objeto de pesquisa, é preciso

perceber que o discurso enunciado pelo jornal Zero Hora

tem um papel fundamental ao reproduzir, reforçar ou

transformar as representações feitas pelas pessoas, bem

como as relações e as identidades que se definem numa

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Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

sociedade. Assim, podemos inferir que o ato de dizer

pode ser individual, mas o processo é sempre social. A

prática discursiva, ao mesmo tempo em que é construída

pelo sujeito, colabora para a sua própria construção. Seu

dizer é motivado por interesses que, em certa medida,

procuram impor uma determinada significação, um po-

der. Mas é na recepção que isso vai se confirmar, ou

não. Nessa direção, Verón (1996) nos mostra que um

discurso jamais será um lugar de sentido. O que se bus-

ca são os meios para compreender o processo da pro-

dução desse sentido, sua reconstituição por meio das

marcas contidas nos textos. Essas marcas discursivas

são fundamentais pelo fato de que é pela manifestação

material do discurso que as configurações do sentido

podem ser analisadas. Esse processo converte-se, en-

tão, em uma rede de relações entre o produto e sua

produção, um sistema relacional entre diferentes dis-

cursos, entre o texto e o “não texto”. É justamente nessa

materialidade que os discursos podem ser comparados,

uma vez que os sentidos construídos são sempre

relacionais e nunca se dão de maneira isolada. O fato de

que as relações firmadas entre produção e recepção não

são lineares e possibilitam múltiplos significados impede

a geração de um único efeito de sentido e potencializa o

que Verón (1996) denomina de campos de efeitos de

sentido.

Esta noção propõe que uma mensagem

nunca produzirá um único efeito de sentido, visto que

todo discurso possibilita um campo de efeitos de sentido

diversos, dependendo das experiências socioculturais de

seus receptores. Direcionando essa conceituação para

as reconfigurações identitárias, é possível dizermos que

entre a produção e a recepção da mensagem midiática

não existe uma causalidade linear nas construções dos

sentidos. De certa forma, esse conceito também explica

por que o que nos interessa investigar não são somente

as mensagens transmitidas pelo Jornal Zero Hora e sim

os sentidos construídos, os reconhecimentos obtidos na

recepção. Vale lembrar que os sentidos construídos de-

pendem do contexto e da situação em que são produzi-

dos. Isso significa dizer que, para que possamos enten-

der a produção de sentidos precisamos, antes de tudo,

ter uma compreensão da estrutura social em que se in-

serem os sujeitos, se relacionam e demarcam posições.

Ao mesmo tempo, os discursos obedecem a lógicas e

têm códigos próprios, que ao serem publicizados trans-

formam-se em práticas ideológicas e de poder, poder

este exercido não só por quem produz o discurso, mas

também por quem faz uso dele. O poder simbólico, as-

sumido também por quem se converte em um consumi-

dor deste discurso, passa a ser exercido na medida em

que os agentes passam a comunicá-los, legitimando-os.

Pesquisando outros autores do campo da comu-

nicação, percebemos que o conceito de campos de efei-

tos de sentido, trazido por Verón (1996), de certa ma-

neira também é trabalhado por Pinto (1999, p.27), na

medida em que o autor defende que, no que se refere a

sua enunciação, todo texto é sempre híbrido e heterogê-

neo, no sentido de que ele se constitui enquanto um “te-

cido de vozes ou citações (cuja autoria fica marcada ou

não) vindas de outros textos preexistentes, contemporâ-

neos ou do passado”. Ao se apropriarem da realidade,

os jornalistas acabam transformando-a, significando os

acontecimentos via discurso especializado. Isso trans-

porta o fazer do jornalista para a ordem do simbólico e,

ao mesmo tempo, imprime neste fazer matrizes especí-

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ficas do campo midiático e matrizes culturais dos de-

mais campos sociais dos quais se apropria dos discur-

sos.

Importa ressaltar que, devido ao fato de os senti-

dos atribuídos às experiências serem resultados de es-

quemas de interpretação, não há experiência que não

seja ideológica. O aspecto ideológico converte-se, as-

sim, em algo inerente ao processo comunicacional e de

midiatização das instituições. É neste sentido que pen-

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samos que a compreensão do significado dado às expe-

riências dos sujeitos sociais (dentre elas, a experiência

de interação com a instituição midiática e, neste caso,

mais especificamente, com o Jornal Zero Hora) é tam-

bém uma tentativa de compreensão dos códigos ideoló-

gicos de um determinado grupo social.