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C AD . S AÚDE C OLET ., R IO DE J ANEIRO , 16 (3): 483 - 502, 2008 – 483 REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A PARTIR DA EXPERIÊNCIA SESPIANA ENTRE 1942 E 1964 Refle��s �e �ea� e�a� fr�m �e Sesp�a� exper�e�e �e�ee� 942 a�964 Estêvão Rafael Fernandes 1 RESUMO Neste artigo busca�se recuperar o percurso das ações de Educação em Saúde de� senvolvidas no âmbito do Serviço Especial de Saúde Pública desde sua criação, em 942, até o golpe militar de 964. Trata�se de uma reflexão, à luz das experiências daquela instituição, sobre o atual modelo de educação em saúde implementado como política pública. O que se conclui é que muitas das práticas atualmente implementadas partem das mesmas metodologias, conceitos e pressupostos que norteavam a ação Sespiana naquela época e que se mantêm ainda hoje: a educação em saúde funcio� nando como reforçadora dos padrões de saúde concebidos pelo Governo; o discurso de culpabilização da vítima; e a educação pensada simplesmente como processo de informação para a prevenção. PALAVRAS-CHAVE Educação em saúde, história, políticas públicas de saúde ABSTRACT The aim of this article is to recoup some of the actions in Health Education deve� loped in the scope of the Special Service of Public Health since its creation in 942 until the military coup in 964. From the experiences of that institution, the author reflects about the current model of health education implemented as public policy. Our conclusion is that many of the practices currently employed are based on the same methodologies and concepts that guided the Sespian action at that time: the education in health working as stiffener of the standards of health conceived by the Government: the speech of culpability of the victim; and the education thought simply as process of information for prevention KEY WORDS Health education, history, health public policy 1. INTRODUÇÃO Este artigo parte do pressuposto de que uma instituição – o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) presente no cenário público brasileiro por 49 anos �ra� em Sa�e �e�va �a Es�a Na�a�e Sa�e �a Sér�r�a�r� e �r�fess�r S�s�ra� em Sa�e �e�va �a Es�a Na�a�e Sa�e �a Sér�r�a�r� e �r�fess�r S�s�epar�ame�e �r�p��a �a U�vers��a�e �e�era�m�e�se. E��.: Gav�e�x� 87 - �p. 808 I�ara� N�eró- RJ. �ep. 2420-090. E-ma�: es�eva�@e�sp.fi�r�.�r

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ReflexõeS SobRe eduCação em Saúde e a paRtiR da expeRiênCia SeSpiana entRe 1942 e 1964

Refle�����s �� ��e �ea��� e���a���� fr�m ��e Sesp�a� exper�e��e �e��ee� ��942 a�� ��964

Estêvão Rafael Fernandes1

Resumo

Neste artigo busca�se recuperar o percurso das ações de Educação em Saúde de�senvolvidas no âmbito do Serviço Especial de Saúde Pública desde sua criação, em ��942, até o golpe militar de ��964. Trata�se de uma reflexão, à luz das experiências daquela instituição, sobre o atual modelo de educação em saúde implementado como política pública. O que se conclui é que muitas das práticas atualmente implementadas partem das mesmas metodologias, conceitos e pressupostos que norteavam a ação Sespiana naquela época e que se mantêm ainda hoje: a educação em saúde funcio�nando como reforçadora dos padrões de saúde concebidos pelo Governo; o discurso de culpabilização da vítima; e a educação pensada simplesmente como processo de informação para a prevenção.

PalavRas-chave

Educação em saúde, história, políticas públicas de saúde

AbstRact

The aim of this article is to recoup some of the actions in Health Education deve�loped in the scope of the Special Service of Public Health since its creation in ��942 until the military coup in ��964. From the experiences of that institution, the author reflects about the current model of health education implemented as public policy. Our conclusion is that many of the practices currently employed are based on the same methodologies and concepts that guided the Sespian action at that time: the education in health working as stiffener of the standards of health conceived by the Government: the speech of culpability of the victim; and the education thought simply as process of information for prevention

Key woRds

Health education, history, health public policy

1. IntRodução

Este artigo parte do pressuposto de que uma instituição – o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) – presente no cenário público brasileiro por 49 anos

�� �����ra��� em Sa��e ���e��va �a Es���a Na����a� �e Sa��e ������a Sér��� �r���a�����r��� e �r�fess�r S��s������ �� �����ra��� em Sa��e ���e��va �a Es���a Na����a� �e Sa��e ������a Sér��� �r���a�����r��� e �r�fess�r S��s������ �� �epar�ame��� �e ���r�p�����a �a U��vers��a�e �e�era� ���m��e�se. E��.: Gav��� �e�x����� 87 - �p. 808�� I�ara��� N��eró� - RJ. �ep. 242�0-090. E-ma��: es�eva�@e�sp.fi��r���.�r

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(��942���99��) pode nos ensinar sobre a forma como se faz educação em saúde no país. Nossa análise abrangerá o período desde sua fundação até o golpe militar de ��964, quando as ações educativas levadas a cabo no âmbito da instituição entram em colapso. Esse período nos permitirá vislumbrar como políticas de educação em saúde estão propensas às mais diversas influências políticas, histó�ricas, sociais e de que maneira novas propostas pedagógicas são integradas no cotidiano de sua gestão.

Além de recuperar uma parte importante da história sanitária do país, trata�se de um primeiro esforço no sentido de sistematizar algumas fontes interessantes de pesquisa que jazem perdidas em estantes de bibliotecas. A história da saúde pública é cada vez mais importante para que gestores e pesquisadores consigam se perceber e perceber as suas práticas em perspectiva. O que se percebe a partir de uma abordagem retrospectiva de um fenômeno como a educação em saúde, por exemplo, é que vários erros cometidos há décadas ainda o são, sob novas roupagens.

Nota�se, ao ler os boletins do SESP, que as metodologias advindas das primeiras décadas do século passado por influência do sanitarismo norte�americano ainda são feitas no Brasil: o que se faz no país, do ponto de vista de políticas públicas de educação em saúde, não pode ser, com raríssimas exceções, considerado como “educação”, no sentido pleno. Educar pressupõe diálogo, construção, concepções que dêem ao educando condições críticas de se pensar em um contexto histórico e social mais amplo, bem como se perceber como cidadão. Espantosamente, re�cuperando a literatura do Sesp, vemos a passagem de paradigmas educacionais civilizatórios, na década de ��940, para idéias de educação popular baseadas em Paulo Freire, na década de ��960. Tais experiências podem e devem ser recupe�radas, sendo a prova de que a novas propostas educacionais em saúde são, sim, possíveis enquanto políticas de governo.

2. “a volta do exPedIcIonáRIo”: educação em saúde nos PRImeIRos anos do SESP

Em ��942 ocorre a formação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), num conjunto de acordos entre Brasil e Estados Unidos como parte dos esfor�ços de guerra. Em princípio, atuando na Amazônia, como forma de garantir o fornecimento de borracha necessário aos equipamentos utilizados pelos soldados norte�americanos nas frentes de batalha. Apesar de ter contado essencialmente com técnicos dos Estados Unidos na direção durante seus primeiros anos, é ne�cessário pensar a formação do SESP em um contexto essencialmente nacionalista, discurso também fortemente presente na educação na época:

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R e f l e x õ e S S o b R e e d u C a ç ã o e m S a ú d e e a p a R t i R d a e x p e R i ê n C i a S e S p i a n a e n t R e 1942 e 1964

“Assim nasceu o Serviço Especial de Saúde Pública, mais conhecido como SESP. Nasceu em um ano de guerra, das necessidades cruéis da 2.ª Guerra Mundial, nos instantes em que as forças totalitárias tentavam esmagar as forças democráticas do mundo. Em sua infância teve justamente a tarefa de defender a saúde dos homens que precisavam de saúde para poder produzir, de homens que necessitavam de saúde para se tornarem capazes de fornecer aos arsenais da democracia, o material necessário para a defesa do bem-estar dos povos” (Bastos, ��996, p.32).

Em dezembro de ��943 surge a Divisão de Educação Sanitária do SESP, dirigida pelo Dr. Marcolino Gomes Candau, que permaneceria no cargo até agosto de ��944. Nesse momento assume o cargo o antropólogo norte�americano Charles Wagley; em princípio com um programa voltado aos escolares, setores populares da população, periferias urbanas e treinamento de pessoal (Oshiro, ��988 p.����3). Como escreveria Wagley,

“o problema da alimentação, bem como muitos outros problemas de saúde do povo, é principalmente um problema de educação (...). A educação sanitária, como qualquer outra forma de educação em qualquer campo, não deve apenas visar à interpretação dos fatos científicos para o povo, mas deve trabalhar para modificar seus hábitos e atitudes relativos à saúde. Com freqüência o indivíduo não usa os alimentos que estão ao seu dispor (...) porque seus hábitos e costumes tradicionais lhes ensinaram de maneira diferente. Estes costumes e hábitos que melhor são ‘meias verdades’, ou completamente falsos, constituem em certas ocasiões barreiras ao processo educativo” (Charles Wagley, “A Educação sanitária no Brasil”, Boletim do SESP, 25, apud Oshiro, ��988, p.����4).

Neste sentido, o SESP estava impregnado pelos valores do sanitarismo norte�americano. Para Wagley, uma vez que a massa amazônica era analfabeta, a fim de romper com o círculo vicioso da doença e da pobreza, o ideal seria empregar meios aos quais, hoje, chamaríamos de “multimídia” – de acordo com tais autores, contudo, o uso de tais meios carregava, em si, outras intenções:

“A produção e a elaboração de materiais didáticos assumem relevância notadamente a partir de 1944, sendo que, de início se recorre a filmes destinados à América Latina, produzidos por Walt Disney, contratado pelo Instituto de Assuntos Interamericanos para essa produção. Esses filmes produzidos com recursos tecnológicos sofisticados, além de abordarem temas de saúde em seus aspectos técnico-científicos, revelam forte componente ideológico, visando à direção intelectual e à obtenção de consenso das ca-madas populares. Numa perspectiva maniqueísta, contrapõem a incidência de doenças

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ligadas à pobreza [...] com condições de vida saudável [...]. Em outras palavras, os filmes mostram o etnocentrismo norte-americano que contém a idéia de missão civilizadora sobre os países em desenvolvimento” (Oshiro, ��988, p.����7).

Mesmo após o fim do Estado Novo, o SESP mantém essas mesmas idéias e suas práticas refletem tal visão. Como observam alguns de seus técnicos, em um artigo sobre o uso do cinema e do diafilme sonorizado na Amazônia,

“O caboclo da Amazônia, diante da tela, não raciocina com a devida rapidez para compreender o que lhe é apresentado. Outro fator que contribui para a lentidão de raciocínio do habitante do interior, de um modo geral, é a maneira de observar a tela. O caboclo observa as cenas por segmentos, prestando muitas vezes atenção a determinadas minúcias, o que prejudica a visão do conjunto e a compreensão do assunto, mormente quando as cenas se sucedem rapidamente” (Pinheiro et al., ��949, p. 922).

A utilização de recursos audiovisuais não servia como mero facilitador da educação do povo, mas funcionava, de certa forma, como um fim em si mesmo. Naquele contexto político serviam, dentre outras coisas, para mostrar à população que o Estado, ao possuir meios tecnológicos, dispunha de legiti�midade para governar o povo, impondo um abismo simbólico de tal maneira que à massa, analfabeta e sem domínio técnico, caberia apenas concordar com o Estado onisciente. Além disso, legitimavam seu conhecimento em detrimento dos saberes populares: se quem possuía a informação era o médico, e quem possuía a legitimidade eram os técnicos do Estado, era coerente pressupor, pois, que o saber local não se constituísse em nada mais que “senso comum”, ou superstição. A idéia de que o conhecimento possuía mão dupla contrapunha�se ao método posto em prática pelos órgãos de saúde pública no Brasil. Os filmes e cartazes propunham, ainda, uma idéia de civilização aos moldes norte�ame�ricanos, carregadas de conteúdo desenvolvimentista. Finalmente, esse tipo de ação educativa funcionava como propaganda da ideologia estatal e tinha, em si mesma, um cunho coercitivo mais sutil do que o policialismo sanitarista do começo do século.

Tais temas mereceriam um trabalho de fôlego a parte, não sendo este o propósito ou o espaço ideal para tal discussão. Contudo, dada a importância de tais questões, talvez valha a pena abrir um espaço para explicar, ao leitor, o que levou o Estado brasileiro a agir dessa maneira – para isso, retrocederemos até a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, em novembro de ��930, pelo Presidente Getúlio Vargas. Como nota Bueno (2005,

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p. ��40), a criação de um Ministério que juntasse Educação e Saúde desagradou profundamente médicos e sanitaristas, que desejavam maior cuidado às questões ligadas à Saúde Pública.

Foi visível no período que se segue (��930�45) o deslocamento da priorida�de das ações de saúde pública, centrados no modelo sanitarista, para aquelas centradas no modelo previdenciário, num modelo de prática médica individual (Pinheiro, ��992, p. 42) que viria a se consolidar no Brasil a partir das décadas de ��960 e 70, principalmente. Como aponta a autora, “para ilustrar o deslocamento de prioridade da Saúde Pública é interessante observar que as verbas destinadas a estas atividades alcançaram durante quase toda a década de 1910 e 1920 valores equivalentes a 10 ou 15% dos orçamentos federais e estaduais, em contraposição aos valores de 1 e 4% alcançados no pós-1930” (Pinheiro, ��992, p. 42).

Como Bueno observa (Bueno, 2005, p. ��4��), “a Saúde Pública perde gra-dativamente prestígio, com a inserção das questões referentes à saúde do trabalhador e do ambiente de trabalho dentre as atribuições do Ministério do Trabalho, sendo retiradas do Departamento de Saúde”.

Em grande medida, estas ações fazem parte de uma série de políticas traba�lhistas contempladas no governo Vargas para dar conta da nova ordem econômica que passava a vigorar no país: se a Primeira República tinha um perfil ligado aos criadores de gado e plantadores de café, agora a economia era direcionada ao operariado crescente dos centros urbanos. O Estado passa a assumir seu caráter “civilizador” e, neste sentido, a educação assume um papel fundamental – o que virá a ser acentuado durante o Estado Novo, a partir de ��937.

Em grande parte, o discurso hegemônico era no sentido de que a educação possuía, sim, tal caráter transformador do indivíduo e da sociedade: “Getúlio Vargas afirmava em seu discurso de posse na chefia do Governo Provisório que em seu ‘programa de reconstrução nacional’ havia a necessidade da ‘difusão intensiva do ensino público, principalmente o técnico�profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estímulo e colaboração direta com os estados. Para ambas as finalidades, justificar�se�ia a criação de um Ministério de Instrução e Saúde Pública” (Machado et al., 2006). No mesmo caminho está o discurso de posse de Francisco Campos, no Novo Ministério: “Sanear e educar – eis o primeiro dever da Revolução” (Bueno, 2005, p. ��40).

Aliás, não podemos nos esquecer da influência de Francisco Campos neste período. Foi ele o jurista responsável pela elaboração da Constituição de ��937, da qual retirara do texto ser educação um direito de todos. Em seu livro “O Estado Nacional”, diz o autor que “a educação é um processo que deve adaptar o homem às novas situações, típicas de uma época de transição” (Schartzman, 2000, p. 80) – transição essa, para Campos, entre as “formas tradicionais” e as “formas inéditas”. Isso ficará

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claro ao longo da implementação das políticas educacionais do Estado Novo: a nova educação deveria preparar o brasileiro para a realidade industrial que se impunha ao país.

O Brasil se modernizava, e isso virá a ter duas conseqüências para a educação sanitária no país. Em médio prazo, veríamos o país adotando um paradigma de saúde medicalizante e individual, vendo a saúde pública ter muitas de suas polí�ticas absorvidas por outros setores, como Ministério do Trabalho e Previdência Social, por exemplo. Outra conseqüência viria a ser a própria forma a partir da qual a educação em saúde no Brasil viria a se basear, no nível das idéias.

Segue Schartzman: “[para Francisco Campos] o mundo moderno é um mundo onde o que predomina é a cultura de massa, que acaba gerando a mentalidade de massa, uma nova forma de integração que se origina nos mecanismos de contágio via ampliação e difusão dos meios de comunicação. [...] Numa época em que as forças estão desencadeadas é preciso que se construa um mundo simbólico capaz de arregimentá�las, unificando�as de forma decisiva, de tal forma que esse mundo simbólico se adapte “às tendências e aos desejos das massas humanas”. É o que o autor chama de “irracionalidade” (Schartzman, 2000, p. 80).

Citando Campos (idem), “o irracional é o instrumento da integração política total, e o mito que é a sua expressão mais adequada, a técnica intelectual de utilização do inconsciente coletivo para o controle político da nação”. Eis o porquê de afirmarmos que a educação, neste período, possui caráter modelador: se a massa não sabe o que quer, não cabe a ela poder escolher – nisto, qual seria o sentido da democracia? Como o autor observa, “o grande perigo para Francisco Campos consiste na preservação do equívoco sério que é o de se educar para a democracia, quando esta já está sofrendo uma revisão substancial em seus termos. Sua preocupação é com a integração política, tendo em vista o crescimento das massas e a necessidade de arregimentá�las segundo um ideário comum” (p. 80�8��). Nessa nova realidade, que o próprio Campos chama de “transição”, os meios midiáticos de propaganda viriam a desenvolver um papel fundamental.

A pedagogia da época se volta para a formação deste novo homem brasileiro, padronizado e “moderno”, impondo�lhe toda a sorte de símbolos e ideário nacional. Tal qual na Itália ou na Alemanha, Vargas deu especial atenção à juventude, o que se reflete nas políticas de educação sanitária da época e mesmo nas fotos e carta�zes veiculadas pelo DIP. Ao Estado não cabia formar seres pensantes, mas, quase replicando o sistema fordista de produção, a idéia era formar mão�de�obra.

Evidentemente tais métodos não eram unanimidade, mas eram hegemônicos. Enquanto a educação sanitária teve destaque como política pública, tal fato se deu, em larga medida, devido ao conteúdo a ela vinculado. O foco do Estado estava no discurso desenvolvimentista para legitimar o ideário da construção da

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nação. O povo a quem as ações educativas se destinavam era considerado quase sempre como um impedimento à prática educativa, e não como parte integrante do processo pedagógico. Como escreveria Bastos em ��996, sobre o material utilizado até então (folhetos, cartazes etc.), “o emprego desses materiais como meios em educação para a saúde tinham alcance muito limitado, devido aos altos índices de analfabetismo das populações, o baixo nível cultural, a ausência de hábitos de leitura e as precárias condições de vida dessas populações” (Bastos, ��996, p. 345). Ora, a culpa era delas, se suas con�dições eram precárias, se eram analfabetas ou se tinham “baixo nível cultural” – o que nos remete claramente à noção de culpabilização da vítima (Valla, 200��), presente em boa parte das campanhas de educação em saúde ainda hoje. Nesse sentido, a questão não era a falta de políticas de alfabetização, ou a melhoria da condição de vida daquelas populações, mas sim de sua “pobreza cultural”. O Estado se escusa assim de qualquer responsabilidade sobre ações concretas, tendo passado algum filme sobre higiene ou pregado no posto de saúde algum cartaz sobre higiene – práticas ainda muito utilizadas no país.

Os meios utilizados pela Divisão de Educação Sanitária do SESP, sob a direção de Candau e de Wagley incluíam, além de impressos (cartazes, panfletos, folhetos), a rádio�teatro de saúde, a partir de 25 de julho de ��945. Como descreve Bastos (��996, p. 347), o programa ia ao ar às quartas�feiras, entre ��9:��5h e ��9:30h, e seus programas eram gravados em discos de ��6 polegadas e passados em outras emissoras do país, bem como em serviços de alto�falantes. Foram exibidos um total de 26 programas organizados em formatos de histórias. Apesar de Bastos afirmar que a divulgação em saúde era feita “no meio da história, sem qualquer doutrinação ou ensino direto”, os títulos de alguns dos “radio�dramas” são, no mínimo, sugestivos: “O drama de uma família” (sobre malária); “Escola risonha e franca” (sobre a escola e o posto de saúde); “Doze a zero” (sobre latrinas); “Dr. Roberto janta conosco” (mortalidade infantil); “Dr., salve o meu netinho”; e “A volta do expedicionário” (sobre o guarda sanitário).

Outros meios eram o slide-sound ou “lanterna mágica sonorizada” (um pro�jetor de slides com um dispositivo de som adaptado, a partir do qual, quando se mudava um slide, os sons também iam se alterando) e o cinema. Enquanto o primeiro era mais utilizado em comunidades afastadas, no meio rural; o segundo era voltado ao público urbano. Os motivos para isso eram inúmeros: a lanterna mágica era de fácil transporte e não necessitava de tantos recursos quanto um projetor de cinema, por exemplo. Contudo, a mentalidade vigente no SESP era que, como pudemos perceber pelo artigo de Pinheiro et al. (��95��), o homem do campo padecia de certa torpeza mental. Bastos, em ��996 (45 anos depois dos escritos de Pinheiro), escreve que “o homem do campo não raciocinava com a devida rapidez para compreender o que o filme apresentava” (Bastos, ��996, p. 348�349).

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Em larga medida, tais afirmações são ainda forte demonstração de idéias raciais do início do século XX (cf. Hochman & Lima, 2004). O embate passava a ser entre ciência, tecnologia, conhecimento e a noção de “progresso” por um lado, e natureza, inferioridade, brutalidade e indolência de outro. Se, seguindo com o argumento de Hochman e Lima, Jeca Tatu era o estereótipo do sertanejo nas primeiras décadas do século, o caboclo da Amazônia era um Jeca revisto a partir de noções de modernidade e desenvolvimento. Na visão do Estado, a educação sanitária seria um dos meios de corrigir a brutalidade daqueles homens a fim de transformá�los em cidadãos trabalhadores, inseridos no modo capitalista de produção.

Izaura Barbosa Lima, em um artigo publicado na Revista de Higiene e Saúde Pública em ��949 (intitulado Educação sanitária, professora e enfermeira), ao dissertar sobre a relação entre os fazeres da professora e da enfermeira, escreve que cabe à primeira se ocupar da “alfabetização da criança até a completa formação do seu espírito de civismo”, e à segunda, “cuidando do preparo da mentalidade do infante, pré�escolar e do escolar de modo a entregá�los à professora para lapidá�los carinhosamente”. Conclui ela: “Oxalá [enfermeiras e professoras] resolvam logo a se entender melhor a fim de que o material humano seja manuseado com mais amor e espírito de brasilidade. Será uma obra de absoluto respeito pelo engrandecimento de nossa pátria” (Lima, ��949, p. 70). Isso se passa após o fim do Estado Novo, e é importante para se ter uma idéia do quanto a educação sanitária não se limitava aos postos de saúde e às visitadoras sanitárias.

Um bom exemplo disso era a existência dos Clubes de Saúde, a partir de ��943 – o primeiro foi fundado em Santarém (PA), com ��29 crianças. Em ��946 já havia, segundo Bastos, ��9 desses clubes com 2.000 escolares, que desenvolviam projetos de hortas caseiras, bibliotecas escolares e distribuição de impressos. Dentre as finalidades dos Clubes de Saúde, segundo o modelo de estatuto preconizado pelo SESP, estavam: estimular o conhecimento e a prática dos hábitos de higiene; estimular a educação moral, cívica e social; formar uma consciência coletiva indis�pensável ao progresso da comunidade etc. (Bastos, ��996, p. 5��3). Além dos clubes, o SESP ministrava palestras para “mães, gestantes e curiosas” sobre puericultura, higiene etc. Todas essas idéias eram provenientes dos médicos que faziam cursos nos EUA, ou mesmo dos diretores norte�americanos: a inspiração dos Clubes da Saúde, por exemplo, vieram dos clubes 4H, nos Estados Unidos.

3. uma mudança de PaRadIgmas

Bastos e Silva (��953), após tratarem de questões gerais de demografia e educação no Brasil, os autores abordam especificamente o conceito de educação sanitária:

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“Como vimos não é confortador o panorama da situação sanitária e educacional das áreas trabalhadas pelo SESP e, na maioria das vezes, os problemas são encarados unilateralmente. Se de um lado os educadores brasileiros sustentam que só temos um único grande problema – o da EDUCAÇÃO, os médicos, por sua vez, defendem também um único ponto de vista, afirmando que há um só problema a vencer: o da SAÚDE” (Bastos & Silva, ��953, p. 242).

A angústia dos autores parece refletir o tempo em que se vivia. Como men�cionamos, naquela época a saúde passava por uma reformulação em termos de políticas de Estado, com preocupações cada vez mais voltadas para a saúde do trabalhador e cuidados individuais, gradativamente menos direcionadas para po�líticas de saúde pública. O ano em que o artigo é escrito é o mesmo ano em que Saúde e Educação se tornam dois Ministérios separados e a pedagogia brasileira já contava, havia sete anos, com sua Lei de Diretrizes e Bases para a educação. Apesar de todas essas mudanças, seguimos percebendo em vários trechos do artigo, que sintetiza bem a visão do SESP sobre educação sanitária, vários dos pontos elencados até aqui, no que diz respeito, por exemplo, a uma certa mentalidade associando a saúde ao progresso e à permanência na mentalidade de que doença e pobreza constituam um círculo vicioso:

“A realidade, porém, é que ambos os problemas [saúde e educação] apresentam a mesma importância e estão inter-relacionados e tanto é improdutivo o analfabeto sadio, quanto o alfabetizado doente. A ignorância e o analfabetismo, as doenças e a miséria impedem ou entorpecem o progresso humano. As enfermidades endêmicas, sobretudo nas zonas tropicais, podem minar a vitalidade de todo o povo e privá-lo do espírito de iniciativa para produzir alimentos. Dêste modo, pela má alimentação, a doença leva à miséria e a miséria à ignorância, a qual, por sua vez, é um dos fatores que contribuem para perpetuar as enfermidades” (Bastos et al., ��953, p. 242).

Assim, como nem médicos, nem professores possuiriam, isoladamente, co�nhecimentos necessários para romper esse círculo vicioso, os autores propõem a educação sanitária como estratégia de prevenção, a partir da qual o homem viria a ter “uma visão clara e sincera do que seja consciência sanitária” (idem).

Esse artigo pode ser definido, em alguns pontos, como exemplo de uma tran�sição, na qual, apesar de certas visões provindas do paradigma médico�sanitarista norte�americano persistirem (como a idéia de círculo vicioso, por exemplo), a educação já não é mais tomada aqui como um processo unilateral, com “recep�ção passiva”. Esse ponto vai ao encontro da observação de Mohr e Schall, para quem entre as décadas de ��950 e 60 “houve um período áureo da educação

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sanitária no Brasil”; contudo, “todo este movimento se pautava por uma ideologia modernizadora, encaminhando a hegemonia da burguesia industrial no domínio estrutural da sociedade” (Mohr et al., ��992 , p. 200).

Alguns são os paradigmas apontados por Oshiro (��988) para entendermos como eram concebidas as políticas de educação sanitária no âmbito das políticas públicas do SESP. Primeiramente, a influência do pensamento de Charles Edward A. Wislow, citado por Bastos e Silva (��953) como idealizador do conceito de educação sanitária. Para ele, o ciclo da evolução social seria alcançado após a saúde e a miséria serem “sacudidas”, e a saúde pública era o meio mais adequado e econômico para esse fim (Oshiro, ��988, p. ��34). A OMS publica a obra de Wislow em ��952, e tal visão se adequara à idéia de círculo vicioso doença�miséria dos técnicos do SESP. Em segundo lugar, houve também a influência de Walt Whitman Rostow, segundo o qual o “processo de desenvolvimento econômico abarca três etapas: a sociedade tradicional, a passagem para a etapa de grande desenvolvimento industrial e a terceira etapa é a do progresso econômico auto-sustentado”, havendo entre cada uma dessas etapas condições para que haja a passagem de uma para outra.Tratava�se de uma linha evolutiva que, aos olhos dos técnicos do SESP, haveria de ser percorrida seguindo�se os mesmos passos de países desenvolvidos. Como Oshiro aponta (op. cit.), tais concepções viriam a compor a remodelagem tanto do SESP quanto de seus métodos de educação sanitária, tornando�os mais racionais e tecnológicos.

Em conferência proferida em junho de ��955, Henrique Maia Penido sinteti�zaria tal passagem da seguinte forma: “Saímos, por assim dizer, de uma fase de simples divulgação de conhecimentos para entrarmos em uma fase dinâmica, visando a organização da população para nela despertar o interesse pelos assuntos de saúde e obter à sua cooperação na solução dos problemas” (Penido, ��955, p. 359). De fato, a partir da década de ��950, o termo “comunidade” passa a ser comum em escritos do SESP sobre educação sanitária (Bastos et al., ��953; Bastos, ��959; ��963; ��996).

Na verdade, as preocupações com o conceito de “comunidade” iniciaram�se em ��95��, com um projeto demonstrativo a ser desenvolvido pelo SESP na localidade de Chonin, no município de Governador Valadares (MG). O Projeto contava com diversos organismos, inclusive a Escola de Sociologia e Política de São Paulo e um antropólogo, Kalervo Orberg, enviado pelo Instituto Smithsonian, dos Estados Unidos. O projeto conciliava três programas diferentes: agricultura, educação e saúde, mas por uma série de fatores (quase sempre ligados a discor�dâncias internas entre os envolvidos) acabou sendo abortado em dezembro de ��952. A avaliação sobre o projeto, no entanto, foi positiva dentro do SESP, de tal maneira que tais práticas passaram a ser usadas pelo órgão – como em São Leopoldo, no mesmo Estado, Banco da Vitória (BA) e em Vila Lenira (ES).

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Concomitantemente às práticas de desenvolvimento comunitário, ações de alfabetização, desenvolvidas pelo sociólogo José Arthur Rios iam sendo imple�mentadas. Diria Bastos, a respeito de tais iniciativas, que sua importância residia em sua capacidade de “modificar o comportamento dos indivíduos”. Para ele, a educação não mais deveria se restringir a mera distribuição de folhetos e carta�zes, exibição de filmes etc.; doravante técnicas educacionais, bem como “o acerto das ciências sociais” e técnicas de educação de adultos deveriam ser incorporadas, no sentido de “mobilizar as forças locais criando uma consciência sanitária” (Bastos, ��996, p. 340). Interessante o que Bastos escreve a seguir:

“O primeiro passo nesse sentido consistiu em modificar o conceito dominante de edu-cação para a saúde. As altas posições do SESP, em níveis nacional e regional, eram, geralmente, ocupadas por sanitaristas que tinham sido formados nas velhas escolas de controle epidemiológico que davam grande ênfase nos métodos autoritários. Nas campanhas caminhavam investidos de poderes ditatoriais. Eram, antes de tudo, representantes do Estado, podendo a qualquer momento usar força policial contra os recalcitrantes.

Fazia-se então necessário modificar essa concepção, implantando nos agentes do Serviço uma mentalidade educacional. Nesse sentido, o SESP que em 1952 e 1953, possuía em seu quadro um educador de saúde e um antropólogo, ambos do IAIA [Instituto de Assuntos Inter-Americanos], resolveu ampliar seus recursos humanos nesse setor, incluindo, pela primeira vez no continente, entre o seu pessoal, um sociólogo, um psicólogo e um técnico em educação. A primeira missão dessa equipe, sob a orientação do sociólogo José Arthur Rios, foi difundir em todos os níveis do Serviço e em todas as áreas de trabalho, a importância das novas técnicas educacionais e a contribuição das ciências sociais no campo da saúde pública. Voltou-se a insistir na idéia de cooperação e participação, não só no nível dos serviços federais e estaduais, como nos níveis locais onde o Serviço atuava diretamente, em contato com as autoridades municipais e com as pessoas de influência das localidades” (Bastos, ��996, p. 340).

Em outro trabalho (Bastos, ��963), por exemplo, o autor dispensa 40 páginas para a análise dos temas referentes à comunidade e desenvolvimento comunitário – aliás, como salienta Bastos na passagem acima, tal metodologia veio a reestru�turar o próprio pensamento institucional do SESP. O que explica isso? Estamos, na década de ��950, em plena época de guerra fria e, como aponta Oshiro (��988, p. ��43), o desenvolvimento e a organização comunitárias eram parte de uma estratégia utilizada pelos EUA e adotada na América Latina, sistematizada e difundida por organizações como a Unesco, OEA e OMS. Evidentemente, a noção de comunidade estava ligada à noção de progresso da nação, e, no fundo,

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tal ideologia viria a nortear uma série de convênios que seriam assinados entre Brasil e Estados Unidos ao longo daquela década (como a criação da Campanha Nacional de Educação Rural, em ��952; ou a criação do Serviço Nacional de Endemias Rurais, em ��956).

“No fundo, apesar da mudança no discurso e em vários aspectos metodológicos, a lógica presente nas ações ainda era a mesma: a partir da participação da comuni-dade, obtinha-se “contribuição material e de mão-de-obra, barateando o custo total do processo. Está subjacente a idéia de que na ‘ausência da identidade de interesses e objetivos, é possível criar ou recriar uma comunidade. [...]

A interpretação dos fenômenos sociais [em estudos nessas comunidades] limita-se à descrição da manifestação e expressão imediata desses fenômenos. Não se consideram as contradições que governam os fenômenos sociais; logo, as comunidades são des-providas de relações de classes, predominando relações de solidariedade” (Oshiro, ��988,��44���45).

Se as mudanças tivessem sido radicais e houvessem ocorrido sem a anuência dos organismos internacionais ligados ao SESP (particularmente, o IAIA), dificil�mente as mudanças às quais Bastos se refere poderiam ter ocorrido no Serviço. Entretanto, as práticas pedagógicas haviam sido, de alguma forma, renovadas, em grande parte pela influência da Escola Nova (que no Brasil toma novo fôlego desde o fim do Estado Novo, como vimos) a partir das idéias de John Dewey e Lourenço Filho, bem como da psicologia funcionalista de Kilpatrick. Tal mudança de enfoque levou à percepção de que era importante perceber o ensino não como algo acabado, mas que os saberes e habilidades prévias do estudante poderiam ser integrados a sua vida cotidiana. Como sintetiza Oshiro, a educação, pensada nesses termos, respeitaria a “liberdade e capacidade individuais, levando ao aperfeiçoamento da sociedade, através da adequação do indivíduo à ordem social”. Esses propósitos não são novos na educação sanitária, como temos visto até aqui, sendo claras as influências de idéias liberais em sua formulação. Segue a autora, “trata-se, portanto, de uma perspectiva que não questiona as relações sociais vigentes, permitindo sua reprodução” (Oshiro, ��988, p. ��40).

Como se vê, na perspectiva de comunidade havia também um componente ideológico fortemente marcado por idéias do liberalismo norte�americano. Essas idéias foram formalizadas por José Arthur Rios no livro A educação dos grupos, publicado em ��957, sugerindo que não haja democracia sem um mínimo de localismo, sendo a educação de grupos e da comunidade a estratégia para o planejamento democrático (Marques, 2006, p. 43).

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Sob diversos pontos de vista, corroborando o argumento de Mohr e Schall, a década de ��950 pode ser considerada uma fase de ouro na metodologia das ações educativas em saúde no país: a educação é percebida como fenômeno dialógico e participativo, integrada com as demais esferas da vida comunitária: educação escolar, saneamento, alimentação etc.

Aliás, será nessa época – a partir de ��953, quando houve a separação entre os Ministérios da Educação e da Saúde – a maior produção de artigos sobre o tema educação sanitária publicados na Revista do SESP: se entre ��948 e ��952 foram publicados apenas 3 artigos � “A palestra como meio de educação sanitária nas áreas rurais da Amazônia” (Manceau et al., ��948); “Clube de Saúde e Educação Sanitária escolar” (Pinheiro, ��948); e “A utilização do diafilme sonorizado como meio de educação sanitária em pequenas localidades e áreas rurais do Brasil” (Pinheiro et al., ��949) �, entre ��953 e ��959 viriam a ser publicados 9 artigos sobre o assunto: “Programas educativos nas unidades sanitárias do SESP” (Bastos et al., ��953); “Preparação de técnicos e auxiliares de Educação sanitária” (Silva et al., ��954); “O papel da educação sanitária na profilaxia do tracoma” (Moraes et al., ��954); “Reuniões de grupo para discussão dos problemas da criança pré�escolar” (Alvim, ��955); “Campanha anti�rábica em seis municípios do sul da Bahia” (Ramos et al., ��955); “Programa de educação sanitária em hospitais” (Bastos et al., ��957); “Avaliação de material de educação sanitária” (Bastos et al., ��958); “Métodos, técnicas e meios na Educação Sanitária de adultos” (Bastos et al., ��958); e “A Educação Sanitária nos programas de saúde pública” (Bastos, ��959). Foi, como se pode perceber, um período extremamente profícuo na educação sanitária do país, culminando com a publicação do livro de Nilo Bastos em ��963: “Educação sanitária: fundamentos, objetivos, métodos”, com mais de 600 páginas, pela FSESP.

Em Bastos et al. (��958), por exemplo, temos uma idéia de como as idéias da época, do ponto de vista metodológico, eram uma mudança em relação ao que se praticava na década anterior. Se antes o pressuposto era que a massa fosse ignorante e deveria ser moldada pela educação, agora a proposta era sutilmente diferente:

“Na utilização para desenvolvimento de qualquer programa educativo, visando à mudança de hábitos e comportamentos de pessoas, nunca devemos esquecer que essas pessoas podem ter soluções tradicionais para seus problemas. Muitas vêzes, soluções de caráter irracional e que deverão ser abandonadas, mas que, em outros casos, refletem uma adaptação eficiente, diante de um meio hostil e difícil” (Bastos et al., ��958, p. 297).

É evidente aqui a influência do funcionalismo norte�americano, particular�mente no que diz respeito à cultura funcionando como uma adaptação a um

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problema prático. Entretanto, há já um lugar para o respeito a algumas dessas práticas “tradicionais”, de modo que nem sempre a intervenção técnica opera buscando mudar os hábitos da população atendida e, quando isso ocorre, deve se dar dentro do sistema de pensamento daquela comunidade. Nesse sentido, continuam os autores: “Na utilização do material, deve�se levar em conta essa explicação da vida e da situação do homem diante do mundo, a fim de que (...) se possam introduzir novas maneiras de pensar e agir, mais úteis a eles e à coletividade” (idem). Neste contexto faz sentido pensar o foco na idéia de “cole�tividade” enquanto eixo metodológico das práticas Sespianas.

A mudança nos hábitos da população deveriam se dar de dentro para fora e não mais de fora para dentro por meio de propaganda: “O material deve ser sempre acompanhado da relação pessoa e não ficar pregado nas paredes ou jogado sobre os móveis das casas”, escrevem os autores.

Entretanto, por uma série de razões de reestruturação do órgão e do sistema de saúde – e educação – no Brasil, tais práticas de educação sanitária virão a ser gradativamente abandonadas.

O que veremos a partir da década de ��960, contudo, será o gradativo desman�telamento das políticas de educação em saúde causado por uma série de fatores, dentre os quais se destacam tanto as políticas de saúde medicalizantes focadas na previdência e no atendimento individualizado nos serviços de saúde, quanto o maior controle das ações educativas durante o período militar no país.

São evidentes os efeitos dessas mudanças nas políticas de educação sanitária do SESP. Com efeito, se entre ��942 e ��96�� haviam sido publicados ��2 artigos sobre educação sanitária, entre ��962 e ��972 este número cairá para apenas 02: “Aspectos educacionais na promoção de programas de fluoretação em abasteci�mento de água” (Bastos, ��970a) e “Educação sanitária” (Bastos, ��970b). Aliás, nesse último fica clara a diferença de paradigmas com relação aos textos publi�cados alguns anos antes. Em nenhum momento são focadas pelo Governo as ações educativas na comunidade, como um todo, mas nos indivíduos e grupos “de trabalho e de lazer”. À época, o autor já chamava a atenção para a falta de um “Planejamento sistemático dos aspectos educativos dos programas desenvol�vidos pelos órgãos de saúde”, e a “falta de integração das atividades educativas no desenvolvimento desses programas”, sendo realizadas de “modo isolado” e “desvinculadas das medidas adotadas para as demais atividades” (Bastos, ��970b, p. 77�78). Como se pode perceber, é evidente aqui a perda de visibilidade das ações educativas do SESP a partir da segunda metade da década de ��960, já como Fundação SESP (criada em abril de ��960).

Do ponto de vista da educação em saúde, essa decadência do órgão é clara. Como Bastos (��970b) aponta àquela época a FSESP contava com uma seção de

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Educação Sanitária que exercia, “basicamente, funções normativas e supervisora”, cabendo�lhe elaborar cartazes e folhetos. A direção cabia a um educador sanitário profissional, sendo que as equipes de supervisores técnicos das Diretorias Regionais de Saúde contavam, cada uma, com um educador sanitário em seus quadros. Como ele mesmo chama a atenção, já se enfrentavam problemas de pessoal na área, dentro do Ministério da Saúde, que contava com apenas 20 educadores sanitários. Os avanços na área de educação sanitária no âmbito do SESP�FSESP observados na década anterior haviam ficado, definitivamente, no passado.

No entanto, para entendermos o que ocorre na FSESP faz�se necessário entender que as políticas educativas da Fundação foram minadas pela mudança de paradigmas nas políticas de Saúde do país – agora focadas na Previdência –, e suas ações vieram a sofrer as conseqüências de um processo mais amplo que atingia a educação como um todo, no período.

Fora das esferas governamentais e sob influência de ideologias inovadoras no campo da educação, movimentos populares virão a tomar em suas próprias mãos a iniciativa de buscar ocupar o vácuo institucional deixado pelos órgãos do Governo. De certa maneira, podemos afirmar que na educação havia um movimento muito maior da sociedade e de determinados grupos sociais, desde a época da discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sendo as conse�qüências desse movimento ainda perceptíveis. Em ��96�� temos o método Paulo Freire sendo aplicado pela Prefeitura de Natal e em Tiriri, em Pernambuco. Há, ainda, a criação da Universidade de Brasília com novas propostas universitárias e, no ano seguinte, a criação do Conselho Federal de Educação, do Plano Na�cional de Educação e do Programa Nacional de Alfabetização, pelo Ministério da Educação e Cultura, inspirado nas idéias paulofreireanas (Bello, 2007).

Tanto na pedagogia brasileira, como na área da educação sanitária, esse foi um período que pode ser considerado áureo, apesar das várias críticas feitas até aqui. Os paradigmas agora eram no sentido de se pensar a educação não apenas como passagem de informação, mas como processo de construção dialo�gada do conhecimento; na saúde havia forte influência de Arthur Rios, Dewey e outros, no DNERu o método de Paulo Freire era aplicado em parte dos sertões atendidos em conjunto com movimentos progressistas ligados à Igreja Católica e, na educação, nomes como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, dentre outros, deixam sua marca – sendo tal movimento barrado pelo golpe de ��964.

4. consIdeRações FInaIs

No contexto da abertura política, efetivamente vai tomando corpo uma série de discussões levadas a cabo por setores populares no que diz respeito à

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educação e educação em saúde no país. Tal processo virá a ter impacto nas políticas públicas a partir do momento em que a estrutura político�institucional que sustentava a ditadura vai ruindo.

Neste sentido, observam Gazzinelli et al.:

“Uma revisão dos documentos do Ministério da Saúde de 1980 até 1992 mostra de forma clara, uma mudança no discurso oficial da Educação em Saúde, de uma perspectiva tradicional baseada na imposição de modelos para uma abordagem voltada para a participação comunitária.

Essa idéia é central em Freire desde a década de 70, tanto que no documento “Ação Educativa nos Serviços Básicos de Saúde” (Ministério da Saúde; 1981) é notória a forte influência do seu pensamento e de sua teoria de educação libertadora.

No entanto, as “Diretrizes da Educação para a Saúde” (Ministério da Saúde, 1980. p. 370) ainda definem Educação em saúde como “uma atividade planejada que objetiva criar condições para produzir as mudanças de comportamento desejadas em relação à saúde”. Subentende-se aqui que a Educação em Saúde, tal como definida pelas Diretrizes, tem como intenção nítida reforçar padrões de saúde concebidos pelo governo para a população” (Gazzinelli et al., 2005, p. 20��).

Pode�se dizer que se trate da variação sobre os mesmos velhos temas. Em primeiro lugar, parece haver sempre a idéia latente da educação funcionando – para utilizar a expressão de Gazzinelli – enquanto “reforçadora dos padrões de saúde concebidos pelo Governo”. De fato, há a partir das décadas de ��960 e ��970 a contraposição de movimentos populares questionando essa perspectiva domesticadora da Educação – ainda que, nem sempre, as políticas públicas le�vem tais demandas em consideração. De um modo geral, a visão impositiva do conceito de doença por parte do Estado caracterizou a maior parte das ações de educação em saúde no Brasil. Em se tratando da clara relação entre as intenções do Governo e as ações educativas, faz�se necessário também levar em considera�ção o contexto sociopolítico e ideológico, bem como científico e técnico a partir dos quais essas políticas são formuladas. Neste caso, por exemplo, há um amplo campo de estudos para trabalhos que busquem analisar o impacto das políticas neoliberais sobre as práticas pedagógicas em saúde: possivelmente se perceberia uma estreita relação como outrora foi observado, entre o liberalismo capitalista norte�americano e práticas do SESP, no Estado Novo.

Em segundo lugar, o que Valla (200��) chama de culpabilização da vítima parece estar também, de certa forma, sempre presente na forma como a educa�

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ção em saúde é feita no Brasil. Havendo assustadoras semelhanças no discurso das políticas preventivas de febre amarela e malária empregadas pelo SESP com aquelas veiculadas atualmente. Tal prática tende a encobrir omissões do Estado e sob um pretenso discurso de que a saúde é direito de todos e a prevenção, um dever: o Governo omite�se em realizar um debate mais consistente com a socie�dade sobre políticas de saneamento, sustentabilidade etc. Entra aí outra discussão, extremamente relevante e na qual não cabe aqui entrar: em que medida o que se faz no Brasil em saúde, hoje, é “propaganda”, ou pode ser considerado como “educação”? Bastos criticava, em ��958, o simples ato de se colocar cartazes e se “espalhar” material “por aí”, mas que a educação deveria ser um processo dia�logado e construído tête à tête. Fica aqui o questionamento sobre se os comerciais e cartazes não se tornaram, hoje, fins em si mesmos – como os filmes exibidos pelo SESP nas áreas atendidas.

Outra coisa chama a atenção: a persistência da idéia de comunidade por trás de um discurso pretensamente participativo. São comuns os mutirões e ações campanhísticas ainda hoje. Muitas vezes são iniciativas pensadas por profissionais motivados por boa�fé ou idealismo. Contudo, da mesma forma que as ações comunitárias sespianas, tais ações encobrem uma série de implicações menos nobres: o barateamento de ações por utilizar mão�de�obra local; o reforço de relações de poder locais; o discurso de culpabilidade da vítima etc.:

“Os temas, tratados e discutidos a cada dia, foram definidos de acordo com a pesquisa e os levantamentos feitos previamente (Diagnóstico Situacional), onde a comunidade apontou seus principais problemas. A partir dessa pesquisa, o conteúdo programático foi desenvolvido com os participantes e distribuído em cinco dias de atividades. Os temas contemplaram as questões de higiene corporal, doméstica, e ambiental; alimentação; saneamento ambiental (lixo); e mobilização social.

No período da manhã, discutiam-se e analisavam-se os temas, e, depois, registravam-se as propostas dos grupos das soluções viáveis. No período da tarde realizavam-se as atividades práticas. Visitas domiciliares; como escovar corretamente os dentes; canteiros de horta orgânica na escola; lixeira de madeira (lixo reciclável); composteira (com material orgânico recolhido pelos próprios participantes da oficina); e visita pela aldeia para a coleta e seleção de resíduos sólidos que foram classificados para posterior discussão de alternativas de redução, reutilização e reciclagem.

O mais interessante neste dia, da coleta dos resíduos sólidos, foi a visita, pela primeira vez na aldeia, do senhor João Martins, em uma dessas felizes coincidências que só acontecem quando as coisas têm que dar certo. Seu João foi trazido até o local onde estava sendo realizada a oficina e comunicou que a partir daquele momento

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estaria todas as quartas-feiras na aldeia comprando ferro, alumínio, cobre e latas. E a meninada saiu a recolher os ferros velhos com a maior rapidez”.

Antes que o leitor pense que o trecho acima foi retirado de algum boletim sespia�no da década de ��950, aviso que o texto foi retirado do Informativo da Coordenação de Educação em Saúde da Fundação Nacional de Saúde, publicado em julho de 2004. Note o leitor como todos os elementos mencionados até aqui se encontram na passagem acima, inclusive o pressuposto da mobilização comunitária.

Talvez seja o momento de se rever a forma como a população e os movimen�tos populares têm participado das ações de saúde, e que o modelo participativo de gestão realmente seja implementado. A educação em saúde não deve apenas funcionar como canal de informação sobre como prevenir doenças. Enquanto essa revisão não for feita, as políticas em saúde no país acabarão replicando o que foi feito pelo SESP.

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