Rascunho dos cuidados rasurados

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Rascunho dos cuidados rasurados Naquele turno deambulava pelo serviço, sentindo o peso da responsabilidade da farda que vestia, pressentindo que cada dor suportada era igual ao fardo do medo que carregava em não poder aliviá-la. Pensava, ainda que no silêncio fantasmagórico do cair da noite, como poderia eu separar a minha alma, os meus sentidos, a minha inteligência emocional do turbilhão de emoções, sentimentos, receios, angústias e histórias que me assaltavam diariamente, de quarto em quarto, enquanto esboçava um sorriso inocente, que refletia a paixão do meu trabalho e, da mesma forma, transmitia a inexperiência da vida, do cuidar. Ser enfermeiro é definitivamente assumir uma vocação. Quando digo vocação, não encaro neste conceito a fieldade de uma dedicação exclusiva, mas ressalvo a lealdade e o compromisso que assumimos, não só profissionalmente, mas também a nível pessoal. E não me peçam para separar o meu “eu” da minha profissão, porque não consigo. Porque sou incapaz de esquecer o sorriso do hoje transformado na lágrima do amanhã, porque não gosto que desconhecidos invadam o meu espaço pessoal, mas todos os dias dou um tiro na intimidade dos meus doentes, porque a moda das prioridades me impede de escutar, olhar, ensinar, compreender. Porque me esqueço que a fragilidade humana tem uma dimensão muito superior que a própria doença e compenso com um cumprimento uma alta médica forçada, que exigia de mim Tempo, esse que perdi com “coisas”. Com o tempo, evoluímos com tecnologias ultrassónicas, potencialmente eficazes e tecnicamente infalíveis. Pena que só consigamos estes resultados em máquinas com um painel de controlo. Afinal, que tipo de enfermeiro sou? Aquele que eu quero ser ou aquele que a realidade me permite ser? Trabalho formatado para me mover, não para andar, exigem que eu faça retiros espirituais na sala da medicação e façam do carrinho de pensos um mini-altar móvel que se aproxime de uma qualquer devoção. Com tudo isto, deram corda aos ponteiros e acelerei o passo para cumprir os timings” de forma a não prejudicar a minha avaliação de desempenho, desprezando algumas promessas facultativas, esperando que algum colega, mais tarde, me desculpe o consciencioso esquecimento. Por fim, colo-me ao ecrã de um computador a listar cruzes em procedimentos e a relatar os infaustos acontecimentos que serão comentados nos turnos seguintes, para que os mais sensíveis possam rir da desgraça dos outros.

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Reflexão

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Rascunho dos cuidados rasurados

Naquele turno deambulava pelo serviço, sentindo o peso da responsabilidade da farda que vestia, pressentindo que cada dor suportada era igual ao fardo do medo que carregava em não poder aliviá-la. Pensava, ainda que no silêncio fantasmagórico do cair da noite, como poderia eu separar a minha alma, os meus sentidos, a minha inteligência emocional do turbilhão de emoções, sentimentos, receios, angústias e histórias que me assaltavam diariamente, de quarto em quarto, enquanto esboçava um sorriso inocente, que refletia a paixão do meu trabalho e, da mesma forma, transmitia a inexperiência da vida, do cuidar.

Ser enfermeiro é definitivamente assumir uma vocação. Quando digo vocação, não encaro neste conceito a fieldade de uma dedicação exclusiva, mas ressalvo a lealdade e o compromisso que assumimos, não só profissionalmente, mas também a nível pessoal. E não me peçam para separar o meu “eu” da minha profissão, porque não consigo. Porque sou incapaz de esquecer o sorriso do hoje transformado na lágrima do amanhã, porque não gosto que desconhecidos invadam o meu espaço pessoal, mas todos os dias dou um tiro na intimidade dos meus doentes, porque a moda das prioridades me impede de escutar, olhar, ensinar, compreender. Porque me esqueço que a fragilidade humana tem uma dimensão muito superior que a própria doença e compenso com um cumprimento uma alta médica forçada, que exigia de mim Tempo, esse que perdi com “coisas”.

Com o tempo, evoluímos com tecnologias ultrassónicas, potencialmente eficazes e tecnicamente infalíveis. Pena que só consigamos estes resultados em máquinas com um painel de controlo.

Afinal, que tipo de enfermeiro sou? Aquele que eu quero ser ou aquele que a realidade me permite ser? Trabalho formatado para me mover, não para andar, exigem que eu faça retiros espirituais na sala da medicação e façam do carrinho de pensos um mini-altar móvel que se aproxime de uma qualquer devoção. Com tudo isto, deram corda aos ponteiros e acelerei o passo para cumprir os “timings” de forma a não prejudicar a minha avaliação de desempenho, desprezando algumas promessas facultativas, esperando que algum colega, mais tarde, me desculpe o consciencioso esquecimento. Por fim, colo-me ao ecrã de um computador a listar cruzes em procedimentos e a relatar os infaustos acontecimentos que serão comentados nos turnos seguintes, para que os mais sensíveis possam rir da desgraça dos outros.

Não estou a pedir que se formem enfermeiros para se sentarem turnos infindáveis à cabeceira dos doentes, mas certamente poderíamos ter mais enfermeiros que dessem o verdadeiro valor à essência da sua profissão, de um cuidar atento ao sentimento de impotência para lidar com a doença, de um cuidar instrutivo, que valorize o nosso saber e transmita segurança e firmeza para as dificuldades que se avizinham. Um cuidar magno, que prime pela diferença, dando visibilidade a um plano de cuidados que valorize o luto, a família, a imagem corporal, o conforto espiritual, a resiliência, ao invés de desvalorizá-lo com procedimentos puramente técnicos… Ser enfermeiro é também preservar a dignidade, a autonomia, é saber dar uma má notícia, suportar e encarar a família, rasando os limites do cuidar.

É tão importante saber fazer quanto saber ser, e ninguém pode ser um ENFERMEIRO com maiúsculas se não souber ser para os outros a esperança, a confiança, o professor e o autêntico suporte. Deixemo-nos por isso de padrões e ritmos que consomem parte da nossa mente para pôr em prática o verdadeiro teor dos cuidados.

Hélder Teixeira