Raízes Do Brasil

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Raízes do Brasil – Ségio Buarque de Holanda Capítulo 1- Fronteiras da Europa A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território é o fato dominante e mais rico em conseqüências nas origens da sociedade brasileira. Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Todo o fruto do nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem. Caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e idéias de que somos herdeiros. É significativa a circunstância de termos recebido a herança através de uma nação ibérica. A Espanha e Portugal são um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos. Foi a partir da época dos descobrimentos marítimos que os dois paises entraram mais decididamente no coro europeu. Esse ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos peculiares de sua história. Surgiu assim, um tipo de sociedade que se desenvolveria quase à margem das congêneres européias. Ressalta-se uma característica bem peculiar à gente da península ibérica em relação às outras gentes da Europa. Nenhum desses vizinhos soube desenvolver essa cultura da personalidade da gente hispânica. Pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes, devem os espanhóis e portugueses muito de sua origem nacional. O índice de valor de um homem infere-se da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir. Erram profundamente aqueles que imaginam na volta a certa tradição, a única defesa possível contra nossa desordem. As épocas vivas nunca foram tradicionalistas por deliberação. Portugueses e espanhóis parecem ter sentido a irracionalidade, a injustiça social de privilégios, sobretudo hereditários. O prestigio pessoal manteve-se continuamente nas épocas mais gloriosas da história das nações ibéricas. Nunca chegou a ser rigorosa e impermeável a nobreza lusitana. Esta jamais logrou constituir uma aristocracia fechada; a generalização dos mesmos nomes a pessoas das mais diversas condições não é fato novo; explica-o a troca constante de indivíduos, de uns que se ilustram, de outros que voltam à massa popular donde haviam saído. Havia homens da linhagem dos filhos d’algo em todas as profissões. A comida do povo não se distinguia muito da dos cavalheiros nobres; estavam em continuas relações de intimidade; os nobres lhes entregavam a criação dos filhos. Porque não teve excessivas dificuldades a vencer, por lhe faltar apoio econômico, a burguesia mercantil não precisou adotar um novo modo de agir e pensar, ou instituir uma nova escala de valores. Procurou, antes de associar-

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Sérgio Buarque de holanda

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Razes do Brasil Sgio Buarque de Holanda

Captulo 1- Fronteiras da EuropaA tentativa de implantao da cultura europia em extenso territrio o fato dominante e mais rico em conseqncias nas origens da sociedade brasileira. Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Todo o fruto do nosso trabalho ou de nossa preguia parece participar de um sistema de evoluo prprio de outro clima e de outra paisagem.Caberia averiguar at onde temos podido representar aquelas formas de convvio, instituies e idias de que somos herdeiros. significativa a circunstncia de termos recebido a herana atravs de uma nao ibrica. A Espanha e Portugal so um dos territrios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos.Foi a partir da poca dos descobrimentos martimos que os dois paises entraram mais decididamente no coro europeu. Esse ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos peculiares de sua histria. Surgiu assim, um tipo de sociedade que se desenvolveria quase margem das congneres europias.Ressalta-se uma caracterstica bem peculiar gente da pennsula ibrica em relao s outras gentes da Europa. Nenhum desses vizinhos soube desenvolver essa cultura da personalidade da gente hispnica. Pela importncia particular que atribuem ao valor prprio da pessoa humana, autonomia de cada um dos homens em relao aos semelhantes, devem os espanhis e portugueses muito de sua origem nacional. O ndice de valor de um homem infere-se da extenso em que no precise depender dos demais, em que no necessite de ningum, em que se baste. Cada qual filho de si mesmo, de seu esforo prprio, de suas virtudes.Os elementos anrquicos sempre frutificaram aqui facilmente. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, no de os unir.Erram profundamente aqueles que imaginam na volta a certa tradio, a nica defesa possvel contra nossa desordem. As pocas vivas nunca foram tradicionalistas por deliberao.Portugueses e espanhis parecem ter sentido a irracionalidade, a injustia social de privilgios, sobretudo hereditrios. O prestigio pessoal manteve-se continuamente nas pocas mais gloriosas da histria das naes ibricas.Nunca chegou a ser rigorosa e impermevel a nobreza lusitana. Esta jamais logrou constituir uma aristocracia fechada; a generalizao dos mesmos nomes a pessoas das mais diversas condies no fato novo; explica-o a troca constante de indivduos, de uns que se ilustram, de outros que voltam massa popular donde haviam sado.Havia homens da linhagem dos filhos dalgo em todas as profisses. A comida do povo no se distinguia muito da dos cavalheiros nobres; estavam em continuas relaes de intimidade; os nobres lhes entregavam a criao dos filhos.Porque no teve excessivas dificuldades a vencer, por lhe faltar apoio econmico, a burguesia mercantil no precisou adotar um novo modo de agir e pensar, ou instituir uma nova escala de valores. Procurou, antes de associar-se s antigas classes dirigentes, assimilar muitos dos seus princpios, guiar-se pela tradio. Os elementos aristocrticos no foram completamente alijados e as formas de vida herdadas da Idade Mdia conservaram, em parte, seu prestgio antigo.A autntica nobreza h de depender das suas foras e capacidades, pois mais vale a eminncia prpria do que a herdada. A abundncia dos bens, os altos feitos e as altas virtudes, suprem a linhagem de sangue.Nas naes ibricas o princpio unificador foi sempre representado pelos governos que nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas caractersticas nas ditaduras militares.Jamais se naturalizou entre gente hispnica a moderna religio do trabalho. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente a um bom portugus, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo po de cada dia. O que ambos admiram como ideal uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforo, de qualquer preocupao. O cio importa mais que o negcio; a atividade produtora menos valiosa que a contemplao e o amor.Tambm se compreende que a carncia dessa moral do trabalho se ajustasse bem a uma reduzida capacidade de organizao social. No admira que fossem precrias, nessa gente, as idias de solidariedade. Essa, entre eles, existe somente onde h vinculao de sentimentos. exaltao da personalidade s pode haver uma alternativa: a renncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que rara e difcil, a obedincia aparece algumas vezes, para os povos ibricos, como virtude suprema entre todas. A vontade de mandar e a disposio para cumprir ordens so-lhe igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofcio parecem constituir formas to tpicas de seu carter como a inclinao anarquia e desordem. em vo que temos procurado importar dos sistemas de outros povos modernos, ou criar por conta prpria, um substituto adequado, capaz de superar os efeitos de nosso natural inquieto e desordenado. Toda cultura s absorve em geral os traos de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Nem o contato e a mistura com raas indgenas ou adventcias fizeram-nos to diferentes dos nossos avs de alm-mar como s vezes gostaramos de s-lo. No caso brasileiro, a verdade que ainda nos associa pennsula ibrica, a Portugal, uma tradio longa, bastante viva para nutrir, at hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de l nos veio a forma atual de nossa cultura.Captulo 2 Trabalho & AventuraEssa explorao dos trpicos no se processou por um empreendimento metdico e racional, fez-se antes com desleixo e certo abandono.A colonizao holandesa no nos teria levado a melhores e mais gloriosos rumos.Dois princpios se combatem e regulam as atividades dos homens. Encarnam-se nos tipos do aventureiro e do trabalhador.Para o aventureiro, o objeto final assume relevncia to capital que chega a dispensar todos os processos intermedirios. Seu ideal ser colher o fruto sem plantar a rvore.O trabalhador, ao contrrio, aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, no o triunfo a alcanar. O esforo lento, pouco compensador e persistente, tem sentido bem ntido para ele.O indivduo do tipo trabalhador s atribuir valor moral positivo s aes que sente nimo de praticar e, inversamente, ter por imorais e detestveis as qualidades prprias do aventureiro. Por outro lado, as energias e esforos que se dirigem a uma recompensa imediata so enaltecidos pelos aventureiros.Na obra da conquista e colonizao dos novos mundos coube ao trabalhador papel muito limitado. A poca predispunha aos gestos e faanhas audaciosos, galardoando bem os homens de grandes vos. E no foi fortuita a circunstncia de se terem encontrado neste continente, empenhadas nessa obra, principalmente as naes onde o tipo do trabalhador encontrou ambiente menos propcio.Se isso verdade tanto de Portugal como da Espanha, no o menos da Inglaterra. A verdade que o ingls tpico tende para a indolncia, e estima, acima de tudo, a boa vida. Para alguns os holandeses, alemes e franceses no so indolentes como os ingleses.Essa pouca disposio para o trabalho no deixa de constituir o aspecto negativo do nimo que gera as grandes empresas.Essa nsia de prosperidade sem custo, de ttulos honorficos, de posies e riquezas fceis, to notoriamente caracterstica da gente de nossa terra, no bem uma das manifestaes mais cruas do esprito de aventura?O gosto da aventura teve influncia decisiva em nossa vida nacional. Foi o elemento orquestrador por excelncia. Favorecendo a mobilidade social, estimulou os homens a enfrentar com denodo as asperezas ou resistncias da natureza e criou-lhes as condies adequadas a tal empresa (empreendimento).Nesse ponto, os portugueses e seus descendentes imediatos foram inexcedveis. Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda no encontrou, talvez, segundo exemplo na histria.Sistema de lavoura: foi a circunstncia de no se achar a Europa industrializada ao tempo dos descobrimentos (de modo que produzia gneros agrcolas em quantidade suficiente para seu prprio consumo, s carecendo efetivamente de produtos naturais dos climas quentes) que tornou possvel e fomentou a expanso desse sistema agrrio. O clima e outras condies fsicas peculiares a regies tropicais s contriburam de modo indireto.A abundncia de terras frteis e ainda mal desbravadas fez com que a grande propriedade rural se tornasse, aqui, a verdadeira unidade de produo. Cumpria apenas resolver o problema do trabalho. E verificou-se, frustradas as primeiras tentativas de emprego do brao indgena, que o recurso mais fcil estaria na introduo de escravos africanos. A presena do negro representou sempre fator obrigatrio no desenvolvimento dos latifndios coloniais. S com alguma reserva se pode aplicar a palavra agricultura aos processos de explorao da terra.A tcnica europia serviu apenas para fazer ainda mais devastadores os mtodos rudimentares de que se valia o indgena em suas plantaes.O que o portugus vinha buscar era a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, no riqueza que custa trabalho. Os lucros que proporcionou de inicio, o esforo de plantar a cana e fabricar o acar compensavam abundantemente esse esforo, mas era preciso que fosse muito simplificado.No foi, por conseguinte, uma civilizao tipicamente agrcola o que instauraram os portugueses no Brasil com a lavoura aucareira.Por que no? Porque a tanto no conduzia o gnio aventureiro que os trouxe Amrica; Por causa da escassez da populao do reino, que permitisse emigrao em larga escala de trabalhadores rurais; Pela circunstncia de a atividade agrcola no ocupar ento, em Portugal, posio de primeira grandeza. O labor agrcola era menos atraente para seus compatriotas do que as aventuras martimas e as glrias da guerra e da conquista.Fatores que impediram o crescimento da lavoura no Brasil: Os descritos acima; O meio tropical oferece muitas vezes poderosos e inesperados obstculos implantao de tais melhoramentos. O escasso emprego do arado (dificuldades que ofereciam ao seu manejo os resduos da pujante vegetao florestal). Pouca resistncia dos animais que puxavam o arado, como tambm de custarem as terras mais a abrir pela sua fortaleza. Busca de novas terras em lugares de mato dentro; constante mudana das fazendas; transitoriedade; faltava estmulo a melhoramentos de qualquer natureza. Noo de que o trabalho de enxada o nico que as nossas terras suportam ganhou logo crdito. A fora dessa convico logo contagiava os filhos do reino. Ainda em nossos dias, os mesmos mtodos predatrios e dissipadores se acham em uso.O contraste entre as condies da lavoura brasileira e as que pela mesma poca prevaleciam no sul dos Estados Unidos mais aprecivel do que as semelhanas. Depoimentos da poca refletem o pasmo causado entre muitos deles (fazendeiros oriundos dos estados confederados) pelos processos alarmantemente primitivos que encontraram em uso (no Brasil).Todos queriam extrair do solo excessivos benefcios sem grandes sacrifcios. Queriam servir-se da terra, no como senhores, mas como usufruturios, s para a desfrutarem e a deixarem destruda.Nossos colonizadores aclimaram-se facilmente, cedendo s sugestes da terra e dos seus primeiros habitantes, sem cuidar de impor-lhes normas fixas e indelveis. Entre ns, o domnio europeu foi em geral, brando e mole, menos obediente a regras e dispositivos do que lei da natureza. A vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonncias sociais, raciais, e morais. Nossos colonizadores eram homens que sabiam repetir o que estava feito ou o que lhes ensinara a rotina. Bem assentes no solo, no tinham exigncias mentais muito grandes e o Cu parecia-lhes uma realidade excessivamente espiritual, remota, pstuma, para interferir em seus negcios de cada dia.Cumpre acrescentar outra face bem ntida de sua plasticidade social: a ausncia completa, entre eles, de qualquer orgulho de raa. Essa modalidade de seu carter explica-se muito pelo fato de serem os portugueses, em parte, um povo de mestios, por ostentarem um contingente maior de sangue negro. A mistura com gente de cor tinha comeado amplamente na prpria metrpole (pretos eram trazidos das possesses ultramarinas metrpole). Por volta de 1536, essa silenciosa invaso ameaava transtornar os prprios fundamentos biolgicos onde descansava tradicionalmente a sociedade portuguesa.Compreende-se assim, que j fosse pequeno o sentimento de distncia entre os dominadores, aqui, e a massa de trabalhadora constituda de homens de cor. O escravo das plantaes e das minas no era um simples manancial de energia. Com freqncia as suas relaes com os donos oscilavam da situao de dependente para a de protegido, e at de solidrio e afim. Sua influncia penetrava o recesso domstico, agindo como dissolvente de qualquer idia de separao de castas ou raas. Era essa a regra geral, embora houvessem excees. Todavia, a tendncia da populao pendia para um abandono de todas as barreiras sociais, polticas e econmicas entre brancos e homens de cor, livres e escravos.O exclusivismo racista nunca chegou a ser o fator determinante das medidas que visavam reservar a brancos o exerccio de determinados empregos. Muito mais decisivo teria sido o labu (desonra) associado aos trabalhos vis a que obriga a escravido e que no infamava apenas quem os praticava, mas igualmente seus descendentes. No seria outra a explicao para o fato de se considerarem aptos os gentios da terra e os mamelucos (filho de ndio com branco), a ofcios de que os pretos e mulatos ficavam legalmente excludos. O reconhecimento da liberdade civil dos ndios tendia a distanci-los do estigma social ligado escravido. curioso notar como algumas caractersticas atribudas aos nossos indgenas e que os fazem menos compatveis com a condio servil ajustam-se ao tradicionais padres de vida das classes nobres. Deve ser por isso que, ao procurarem traduzir para termos nacionais a temtica da Idade Mdia, prpria do romantismo europeu, escritores do sculo passado iriam reservar ao ndio virtudes de antigos fidalgos e cavaleiros.Longe de condenar os casamentos mistos de indgenas e brancos, o governo portugus tratou de estimul-los. Os pretos e descendentes de pretos continuavam relegados a trabalhos de baixa reputao que tanto degradam o individuo que os exerce, como sua gerao.Uma das conseqncias da escravido e da hipertrofia da lavoura latifundiria na estrutura de nossa economia colonial foi a ausncia de qualquer esforo srio de cooperao nas demais atividades produtoras. Pouca coisa existiu entre ns comparvel prosperidade dos grmios de oficiais mecnicos j existentes no primeiro sculo da conquista de Lima.No Brasil, a organizao dos ofcios segundo moldes trazidos do reino teve seus efeitos perturbados pelas condies dominantes: preponderncia absorvente do trabalho escravo, indstria caseira (capaz de garantir relativa independncia aos ricos, entravando, por outro lado, o comrcio), e escassez de artfices livres na maior parte das vilas e cidades.No se pode negar que existiam discriminaes consagradas pelos costumes, e que uma intolerncia maior prevaleceu constantemente com relao aos ofcios de mais baixa reputao social. Nos ofcios urbanos reinavam o mesmo amor ao ganho fcil e a infixidez que caracterizam, no Brasil, os trabalhos rurais. Poucos sabiam dedicar-se a vida inteira a um s mister sem se deixarem atrair por outro negcio lucrativo. Ainda mais raros seriam os casos em que um mesmo ofcio perdurava na mesma famlia por mais de uma gerao.Era esse um dos empecilhos constituio, entre ns, no s de um verdadeiro artesanato, mas ainda de oficiais habilitados para trabalhos que requerem vocao decidida e longo tirocnio (preparao prtica). Outro empecilho vinha do recurso muito ordinrio aos chamados negros de ganho ou moos de ganho, que trabalhavam mediante simples licenas obtidas pelos senhores em benefcio exclusivo destes.Da tradio portuguesa, pouca coisa se conservou entre ns que no tivesse sido modificada ou relaxada pelas condies adversas do meio.O que nos faltou para o bom xito de tantas formas de labor produtivo foi uma capacidade de livre e duradoura associao entre os elementos empreendedores do pas.Em sociedade de origens personalistas como a nossa, compreensvel que os simples vnculos de pessoa a pessoa tenham sido quase sempre os mais decisivos. As agregaes e relaes pessoais, embora por vezes precrias, e, de outro lado, as lutas entre faces, entre famlias, entre regionalismos, faziam dela um todo incoerente e amorfo. O peculiar da vida brasileira parece ter sido uma acentuao enrgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnao ou atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrrio do que parece convir a uma populao em vias de organizar-se politicamente. influncia dos negros, no apenas como negros, mas sobretudo como escravos, essa populao no tinha como oferecer obstculos. Uma suavidade dengosa e aucarada invade todas as esferas da vida colonial. A moral das senzalas veio a imperar na administrao, na economia e nas crenas religiosas dos homens do tempo.Holandeses tinham esprito de empreendimento metdico e coordenado, em capacidade de trabalho e em coeso social. Apenas o tipo de colonos que eles nos puderam enviar era o menos adequado a um pas em formao. O malogro de vrias experincias coloniais dos Pases Baixos no continente americano, durante o sculo XVIII, foi atribudo ausncia, na me ptria, de descontentamentos que impelissem migrao em larga escala. Esse malogro representou o testemunho do bom xito da Repblica holandesa como comunidade nacional. Essa gente ia apinhar-se no Recife, estimulando assim a diviso clssica entre o engenho e a cidade.Esse progresso urbano era ocorrncia nova na vida brasileira, e ocorrncia que ajuda a melhor distinguir, um do outro, os processos colonizadores de flamengos e portugueses. Ao passo que em todo o resto do Brasil as cidades continuavam simples e pobres dependncias dos domnios rurais, a metrpole pernambucana vivia por si. Destacavam-se nela palcios, parques, institutos cientficos e culturais, organismos polticos e administrativos, a sede do governo.O zelo dos holandeses na sua empresa colonial, dificilmente transpunha os muros das cidades e no podia implantar-se na vida rural de nosso Nordeste, sem desnatur-la e perverter-se. S um ou outro arriscava-se a abandonar a cidade pelas plantaes de cana. Pensaram resolver o problema, tentando importar numerosas famlias de lavradores da me-ptria. Esperou-se em vo.O insucesso da experincia holandesa no Brasil mais uma justificativa para a opinio de que os europeus do Norte so incompatveis com as regies tropicais.Ao contrrio do que sucedeu com os holandeses, o portugus entrou em contato ntimo com a populao de cor. O bom xito dos portugueses resultou de no terem sabido manter a prpria distino com o mundo que vinham povoar. Sua fraqueza foi sua fora. A prpria lngua portuguesa parece ter encontrado, em confronto com a holandesa, disposio particularmente simptica em muitos desses homens rudes (ndios e negros).Ao oposto do catolicismo, a religio reformada, trazida pelos holandeses, no oferecia nenhuma espcie de excitao aos sentidos ou imaginao dessa gente. No faltaram entre eles (holandeses) esforos constantes para chamar a si os pretos e indgenas do pas. O que parece ter faltado em tais contatos foi a simpatia transigente e comunicativa que a Igreja Catlica, mais universalista ou menos exclusivista do que o protestantismo, sabe infundir nos homens, ainda quando as relaes existentes entre eles nada tenham, na aparncia, de impecveis.Captulo 3 Herana RuralToda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios urbanos. Se no foi uma civilizao agrcola o que os portugueses instauraram no Brasil, foi, sem dvida, uma civilizao de razes rurais. 1888 representa o marco divisrio entre duas pocas.Na Monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas e eram filhos dos fazendeiros quem monopolizava a poltica fundando a estabilidade das instituies nesse incontestado domnio. To incontestado que muitos representantes da classe dos antigos senhores puderam dar-se ao luxo de inclinaes antitradicionalistas e mesmo de empreender alguns dos mais importantes movimentos liberais. A eles tambm se deve o bom xito de progressos materiais que tenderiam a arruinar a situao tradicional, minando aos poucos o prestgio de sua classe e o trabalho escravo.Nunca talvez, fomos envolvidos, em to breve perodo, por uma febre to intensa de reformas como a que se registrou nos meados de 1851 a 1855. O caminho aberto por semelhantes transformaes s poderia levar a uma liquidao mais ou menos rpida de nossa velha herana rural e colonial, ou seja, da riqueza que se funda no emprego do brao escravo e na explorao extensiva e perdulria das terras de lavoura.No por simples coincidncia cronolgica que um perodo de excepcional vitalidade tenha ocorrido nos anos que se seguem imediatamente ao primeiro passo dado para a abolio da escravido, ou seja, a supresso do trfico negreiro. Passo decisivo e herico, tendo-se em conta a trama de interesses mercantis poderosos e prejuzos que a Lei Euzbio de Queirs iria golpear de face (intensificao das atividades britnicas de represso ao trfico).Essa extino de um comrcio que constitura a origem de algumas das maiores fortunas brasileiras do tempo deveria deixar em disponibilidade os capitais at ento comprometidos na importao de negros. A possibilidade de interess-los em outros ramos de negcios no escapou a alguns espritos esclarecidos. A prpria fundao do Banco do Brasil de 1851 est, segundo parece, relacionada com um plano de aproveitamento de tais recursos.Das cinzas do trfico negreiro, iria surgir uma era de aparato sem precedentes em nossa histria comercial. A nsia de enriquecimento, favorecida pelas excessivas facilidades de crdito, contaminou logo todas as classes e foi uma das caractersticas notveis desse perodo de prosperidade.Ao otimismo daqueles que, sob o regime da ilimitada liberdade de crdito, alcanavam riquezas rpidas, correspondia a perplexidade e o descontentamento de outros, mais duramente atingidos pelas conseqncias da cessao do trfico.A prpria instabilidade das novas fortunas, vinha dar boas razes a esses nostlgicos do Brasil rural e patriarcal. Eram dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas mentalidades que se opunham. A presena de tais conflitos j parece denunciar a imaturidade do Brasil escravocrata para transformaes que lhe alterassem profundamente a fisionomia. A obra comeada em 1850 s se completar efetivamente em 1888. Durante esse intervalo, as resistncias ho de partir no s dos elementos mais abertamente retrgrados, representados pelo escravismo impenitente, mas tambm das foras que tendem restaurao de um equilbrio ameaado. Enquanto perdurassem poderosos os padres econmicos e sociais herdados da era colonial e expressos principalmente na grande lavoura servida pelo brao escravo, as transformaes mais ousadas teriam de ser superficiais e artificiosas.Lei Ferraz, de 22 de agosto de 1860 (arrocho em matria de crdito, apelo realidade) apenas veio precipitar a tremenda crise comercial de 1864. Essa crise foi o desfecho normal de uma situao insustentvel nascida da ambio de vestir um pas ainda preso economia escravocrata com os trajes modernos de uma grande democracia burguesa.A opinio de que um indivduo filiado a determinado partido poltico assumiu compromissos que no pode romper pertence a um circulo de idias que a ascenso da burguesia urbana tenderia a depreciar cada vez mais. Segundo tal concepo, as faces so constitudas semelhana das famlias de estilo patriarcal, onde os vnculos biolgicos e afetivos ho de preponderar sobre as demais consideraes. Os membros se acham associados por sentimentos e deveres, nunca por interesses e idias.Dos senhores de engenho brasileiros, dos lavradores livres, obrigados ou mesmo arrendatrios, dissera algum, em fins do sculo XVIII, que formavam um corpo to nobre por natureza, que em nenhum outro pas se encontra outro igual a ele.Nos domnios rurais, a autoridade do proprietrio de terras no sofria rplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e desptica. O engenho constitua um organismo completo e que, tanto quanto possvel, se bastava a si mesmo. Com pouca mudana tal situao prolongou-se at bem depois da Independncia.Dos vrios setores de nossa sociedade colonial, foi a esfera da vida domstica aquela onde o princpio de autoridade se mostrou menos acessvel s foras corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si mesmo, no tolerando nenhuma presso de fora, o grupo familiar mantm-se imune de qualquer restrio ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princpio superior que procure perturb-lo ou oprimi-lo.Nesse ambiente, o ptrio poder virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. O quadro familiar torna-se to poderoso que sua sombra persegue os indivduos mesmo fora do recinto domstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pblica. A nostalgia dessa organizao compacta, nica e intransfervel, onde prevalecem as preferncias fundadas em laos afetivos, no podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pblica, todas as nossas atividades. A famlia colonial fornecia a idia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obedincia e da coeso entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos prprios comunidade domstica, naturalmente particularista e antipoltica, uma invaso do pblico pelo privado, do Estado pela famlia.Com o declnio da velha lavoura e a quase concomitante ascenso dos centros urbanos, os senhores rurais principiam a perder sua posio privilegiada. Outras ocupaes reclamam agora igual eminncia, ocupaes citadinas, como a atividade poltica, a burocracia, as profisses liberais.Semelhantes ocupaes couberam, em primeiro lugar, gente principal do pas, constituda de lavradores e donos de engenho. Transportada de sbito para as cidades, essa gente carregou consigo a mentalidade, os preconceitos e o teor da vida que tinham sido atributos de sua primitiva condio.No parece absurdo relacionar a tal circunstncia um trao constante de nossa vida social: a posio suprema que nela detm certas qualidades de imaginao e inteligncia, em prejuzo das manifestaes do esprito prtico ou positivo, em contraste com as atividades que requerem algum esforo fsico.O trabalho mental, que no suja as mos e no fatiga o corpo, pode constituir ocupao de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Amor frase sonora, erudio ostentosa. Inteligncia h de ser ornamento, no instrumento de conhecimento e de ao.O exerccio dessas qualidades que ocupam a inteligncia sem ocupar os braos tinha sido considerado, j em outras pocas, como pertinente aos homens nobres e livres. Opinio generalizada, de que o trabalho manual pouco dignificante, em confronto com as atividades do esprito.A qualidade particular dessa inteligncia, corresponde numa sociedade de colorao aristocrtica e personalista, necessidade que sente cada indivduo de se distinguir dos seus semelhantes por alguma virtude intransfervel, semelhante nobreza de sangue. A inteligncia , assim, um princpio antimoderno. Nada mais oposto ao sentido de todo o pensamento econmico oriundo da Revoluo Industrial do que essa primazia conferida a certos fatores subjetivos.A famlia patriarcal fornece o grande modelo por onde se ho de calcar, na vida poltica, as relaes entre governantes e governados. Esse rgido paternalismo tudo quanto se poderia esperar de mais oposto aos princpios que guiaram os homens de Estado norte-americanos na fundao e constituio de sua grande Repblica.No Brasil, o decoro que corresponde ao Poder e s instituies de governo no parecia concilivel com a importncia assim atribuda a apetites to materiais. Era preciso, para serem venerveis, que as instituies fossem amparadas em princpios consagrados pelo costume e pela opinio.A prpria revoluo de 1817 foi uma reedio da luta do senhor de engenho contra o mascate (vendedor ambulante). Vitoriosa, pouco provvel que suscitasse alguma transformao em nossa estrutura poltico-econmica. Entre os condutores do movimento, muitos pertenciam nobreza da terra, e nada indica que estivessem preparados para despir-se das antigas prerrogativas.O que era verdadeiro em 1817 no deixaria de s-lo depois de nossa emancipao poltica. Em 1847, dirigindo-se aos praieiros, que tinham movido uma campanha justa contra a predominncia de certas famlias de proprietrios rurais em Pernambuco, Nabuco de Arajo podia notar como o esprito anti-social e perigoso representado por essas famlias era um vcio que nasceu da antiga organizao e que nossas revolues e civilizao no puderam acabar.Era difcil ultrapassarem-se os limites que nossa vida poltica tinham traado certas condies especificas geradas pela colonizao portuguesa. Certas atitudes peculiares, at ento, ao patriciado rural logo se tornaram comuns a todas as classes como norma ideal de conduta. Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade da casa-grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profisses, sem excluso das mais humildes. Muitas das dificuldades observadas, desde velhos tempos, no funcionamento dos nossos servios pblicos, devem ser atribudas s mesmas causas.Com o crescimento dos ncleos urbanos, o processo de absoro das populaes rurais encontra aqui menores resistncias do que nos pases europeus.Ao menos em sua etapa inicial, esse processo correspondeu a um desenvolvimento da situao de dependncia em que se achavam as cidades em face dos domnios agrrios. Na ausncia de uma burguesia urbana independente, os candidatos s funes criadas recrutam-se entre indivduos da massa dos antigos senhores rurais, portadores de mentalidade e tendncia dessa classe. Toda a ordem administrativa do pas, durante o Imprio e mesmo depois no regime republicano, h de comportar elementos vinculados ao velho sistema senhorial.Constitumos uma estrutura sui generis. A regra, em todo o mundo e em todas as pocas, foi sempre o contrrio: a prosperidade dos meios urbanos fazendo-se custa dos centros de produo agrcola. Se no tivemos entre ns justamente o contrrio, por ter sido precrio o incremento das nossas cidades durante o perodo colonial. Naquele perodo, os centros urbanos brasileiros nunca deixaram de se ressentir da ditadura dos domnios rurais (carter prprio das nossas cidades coloniais). As funes mais elevadas cabiam nelas aos senhores de terras. So comuns em nossa histria colonial as queixas dos comerciantes, habitadores das cidades, contra o monoplio das poderosas cmaras municipais pelos lavradores. A pretenso dos mercadores de se ombrearem com os proprietrios rurais passava por impertinente.No admira que os senhores de terras fossem praticamente os nicos verdadeiros cidados na colnia. No Brasil colonial, as terras dedicadas lavoura eram a morada habitual dos grandes. S afluam eles aos centros urbanos a fim de assistirem aos festejos e solenidades. Nas cidades apenas residiam alguns funcionrios da administrao, oficiais mecnicos e mercadores em geral. Sucedia assim que, os proprietrios se descuidavam de suas habitaes urbanas, dedicando todo o zelo moradia rural, onde estava o principal de seus haveres e onde podiam receber aos hspedes e visitantes.As referncias que se acabam de citar relacionam-se com o primeiro e o segundo sculo da colonizao; j no terceiro sculo, a vida urbana parece adquirir mais carter com a prosperidade dos comerciantes nas cidades.No devia ser muito favorvel s cidades a comparao entre a vida urbana e a rural por essa poca. As pessoas de casas nobres e distintas viviam retiradas em suas fazendas e engenhos.Ainda durante a segunda metade do sculo XVIII persistia bem ntido o estado de coisas que caracteriza a nossa vida colonial desde os seus primeiros tempos. A pujana dos domnios rurais, comparada mesquinhez urbana, representa fenmeno que se instalou aqui com os colonos portugueses, desde que se fixaram terra.O predomnio esmagador do ruralismo, foi antes um fenmeno tpico do esforo dos nossos colonizadores do que uma imposio do meio.Captulo 4 O Semeador e o LadrilhadorPara muitas naes conquistadoras, a construo de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominao que conheceram. A experincia tem demonstrado que este recurso, entre todos, o mais duradouro e eficiente.A colonizao espanhola caracterizou-se pelo que faltou portuguesa: aplicao insistente em assegurar o predomnio militar, econmico e poltico da metrpole sobre as terras conquistadas, mediante a criao de grandes ncleos de povoao estveis e bem ordenados. Um zelo minucioso e previdente dirigiu a fundao das cidades espanholas na Amrica.O prprio traado dos centros urbanos na Amrica espanhola denuncia o esforo determinado de vencer e retificar a paisagem agreste: um ato definido da vontade humana, aspirao de ordenar e dominar o mundo conquistado. O trao retilneo manifesta bem esta deliberao e no por acaso que ele impera em todas essas cidades espanholas.Leis que devem reger a fundao das cidades na Amrica exibem senso burocrtico das mincias: cuidados na procura do lugar que se fosse povoar; a construo da cidade comearia sempre pela praa maior; a povoao partia nitidamente de um centro. No plano das cidades hispano-americanas, o que se exprime a idia de que o homem pode intervir com sucesso no curso das coisas e de que a histria no somente acontece, mas tbm pode ser dirigida e at fabricada.Na Amrica portuguesa, a obra dos jesutas foi uma rara exceo, pois o empreendimento de Portugal, parece tmido e mal aparelhado. Comparado ao dos catelhanos em suas conquistas, o esforo dos portugueses distingue-se pela predominncia de seu carter de explorao comercial.Os catelhanos, ao contrario, querem fazer do pas ocupado um prolongamento do seu. O fato de se fundarem vrias universidades nas possesses de Castela durante o perodo colonial, mostra o seu desejo de fazer das novas terras mais do que simples feitorias comerciais.No Brasil, a colnia simples lugar de passagem, para o governo como para os sditos. J os castelhanos, prosseguiram no Novo Mundo a luta contra os infiis; reproduziram os mesmos processos j empregados na colonizao de suas terras da metrpole depois de expulsos os discpulos de Maom. Nas regies de nosso continente que couberam aos castelhanos, o clima no oferecia grandes incmodos.A colonizao portuguesa foi litornea e tropical; a castelhana foge deliberadamente da marinha, preferindo as terras do interior e os planaltos. S em caso de haver bons portos que se poderiam instalar povoaes novas ao longo da orla martima e somente aquelas indispensveis para se facilitar a entrada, o comrcio e a defesa da terra.J os portugueses criavam todas as dificuldades s entradas adentro, receosos de que com isso se despovoasse a marinha.As cartas de doao das capitanias (segundo as quais podero os donatrios edificar junto do mar e dos rios quantas vilas quiserem) parece ser outra medida destinada a conter (segurar) a povoao no litoral caso da D. Ana Pimentel que em 1554 anulou a proibio feita pelo seu marido (donatrio de S. Vicente) aos moradores do litoral de irem tratar nos campos de Piratininga. Esta atitude foi lamentada at mesmo no sc XVIII por frei Gaspar da Madre de Deus e pelo ouvidor Cleto por ter causado prejuzo s terras litorneas da capitania.Os gneros produzidos junto ao mar podiam conduzir-se facilmente Europa e os do serto, ao contrrio, demoravam a chegar aos portos e, se chegassem, seria com altas despesas.A expanso dos pioneers (pioneiros, bandeirantes) paulistas no tinha suas razes do outro lado do oceano, podia dispensar o estmulo da metrpole e fazia-se contra a vontade e contra os interesses desta. Esses audaciosos caadores de ndios, farejadores e exploradores de riqueza, foram, antes do mais, puros avetureiros s quando as circunstancias o foravam que se faziam colonos; antes do descobrimento das minas, no realizaram obra colonizadora, salvo esporadicamente.No terceiro sc do domnio portugus que temos um afluxo maior de emigrantes para alm da faixa litornea, com o descobrimento do ouro das Gerais. Governo tenta impedir essa emigrao, mas mesmo assim ela ocorre largamente. Estrangeiros estavam excludos delas entre outros (monges, padres sem emprego, negociantes, estalajadeiros e todos que pudessem no ir ao servio exclusivo da insacivel avidez da metrpole). Pretendeu-se fazer uso de um derradeiro recurso, o da proibio de passagens para o Brasil.S ento que Portugal delibera intervir mais energicamente nos negcios de sua possesso, isso para reprimir e no para edificar alguma coisa de permanente, mas sim para absorver tudo quanto lhe fosse de proveito imediato. Se verifica isso na Demarcao Diamantina.O descobrimento das minas, sobretudo de diamantes foi o que determinou finalmente Portugal a pr um pouco mais de ordem em sua colnia com o objetivo de desfrutarem, sem maior trabalho, dos benefcios. Para tal se utilizou a tirania.A facilidade das comunicaes por via martima ou fluvial, to menosprezada pelos castelhanos, constituiu o fundamento do esforo colonizador de Portugal. Os regimentos da Coroa Portuguesa, quando sucedia tratarem de regies fora da beira-mar, insistiam sempre em que se povoassem somente as partes que ficavam margem das grandes correntes navegveis. A legislao espanhola, ao contrrio, mal se refere navegao fluvial como meio de comunicao; o transporte dos homens e mantimentos podia ser feito por terra.No Brasil, a explorao litornea praticada pelos portugueses encontrou mais uma facilidade no fato de se achar a costa habitada de uma nica famlia de indgenas, que de norte a sul falava um mesmo idioma. Onde a expanso dos tupis sofria um hiato, interrompia-se tambm a colonizao branca, salvo em casos excepcionais. Mal tinham os portugueses outra noticia do gentio do serto alm do que lhes referia a gente costeira. No importava muito aos colonizadores povoar e conhecer mais do que as terras da marinha (comunicao mais fcil com o Reino).A fisionomia mercantil dessa colonizao exprime-se no sistema de povoao litornea (ao alcance dos portos de embarque) e no desequilbrio entre o esplendor rural e a misria urbana. Essas duas manifestaes so de particular significao pela luz que projetam sobre as fases ulteriores de nosso desenvolvimento social.A obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um carter mais acentuado de feitorizao do que de colonizao. No convinha que aqui se fizessem grande obras, ao menos quando no produzissem imediatos benefcios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuzo para a metrpole. Era rigorosamente proibida a produo de artigos que pudessem competir com os do Reino.A administrao portuguesa parece relativamente mais liberal do que a das possesses espanholas. Foi admitida aqui a livre entrada de estrangeiros que se dispusessem a vir trabalhar. Aos estrangeiros era permitido percorrerem as costas brasileiras na qualidade de mercadores, desde que se obrigassem a pagar imposto de importao, e desde que no traficassem com os indgenas. S mudou em 1600, durante o domnio espanhol, quando Felipe II ordenou fossem excludos todos os estrangeiros do Brasil.Essa liberalidade dos portugueses pode parecer uma atitude negativa, mal definida, e que proviria de sua moral interessada, moral de negociantes. Pouco importa aos nossos colonizadores que seja frouxa e insegura a disciplina.A fantasia com que em nossas cidades, comparadas s da Amrica espanhola, se dispunham muitas vezes as ruas ou habitaes um reflexo de tais circunstncias. As casas se achavam dispostas segundo o capricho dos moradores. Tudo ali era irregular.O traado geomtrico jamais pde alcanar, entre ns, a importncia que veio a ter em terras da Coroa de Castela: o desenvolvimento posterior dos centros urbanos repeliu aqui esse esquema inicial para obedecer antes s sugestes topogrficas.A rotina e no a razo abstrata foi o principio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expresses de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experincias sucessivas, nem sempre coordenadas umas s outras, a traar de antemo um plano para segui-lo at o fim.A cidade que os portugueses construram na Amrica no produto mental, no chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaa na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum mtodo, nenhuma previdncia, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo palavra que implica menos falta de energia do que uma ntima convico de que no vale a pena .A expanso dos portugueses no mundo representou sobretudo obra de prudncia, de juzo discreto. Uma coragem sem dvida obstinada, mas raramente descomedida, constitui trao comum de todos os grandes marinheiros lusitanos.A grandeza herica de seus cometimentos e a importncia do alto pensamento que os presidia foram vivamente sentidas desde cedo pelos portugueses. A idia de que superavam as lendrias faanhas de gregos e romanos impe-se como lugar-comum de sua literatura quinhentista. significativo que essa exaltao literria caminhe em escala ascendente na medida em que se vai tornando tangvel o descrdito e o declnio do poderio portugus. uma espcie de engrandecimento retrocessivo e de inteno quase pedaggica.De nenhuma das maiores empresas ultramarinas dos portugueses parece lcito dizer que foi popular no reino. O prprio descobrimento do caminho da ndia, notrio que o decidiu el-rei contra a vontade dos seus conselheiros.A relativa infixidez das classes sociais fazia com que essa ascenso da burguesia mercantil no encontrasse em Portugal forte estorvo. Todos aspiravam condio de fidalgos. Os valores sociais e espirituais vinculados a essa condio, tambm se tornariam propriedade caracterstica da burguesia em asceno. medida que subiam na escala social, as camadas populares deixavam de ser portadoras de sua primitiva mentalidade de classe para aderirem dos antigos grupos dominantes. Nenhuma das virtudes econmicas ligadas burguesia pde, por isso, conquistar bom crdito. Aquelas virtudes diligncia pertinaz, parcimnia, exatido, pontualidade, solidariedade social nunca se acomodariam perfeitamente ao gosto da gente lusitana.A nobreza nova do Quinhentos era-lhe adversa: por indignas de seu estado, por evocarem uma condio social a que ela se achava ligada pela origem, no pelo orgulho. Da, seu desejo constante em romper os laos com o passado, na medida em que o passado lhe representava aquela origem, e de robustecer em si mesma o que parecesse atributo inseparvel da nobreza genuna.A inveno e a imitao tomaram o lugar da tradio quando se tinham alargado as brechas nas barreiras que, em Portugal, separavam as diferentes camadas da sociedade. Aos poucos, vo desapegando dos velhos e austeros costumes e dando moldura vistosa nova conscincia de classe. Os que agora surgem s querem andar de capa de veludo, chapus com fitas de ouro, espadas e adagas douradas, etc. Vai se perdendo o antigo brio e valor dos lusitanos. O que prezam acima de tudo os fidalgos quinhentistas so as aparncias ou exterioridades por onde se possam distinguir da gente humilde.Sobre essa paisagem de decadncia, deve situar-se a exasperao nativista de um Antnio Ferreira e o som alto de sublimado dos Lusadas.Para esse modo d entender ou de sentir, no so os artifcios, nem a imaginao pura e sem proveito, ou a cincia, que podem tornar sublimes os homens. O crdito h de vir pela mo da natureza, como um dom de Deus, ou pelo exerccio daquele bom senso amadurecido na experincia.Quanto poesia portuguesa, a ordem que aceita no a que compem os homens com trabalho, mas a que fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do semeador, no a do ladrilhador.A viso do mundo que assim se manifesta, deixou seu cunho impresso nas mais diversas esferas da atividade dos portugueses, mormente no domnio que nos interessa: o da expanso colonizadora. Nenhum estmulo vindo de fora os incitaria a tentar dominar seriamente o curso dos acontecimentos, a torcer a ordem da natureza.Ser instrutivo o confronto que se pode traar entre eles e os outros povos hispnicos. A fria centralizadora, codificadora, uniformizadora de Castela, que tem sua expresso mais ntida no gosto dos regulamentos meticulosos, vem de um povo inteiramente desunido e sob permanente ameaa de desagregao. Povo que precisou lutar, dentro de suas prprias fronteiras peninsulares. O amor uniformidade e simetria surge como um resultado da carncia de verdadeira unidade.Portugal, por esse aspecto, um pas comparativamente sem problemas. Sua unidade poltica, realizara-a desde o sculo XIII, antes de qualquer outro Estado europeu moderno, e em virtude da colonizao das terras meridionais, libertas do sarraceno, fora-lhe possvel alcanar aprecivel homogeneidade tnica. A essa precoce satisfao, explica-se como o natural conservantismo, o deixar estar o desleixo pudessem sobrepor-se tantas vezes entre eles ambio de arquitetar o futuro, de sujeitar o processo histrico a leis rgidas. Restava, sem dvida, uma fora suficientemente poderosa e arraigada nos coraes para imprimir coeso e sentido espiritual simples ambio de riquezas.Ao menos nas dependncias ultramarinas de Portugal, o catolicismo acompanhou quase sempre o relaxamento usual. Os monarcas portugueses, com o patronato nas terras descobertas, exerceram entre ns um poder praticamente ilimitado sobre os assuntos eclesisticos, segundo suas convenincias momentneas. A Igreja transformara-se em simples brao do poder secular.Como corporao, a Igreja podia ser aliada a at cmplice fiel do poder civil; como indivduos, porm, os religiosos lhe foram constantemente contrrios. As constantes intromisses das autoridades nas coisas da igreja tendiam a provocar no clero uma atitude de latente revolta contra as administraes. Subordinando clrigos e leigos ao mesmo poder por vezes caprichoso e desptico, essa situao estava longe de ser propcia influncia da Igreja e, at certo ponto, das virtudes crists na formao da sociedade brasileira. Os maus padres nunca representaram excees em nosso meio colonial. E os que pretendessem reagir contra o relaxamento geral dificilmente encontrariam meios para tanto.Captulo 5 O Homem CordialO Estado no uma ampliao do crculo familiar nem uma integrao de certos agrupamentos, de certas vontades particulares, de que a famlia o melhor exemplo. Entre o crculo familiar e o Estado existe uma descontinuidade e at uma oposio. Pertencem a ordens diferentes em essncia.A ordem familiar, em sua forma pura, abolida por uma transcendncia. No entender isso gera crises graves que podem afetar profundamente a sociedade.Nas velhas corporaes formavam-se como se uma s famlia, partilhavam-se das mesmas privaes e confortos. Foi o moderno sistema industrial que suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre empregadores e empregados e estimou os antagonismos de classe. Para o empregador moderno o empregado transforma-se em simples nmero: a relao humana desapareceu.Persistem algumas destas famlias retardatrias concentradas em si mesmas, mas tendem a desaparecer ante as exigncias imperativas. Teorias modernas tendem a separar o indivduo da comunidade domestica. Essa separao representa as condies primrias para qualquer adaptao vida prtica.A formao da sociedade segundo conceitos atuais tende a ser precria onde quer que prospere a idia de famlia, principalmente a de tipo patriarcal.A formao de homens pblicos capazes no Brasil se deveu ao fato de muitos jovens terem sado do seio de suas famlias, rompendo-se assim os laos familiares.No Brasil, onde imperou o tipo primitivo de famlia patriarcal, o desenvolvimento da urbanizao ia acarretar um desequilbrio social, cujos efeitos permanecem.Aqueles que foram formados por tal ambiente familiar patriarcal tinham dificuldade de compreender a diferenas entre o pblico e o privado. Para o funcionrio patrimonial a gesto poltica se apresenta como assunto de interesse particular, o que no deveria acontecer no verdadeiro Estado burocrtico. Neste velho estado de coisas, a escolha das pessoas para exercer funo pblica se d mediante confiana pessoal e no segundo critrios de capacidade.Falta a ordenao impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrtico. As relaes que se criam na vida domstica sempre forneceram o modelo obrigatrio de qualquer composio social entre ns.A contribuio brasileira para a civilizao: o homem cordial.Caractersticas do homem cordial: sente pavor em viver consigo mesmo; para ele, a parcela social, perifrica no brasileiro tende a ser o que mais importa; brasileiros sentem dificuldade de uma reverncia prolongada ante um superior; reverncia sim, desde que no suprimam possibilidade de convvio mais familiar; para outros manifestao normal de respeito, para ns desejo de intimidade; esse modo de ser reflete-se em nossa inclinao para emprego de diminutivos; tendncia de omisso do nome de famlia prevalecendo nome individual; uma tica de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que poucos estrangeiros entendem com facilidade; tratamento dos santos com uma intimidade quase desrespeitosa e o prprio Deus um amigo familiar, domstico e prximo; horror s distncias interpessoais e at no campo espiritual; O rigor do rito se afrouxa e se humaniza.Captulo 6 Novos TemposNossa conduta denuncia um apego singular aos valores da personalidade configurada pelo recinto domstico. Cada indivduo afirma-se ante os seus semelhantes indiferente lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas.S raramente nos aplicamos de corpo e alma a um objeto exterior a ns mesmos. E quando fugimos norma por simples gosto de retirada, descompassado e sem controle, jamais regulados por livre iniciativa. Somos notoriamente avessos s atividades morosas e montonas em que o sujeito se submeta deliberadamente a um mundo distinto dele: a personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador.No trabalho no buscamos seno a prpria satisfao, ele tem o seu fim em ns mesmos e no na obra. As atividades profissionais so, aqui, meros acidentes na vida dos indivduos.Novos bacharis s excepcionalmente faro uso na vida prtica dos ensinos recebidos. Inclinao geral para as profisses liberais. Prestgio das profisses liberais. No vcio do bacharelismo ostenta-se nossa tendncia para exaltar a personalidade individual como valor prprio. A seduo exercida pelas carreiras liberais vincula-se ao nosso apego quase exclusivo aos valores da personalidade. No outro o motivo da nsia pelos meios de vida definitivos, que do segurana exigindo um mnimo de esforo pessoal (empregos pblicos).Amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genricas, prestgio da palavra escrita, da frase lapidar, do pensamento inflexvel, o horror ao vago, ao hesitante, ao fluido, que obrigam colaborao, ao esforo, a certa dependncia e abdicao da personalidade, tem determinado nossa formao espiritual. Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental fatigante, as idias claras, lcidas, definitivas, que favorecem uma espcie de atonia da inteligncia, parecem-nos constituir a verdadeira essncia da sabedoria.O sucesso do positivismo entre ns explica-se por esse repouso que permite ao esprito as definies do sistema de Comte. A importncia deste sistema prende-se sua capacidade de resistir fluidez e mobilidade da vida. No inspiraram qualquer sentido positivo aos nossos negcios pblicos. As virtudes que ostentavam no eram foras com que lutassem contra polticos.Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber at que ponto se ajustam s condies da vida brasileira e sem cogitar das mudanas que tais condies lhe imporiam.O liberalismo democrtico jamais se naturalizou entre ns. S assimilamos esses princpios at onde coincidiram com a negao de autoridade confirmando nosso horror s hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes.A democracia entre ns sempre foi um mal entendido. Aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomod-la aos seus direitos e privilgios (os mesmos privilgios que tinham sido na Europa o alvo da luta da burguesia contra a aristocracia). Assim puderam incorporar situao tradicional alguns lemas que pareciam os mais acertados para a poca e exaltados nos livros e discursos.Os movimentos aparentemente reformadores no Brasil (independncia, conquistas liberais, idia republicana) partiram quase sempre de cima para baixo, vieram quase sempre de surpresa, o povo recebeu-os com displicncia ou hostilidade.No emanavam de uma maturidade plena do povo que ficou indiferente a tudo.Migrao da famlia real portuguesa em 1808 acarretou: persistncia dos os velhos padres coloniais ameaada; crescimento dos centros urbanos que abriu novos horizontes que iriam perturbar antigos deleites da vida rural. Muitos no souberam adaptar-se s mudanas. Comeou a patentear-se a distncia entre o elemento consciente e a massa brasileira. Transio do convvio no campo para as cidades provavelmente estimulou crise em nossos homens.O amor s letras no reagiu contra a nossa realidade cotidiana, no tratou de corrigi-la; esqueceu-a, detestou-a. Mostrou indiferena ao conjunto social. Nossos homens de idias em homens de palavras e livros; no saiam de si mesmos, de seus sonhos e imaginaes. Era o modo de no nos rebaixarmos, de no sacrificarmos nossa personalidade no contato de coisas mesquinhas e desprezveis. Acabaramos assim por esquecer o que realmente interessava para nos dedicarmos a motivos que davam status: palavra escrita, retrica, etc.Com o declnio do mundo rural e de seus representantes, essas novas elites estariam indicadas para o lugar vago. Nenhuma classe achava-se to aparelhada para o mister de preservar o teor aristocrtico de nossa sociedade tradicional como a das pessoas de imaginao cultivada e de leituras.Existiam alguns traos por onde nossa intelectualidade revelava sua misso conservadora e senhorial. Entre eles a tendncia para se distinguir no saber um instrumento capaz de elevar seu portador acima do comum dos mortais (a classe estudada, privilegiada apenas se gabava de seu conhecimento, mas no o usava para a transformao da realidade que a cercava!).Quanta intil retrica se tem esperdiado para provar que todos os nossos males ficariam resolvidos se estivessem amplamente difundidas as escolas primrias e o conhecimento do ABC. A simples alfabetizao em massa no constitui talvez um benefcio sem par. Desacompanhada de outros elementos fundamentais da educao, que a completem, no tem nenhum valor.Invencvel desencanto em face das nossas condies reais. Quando se fez a propaganda republicana, julgou-se introduzir, com o novo regime, um sistema mais acorde com as supostas aspiraes da nacionalidade. Na realidade, porm, foi ainda um incitamento negador o que animou os propagandistas: o Brasil devia entrar em novo rumo, porque se envergonhava de si mesmo, de sua realidade biolgica.Nossa Repblica foi alm do Imprio. Neste, o principio do Poder Moderador corrompeu-se bem cedo, graas inexperincia do povo, servindo de base para nossa monarquia tutelar, compreensvel onde dominava um sistema agrrio patriarcal. A diviso poltica em dois partidos, menos representativos de idias do que de pessoas e famlias, satisfazia nossa necessidade fundamental de solidariedade e luta. O Parlamento tinha uma funo a cumprir dentro do quadro da vida nacional, dando a imagem visvel dessa solidariedade e luta.Captulo 7 Nossa revoluoAbolio, Proclamao da Repblica e outros acontecimentos estabelecem uma revoluo lenta, sem grande alarde.Processo demorado. Novo sistema com centro de gravidade no mais nos domnios rurais e sim nos centros urbanos; cai tambm entre ns a influncia dos portugueses.Definhamento das condies que estimularam a formao de uma aristocracia rural poderosa.Diminuio da importncia da lavoura do acar e sua substituio pela do caf.Evoluo para o predomnio urbano aberto caminho para transformao de grandes propores.Urbanizao contnua destruiu esteio rural.Estado no precisa ser desptico. Povo brasileiro pacfico. Aparelhamento poltico se empenha em desarmar as expresses menos harmoniosas e em negar toda espontaneidade nacional. Poltica constitui-se em classe artificial estranha a todos os interesses. O brilho das frmulas no passam de pretexto para as lutas de conquista e conservao de posies.Liberdade, igualdade e fraternidade (ideais da Revoluo Francesa) sofreram a interpretao que pareceu ajustar-se melhor aos nossos velhos padres patriarcais e coloniais. As mudanas que inspiraram foram antes de aparato do que de substncia.Necessidade de se vencer a anttese liberalismo-caudilhismo para que haja superao da doutrina democrtica. Esta vitria s se consumar se entre ns se liquidarem os fundamentos personalistas e aristocrticos.Necessitamos, no de revoluo horizontal, remoinho de contendas polticas, mas de revoluo vertical que trouxesse tona elementos mais vigorosos, que promovesse a amalgamao, no o expurgo das camadas superiores que ainda contam com bons homens.Contra esse movimento provvel que se erga resistncia dos adeptos do passado que se traduza em formas de expresso social capazes de comprometer as transformaes.O aparente triunfo de um princpio jamais significou no Brasil mais do que o triunfo de um personalismo sobre outro.Entre ns, onde quer que o personalismo ou a oligarquia conseguiu abolir as resistncias liberais, assegurou-se uma estabilidade poltica aparente. A existncia de tais situaes chega a fazer esquecer que os regimes discricionrios, em mos de dirigentes providenciais e irresponsveis, representam um disfarce grosseiro, no uma alternativa, para a anarquia.A idia de uma espcie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivduos e presidindo os seus destinos, dificilmente inteligvel para os povos da Amrica Latina (homem cordial impede o entendimento dessa idia). freqente imaginarmos prezar os princpios democrticos e liberais quando, em realidade, lutamos por um personalismo ou contra outro.Apesar de tudo, no justo afirmar nossa incompatibilidade com os ideais democrticos.O nosso homem cordial encontraria uma possibilidade de articulao entre seus sentimentos e as construes dogmticas da democracia liberal nas idias da Revoluo Francesa que encontram apoio em nossa noo da bondade natural.Todavia, com a simples cordialidade no se criam os bons princpios. necessrio algum elemento normativo slido para que possa haver cristalizao social.Existem outros remdios, alm da tirania, para a consolidao e estabilizao de um conjunto social e nacional.No faltam exemplos de ditadores que realizam atos de autoridade perfeitamente arbitrrios e julgam, sem embargo, fazer obra democrtica. No impossvel que o fascismo de tipo italiano, a despeito de sua apologia da violncia, chegue a alcanar sucesso entre ns (Getlio Vargas) O sistema que instituiu para sustentar a estrutura imposta com violncia pretende compor-se dos elementos vitais de doutrinas que repele em muitos dos seus aspectos (contradio).No caso do fascismo, a variedade brasileira ainda trouxe a agravante de se poder passar por uma teoria meramente conservadora, empenhada no fortalecimento das instituies sociais, morais e religiosas de prestgio indiscutvel, e tendendo, assim, a tornar-se praticamente inofensiva aos poderosos, quando no apenas o seu instrumento. Tudo faz esperar que o integralismo ser, cada vez mais, uma doutrina acomodatcia, avessa aos gestos de oposio e partidria sistemtica da Ordem, quer dizer, do Poder Constitudo (fascista). Segue neste ponto, a grande tradio brasileira, que nunca deixou funcionar os verdadeiros partidos de oposio, representativos de interesses ou de ideologias.O liberalismo ainda a nica elaborao pela qual nos encontraremos com a nossa realidade. As formas superiores da sociedade (o Estado, a economia formas espirituais) devem ser como um contorno congnito a ela e dela inseparvel: emergem continuamente das suas necessidades especficas e jamais das escolhas caprichosas.Devemos nos livrar do demnio pretensioso que se ocupa em obscurecer aos nossos olhos estas verdades singelas, pois inspirados por ele, os homens criam novas preferncias e repugnncias que raramente so boas.