Rancor Baiano e Desejos de Rei

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RANCOR BAIANO E DESEJOS DE REI - A LITERATURA DE FABIO MANDINGO*

TEXTO ALLAN DA ROSA

OUTUBRO/ 2015

“Ao mesmo tempo em que ele dirigia louco pela estrada, ela sangrava uma

vida entre as pernas no casebre à beira da maré.

Na pista, somente as luzes altas dos faróis, as carretas que passavam carregadas, apressadas levando tudo pela frente, deslocando ar no vácuo

de seu peso. Nem o brilho mínimo dos barracos que ladeiam o asfalto. Só o

vazio, os carros. Suas pupilas dilatadas de droga como faróis de milha.

Escorreu direto n´agua, uma massa quente e ensanguentada pelo buraco entre as tábuas que usavam como latrina. Ensanguentada e quente. Comida

de peixe, de siri. Dor imensa, cabeça estourando, sangue ainda descendo

misturado à diarreia. De cócoras na escuridão infinita da palafita, não via

nada. Se segurava nas ripas folgadas da parede, inalando a fedentina daquela parte onde a agua salgada estagnava, entre fetos e corpos de

cachorros, sacos de lixo, garrafas vazias, fezes. Dor na vagina, parecia

estar parindo cacos de vidro” (início de Mara)

O conto Mara é uma obra prima que rala de vermelho nossas costelas.

Acontece na volta de Enoque pra sua praia suburbana que encontra entre

cachimbos de crack e recordes de vídeo-game; entre goladas de chá de raiz e do pior conhaque, entre os velhos fortes do terreiro e os bagaços já

entediados e desandados que são seus amigos de infância, agora

homenzinhos; entre o tesão e a piedade maldita que ainda sente no trato

com Mara, moça que já é um viciado saco de ossos mas ainda lúcida na sua revolta e nas memórias encardidas. Mara estuprada por caga-regras

moralistas, pais de família escolados no sinal da cruz e na pesca. Mara é a

jovem que “sorriu e a carcaça que se tornara retornou à vida, plena de

uma beleza constrangedora”. E Enoque puxado pelas sombras de um lugar que já deu muito peixe fresco e hoje é maré de morte boiando, cenário da

sua decepção que evita o vazio e se confunde com ele.

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O autor de Mara é Fábio Mandingo. Professor, estudioso da presença

africana milenar e contemporânea, capoeira do Grupo Semente do Jogo de

Angola e bem experimentado nos movimentos rueiros, anarco e periféricos

de Salvador. Mandingo já lançou pelo selo Ciclo Contínuo três livros de contos: Salvador Negro Rancor (2011), Morte e Vida Virgulina (2013)

e Muito como um Rei (2015). Suas letras tem aroma salobro e também

exalam o esgoto aberto, trazem o cheiro de urina dos cantos

soteropolitanos e as fragrâncias de pétalas nobres. Suas histórias flutuam e se trançam à África antiga e à Salvador sacizeira que suga seus

cachimbos de crack pelas penumbras ou a sol aberto. Os parágrafos trazem

uma década de 80 pulsante, os isqueiros e velas de um subúrbio que

pragueja a luz que caiu bem no meio do jogo ou da novela. Os tempos dos contos de Mandingo são o do padeiro que conta os minutos, a merreca do

salário e os dias gotejados de uma juventude que se esvai na labuta que

não contempla seu querer, mas que parece estar tatuada em seu destino

plebeu. O verbo de Mandingo pinica e coça nas beiradas do carnaval oficial, apresenta os fiapos da folia milionária e as tramoias que são o

miolo evitado pela propaganda que joga a isca pros gringos, equilibrando

tempo e linguajar em contos sem a noia da velocidade, do "conte-logo-

que-eu-quero-acessar-outra-postagem” e também sem o chiclete esticado, prolixo, que amolece a tensão. Moendo estereótipos, soltando vocabulários

e mascando dúvidas doídas, contemplando lama, cortiço e alegrias miúdas,

sua lâmina pode ser suave e seu humor pode lamber quentinho os

destroços da tragédia baiana. Seus diálogos nos beliscam e sentimos bem o timbre da voz que os dicionários e as editoras oficiais do Brasil apenas

rebaixam ou estereotipam.

Sílvio Oliveira, professor de literatura da Universidade Estadual da

Bahia/UNEB, considera que “Mandingo tem um linguajar naturalmente

próximo de quem viveu e sentiu as ruas de Salvador. Esse linguajar não

alcança só as palavras, a gente percebe o movimento dos corpos, a função do olhar e do próprio silêncio no texto. Sinto do primeiro pro segundo livro

um amadurecimento do dizer, uma segurança saída de um lugar que é do

escritor mesmo. Quer dizer, há uma identidade de escritor já formatada,

mas que avança pra pensar com maior objetividade as estratégias e os sentidos. É como se no início as narrativas escorressem e depois elas ainda

escorrem, mas o autor determina alguns desvios, poças, pedregulhos que

já dão a ideia de intervenção na narrativa”.

Em Salvador Negro Rancor, Mandingo afoga no mar lixento toda a casca

brilhosa de um tour na Bahia. Expõe o aleijamento, a trucagem, a marra e

as máscaras do que se negocia como negritude autêntica chupinhando candomblé e capoeira. Ao mesmo tempo em que apresenta o que há de

fundamento e de chão, por ter o pulmão agredido, a respiração da obra de

Mandingo é vagarosa e em tom de estopim. Não esconde seus catarros,

porém não se limita ao miserê e os escombros. A nostalgia que vem não é a de uma Itapuã de Dorival Caimmi ainda ventando os coqueiros em vitrines

de aeroporto, e sim a de quebradas que já choraram seus jovens

cadáveres, já se entupiram de carros e já trocaram por biscoitos

plastificados o pescado na tarrafa.

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Eunice Souza, experiente contadora de histórias das periferias paulistanas,

fala da obra: "O livro todo me causou admiração e estupor. Contos crus, mas não se enganem. A linguagem é elaborada. A crueza vem das situações

limite. Gosto de todos, mas o que me pega é o contoPipoca. Parece filme.

Uma corrida maluca de coelho. O objetivo é chegar inteiro, diante da real

que é o Carnaval de Salvador. Você tem aquela roupinha ridícula que lhe dá salvo conduto? NÃO tem? Se vira. Dá seus pulos e chega na casinha. Lá

sim é dia de festa".

O carnaval que Mandingo esmiúça é dos fardados especialistas em dar

botinadas e chaves de braço nos camelôs, dos gigantes ‘seguranças’ e seus

radares piscando a quem tente transgredir os espaços da corda que

delimita o pedaço dos abadás bem-pagos, das gangues parrudas que esperam fevereiro pra estourar uns dentes e propagar lendas da sua

macheza por mais um ano. É o carnaval do isopor e do saco cheio de

latinhas amassadas carregado no cangote, no proveito da estação pra

coletar uns vinténs ou doletas. É o carnaval da marmita azeda, da gororoba mal mastigada pra segurar o esqueleto moído na viração.

Eunice segue: "Não é como algumas publicações que não nos permitem a

viagem. Que dão o bilhete, o hotel, a cama macia, o café da manhã. Cadê

o perrengue do desconhecido? Do não revelado? Viajo nas imagens dele,

somadas às minhas, que se somam para a grande noite de amor. A literatura é isso. Um encontro. Eu já fui à Bahia 'N' vezes. Em várias

cidades. E Mandingo fala dessa Bahia que não está nos cartões postais.

Uma Bahia muitas vezes, e põe muitas nisso, tão violenta e desigual, mas

tão terna, tão nós".

O texto de Mandingo não traz as angústias do escritor de classe média e

suas agruras sobre “o que escrever diante do papel branco”, nem a falsa camaradagem com a favela ou a ideia geral de universalismo e de

democracia racial. Há aquele sereno de quem conta e reconta a mesma

história sentado no portão cascando uma jaca, mas também a rispidez de

quem chacoalha no trem lotado e o ódio apertado nos dentes cariados. Quem se desenha como leitora esperada na obra de Mandingo não é a que

usa turbante por moda nem a que batuca por entretenimento. Sem

deslumbramento, mas com respeito e fascínio pelas giras da vida, com

regras e humildade, a alma leitora para caminhar por suas linhas não é amaciada com glossário. A íris do escritor é malunga e quem lhe estranha é

a padronizada como ‘normal’ desde sempre nos livros didáticos e nos

cânones da literatura brasileira.

Vagner Souza, poeta linha de frente do Sarau da Brasa, apresenta os

percursos de sua leitura: "Mano, em Salvador Negro Rancor, vi um

Mandingo bravão, pronto pro revide, no cálculo certeiro de cada pernada. Na elaboração deixou cozinhando e lançou letra afiada. Mas em Muito

Como um Rei, já encontrei um Mandingo mais tranquilo, com serenidade de

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nego véio, menos afobação. Durante quase todo o trampo vai dizendo dos

vários tesouros de seu reinado. A cada conto fui diminuindo a velocidade

da leitura, pra que o livro demorasse pra acabar.

“Rapá, meu irmão era um frangueiro filho da puta. No primeiro jogo,

contra os meninos do Estica, o cara tomou um gol em menos de 3 minutos

de jogo. Eu espumava. Olhava de canto de olho. Gostava de jogar atrás, na raça, tomando a bola, lançando a bola, nosso time fez um e fez dois. Os

meninos do Estica eram muito melhores que a gente. Tinham um, dois anos

a mais, numa idade em que isso faz a diferença grande, em que o corpo já

começa a ficar forte, mais másculo: Bau, Papa-Capim, Peixe Frito, Nem. Ganhamos o jogo ferrado nesse dois a um, os caras não aceitaram(...) -

Essa porra aqui não tem homem – gritou Bau – ninguém aqui tem coragem

de sair na mão comigo.

A gente se entreolhou, vixe, meu irmão de cabeça baixa, todo mundo

olhando pro chão. Eu andava lendo muita revista né, disse: - Eu saio na

mão com qualquer um.

Seco igual um agdaví, o medo pulsando adrenalina pelo corpo, se fuder, eu tava morrendo de medo, mas tinha lido alguma coisa sobre enfrentar o

valentão e ele ficar com medo e dar pra trás. Deu certo, em parte, três

deram pra trás, mas Bau ficou”. (trecho de Infanto-Juvenil 1)

Mandingo oferece uma série de contos intitulados Infanto-juvenis, que

atravessam seus dois livros mais recentes. Nesta série que já tem cinco

textos, voa uma mirada que encara e defende com humor a própria memória da liberdade e da precariedade, numa recolha às vezes auto-

satírica e regada a rasgos de maltrato, com afagos e arranhões também aos

leitores que de repente se cortam embalados pela molecagem. Vogam as

hierarquias engenhadas, consolidadas ou desafiadas e na descrição das camaradagens de pivete garantidas numa lealdade firmada entre murros,

xingos e vexames secretos, florescem as primeiras perebas, que no

decorrer da vida passam da epiderme pra dentro do peito. Sobre estes

textos “Juvenis”, Silvio Oliveira apresenta sua percepção: "Confesso que tenho o meu próprio jeito de avistar esse 'juvenil' nos textos, que são de

"gente grande". Há os tipos, mas há a exigência da vida que se entrosa nos

sujeitos e pede linguagem robusta, que não se perde no tempo e, embora

cuidadosa, dialoga com as falas das realidades. Mandingo me faz viajar a tipologias muito patentes na cidade dos anos 80 e 90, talvez dos

primórdios de 2000. Trata-se de uma leitura que faz sobre a cidade

enviesada, inclusive sobre as periferias do Centro da cidade, pois elas

existem e até hoje são invisíveis, exceto quando notadas associadas ao crime. Há uma manhã, um modo de falar, de chegar e até de desafiar o

outro que só quem experimentou consegue recriar. Refere-se aos becos e

às entranhas da cidade, às ruas esquecidas ou aos sujeitos, os mesmos

invisíveis, imiscuídos nos grandes cenários.

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Arrancar unha encravada e cicatriz enquanto se resenha o que veio da

maré ou da rua de trás, é o que o adolescente suburbano partilhou antes

de se ralar pulando muros ou disputar torneios de futebol de botão,

tecendo uma intimidade maloqueira que é seiva de amizades e de uma noção do tempo maior do corpo e do espírito, não do relógio".

Já Vagner Souza problematiza o que sejam os... “Juvenis? Nem sei se os juvenis vão sacar qual é a da letra. Os mulecote estão vivendo as ideias

que o Mandingo ta contando. Nóis é que lê e transborda o peito de saudade

do futebol na rua, das tretinha com o moleques da rua de baixo, da

sensação das primeiras ansiedades amorosas. São os textos do Mandingo em que eu mais viajo, nas várias belezas que ele conta, que me fazem lembrar

das belezas vividas por aqui. Várias durezas também, mas hoje rola olhar

pra elas com olhar de aprendizado sereno. Me parece que são os textos

que ele mais navega, solto mesmo, em mar aberto. E esse balanço também me leva pra viagens distantes gostosas de fazer”.

Salvador Negro Rancor é um óleo de acarajé pronto pra se verter no colo dos desavisados e deslumbrados. É uma obra com esporões, sim, mas ali já

se traça uma fresta pras goteiras mais frias, porém ácidas, dos dois

próximos livros, que também sabem escarrar e manter suas navalhas

ocultas na bola de meia. Os textos juvenis de Mandingo soltam-se de palavras de ordem e não se enrolam na fome por aplausos, a que murcha

nos limites vindos do receio em não agradar militantes e em não parecer

autenticamente da quebrada. Isso garante aos contos a surpresa e o

encanto, mesmo que rasgado. Um texto desvencilhado do óbvio e do previsível, seja no seu estilo ou na condução das tramas: "Ele bota uma

prosa pra além do grito fácil que vem na certeza que vai ecoar na torcida.

Acho que tem momento que esse grito é necessário, mas o próximo passo

também. Daí que Mandingo já chega, com oSalvador Negro Rancor, no passo seguinte. Escritor com letra firme, que anuncia ideia mas deixa a

dúvida gostosa de viajar. Vários debates surgem na sombra e não na

imagem. Ele fala com propriedade, mas sem querer doutrinar. No seu texto

o jogo tá aberto", completa Vagner Souza.

Porém, se nas histórias em que Mandingo traz declarada voz pan-africanista há o valor didático das referências de nomes, lugares e obras

importantes da presença e das lutas negras que afloram há séculos da

Etiópia ao Harlem e do Rio de Janeiro ao Haiti - referências que são

invisíveis e emudecidas pelos medos, deformações e ignorância do apartheid editorial brasileiro - nestas histórias também estão os parágrafos

das suas tramas muito esquemáticas, mecânicas sem azeite. Os

personagens aqui parecem amarrados pela ideologia do autor, com gestos e

diálogos previsíveis, destoando bastante da liberdade nas imagens e da desenvoltura nas narrativas dos meninos que mergulham na Ribeira, das

senhoras que sobem o escadão da Liberdade, dos pés rapados da Lapa, dos

anciãos na porteira do Quilombo Rio dos Macacos e das bocas que gemem

na areia à beira-mar (seja no calor amante entre coxas ou na humilhação da nuca pisada por um coturno)... personagens que ouvimos respirar e que

passam o laço em qualquer expectativa furada acesa no faro do leitor.

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Com suas lógicas, éticas e fundamentos, estes personagens são traduções

porosas do ser preto e das artimanhas da necessidade e das ciências do

gosto de (sobre)viver. Gente que é labirinto e que sua o cotidiano nas

esferas do Segredo, da Teatralidade, do culto à Ancestralidade, do Jogo, da Luta e da busca do bem viver como princípio essencial do passo. Que o

autor com desabrido talento contempla e questiona.

Nenhuma leitura instrumental vai sequer resvalar na riqueza dessa obra. A

fluência e as entrelinhas abertas nas frases, a musculatura da trama que

tanto se retesa quanto se relaxa na brisa e na mocambagem dos

personagens com suas histórias de encontro e de perda, passam longe de quem quiser bandeira óbvia tremulando nos contos. E as contradições

entalhadas pelo autor definhariam nestas abordagens, pois muitos

personagens de Mandingo são a própria encruzilhada, esta tão louvada

quanto evitada por dentro. Eles flutuam entre a espuma da raiva e os lampejos crescentes de discernimento e ternura. Há o escárnio à

politicagem e há a empolgação do vinho, do gol, do motel ou da

linguagem. Mandingo incorpora a treta entre o parecer, o assumir e o ser.

Na história do pensamento da diáspora africana há o notório embate entre Wole Soyinka (nigeriano, primeiro escritor africano a ganhar o prêmio

Nobel) e o movimento Negritude, de Leopold Senghór, Leon Damas e Aimé

Cesaire, que quando estudantes de colônias francesas em Paris sentem e

anunciam o pulso de sua tez e de suas culturas. Então Soyinka, diante dos manifestos do movimento Negritudedeclara que “o tigre não declara sua

tigritude. Ele salta sobre sua presa e a devora”. Mandingo ginga entre

estes dois prismas e tanto assume e propaga nos seus títulos e na moldura

de seus quadros qual é a do seu arco, como simplesmente é a própria diáspora em sua flecha, no miolo, com seu estilo de compor o que alinha

das ruas e do calendário. Na escorrência de suas histórias deslizam a

revolta e o engano, a acidez que sorri melancólica ou gloriosa, e aí

afloram faces do ser negro num Brasil racista. Lateja e brilha também, feito um grande relâmpago ou uma lamparinazinha trêmula, a Salvador que

ainda não desmoronou para a assunção de prédios platinados, a que não

tombou de vez em colapso. Mas o fraseado de Mandingo com sua ironia

pirilampa e até melancólica não cabe nas correias de leituras que queiram seu texto como comprovação de tese.

Altair Ramos, membro do Grupo de Estudos Literatura e Periferias, da UNEB, considera Mandingo, por seus textos: “um sujeito que debate

consigo mesmo o tempo todo, um diálogo interminável numa dialética

quase sem fim, percebo em quase todos os textos esta briga mental que

envolve conceitos, ideologias e historicidade. Sua literatura é firmada na vivência, na fina percepção e na vontade afirmativa”.

“Tirou a roupa e pendurou no cabide de madeira. Abriu o chuveiro. Só o

gelo daquela água já era capaz de purificar uma alma. Se enxugou, pegou

o balde com o outro banho e mexeu pra sentir subir o cheiro forte de água

de alevante e espinheira santa. Jogou no meio da cabeça e deixou a água escorrer lentamente. Bebeu um pouco do banho, lavou todo corpo e vestiu

as roupas sem se enxugar”. (trecho do contoOjuoyin)

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As músicas, manancial de poesia e política nos ninhos e revides negros,

fontes em que se roda junto mas também onde se dedilha e se canta só, estão em versos clássicos de rap que vem como epígrafes ou como

ilustrações dentro dos contos de Mandingo. E bailam entre os parágrafos

vários versos marotos ou duros das ladainhas angoleiras, do reggae da

Rocinha, do ijexá e do afoxé dos blocos afro, dos refrões do rock baiano e dos bregas que ressoam pelos tijolos furados e beirais de janela com o

cheiro de feijão na pressão. As letras de música são mapas e recheios pra

atmosfera de cada história e perfazem o universo de referências de um

vasto leque de escritores das periferias brasis, que prezam tanto as bibliotecas como seus antigos toca-fitas. Marcado o diálogo com o verbo

cantado, voga a influência lapidada pela música na métrica e na duração

das frases de Mandingo e também no ritmo das narrativas com suas

tensões, ondas e picos dramáticos. Mas não é apenas o vocabulário e a musicalidade que tilinta a oralidade na orquestra de Mandingo. Aparece

muito o 'e', sempre reiniciando uma contação, esse “e” aditivo, tão

próprio do causo contado na beira do campo, no banco do ônibus, na

cadeira em que se trança o cabelo. O "e" acumulativo da oralidade que nos faz gente pelos ouvidos e pelo colo.

Lívia Natália, professora da Universidade Federal da Bahia, utilizou textos de Mandingo num curso de literatura e psicanálise direcionado a pós-

graduação. O objetivo do curso era pensar como a literatura equaciona

questões emergidas da psicanálise. No caso de Mandingo, pensou-se a

literatura como trabalho de luto, sublimando a castração da violência pela via da escrita e da denúncia. Lívia frisa a agilidade da narrativa e “... o

modo como as cenas se articulam e têm uma conexão firme com a

realidade. O modo irônico e provocativo da escrita também se destaca”.

Lívia como autora e como educadora também lamenta a dificuldade de edição e de circulação da obra de Mandingo e de demais autores negros e

negras das quebradas brasileiras: "Os livros não circulam tanto, e eu não

consegui acesso aos últimos dois. É frustrante".

Diante dos interesses e anestesias do apartheid editorial brasileiro,

editoras pequenas e selos com pequena capacidade de circulação, como a Ciclo Contínuo, o Mjiba, a Mazza, o Quilombhoje e a Ogum Toques, ainda

são um comichão insistente, frequentemente barrado ou escanteado nas

livrarias. Assim, para adquirir os livros de Mandingo, procure o editor

Marciano Ventura no email:[email protected]

*Texto originalmente publicado na edição de agosto de 2015 da

revista Caros Amigos

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ALLAN DA ROSA é historiador e mestre em Educação pela USP. Autor, entre outros, de A Calimba e a Flauta – Versos Úmidos e Tesos (livro-CD de

poesia erótica, com Priscila Preta, 2002), Pedagoginga, Autonomia e

Mocambagem (Ensaio sobre Cultura Negra e Educação Popular, 2013)

eMukondo Lírico (livro-CD, com Giovanni Di Ganzá, 2014). Atualmente mantém o blog Á Beira da Palavra, hospedado no portal da revistaFórum.