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O PAPEL DA CULTURA NO NOVO PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO

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O papel

da cultura nO

nOvO prOjetO

naciOnal de

desenvOlvimentO

ISBN 978-85-72-77-116-0

Os textos que aqui publicamos são a contribuição

de convidados e dirigentes do PCdoB

que apresentaram uma exposição no

seminário “O papel da cultura no novo projeto nacional de desenvolvimento”,

realizado de 14 a 16 de agosto de 2012,

no Rio de Janeiro.

Entender a cultura de uma sociedade tão complexa como a brasileira implica conhecer o que lhe é reconhecido como próprio, assim como todo o processo incessante de trocas, passadas e contemporâneas, que, afinal, marcam tão profundamente a própria formação e continuidade do Brasil.

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O papel da cultura nOnOvO prOjetO naciOnal

de desenvOlvimentO

Seminário

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Seminário O Papel da Cultura no Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (2009: Rio de Janeiro, RJ)S612p O papel da cultura no novo projeto nacional de desenvolvimento, 16 a 19 de agosto de 2009. --São Paulo : Fundação Maurício Grabois : Anita Garibaldi, 2013. 92p. : il. Vários autores. ISBN 978-85-7277-116-0

1. Cultura - Brasil. 2. Projeto Nacional de Desenvolvimento - Brasil. 3. Políticas públicas – Brasil. I. Título.

CDD 300CDU 316

Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

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14 a 16 de agosto de 2009Rio de Janeiro - RJ

PROMOÇÃO

O papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal

de desenvOlvimentO

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São Paulo, 2013

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O papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal de desenvOlvimentO

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Fundação Maurício Grabois

***Coordenação editorial

Adalberto Monteiro

Assessoria editorial Alexandre Prestes

Edição de textos Priscila Lobregatte

Revisão Maria Lucília Ruy

Capa e diagramação Cláudio Gonzalez

FotosThaila Vidales

ImpressãoGráfica Nywgraf nywgraf.com.br

Tiragem: 1.000 exemplares

Fundação Maurício GraboisRua Rego Freitas, 192 - Sobreloja

Centro - CEP 01220-010São Paulo – SP – Brasil

Tel.: (11) 3337-1578 [email protected]

Editora Anita GaribaldiRua Amaral Gurgel, 447, 3º andar, cj. 31

Vila Buarque - CEP 01221-001 São Paulo – SP – Brasil

Tel.: (11) [email protected]

www.anitagaribaldi.com.br

ProgramaçãoExpediente

semináriOO papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal de desenvOlvimentO14 de agosto (sexta-feira)18h45-Abertura: Adalberto Monteiro, presidente da Fundação Maurício Graboisdas 19h às 22h: Políticas públicas para a culturaExpositores: Juca Ferreira, Ministro da Cultura Jandira Feghali, Secretária de Cultura do Município do Rio de Janeiro; e Guti Fraga, Coor-denador do Grupo Nós do Morro. Coordenação: Felipe Maia, diretor de cultura da Fundação Maurício Grabois

15 de agosto (sábado)das 9h às 13h: A cultura e o programa socialistaExpositores: Renato Rabelo, Presidente Nacional do PCdoB; Manoel Rangel, Diretor da Ancine; e Héctor Soto, Ministro de Cultura da República Bolivariana da Venezuela.Coordenação: Augusto Buonicore, secretário-geral da Fundação Maurício Graboisdas 14h30 às 19h: Painel com Experiências de Gestão Pública em CulturaExpositores: Célio Turino, Secretário Nacional de Programas e Projetos do Ministério da Cultura; Eduardo Bonfim, Secretário de Cultura de Maceió; e Márcia Souto, Secretária de Cultura de Olinda. Coordenação: Ronald Freitas, diretor de políticas públicas da Fundação Maurício GraboisNoite: Atividade Cultural

16 de agosto (domingo)das 9h às 13h: Discussão sobre a participação dos comunistas nos movimentos de cultura e for-mação do coletivo nacional de cultura do PCdoBExpositores: Walter Sorrentino, Secretário Nacional de Organização do PCdoB; Teotônio José Roque, Pleno da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura; e Alexandre Santini, Coordenador do CUCA – Circuito Universitário de Cultura e Arte. Coordenação: Ana Cristina Petta, atriz

O seminário “O papel da cultura no novo projeto nacional de

desenvolvimento” foi realizado nos dias 14 a 16 de agosto de 2009 no

Hotel Novo Mundo (Rio de Janeiro- RJ)

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AlExAndRE SAnTInIA participação dos comunistas

na cultura ontem e hoje

EduARdo bonFIMo Estado como responsável por um

desenvolvimento cultural em novas bases

juCA FERREIRAo deslocamento da cultura para

o centro do projeto de nação

REnATo RAbEloA cultura e a construção do caminho

brasileiro rumo ao socialismo

wAlTER SoRREnTInoos quadros na luta de ideias e

o projeto político do partido

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jAndIRA FEGhAlIO papel das cidades no desenvolvimento da cultura e a experiência do Rio de Janeiro

CélIo TuRInoPontos de Cultura: construtores de identidade e bases para um novo Estado solidário

GuTI FRAGAdescentralizar a cultura: dar oportunidades iguais é caminho para a mudança

MARCIA SouToolinda: política cultural que valoriza o povo

TEôTonIo joSé RoquEA construção do sonho socialista através da cultura

jAVIER AlFAYA

Apresentação

Cultura: pilar estruturante do novo projeto nacional

AdAlbERTo MonTEIRo

Abertura

Identidade cultural não é virtude nata

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ÍNDICE

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O papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal de desenvOlvimentO

Pilar estruturante do novo projeto nacional

Os textos que aqui publicamos são a contribuição de convidados e di-rigentes do PCdoB que apresenta-ram uma exposição no seminário

“O papel da cultura no novo projeto nacional de desenvolvimento”, realizado em 14 a 16 de agosto de 2012, no Rio de Janeiro.

O processo de debate no âmbito do Partido e a abertura para diversas correntes de pensa-mento no terreno cultural são uma marca atual do PCdoB. Ao lado de posições já consolidadas nos textos partidários, como a defesa da cultura como um direito social e como parte constituti-va da nacionalidade, o Partido participa e incen-tiva um esforço intelectual coletivo, procurando entender todos os processos contemporâneos de criação e circulação cultural.

Não basta repetir a consigna do nacional--popular tão em voga nos anos 1960. A cultu-

ra é um universo extraordinariamente largo e amplo que vai do artesanato local, passa pelas tradições festivas, religiosas ou não, e chega à grande produção e circulação promovida pela mídia e indústria cultural, envolvendo a co-municação, a publicidade, as artes, as ciências, a difusão de valores morais e políticos, o entre-tenimento e lazer, e um sem fim de manifesta-ções do cotidiano, tocando praticamente todos os âmbitos da vida.

Entender a cultura de uma sociedade tão complexa como a brasileira implica conhecer o que lhe é reconhecido como próprio, seu por-tuguês/brasileiro, suas tradições populares, manifestações religiosas originais, sua estética nos objetos, música, expressão corporal, no ci-nema e artes visuais, seu patrimônio arquite-tônico, paisagístico, sua história, assim como todo o processo incessante de trocas, passadas

jAVIER AlFAYA

coordenador Nacional de Cultura do PCdoB

ApresentAção

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“A cultura tem sido entendida por nós, nas diversas dimensões, parte dos direitos da cidadania, item importante na economia, afirmação da nacionalidade, processo de intercâmbio com outras nações (em novos moldes) e integrante da luta por uma nova hegemonia política democrática e de cunho popular.”

e contemporâneas, que, afinal, marcam tão profundamente a própria formação e continui-dade do Brasil.

O país se reconhece como fruto de misci-genação cultural e étnica. Somos uma nação nascida da heterogeneidade, e a convivência desse processo com o de afirmação de suas matrizes originais – mesclando isso tudo com a absorção de contribuições oriundas de outros universos – faz da cultura atual brasileira um produto que chama a atenção dos próprios bra-sileiros e dos demais povos.

Somos grandes consumidores de músi-ca, cresce vertiginosamente o uso da internet, há uma boa produção audiovisual e televisiva no país, a música brasileira é reconhecida pela qualidade e consumida largamente dentro de nossas fronteiras. Mas esses fenômenos positi-vos – tomados como exemplo que poderia ser

ampliado – convivem com uma série de dados extremamente preocupantes e reveladores de muita desigualdade e injustiça. Só 6% dos mu-nicípios brasileiros têm cinema; poucos leem jornais, muito menos livros; há pouquíssimas bibliotecas públicas; as mercadorias culturais (como livros e dvds) são caras; o nível qualita-tivo de nossa escolaridade é baixo; o analfabe-tismo persiste; as tvs e rádios são hegemonica-mente privadas e controladas por pouquíssimos grupos familiares e empresariais; as universida-des, apesar do grande avanço nos últimos anos, ainda estão longe de poder atender à demanda de produção científica, artística e cultural que o desenvolvimento do país exige. Somos o país dos grandes contrastes, no social e no cultural.

Nosso esforço visa a consolidar um Projeto Nacional de Desenvolvimento, incorporando a cultura, não como item supérfluo no fim de

JAVIER ALFAYA

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O papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal de desenvOlvimentO

uma lista de reivindicações, mas como pilar estruturante desse projeto, ao lado da econo-mia e da política.

A cultura tem sido entendida por nós, nas diversas dimensões, parte dos direitos da cidadania, item importante na economia, afir-mação da nacionalidade, processo de inter-câmbio com outras nações (em novos moldes) e integrante da luta por uma nova hegemonia política democrática e de cunho popular.

Entendemos o processo cultural em toda a sua vivacidade e diversidade. A afirmação do nacional não implica posições de defensi-va conservadora no respeito a outras matrizes. Além das expressões culturais reconhecidas como valor para boa parte da humanidade, há um processo ininterrupto de produção, circulação, consumo e recriação que marca os tempos atuais e que tende a se radicalizar com a generalização do uso da internet e de outros meios de circulação de informação e bens simbólicos – seja de cunho estético ou não. O grande problema é que esta circulação é controlada hegemonicamente por podero-sos grupos econômicos de países centrais na economia capitalista. Isso exige uma postura anti-imperialista no terreno da cultura e a ne-cessária execução de políticas públicas nacio-

nais aliadas à articulação internacional, for-mando redes, convênios e acordos estratégicos entre países e setores sociais que buscam cons-truir uma alternativa ao monopólio.

Uma empresa como a Sony é possuidora de contratos de artistas de visibilidade mun-dial, é proprietária de canais de satélites, pro-dutoras de cinema e música, é fabricante de equipamentos eletrônicos e de base digital que viabilizam o próprio consumo mundial de seus produtos e de outros conglomerados. Sua mer-cadoria vai da turnê mundial com shows de seus contratados, ao chip, passando por um aplicativo para celular, computador portátil, máquina fotográfica e de filmar, tvs domésti-cas, reprodutor de dvds e cds, amplificação de som, projetores, programas de informática e robôs – tudo isso disponível em muitos merca-dos de boa parte do planeta, indo do aparelho mais barato ao mais sofisticado.

Enfrentar esses poderes e construir uma nova relação cultural através da grande mí-dia é um desafio estratégico tanto em plano do nacional, como em escala global.

O PCdoB participa entusiasticamente des-se esforço, e a edição de textos como estes é de grande utilidade e estímulo.

Boa leitura. Boas lutas e vitórias.

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Identidade cultural não é virtude nata

“O papel da cultura no novo projeto de desenvolvimento” é o terceiro semi-

nário sobre cultura de iniciativa da Fundação Maurício Grabois. O primeiro, realizado em novembro de 2003 em São Paulo, teve como foco a cultura enquanto pilastra da identidade nacional. E o segundo, ocorrido em Brasília em 2006, as políticas públicas para o setor cultu-ral. Esses dois eventos foram realizados pelo Instituto Maurício Grabois, instituição da qual a Fundação Maurício Grabois é sucedânea.

Neste terceiro seminário será enfrentada uma temática mais abrangente: o lugar e o papel da cultura no novo projeto nacional de desenvolvimento. Este evento integra a agen-da do 12º Congresso do Partido Comunista do Brasil, cuja plenária final se realizará no mês de novembro do corrente ano de 2009, em São Paulo. O debate mais importante do Congresso

está relacionado à elaboração de um novo pro-grama para o Brasil. O texto programático ora em discussão aponta a luta pela realização de um novo projeto nacional de desenvolvimento como o caminho brasileiro para o socialismo.

A nosso ver, a cultura participa da constru-ção desse projeto nacional em várias dimen-sões. Convém destacar duas delas. Em pri-meiro lugar, a cultura é parcela cada vez mais importante da produção de bens econômicos. A chamada “economia da cultura” participa de modo crescente do Produto Interno Bruto (PIB) mundial e brasileiro. Além disso, a cul-tura é uma das condições para a própria exis-tência da nação. Ela é um dos elementos cons-tituintes da identidade nacional, manifestação singular do modo de ser dos brasileiros e con-dição determinante para que tenhamos como povo uma consciência social crítica, construti-

Adalberto Monteiro*

*poeta e jornalista, é presidente da Fundação Maurício Grabois e editor da revista Princípios.

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O papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal de desenvOlvimentO

va, criativa e assimiladora. Nosso pensamento sobre a questão cultural tem afinidade com a elaboração da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes-co) que, desde sua Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (México, 1982), propôs “a adoção de abordagens políticas que enfati-zassem um conceito amplo, antropológico, de cultura, que incluam não apenas as artes e as letras, mas também os modos de vida, os direi-tos humanos, os costumes e as crenças”. Isso inclui a memória, os conjuntos e peças de nos-so patrimônio material e imaterial e as repre-sentações diversas construídas no âmbito do artesanato, da música, da literatura, da dança, do teatro, da arquitetura, do vestuário, das ar-tes visuais e audiovisuais.

Se hoje ela se constitui na forma de um ramo da economia como qualquer outro, a cultura possui, contudo, particularidades que impedem de tratá-la do mesmo modo que os demais ra-mos da produção econômica. Ao contrário do que ocorre com produtos como roupas, eletro-domésticos e automóveis, o consumo do pro-duto cultural é ato de forte significado político. Exemplo explícito disso temos hoje no papel destacado da comunicação e da cultura de mas-sa, que veicula e comercializa cotidianamente estilos de vida e modos de ver o mundo, conso-lidando, muitas vezes, os hábitos da classe do-minante como as únicas alternativas possíveis.

Na atualidade, as elites globalizadas neo-liberais usam os meios de comunicação e ou-tros instrumentos ideológicos para condicionar mentes, promover a cizânia e espalhar a falta de perspectivas. Defendem a reorganização da política com base no espontaneísmo e na frag-mentação de interesses. Semeiam o irraciona-lismo, o individualismo, o pragmatismo e o consumismo. Usam a cultura para justificar a mercantilização de todas as dimensões da vida.

Para nós, um país marcado por uma cultu-ra diversa e complexa como o Brasil não pode rebaixar-se à condição de mero consumidor de expressões culturais impostas por potências estrangeiras através de suas megacorporações de entretenimento.

A mercantilização cada vez maior da cultu-ra atende não apenas ao objetivo de maximizar lucros e fortalecer o consumismo. Ela busca também desconstruir os valores relacionados à ideia de nação, considerados obsoletos, ultra-passados. Na verdade, esse conceito está ligado a valores como identidade nacional, soberania nacional e projeto nacional, contrários aos da globalização neoliberal.

O que deseja esse pensamento em última instância é deslegitimar a importância do Es-tado nacional, enfraquecendo aquele que é hoje um dos principais contrapesos à domina-ção planetária do grande capital. O enfraque-cimento da cultura nacional corrói o Estado e

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sua capacidade de defender autonomamente os valores e interesses do país.

A questão da cultura e da identidade nacio-nal se entrelaça intimamente com aquilo que o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães ca-racterizou como “vulnerabilidade ideológica” da sociedade brasileira. Manifesta na forma de uma “consciência colonizada”, essa vulnerabi-lidade está na base de uma atitude política e ideológica servil que vê como inevitável o fra-casso do Brasil como nação.

A vulnerabilidade ideológica do Brasil pos-sui estreita relação com a hegemonia cultu-ral estrangeira – em especial a estadunidense – em nossa sociedade, exercida em especial (mas não apenas) através do produto audiovi-sual. Sujeito à hegemonia cultural estrangei-ra, o imaginário nacional acaba se realizando de forma hesitante e fragmentária, e passa a refletir interesses alienígenas.

Sem concessões a um nacionalismo xenó-fobo, é necessário fortalecer a identidade bra-sileira. A construção da identidade nacional não se contrapõe à afirmação da diversidade cultural brasileira e tampouco ao diálogo com outras culturas. Contrapõe-se, isto sim, à he-gemonia cultural estrangeira em nosso pró-prio território.

Cabe ao campo patriótico, democrático e popular a tarefa de criar mecanismos que am-pliem o acesso de todos – artistas, intelectuais,

políticos ou simples cidadãos – à enorme di-versidade de manifestações culturais brasilei-ras e de todas as sociedades que constituem a diversidade cultural planetária e contribuam para enriquecer a nossa própria identidade. É necessário ampliar os mecanismos de estímu-lo à criação artística, com a democratização e a abertura dos canais por meio dos quais pos-samos ampliar o universo simbólico de nossa gente em diálogo incessante com as demais culturas do mundo.

Para dar conta desses objetivos, serão ne-cessárias mais e melhores políticas públicas de cultura. Políticas públicas comprometidas com o resgate da autoestima do nosso povo, com o rompimento do apartheid cultural vigente e com a afirmação da imagem do Brasil perante as demais nações do Globo.

Embora seja questão de grande relevância, durante muito tempo a questão cultural não recebeu em nosso país um tratamento à altura de sua importância.

Nos tempos neoliberais, de triste memória, promoveu-se a mercantilização indiscrimina-da da vida cultural, processo que deitou efeitos trágicos sobre a identidade cultural brasileira. O resultado disso foi o enfraquecimento da ideia de nação e o reforço da ideologia globali-zante neoliberal.

Sob o governo Lula, o Estado brasileiro vem retomando seu papel indutor e regulador da

AdALbERTO MONTEIRO

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produção e difusão cultural, promovendo políti-cas de fomento, financiamento e circulação dos bens culturais. Vem se perseguindo – desde a gestão do ministro Gilberto Gil, e, também, ago-ra, na do ministro Juca Ferreira – o objetivo de fazer da cultura, de fato, um direito básico do ci-dadão. Uma parte dinâmica do projeto nacional.

No entanto, como em outras áreas, a mo-bilização dos setores envolvidos é fundamen-tal para que mudanças significativas ocorram de fato. Os comunistas sabem disso, e por isso emprestam grande atenção à atuação dos mo-vimentos culturais em nosso país. Sob nossa ótica, a cultura brasileira tem um forte senti-do de resistência. Por isso, a construção de um amplo movimento em defesa da cultura brasi-leira – que estimule a democratização dos bens culturais, repense o papel do Estado na área e combata a imposição cultural estaduniden-se – é iniciativa de fundamental importância para a soberania e o desenvolvimento de nosso país. Está em nossas mãos a tarefa de construir esse amplo movimento, que pode jogar papel decisivo na construção de um novo projeto de desenvolvimento soberano e democrático para nosso país.

Apontam nesse sentido iniciativas como a do Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca) da UNE, e o movimento nacional dos Pontos de Cultura.

Por fim, conforme afirmávamos já na de-claração de nosso 1º Seminário Nacional de Cultura, em novembro de 2003, os comunistas brasileiros compreendem que a identidade na-cional não é uma virtude que os brasileiros ad-quirem apenas pelo fato de terem nascido nes-ta parte do mundo. Essa identidade resulta de um processo histórico longo. Tem sido constru-ída ao longo do tempo a partir da intervenção consciente e organizada do povo brasileiro que, com muita criatividade, suor e sangue, forjou uma cultura bela e complexa. Fortalecer essa cultura é tarefa que está hoje nas mãos de ar-tistas, produtores, gestores, ativistas do movi-mento cultural e de todos os demais interessa-dos na luta pela emancipação nacional e social de nosso país”.

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o papel das cidades no desenvolvimento da cultura e a experiência do Rio de janeiro

O conceito de cultura está permanentemen-te em movimento. O processo histórico e

as características de cada momento enrique-cem e transformam nossa percepção.

Na Conferência Mundial das Políticas Culturais, em 1982, no México, havia uma ex-pressão que dizia: “a cultura deve ser conside-rada como um conjunto de traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos, que caracterizam uma sociedade ou um gru-po social, e que abrange além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”. Ou seja, segundo essa concepção, a cultura é objetivamente isso, apenas isso.

Os que trabalham com gestão cultural sentem no cotidiano o grau de complexida-de, a multiplicidade de demandas que im-pedem qualquer gestão de ter uma marca específica.

Não se pode, por exemplo, dar atenção a determinado eixo, ou linguagem, e subtrair outros, pois todos têm um peso simbólico, político, econômico, estratégico para determi-nado segmento da população. E, como diz o ministro da Cultura, Juca Ferreira, a política cultural deve ser pensada em função do povo e não para um dos segmentos artísticos e cul-turais que devem, sim, ser parceiros do Esta-do. Afinal, o Estado não cria e não produz.

*secretária de Cultura da cidade do Rio de Janeiro; presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Cultura das Capitais; e membro da coordenação da UT MERCOSUL de cultura.

jandira Feghali*

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Desenvolvimento humanoA questão do conceito e da centralidade da

cultura e sua ligação com um Projeto de Desen-volvimento Nacional não pode ser enfrentada se for considerado apenas o aspecto econômi-co, deixando-se de lado o desenvolvimento hu-mano. E não existe nenhuma política que me-lhor entrelace a questão do desenvolvimento humano com o econômico senão uma política cultural para a sociedade brasileira.

E, nesse sentido, há um aspecto que con-sidero central no debate: a diversidade – para mim, é a mola propulsora da humanidade. A homogeneização, no entanto, nos mata. Exa-tamente a possibilidade de convivermos com a diversidade – de reconhecermos os significa-dos, as diferenças étnicas, religiosas, de modo de vida, de idioma, de linguagem, de expressão criativa – é que nos permite caminhar, conso-lidar o respeito e a valorização das diferenças, contribuir para a democracia e a paz.

E há uma polêmica, uma confusão, entre diversidade e multiculturalismo. Esta questão também é importante porque a diversidade cultural impõe a compreensão do significado dos processos, das diferenças que devem inte-ragir e conviver.

O papel das cidadesO papel das cidades na realização de uma

política cultural abrangente é fundamental

porque quando olhamos o contexto a partir do local, da cidade, onde as pessoas vivem, tam-bém enxergamos o todo. A desigualdade regio-nal brasileira se expressa também pelas ques-tões culturais.

Há, no Brasil, muitas cidades que não possuem um cinema. E se nos debruçarmos sobre cada uma delas perceberemos que o mesmo acontece com as políticas sociais, com a rede pública de serviços, com alta mortali-dade materna e infantil e com a incidência de doenças endêmicas, entre outras. Os lugares que não têm cinema, teatro, acesso à política e aos bens culturais são os mesmos lugares em que não há hospital, onde a mortalidade materna e infantil, a pobreza e o analfabetis-mo são maiores.

Portanto, na verdade, a desigualdade eco-nômica e social também estabelece a desigual-dade de acesso e trocas culturais e de informa-ção. Isso não quer dizer que as pessoas criem e produzam menos ou tenham criatividade menor. A questão é que elas são invisíveis e a invisibilidade dessa produção e desse potencial criativo é diretamente proporcional à pobreza, aos baixos índices de desenvolvimento huma-no. E nesses lugares as políticas econômicas e sociais são mais excludentes. O capitalismo pode nos indignar, mas não nos surpreender porque sabemos como ele se expressa na socie-dade. Concentra, exclui, segrega.

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Por isso, quando falamos das cidades es-tamos falando exatamente da realidade con-creta da vida das pessoas, pois exatamente nesses lugares acontecem o choque e a inte-ração; ali as diferenças convivem e a solidarie-dade pode se expressar. A cidade é o grande núcleo de uma compreensão maior. Não pode-mos pensar em construir cidades sem pensar em construir um pensamento sobre esses lu-gares e reconhecer o significado, a história e as diferenças que cada uma comporta.

Quando discutimos política cultural pre-cisamos tratá-la como um direito à cidade, ao território, um direito de se apropriar do espaço público, do conhecimento, dos saberes e onde o sentimento de pertencimento, de fato, seja incorporado.

O Estado, portanto, precisa ser encarado não como um criador, mas como um formula-dor, como um ente que conceitua e determina para que, para quem e quais as prioridades de suas políticas, o que financiar. O Estado não deve ser um mero repassador de recursos ou um mediador de interesses localizados. Só ele é capaz de garantir a universalidade, tem um papel maior e, por isso, pode impactar direta-mente a qualidade de vida das pessoas.

Memória x progressoPara exemplificar essa questão, pego a

cidade do Rio de Janeiro. As sucessivas inter-

venções urbanas feitas ao longo de diversas gestões anularam boa parte da sua memória, descartaram a memória material e imaterial da origem da cidade. As intervenções urba-nas nela feitas no início do século destruíram a história de sua formação, a começar pelo centro. Estas ações determinaram processos migratórios internos, inclusive da população negra, crescimento de regiões menos centrais e até mesmo periféricas. Isso aconteceu em muitas cidades.

O desenvolvimento e o progresso não po-dem desconsiderar a memória do lugar. Isso não significa ser contra o progresso, mas ele tem de respeitar a história das cidades. E neste aspecto, o conceito de patrimônio e de interven-ção urbana tem de considerar a questão cultu-ral local, atuar para sua relevância, bem como o apoio ao potencial criativo e à diversidade.

A capital fluminense tem imensos va-lores: é cosmopolita – no sentido do acolhi-mento da diversidade não apenas nossa, mas dos migrantes –; tem uma grande diversida-de cultural, um imenso potencial criativo; é ícone em várias áreas das artes; tem um ex-tenso patrimônio histórico e uma ampla rede de equipamentos culturais, além de uma be-leza natural deslumbrante. Mas, ao mesmo tempo, é uma cidade profundamente frag-mentada. E não estou falando do conceito da “cidade partida”, como chancelou Zuenir

JANdIRA FEGHALI

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Ventura, dividida entre asfalto e favela, entre Zona Norte e Zona Sul. Não. É uma cidade fragmentada inclusive dentro de um mesmo território. A classe média não está mais na es-cola pública, como também não está na rede pública de saúde, a não ser em casos de alta complexidade que a rede privada não assu-me. Crianças de um mesmo bairro, dividido por organizações criminosas, não conseguem frequentar a mesma escola, a mesma festa, o mesmo evento cultural.

Há ainda outros fatores, como a mobilida-de urbana na cidade – entre as piores do Brasil – e a criminalização da pobreza, das manifes-tações culturais e da chamada “estética da pe-riferia”. Aqui no estado do Rio de Janeiro – por autoria de um deputado que, inclusive foi pre-so, Álvaro Lins – havia uma lei que criminaliza-va os bailes funk. Estamos travando agora uma luta por uma nova lei exatamente para rom-permos com esse pensamento, que representa a criminalização da populaçãojovem, pobre e negra. Não significa que não haja problemas nos bailes funk, mas esses problemas não exis-tem porque é um baile funk. O problema das drogas e da violência não está relacionado com aquela manifestação cultural. Mas as autori-dades proíbem, a polícia vai ao local, prende, agride, fere.

No Rio de Janeiro há uma grande – porém, deficiente – rede de serviços públicos. É uma

cidade de contrastes absolutamente marcantes aos quais precisamos superar. E a política cul-tural é um importante instrumento de supera-ção dessa fragmentação e falta de integração.

Quando realizamos o Viradão Carioca – que durou 49 horas e meia – fizemos um cru-zamento de valores na cidade que talvez nunca tenha sido feito. Levamos a estética da perife-ria para Leblon, para Ipanema. Cruzamos mais de 300 atrações em 100 pontos da cidade. Ini-ciamos em Bangu, área popular da Zona Oeste, com música clássica. Também levamos para lá Milton Nascimento, Zélia Duncan, entre ou-tros. E para a Zona Sul levamos Dicró, Dona Ivone Lara. Foi emocionante e possibilitou a integração da cidade, sem que houvesse um in-cidente sequer. Quer demonstração mais óbvia de que essa possibilidade de integração no Rio de Janeiro existe? Existe, aliás em qualquer outra cidade.

Eixos norteadoresA partir de uma visão nacional, ou de uma

visão da cidade e com base nas características do Rio de Janeiro, estabelecemos vários eixos norteadores do nosso trabalho que têm a ver com esse conceito mais amplo, ideológico e po-lítico da cultura. São eles:

1 – Ter a diversidade como patrimônio e refe-rência cultural permanente da elaboração

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e da ação do Estado, ou seja, uma política pública não pode admitir a exclusão pela di-ferença, mas, ao contrário, deve reconhecer e incorporar a diversidade.

2 – Enxergar os direitos culturais como direitos humanos que incluem o direito ao territó-rio, à cidade, à apropriação do espaço públi-co. Esse conceito representa a ressignifica-ção do espaço público, desse sentimento de que a cidade pertence a cada um de nós e cada um de nós pertence a ela.

3 – Garantir o direito de acesso universal ao patrimônio cultural seja ele simbólico, artís-tico, histórico, natural, arquitetônico ou de serviços. E, neste sentido, apoiar a criação e respeitar os direitos dos criadores e garantir a liberdade de expressão.

4 – Construir a política cultural como uma expressão da inclusão social e como uma promotora da elevação de autoestima que resulta da possibilidade de conhecimento, pelo cidadão, da sua própria história e da história de sua cidade.

5 – Estimular a ampliação do saber. A diferença entre informar e conhecer está na cultura. A apropriação do conhecimento é uma ques-tão fundamental para a libertação. Como dizia José Martí, o povo só se liberta quando ele se transforma num povo culto, ou seja, informado, munido de conhecimento e sa-ber. Para isso, criamos o projeto “Paixão de

ler”, de estímulo à leitura.6 – Fazer da cultura uma política de Estado.

Quando pensamos em políticas locais – em expansão de equipamentos, em atender à maioria, em fomento, em orçamento pú-blico –, concluímos que somente o Estado é capaz de fazer tudo isso. Afinal, quem mais vai trabalhar com a universalidade, com o total acesso à educação e à cultura visando à ampla maioria, a periferia? O setor priva-do e o mercado não se interessam por essas questões.

7 – Levantar informações por meio de um cen-so cultural identitário, de uma nova carto-grafia sociocultural e urbana, porque hoje, de maneira geral, o gestor público desco-nhece a diversidade cultural de sua pró-pria cidade; é necessário haver informação para haver um adequado planejamento de ações. Ao mesmo tempo, é importante que sejam criados indicadores de avaliação da gestão e de impactos da política cultural na sociedade.

8 – Contribuir para inserção soberana do Brasil no cenário internacional, cumprir tratados internacionais e observar o cumprimento de recomendações assinadas pelo Brasil seja na Agenda 21 ou na Declaração Universal da Diversidade Cultural, da Unesco, mas traba-lhar para que o Brasil tenha o seu lugar no cenário internacional com autonomia.

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9 – Estimular a integração na convivência so-cial, rompendo guetos, combatendo pre-conceitos e a criminalização de manifesta-ções culturais, principalmente da chamada “estética da periferia”.

10 – Integrar, de maneira transversal, as polí-ticas públicas e as políticas das instituições públicas e privadas, com destaque para a integração com a educação e a rede de en-sino. Buscar, ainda, a rearticulação entre ciência e arte.

11 – Integrar os Três Poderes sob os princípios da República Federativa.

12 – Democratizar recursos e gestão, criando instrumentos de participação direta da so-ciedade e garantindo a liberdade de expres-são nesse processo.

13 – Democratizar os instrumentos de infor-mação, comunicação e difusão; buscar a inovação tecnológica e o uso de novas tec-nologias em todos os campos; e promover a apropriação do conhecimento digital pela sociedade. Este é um ponto fundamental porque a comunicação é irmã gêmea da cultura e não podemos trabalhar a cultura sem que a informação esteja democratiza-da, regionalizada, com espaço para produ-ção independente. Trata-se de uma batalha dificílima, porém estratégica para o país.

14 – Elevar o espírito crítico, a capacidade de elaboração simbólica e a consciência; esti-

mular o pensar e a ação política e promover debates locais, nacionais e internacionais.

15 – Planejar a intervenção urbana em função da cultura; preservar a ambiência cultural, a memória e o patrimônio histórico; obser-var a estética dos espaços e dos equipamen-tos públicos.

16 – Estimular o desenvolvimento econômi-co e a indústria criativa, intensificando as cadeias produtivas e ampliando o merca-do de trabalho. Este é um ponto bastante importante porque a atividade com maior dinâmica e que mais cresce no mundo é a cultural, beneficiando diretamente a socie-dade e a economia. A cultura representa hoje 7% do PIB mundial. No Brasil, con-forme mostra a última pesquisa do IBGE, esse percentual é de 6% do PIB, com cres-cimento de 500% em 10 anos. O estado do Rio de Janeiro é o campeão nacional, com 4% do seu PIB nessa área, o que significa mais do que os ramos de metalurgia e de confecção. Além disso, a indústria criati-va envolve hoje, no Brasil, 1,8 milhões de pessoas na formalidade; na informalidade, esse número pula para 3,6 milhões. Ainda no mercado de trabalho, devemos estimu-lar formas variadas de organização, como as cooperativas e associações.

17 – Vincular fortemente a cultura à qualidade de vida, incluindo neste item a preservação

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do meio ambiente e o apoio ao uso de fon-tes alternativas de energia.

18 – Possibilitar a formação profissional, espe-cialmente dos gestores públicos.

19 – Criar, apoiar e participar dos grandes eventos na cidade; promover intercâmbios culturais regionais, nacionais e internacio-nais.

Singularidade da criaçãoPara além desses eixos, é importante

ainda ressaltar alguns aspectos que devem ser levados em conta quando pensamos no desenvolvimento cultural. Nesse sentido, é preciso ressaltar que a criação é algo singular e não pode ser tratada como uma mercado-ria qualquer. Existe uma estilista em Maceió que precisa de um ano e dois meses para fa-zer um vestido de renda, trabalhando com outras 30 mulheres em cada peça de roupa. Isso é fenomenal. Como aferir esse trabalho? Como se paga por esse trabalho? Repito: esse é um tipo de trabalho criativo, singular e muito importante.

Outro ponto que deve ser valorizado: os produtos literários, fonográficos, audiovisu-ais, de comunicação, design, webdesign, de-sign gráfico, design de produtos etc. Todos os produtos têm alguém que cria o formato. Estamos tentando criar a agenda pública do design na área do mobiliário urbano.

Colocando em prática nossos princípios norteadores, incorporamos na agenda cultu-ral coisas que estavam de fora, como o Cen-tro de Tradições Nordestinas Luiz Gonzaga, a Feira de São Cristóvão. Estamos chamando os concursados das áreas de arquivo e biblioteca que ficaram dormitando nas gavetas da pre-feitura. Hoje, temos na cidade 70 equipamen-tos culturais, entre lonas, teatros, centros cul-turais, centros de arte etc., com perspectiva de ampliação. Além disso, contamos com a Rio Filme, única empresa pública de audiovisual do Brasil. Criamos uma assessoria internacio-nal, a Coordenadoria de Museus e a Gerência de Música, que não existiam.

Inserção na rede escolarUm dos pontos, para mim, mais impor-

tante e estruturante em nossa gestão é a in-serção da cultura na rede escolar. Em agosto, iniciamos 450 cursos de arte nas Escolas do Amanhã. São 150 escolas com segundo tur-no usado para a cultura. E, de fato, o diálo-go com o setor da educação não é fácil. Fica-mos cinco meses no debate com a Secretaria da Educação para conseguir implantar esse projeto. E estamos trabalhando com grupos culturais, professores universitários, artistas, pedagogos etc. Ou seja, é algo absolutamente qualificado. É, de fato, dar uma formação que amplia o universo e dá plena cidadania a es-

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ses meninos e jovens do ensino fundamental, ampliando seu universo, rompendo guetos e permitindo maior conhecimento da sua pró-pria história e de sua comunidade.

Também conseguimos, ainda que com muito custo, entrar no canal de televisão do município, a MultiRio – ligado à educação – e estamos trabalhando para que parte da pro-gramação seja coordenada pela Secretaria de Cultura. Além disso, recriamos o Fundo de Apoio ao Teatro (Fate), que estava desativa-do, e fizemos editais de ocupação dos teatros e lonas culturais. Neste ponto entra um debate importante: de quem é o equipamento público? Com 15 dias de gestão à frente da Secretaria, fui criticada por jornais de grande circulação da cidade simplesmente por não renovado a política feudalizante dos teatros aplicada até então. Equipamento público tem de ter projeto de ocupação, pesquisa de linguagem, de espe-táculo. Os teatros da cidade do Rio de Janei-ro tinham pouca rotatividade de espetáculos e espaços e horários ociosos. Estas são questões que levam à democratização do acesso à cul-tura, de abertura de oportunidades para novos projetos, diretores e companhias.

Fizemos o mesmo com a utilização do ISS (Imposto sobre Serviços); ainda não mudamos a lei, mas mexemos no decreto nos moldes do debate nacional que vem ocorrendo com a Lei Rouanet e buscando formas de democratizar

esse recurso em prol da cultura, especialmente diante das limitações do ponto de vista do orça-mento de que dispomos. A Secretaria de Cultura conta com 0,6% do orçamento próprio do mu-nicípio, o que é muito pouco diante da riqueza cultural, tamanho da cidade e da população.

Estamos desenvolvendo outra ação: a rea-lização da primeira Conferência Municipal de Cultura, a criação do conselhos, fóruns, comis-são de circo, fundo municipal de cultura, plano municipal de cultura.

Fizemos, ainda, como coloquei antes, o Vi-radão Cultural que não foi apenas um evento, mas uma expressão de política cultural e uma celebração de um novo momento que estamos criando de ocupação do espaço público, de in-tegração, de convivência e de busca por uma cidade única. E, a partir do Viradão, continu-amos mantendo as atividades de rua, onde fi-caremos permanentemente. Para isso, entre outros instrumentos, estamos usando um pal-co sobre rodas, um caminhão que levamos e colocamos nas praças, apresentando shows de artistas consagrados e iniciantes. O mesmo que fizemos no asfalto, fizemos também nas fave-las. Foi o caso do Cinema na Praça, que chegou a ter mais de mil pessoas em uma mesma ses-são. Algo fantástico.

Em parceria com a Secretaria de Saúde, tra-balhamos a prevenção da dengue; colocaremos agentes literários e teatrais no programa Saúde

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da Família que ajudarão na prevenção de doen-ças sexualmente transmissíveis, Aids, combate ao uso de drogas, gravidez precoce etc.

A política cultural tem de envolver a de-mocracia, a liberdade, a diversidade, mas tem de estimular a pensar, a debater, a elevar o nível de consciência. Então conseguimos, a partir de uma articulação com o BNDES, criar um ciclo de debates, de abrangência internacional, com a coordenação de Maria da Conceição Tavares. Esse ciclo de debate envolverá as questões cul-turais, de desenvolvimento econômico, huma-no e ambiental e é uma forma de coletivizar o debate político e ideológico das questões pró-prias do Brasil e de outros países.

Também estamos desenvolvendo parce-rias com os governos estaduais e federal. O Pronasci, por exemplo, tem sido muito im-portante porque se trata de usar a cultura na prevenção primária da violência. Estamos en-trando em nove comunidades vulneráveis, de baixíssimo IDH, para que possamos colocar os Pontos de Cultura.

Discurso e práticaProcurei fazer um balanço do nosso tra-

balho na Secretaria de Cultura porque acredi-to que o discurso só tem valor quando o colo-camos em prática ou buscamos realizar aquilo que pregamos.

Considero que, com o PCdoB, temos pos-sibilidade de avançar no desenvolvimento humano e econômico no Brasil, o que se ex-pressa em grande parte pela política cultural. Nós, brasileiros, dançamos para chorar, para comemorar, fazemos poesia, cantamos, nos expressamos, convivemos com o outro.

A cultura tem centralidade no desenvolvi-mento econômico e na integração das pessoas; em seu crescimento, em sua informação, na memória, servindo ao presente e ao futuro; é a integração histórica que precisamos ter, o reco-nhecimento, a elevação da autoestima, a possi-bilidade de dar um salto de qualidade. Cultura é direito à cidade, ao território, à sua história, a pertencer a algum lugar e a uma nação.

Precisamos trabalhar o desenvolvimento das pessoas a partir de sua educação, de seu conhecimento, de seu potencial. Temos uma cidadania jurídica quando nascemos e somos registrados, mas só teremos cidadania plena quando tivermos conhecimento e autorreco-nhecimento da nossa própria história.

Tenho certeza de que as pessoas de maior consciência, de militância, de inserção intelec-tual, movimentos sociais e populares podem contribuir e assumir a relevância desse debate na sociedade brasileira para que de fato refor-cemos a prioridade estratégica que tem a polí-tica cultural no Brasil.

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Pretendo aqui apontar alguns momentos da participação dos comunistas nos movi-

mentos culturais no Brasil para que seja possí-vel, à luz desta compreensão histórica, conhe-cer melhor o momento em que vivemos.

Personagem importante da própria fun-dação do Partido em 1922, Astrojildo Pereira tinha uma relação muito grande com os mo-vimentos sociais, especialmente com o teatro. Ele escrevia para o teatro, era dramaturgo e crítico teatral. E à época – década de 1920 –, era muito forte no Rio de Janeiro o Teatro de Revista, gênero de muito apelo popular, mui-to interessante porque falava da realidade da-quele momento. A revista era uma espécie de “indústria teatral”; os principais teatros do Rio de Janeiro, localizados na praça Tiradentes, es-treavam praticamente uma peça nova a cada semana, e sempre falando da atualidade, sobre

questões políticas, comportamentais, da cida-de. Pode-se dizer que o Teatro de Revista era a grande mídia cultural.

Também nessa época os intelectuais não tinham dinheiro. Assim, Astrojildo escrevia peças de Teatro de Revista para ganhar a vida. Mais tarde, houve uma tendência de historia-dores e intelectuais do teatro brasileiro mo-derno de desqualificá-lo, tratando-o como um gênero menor – o que não é verdade. Era um tipo de espetáculo extremamente musical, di-vertido, popular e que, ao mesmo tempo, utili-zava elementos narrativos sofisticados; não era realista, nem preso ao drama burguês.

Outro ponto: nesse mesmo período há uma coincidência histórica: o ano de 1922 marca a fundação do Partido Comunista e também a realização da Semana de Arte Mo-derna em São Paulo. Considero este um acon-

*coordenador do Circuito Universitário de Cultura e Arte (Cuca)

A participação dos comunistas na cultura ontem e hoje

Alexandre Santini*

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tecimento importante não do ponto de vista político, mas da linguagem. Em 1927, Oswald de Andrade publica a revista de antropofagia Segunda Dentição, na qual lança o Manifesto An-tropófago. Aliás, o conceito de antropofagia, tal como elaborado por Oswald, deve ser uma importante referência teórica para se enten-der questões como identidade nacional, di-versidade cultural e tudo o que tratamos no âmbito da cultura hoje.

É importante recuperar o entendimento de Oswald de Andrade sobre a questão da an-tropofagia, especialmente pelo fato de ele ter usado uma revista para divulgar essa ideia. A publicação, naquele momento, era um ins-trumento importante de agitação política e de comunicação e Oswald queria fazer aquilo não como uma obra para ser colocada num museu ou galeria. Ele encarava sua militância cultural também como ação política.

Oswald, também militante comunista, criou nessa mesma época o jornal O Homem do Povo, de agitação e propaganda, um instru-mento revolucionário. Além dele, é importan-te também citar uma mulher, Patrícia Galvão, a Pagu, inclusive uma militante mais orgâni-ca, partidária e ativa do que o próprio Oswald. Foi muito importante a relação estabelecida entre o modernismo e o movimento comunis-ta, especialmente a partir da década de 1930.

Outro nome importante nessa relação foi

Mário de Andrade. Em 1929, quando houve a crise da Bolsa de Nova Iorque e consequente-mente a crise do café – quando Getúlio Vargas mandou queimar muitas plantações para de-fender o preço deste produto do ataque especu-lativo –, ele escreveu uma ópera, pouquíssimo conhecida, chamada O Café. Fui montá-la na universidade, na escola de teatro, e um profes-sor tentou proibir dizendo que aquilo não era teatro e que eu deveria fazer outra coisa. Essa reação tem a ver com o fato de a peça tratar da revolução brasileira a partir da crise. Mário de Andrade fez uma metáfora alegórica sobre a revolução, trabalhando a ideia de que, devido à recessão e às queimadas, os camponeses sa-íram do campo e tomaram a cidade. Era uma ópera sobre a revolução brasileira.

Carlos Drummond de Andrade, também militante, foi outro exemplo. Assessor do mi-nistro Gustavo Capanema a partir de 1934, ele teve um papel importante naquele momento do Estado Novo, de construção de um pensa-mento nacional da cultura e do país. Seu po-ema A Rosa do Povo foi inspirado na vitória de Stalingrado, quando as forças soviéticas derro-taram o nazismo. Drummond abre dizendo: “a poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, o que também revela a compreensão da neces-sária relação entre arte e política, entre arte e vida. Ou seja, queria dizer que poesia, agora, também seria feita nas ruas pelo povo.

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A meu ver, é importante resgatar fatos como esses porque a historiografia oficial do teatro e da arte brasileira não fala disso. E não há uma análise sistemática do que foi a partici-pação dos comunistas na trajetória cultural do país, especificamente do teatro. Isso não acon-tece por acaso e é fundamental que esses fatos sejam reconstituídos.

Cultura e movimento estudantilNo que diz respeito ao movimento cultu-

ral surgido a partir do movimento estudantil, vale ressaltar a contribuição provocada pela relação entre artistas e estudantes, sob inspi-ração política dos comunistas, na própria his-tória do teatro brasileiro.

Em 1938 é fundado o Teatro Paulista do Estudante, ligado à União Paulista dos Estu-dantes Secundaristas. E entre seus criadores estavam nomes como Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e Vera Gertel. O TPE tinha ata, estatuto e toda uma organização mi-litante. Ruggero Jacobi, que participara da re-sistência ao fascismo e viera da Itália fugindo da Segunda Guerra, tornou-se um dos princi-pais encenadores do Teatro Brasileiro de Comé-dia (TBC) e foi chamado para ser o presidente de honra do TPE.

Em 1958, Guarnieri – com apenas 19 anos – escreveu Eles não usam Black-tie. Pela primeira vez, o protagonista de uma peça era um ope-

rário, um homem do povo. A partir desse mo-vimento vem o Teatro de Arena. Portanto, não dá para contar a história da cultura e do teatro brasileiros sem, evidentemente, falar da parti-cipação dos comunistas.

Os comunistas também se esforçaram para construir um setor cultural do Partido, de organizar a atuação dos militantes no campo da cultura, da intelectualidade. Esse empenho tem, como um de seus resultados, a criação do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, que guarda diferenças importantes em relação a todas as outras experiências de teatro daquela época. O Teatro de Arena, por exemplo, talvez até tivesse avançado esteticamente mais, po-rém ele era feito para uma fatia muito peque-na da população, uma classe média que podia pagar para ir ao teatro. Já o CPC representava uma mudança importante do ponto de vista dos modos de produção.

Isso resultou de um contexto daquele período. Durante o governo de João Goulart, havia uma aliança positiva entre os movimen-tos sociais – em especial a UNE –, os artistas e o Estado. Uma união histórica que, naquele momento, criava condições para uma produ-ção cultural que não precisava de recursos do mercado ou de recorrer aos modos conven-cionais para acontecer. Isso foi revolucionário também do ponto de vista estético porque para se fazer uma estética revolucionária é preciso

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ter outros meios de produção. Nos anos 1920, Bertolt Brecht já colocava isso e só criou o que criou porque tinha apoio do movimento operá-rio alemão, inclusive com recursos financeiros. No caso do teatro brasileiro dos anos 1960, se seus produtores fossem pedir recursos para um patrocinador via uma lei como a Rouanet não iriam conseguir jamais.

Com a ditadura, o CPC acabou e tornava-se impossível manter a relação entre movimentos sociais, Estado e artistas. Mas, entre 1964 e 1968 se manteve a hegemonia cultural da es-querda no teatro e em outros campos da cultu-ra consagrada. Tal fenômeno ocorrera porque era uma hegemonia conquistada ao longo de muitos anos e que não podia ser quebrada de uma hora para outra. No campo editorial, vale ressaltar que na década de 1960 o Brasil pu-blicou mais livros de Gramsci do que a própria Itália, um contexto somente possível graças a figuras como Nelson Coutinho, Leandro Kon-der, entre outros.

A indústria culturalO que vivemos atualmente na vida cultu-

ral brasileira nada mais é do que a consequ-ência de termos tido uma indústria cultural implementada durante a ditadura militar. Ve-mos hoje o que são os meios de comunicação no Brasil, o que é a mídia e não dá para deixar

de levar em consideração em que condições a indústria cultural foi implantada.

Precisamos entender como essa indústria foi formada para compreender em que pé es-tão hoje os grandes meios de comunicação. Por que seus representantes se retiraram da Confe-rência de Comunicação, realizada em dezem-bro de 2009? Porque se o debate não for dentro da casa deles, eles não saem para debater com ninguém. É uma concepção autoritária de uma elite patrimonialista, que não abre mão de sua primazia, raivosa e preconceituosa. E, sobretu-do, se acha mais importante do que todos nós e de tudo o que falamos. Esse é o pensamento grotesco da elite brasileira.

Durante o neoliberalismo dos anos 1990, essa concepção se consolidou. Ficava impos-sível falar de arte comprometida, engajada, transformadora, de se fazer uma cultura com enfoque social porque não existia espaço para isso. Vivemos uma ofensiva no campo da eco-nomia e da política, mas é importante dizer que no campo da cultura ela foi ainda mais for-te. O neoliberalismo amesquinhou a produção cultural brasileira. O senador Pedro Simon, em audiência pública no Congresso Nacional sobre a questão da meia-entrada para os estudantes, colocou em lados opostos o movimento estu-dantil e os grandes produtores culturais, dizen-do: “fico com a UNE ou fico com os artistas?

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Porque para defender a cultura pode-se estar com um ou com outro”. Isso acontece porque na verdade grande parte dos artistas brasilei-ros, especialmente os mais comprometidos com o sistema hegemônico, os meios de comu-nicação, se amesquinhou mesmo.

Momento de retomadaAgora, vivemos um momento diferente,

de retomada. Trata-se de uma fase em que se faz necessário pensar num coletivo do PCdoB que atue na área cultural porque hoje existe es-paço para essa atuação.

O Circuito Universitário de Cultura e Arte da UNE (Cuca), por exemplo, quando foi reformado no final da década de 1990, num contexto ainda de resistência, tinha a perspectiva de pensar o fomento da produção cultural universitária a partir do movimento estudantil. Era uma alternativa muito impor-tante porque naquele momento não havia, pelos meios de produção convencionais, con-dições de a juventude ter espaço para criação das suas atividades culturais, de seus circui-tos e da circulação do seu trabalho.

Mas quando surgiram os Pontos de Cul-tura – ou seja, a partir do governo Lula – o trabalho do Cuca deu um verdadeiro salto de qualidade e mudou o enfoque, passando a se relacionar com eles e, assim, com a produção

que acontecia fora da universidade. Nesse sen-tido, acontece outra discussão sobre o papel da universidade brasileira que, acredito, vive hoje uma crise de legitimidade. Afinal, qual deve ser sua relação com o conhecimento produzido fora de seus limites, com a cultura e o conhe-cimento do povo brasileiro? Che Guevara dis-se que a universidade precisa se pintar com as cores do povo, porque se não fizer isso o povo a invadirá e a pintará com as cores que quiser.

Portanto, a meu ver, de certa maneira o Cuca está sob o signo desse pensamento. Co-meçamos a promover ações, levar os Pontos de Cultura para dentro da universidade e das co-munidades, filmar, registrar etc. A tecnologia do audiovisual nos permite fazer esse diálogo, e tem sido um instrumento de linguagem im-portantíssimo. Esse salto de qualidade ocorreu em função da atual conjuntura do movimento cultural brasileiro, que possibilitou reconstruir a relação entre a cultura, o Estado, a sociedade e as políticas públicas.

Coletivo de culturaA formação de um coletivo de cultura no

PCdoB é essencial para que os comunistas po-tencializem sua atuação. É importante tam-bém porque a cultura exige debate e também nesta área temos luta de classes. Podemos e devemos discutir a linguagem, a estética e o

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papel de determinadas manifestações porque nós, comunistas, se atuamos como artistas ou produtores culturais, o fazemos em certo sen-tido. Como gestores públicos não devemos de-finir o que pode ou não pode ser feito, mas po-demos escolher quais armas usar no que tange à produção cultural. E esse coletivo também contribuiria para fazermos essa discussão, o que é importante para nos posicionarmos fren-te a questões hoje colocadas na sociedade.

Por isso, o PCdoB precisa – porque a so-ciedade demanda isso – tomar posições com relação, por exemplo, à questão do modelo de financiamento e da reforma da lei Rouanet. Esse assunto perpassa a economia, os meios de produção e outros aspectos que envolvem a questão. Não por acaso os grandes detentores e captadores de recursos por meio de leis de incentivo fiscal são representantes do sistema financeiro. A Fundação Bradesco, a Fundação Roberto Marinho, o Itaú Cultural são alguns desses grandes captadores. Isso mostra o quanto a discussão sobre a mudança de mo-delo de financiamento da cultura no Brasil é política da maior importância.

Encerro minha contribuição fazendo duas citações. A primeira de Ariano Suassuna, sobre a questão da identidade do povo: “Não conhe-ço nenhum país além do meu. E mesmo dentro do Brasil só posso dizer que conheço verdadei-ramente o Nordeste, o sertão nordestino. Pres-

sinto, porém, que aquilo que o meu sangue tão ligado à áspera, seca e pedregosa terra sertaneja me sopra em relação à arte em geral e ao tea-tro em particular tem seus equivalentes e suas respostas em outras regiões além do Nordeste e eu outros países além do Brasil. Na verdade, a literatura, a pintura, a escultura, a arquitetu-ra e a música brasileiras, apesar de isso ser um fato pouco notado e salientado, têm um lastro tradicional e nacional respeitável. Esse lastro é formado pelo Barroco ibérico, que desde o sé-culo XVI começou a ser recriado, reinterpreta-do e reinventado aqui, num sentido brasileiro e original, com uma grosseria artesanal e mestiça que já se encaminhava para a criação de outro lastro. Aquele que hoje é construído por toda uma poesia, todo um teatro, toda uma escul-tura, uma pintura e uma música populares de primeira qualidade”. Essa é a chave que revela a relação entre o particular e o universal: tudo o que é universal em algum momento foi popular; isso vem desde os gregos, desde Shakespeare.

A segunda citação é de Glauber Rocha, enquanto profeta visionário: “Cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore, mas uma linguagem em permanente rebelião histórica. Somente os intelectuais desligados da razão burguesa, em consonância com as es-truturas mais profundas dessa cultura popular, é que configurarão o signo verdadeiramente revolucionário”.

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Estou no Ministério da Cultura (MinC) há mais de cinco anos. E nesse período, viajei

mais de 600 vezes pelo Brasil: da região do rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, municí-pio do Acre na fronteira com o Peru, até favelas do Rio de Janeiro, como Turano e Rocinha. É uma grande satisfação poder percorrer o país e ver o que tenho visto. Essa experiência me faz lembrar aquele poema de Gilberto Freyre, escrito em 1927, para mim é muito pulsante. Diz ele:

“Eu ouço as vozes Eu vejo as cores Eu sinto os passos De outro Brasil que vem por aí”.

E, observando de perto a realidade nacio-nal, não consigo imaginar um caminho para a

revolução brasileira que não passe pela cultura, pela mudança de mentalidades, de comporta-mentos, de postura.

A criação dos Pontos de CulturaQuando passei a atuar no MinC, havia um

desejo do presidente Lula de construir centros culturais nas periferias. Por diversos motivos, essa ideia não vingou. Diria que a principal razão foi o fato de o foco estar totalmente vol-tado para a questão da estrutura. E aí surgem diversas questões relacionadas ao seu funciona-mento: Como esse espaço seria mantido? Quem faz a oficina? Quem desenvolve? Lembro que fui para o ministério junho de 2004 com essa proposta já em andamento e tinha a missão de organizar tudo isso e fiquei desesperado. Afinal, era um pedido do presidente e, quando estamos no governo, achamos ser preciso sempre obede-

*secretário Nacional de Programas e Projetos do Ministério da Cultura

Célio Turino*

Pontos de Cultura: construtores de identidade e bases para um novo Estado solidário

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Pontos de Cultura: construtores de identidade e bases para um novo Estado solidário

cer à autoridade maior. Mas, para ser leal numa relação de governo, temos de propor alternati-vas que se mostrem mais viáveis. Foi o que fiz, mudando por completo a proposta original. As-sim nasceram os Pontos de Cultura.

Analisando o projeto, pensava: “para pa-gar o serviço de vigilância do centro cultural por 24 horas teremos que desembolsar de 5 a 8 mil reais. Não tem cabimento, pois este dinhei-ro seria muito melhor aplicado se investisse di-retamente no ‘pulsante’, nos grupos culturais que já desenvolvem seu trabalho com tanto sacrifício. Agindo assim esse mesmo dinheiro significaria um impulso enorme”.

O Ponto de Cultura é uma experiência que trouxe de minha gestão à frente da Secretaria de Cultura de Campinas (SP), entre 1990 e 1992. Na época, chamavam-se Casas de Cul-tura e também realizávamos um evento cha-mado Ecos da Juventude. Foi uma experiência isolada de uma prefeitura de cidade grande do interior de São Paulo. Ocorre que, com a mu-dança de governo, não houve continuidade. Mais tarde, no ministério, tive oportunidade de retomá-la em escala federal.

A primeira mudança no projeto foi tirar o foco da estrutura física e olhar para o fluxo, que é natural, orgânico. É simples perceber o que isso significa: nossa estrutura óssea, ou musculatura, não nasce acabada, mas cresce com o tempo.

Esse princípio de que a vida é mais pulsan-te, é um fluxo contínuo, não é novo. Heráclito, pensador pré-socrático de 2.500 anos atrás, já dizia: “Tudo flui”; nunca se pode observar o mesmo rio porque suas águas nunca serão as mesmas e ao mergulhar nele, o rio deixa de ser apenas rio e passa a ser as águas e a pessoa que está nele. Arquimedes também dizia: “tendo um ponto de apoio e uma alavanca, moverei o mundo”. Portanto, são duas bases filosóficas inseridas nos Pontos de Cultura, além de Espi-nosa e Marx, claro.

A ideia central do Ponto de Cultura é bus-car esse sentido de potência e ir construindo uma política pública no processo, servindo para impulsionar ações já existentes. Nesse sentido, ela é uma política pública de caráter fenomenológico; é construtivista. Para ter uma ideia, na época o orçamento da minha secre-taria era de cerca de 5 milhões de reais e hoje, cinco anos depois, passou para 130 milhões de reais. Além disso, foram assinados convênios trienais nos últimos seis meses que somam cerca de 300 milhões de reais, envolvendo con-trapartidas de estados e municípios. E chega-mos ao final de 2009 com 2.500 Pontos de Cul-tura espalhados por todo o Brasil. Para que te-nhamos uma noção do seu alcance, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 90 anos de atividade, chega a 200

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municípios. Em cinco anos, passamos de 800. Qual o segredo? Quando uma política pública tem uma base conceitual clara, coerente com os anseios da sociedade, os recursos aparecem.

O Ponto de Cultura é, na verdade, uma iniciativa da sociedade e pode ser um grupo de teatro, uma ONG, um sindicato, uma aldeia indígena, uma entidade de assentamento ru-ral etc. Cada um recebeu 180 mil reais em três anos, 60 mil por ano. É importante notar que se dividirmos esse valor por 12, são 5 mil re-ais por mês, ou seja, o equivalente ao que se gastaria com a vigilância num centro cultural. E é um valor que chega diretamente na pon-ta, sem intermediações. Acredito que não haja nenhum programa federal com esse grau de aplicação direta.

A essência dos PontosMas, tão ou mais relevante do que isso é

a articulação em rede, o movimento, a possibi-lidade de trocas. Trabalhamos na prática com a construção de identidades. O Brasil não é mul-ticultural, como muitos intelectuais creem, mas intercultural; somos canibais, antropófagos e di-gerimos a cultura. Neste sentido, considero que a definição dos modernistas continua sendo a que mais se aproxima de nossa natureza cultu-ral. Praticamos o que resumo na seguinte equa-ção: identidade + alteridade = solidariedade.

Alteridade é quando nos enxergamos no outro; e a identidade quando nos reconhece-mos no outro, resultando na solidariedade prá-tica. A solidariedade, em geral, está no discur-so e só aparece na prática quando conseguimos perceber o outro e nos compadecer pelo outro, renovando o grau da política. Este é um aspec-to que buscamos praticar no Ponto de Cultura numa estrutura bastante simbólica em termos de luta. Pode parecer contraditório isto aconte-cer num país tão desigual quanto o Brasil, mas eu diria que talvez tenha sido exatamente esta equação que permitiu a nosso povo sobreviver a tantos maus tratos. Foi uma estratégia de so-brevivência que agora se revela como a princi-pal potência do povo brasileiro.

O Ponto de Cultura, repito, é uma ini-ciativa já desenvolvida pela sociedade e po-tencializada através do convênio feito com o governo. Isso significa quebra de hierarquias, construção de novas legitimidades em que se estabelece uma mesma plataforma para os mais diversos grupos e expressões. Desses 2.500 Pontos de Cultura, cada um é de um jei-to, tem sua própria essência.

E qual é a essência? A autonomia e o pro-tagonismo sociocultural da sociedade que se potencializa na articulação em rede quando os grupos se conectam entre si, ocorrendo as-sim um processo de desenvolvimento bastan-

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te significativo. Esse processo de desenvolvi-mento tem de ser integrado.

Ética, economia e estéticaA partir de minha experiência, posso di-

zer que a ética, a estética e a economia estão juntas; são inseparáveis. Fomos educados num marxismo mais rápido, para o qual a economia é que determina o pensamento, as mentalida-des. Hoje revejo isso. Afinal, ter uma postura de consumo consciente em relação ao meio ambiente, por exemplo, poderá determinar como será a economia. A tese do terceiro salto civilizacional, presente no Programa Socialista do PCdoB, necessariamente percebe que está na cultura a base para este salto, que envolve mudança de comportamentos.

Ao mesmo tempo, não dá para dizer que a economia não tenha sua função. Ela deve ter um papel ético, calcado em valores, da mesma maneira que deveria ser na política. Muito des-sa degenerescência da política no quadro ins-titucional – que não ocorre somente no Brasil, mas em toda parte – acontece porque a política se organizou, em grande medida, a partir da defesa de interesses. Os interesses são legíti-mos, mas para se transformar em interesseiro é um tropeço; e para um interesse virar um in-teresseiro cada vez mais amesquinhado, tam-bém é um pequeno passo.

Precisamos é retomar a política a partir da construção de valores, com a ética e a econo-mia andando juntas. Mas, se a ética e a eco-nomia não expressarem um comportamento, uma atitude, uma forma de as pessoas se po-sicionarem no mundo, também não avançare-mos. Precisamos desenvolver uma formulação cultural que envolva esses três aspectos: ética, economia e estética. A cultura é ética, é estéti-ca e é economia, tudo funcionando junto. E é isso que buscamos com os Pontos de Cultura.

Trabalhamos a cultura tradicional, por exemplo, com ação griô, termo que designa os contadores de história e intelectuais da Áfri-ca Subsaariana, de Mali, Senegal, que vão de aldeia em aldeia realizando brincadeiras, contando histórias. São músicos, genealogis-tas, transmissores das culturas orais. O nome vem de griot, uma invenção de estudantes da-quela região que foram para a França e que-riam encontrar uma denominação comum a esse conjunto de expressões. Aqui, chama-mos griô, figura de características brasileiras que surge a partir de experiência de um Pon-to de Cultura de Lençóis, na Chapada Dia-mantina (BA), envolvendo esse movimento imaginário, essa valorização da cultura dos mestres de capoeira, das parteiras, das reza-deiras. E resolvemos aproximar essa figura das escolas. O Ponto de Cultura oferece bolsa

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para griôs, que são representantes da cultura tradicional, que fazem uma reconexão de sa-beres com os mais jovens.

E qual a base da cultura tradicional? A confiança, a partilha. O que faz uma Folia de Reis sobreviver por séculos e séculos? Os ca-minhantes andarem ali durante dez dias e se manterem na festa, na caminhada? Um dá um prato de comida, outro dá lantejoulas, uma fita. Esse processo de partilha, de mutirão é que está na base do conhecimento da cultu-ra tradicional. A partilha também é a base do software livre, um código-fonte aberto, feito a partir de um trabalho colaborativo, comparti-lhado. Temos aí a cultura tradicional e a van-guarda da cultura digital se encontrando.

Portanto, o Ponto de Cultura funciona como um atrator. O princípio é o seguinte: te-mos aqui um ponto e ali um conjunto de pon-tos que estavam isolados. Eles já existiam; o que fizemos foi apenas criar a conexão entre eles e quebrar hierarquias. Ao aproximá-los, criamos essas zonas de conexão. Isso faz com que o elemento “A” não seja mais apenas “A”, mas “ABC” e assim sucessivamente.

Porém, a experiência é um pouco mais complexa porque com esse movimento vão sendo criadas diversas zonas de intersecção, ou seja, um determinado ponto pode ter um recorte de gênero e essa característica acaba

influenciando, mesmo sem ter contato di-reto, o Ponto de Cultura hip-hop, que pode, por exemplo, estar trabalhando de uma forma machista. Isso chega por onda. Um garoto do hip-hop chega ao Ponto de Cultura popular tradicional do Nordeste, que faz embolada, ou coco – expressões que essencialmente são a mesma coisa que o rap, ritmo e poesia – e ele vai fazer rap e repente; ou seja, acontece uma integração estética, o rap/repente.

Trabalhamos com a concepção de que um Ponto de Cultura deve ser sempre autônomo, mas articulado em rede e recebendo o apoio do Estado. Outro elemento comum aos Pontos é o estúdio multimídia, que consiste em uma pequena câmera de vídeo, três computadores operando com ilha de edição e uma mesa de som de oito canais. No início, dávamos o equi-pamento; depois começamos a repassar di-nheiro para o pessoal adquirir o que fosse mais adequado para suas necessidades. Assim, um garoto pode gravar um CD de música, fazer 50 cópias, vender, colocar na Internet e esse pro-cesso vai construindo novas narrativas.

Karl Marx já colocava que os meios de produção devem estar nas mãos de quem pro-duz. Esse é o espírito do que estamos fazendo: cada Ponto de Cultura tem os seus meios de produção para estabelecer entre eles um diá-logo em pé de igualdade.

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AutOEntrEvIStA

Como forma de passar aqui a síntese da mi-nha compreensão sobre a aplicação de políticas públicas para a cultura, coloco a seguir um resu-mo que fiz do final de meu último livro, Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima (Editora Anita Garibaldi, 2009), e que é uma espécie de auto-entrevista, como acontece no filme The commit-ments, de Allan Parker, em que um personagem dá entrevista a si mesmo, imaginando o dia em que sua banda irlandesa de blues seria famosa.

Gostei da forma narrativa de sua conversa com o espelho e resolvi usá-la para apresen-tar minhas inquietações, as conversas comigo mesmo, abrir o código-fonte.

Código fonte? O Ponto de Cultura tem os mesmos princípios de um software livre. É um código aberto.

Quais princípios? Generosidade intelectual, trabalho colaborati-vo, mutabilidade, criação comum.

Em que se sustenta um Ponto de Cultura?Na autonomia e no protagonismo social.

Quando um Ponto de Cultura se realiza? Quando se articula em rede.

Há desenvolvimento?Quanto mais redes intercaladas, maior o de-senvolvimento.

Que desenvolvimento?Das mentalidades, dos comportamentos, da economia, da cultura, dos valores.

Explique melhor.Cada rede forma um conjunto que se interliga a outros. A influência se dá a partir de zonas de aproximação que atingem os Pontos mesmo quando não há contato direto entre um Ponto e outro.

Que zonas são essas?Pessoas de uma rede e um gênero podem partici-par de redes de hip-hop ou cultura popular. Des-se entrelaçamento surge a zona de aproximação. Lev Semenovitch Vygotsky é que percebeu isso ao observar o desenvolvimento de crianças bem pequenas. E a esse fenômeno ele deu o nome de “zona de desenvolvimento proximal”. Prefi-ro “desenvolvimento por aproximação” por ser mais adequado ao jeito brasileiro de ser.

Como se dá a influência de uma rede so-bre outra?

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A rede de gênero, por um lado, pode influen-ciar na modificação de comportamentos ma-chistas nas redes de hip-hop ou de cultura po-pular que trazem consigo muitos preconceitos. São machistas, sexistas, por exemplo. Por ou-tro, a cultura popular pode realinhar elemen-tos da tradição. E a menina que faz rap, ritmo e poesia percebe que seu avô também faz ritmo e poesia com repente, coco ou embolada. Com isso, ela pode criar um novo ritmo musical, o rap/repente, unindo tradição e emancipação.

E a arte como fica?Outras redes ou conjuntos – como um grupo de experimentação em linguagens artísticas, dança contemporânea ou teatro de bonecos – aglutinam-se pelo apuro estético e oferecem sua mensagem. Sem qualidade artística, sem encantamento, não se vencem barreiras, não se quebram estereótipos, não se toca o coração.

Arte pela arte?Outras redes ou conjuntos aglutinam-se pelo compromisso ético. Uma rede de meninos e meninas de rua, trabalhos socioculturais, as-sentamentos rurais. Eles dizem que sem com-promisso com o seu povo, de pouco adianta a arte. E uma mensagem de uma rede chega a outra, entrelaçando conjuntos que se aproxi-mam por ondas até atingir pontos bem distan-

tes, com muito jeitinho, o jeitinho brasileiro.

Exemplifique concretamente.O prêmio “Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura” teve resultados artísticos conjuntos em 90 pontos. A “Central de Intercâmbio Ponto a Ponto”, para residên-cias e trocas entre os Pontos, é outro exemplo.

Há como permanecer imune, neutro?Assim como é impossível observar um rio, pois suas águas nunca são as mesmas, não se pode entrar no rio sem modificá-lo.

E quando os conjuntos se fecham em si mesmos, ou se relacionam apenas com assemelhados?Neste caso se formam os fundamentalismos. Infelizmente a história está repleta de conjun-tos que se fecham.

Como romper com o fundamentalismo?Para além da identidade, é preciso praticar a alteridade.

Identidade?É fundamental, de “fundamento”, pois sem identidade as pessoas e grupos não conseguem dizer quem são. Mas identidade sem alterida-de é insuficiente.

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Alteridade?É se reconhecer no outro por mais diferente que seja.

Como se pratica identidade e alteridade ao mesmo tempo?Não há fórmula, mas com jeitinho o Ponto de Cultura pode promover esta adição.

Adição?É, uma operação aritmética muito simples: identidade + alteridade = solidariedade.

E a cultura?Palavra difícil. São tantos os conceitos.

Após cinco anos teorizando e implantan-do Pontos de Cultura, qual o seu conceito?A cultura deve ser acompanhada por três “e”: ética, estética e economia.

Que economia?A solidária, com trabalho compartilhado, co-mércio justo e consumo consciente.

Como obter recursos para esta economia? Com respeito ao meio ambiente, trabalho hu-mano e a criatividade.

E a acumulação como fica?

Nossa lógica é outra, a do bem comum. Essa é a diferença entre livre iniciativa no capitalismo voltada para a acumulação de capital e a livre iniciativa no comunismo voltada para o bem comum.

Bem comum?Sim, os recursos naturais, a inventividade hu-mana, a terra, a água, o ar, todos são mercado-ria no capitalismo. O ar ainda não, mas pode virar. No futuro talvez alguém invente uma forma de ganhar dinheiro com redomas de ar puro em um mundo poluído. Minha avó dizia: “ainda vão cobrar o ar que respiramos”. Mas não precisa ser assim. Nem sempre foi assim. Para as gerações passadas seria impensável transformar a água, fonte vital de vida, em mercadoria. No final do século XX, em Cocha-bamba, na Bolívia, houve a primeira insurrei-ção contra a privatização da água e esse pro-cesso de mercantilização da vida. Venceram. A água voltou a ser um bem comum. Foi quando o avanço do neoliberalismo encontrou o seu primeiro freio. Bem comum. Também o trans-porte público, a educação, o lazer, a saúde, a cultura. Bem comum. Daí comunismo.

Comunismo?O comunismo não se realizou. As experiências do século XX identificadas como comunistas

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não o foram. Houve experiências de democra-cia popular ou socialismo, com forte interven-ção do Estado, muita burocracia e pouca liber-dade de iniciativa individual. A superação do capitalismo no século XXI se dará pela cultura do bem comum.

Seria o socialismo do século XXI?Uma alternativa em gestação, mas ainda não é um conceito preciso. O positivo na ideia é que se insere no contexto antineoliberal e de de-mocratização da América do Sul. Um socialis-mo mestiço. Mesmo assim prefiro a expressão comunismo. E é assim que me identifico e em todo lugar me assumo dessa forma. Por estar etimologicamente alinhada ao bem comum.

E o Estado?Em nosso atual estágio civilizatório, o bem co-mum não se realiza sem Estado. O que precisa-mos definir é qual Estado queremos.

Qual Estado?O Estado mínimo – insensível às necessidades das pessoas e subordinado à mercantilização da vida, agente da financeirização do mundo e da acumulação de capital – começa a ruir. Por outro lado, não interessa a volta do Estado pe-sado, intervencionista e burocrático. É preciso um Estado de novo tipo. Ao mesmo tempo leve

e presente, ampliado e gasoso. Um Estado vivo.

Estado vivo ou gasoso?Gasoso porque é leve como o ar, comum e pre-sente. Fonte de vida e liberação de energias. Vivo porque orgânico, em constante mutação.

não se desmancha?O que é sólido se desmancha, o gasoso se espa-lha, se mistura. O que é vivo se recria.

Como se faz esse Estado?Fazendo-se, sem modelos. O Ponto de Cultu-ra é uma pequena experiência do Estado, que aprende a conversar com o povo, e de um povo que se empodera.

Qual a principal característica?Um Estado educador.

Quais paradigmas precisariam mudar?Da estrutura para o fluxo. Do Estado que im-põe para o Estado que dispõe. Do Estado con-centrador de riquezas e informações para o Estado que libera energias. Do Estado imper-meável para o Estado penetrável. Do Estado que esconde para o Estado transparente. Do Estado que controla para o Estado que confia. Do povo que transfere responsabilidades para o povo que participa. Da desconfiança à confian-

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ça mútua, gerando responsabilidade e liber-dade. Da política pública focada na carência à política pública focada na potência. Exercícios. Exercícios de civilização.

Carência, potência?Talvez a chave esteja nessa mudança de para-digma. As políticas públicas são formuladas a partir do critério da falta, da vulnerabilidade. O Ponto de Cultura parte do oposto, parte da potência. É simples. Da potência lembrem-se do homem vitruviano, do Leonardo da Vinci, que vem do estudo de um arquiteto chamado Vitrúvio, 100 a.C., de proporção humana. E há uma equação matemática que Da Vinci resol-veu e que foi fundamental para a Renascença, que é perceber o homem enquanto medida. É simples, mas tenho muita dificuldade em convencer a burocracia de Estado. O gestor do Ponto de Cultura, por outro lado, Afonso do Maracatu, do Estrela de Ouro de Aliança, na zona da mata pernambucana, compreendeu na hora. Um Ponto de Cultura não se cria, se potencializa.

Como se sintetizaria a teoria do Ponto de Cultura?Com uma equação matemática.

Matemática?Quando compreendemos que a matemática

estuda a vida a partir de objetos abstratos e de suas relações, as equações tornam-se muito simples.

O Ponto de Cultura pode ser representa-do em uma equação matemática?Sim.PC = (a + p) (ar) Ou (a + p) (ar) = Empoderamento Social

Em linguagem verbal: ao somar Autonomia com Protagonismo, o Ponto de Cultura ainda não se realiza, pois é necessário que exponen-cialize sua potência em um conjunto de Arti-culações em Rede (quanto mais redes, melhor) para que alcance o Empoderamento Social.

Ponto de Cultura como ponto de empode-ramento social?E atrator de iniciativas.

Atrator?Na teoria do caos, há os estranhos atratores. Pequenos pontos que aglutinam energias e al-teram rotas.

O Ponto de Cultura funciona como um atrator?Sim. Pelas ações do programa Cultura Viva.

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Quais ações?Cultura digital, cultura de paz, Pontinhos, cul-tura lúdica, griô, Escola Vida, cultura e saúde, juventude etc.

Estas são ações do programa Cultura viva, e as ações da sociedade?São infinitas as possibilidades. No Fórum So-cial Mundial, a Aldeia da Paz foi montada por iniciativa de um Ponto de Cultura, a caravana Arco Íris. Eles praticam agroecologia, trabalhos colaborativos, biodigestores, filtragem natural de água devolvendo-a limpa aos rios. Na sequ-ência querem aplicar esse conhecimento junto às comunidades ribeirinhas da Amazônia. Cer-ta vez conheci uma moça em um Ponto de Cul-tura. Ela falava das múltiplas possibilidades de uma planta, o agave, que é o cisal. “Quem sabe cura a Aids. Note e perceba: agave, HIV. Quem sabe?”, disse. E aqui digo que não interessa a solução, interessa que as pessoas se colocaram a pensar.

São as ações que mantêm a pulsação do Ponto de Cultura?Sim. Do contrário, ele se fossiliza, burocratiza, necrosa. Ponto de Cultura é vida, e vida é fluxo.

Mas como as ações se encontram? Como os pontos de interligam?A teia é um construir constante, que também

precisa ser presencial unindo em um só lugar encantamento, reflexão e organização.

E entre as teias?Encontros de conhecimentos livres, i-Teias, portais, as redes colaborativas, os encontros, programas de TV, web, hardware.

Programas de tv?O único elemento comum a todos os Pontos de Cultura é o estúdio multimídia: uma câ-mera de vídeo, equipamento para gravação musical e três computadores operando como ilha de edição.

Cultura e comunicação?Uma não sobrevive sem a outra. Com os Pon-tos de Cultura abrimos uma fenda no mono-pólio das comunicações. E a polifonia começa a ser uma realidade.

Polifonia?É conjugada na primeira pessoa, na voz de quem faz sem intermeios.

E o que mais?Pontos de Mídia Livre. Uma nova rede que se abre, com muitas vozes e muitos meios; do mimeógrafo e estêncil aos blogs, rádios e TVs comunitárias. Com o prêmio Pontos de Mídia e Laboratórios de Mídia Livre preparamos os

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Pontos para mais um salto. Quem sabe um sal-to quântico.

E que salto é esse?Cultura em política. A cultura em política como base de ressignificação da política. Uma políti-ca como meio e o bem comum como fim. E aí vejo que fica absolutamente simples, possível, e fácil de conversar com essa ampla população brasileira a discussão do comunismo, da razão da nossa vida, nosso trabalho. Tem mais de 30 anos que faço isso e outros já fazem há 50, 60 anos.

Mas, então, a última pergunta: a cultura assumiria uma centralidade na política?É isso. Da mesma forma que os movimentos populares e sindicais estiveram para a redemo-cratização do Brasil há 30 anos, a cultura pode estar para uma nova política do século XXI, com uma diferença essencial: enquanto os mo-vimentos associativos, reivindicativos são mo-vidos por interesses – legítimos, mas mesmo assim interesses – a cultura se move por valo-res. Política movida por interesses, facilmente resvala para a política interesseira. Não é o que vemos na política parlamentar dos tempos atu-ais? Uma política do bem comum tem de ser movida por valores. Essa é a ideia do Ponto de Cultura.

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Pretendo, neste texto, expressar uma análise da experiência como gestor de

políticas públicas culturais, de um ponto de vista conceitual, não academicista. De 1998 a 2009, por fruto de circunstâncias políticas e cumprindo tarefas como comunista, fui leva-do a ocupar por quatro vezes a Secretaria de Cultura do município de Maceió e do estado de Alagoas.

Faço, aqui, uma reflexão a partir da in-dagação: em que rumo estamos participando como gestores ou como agentes dentro dessa atividade da cultura, que é uma cultura políti-ca? Esta pergunta nos fazemos, no contexto de uma grande peleja política e teórica, nos mais diversos campos, mas também de forma mui-to forte, na área da cultura – seja nas políticas públicas culturais, seja como indivíduo, parti-cipante das ações culturais.

E, se estamos nesse combate político, teó-rico, e até ideológico dentro do âmbito cultural, como chegamos até aqui, como gestores públi-cos de políticas culturais? Estamos dentro de que conteúdo, que estrada, que via? Esta re-flexão trago para a minha própria vivência de gestor público de cultura, e de comunista.

Nesse sentido, há três questões, três perí-odos históricos contemporâneos, que nos situ-am no atual momento. O primeiro deles é a era Vargas. Nesse período – embora contraditório, paradoxal e em determinada fase autoritário – temos, até hoje, a principal referência da cons-trução de políticas do Estado para a cultura.

vargas, Juscelino e Jango: O Estado passa a atuar na CulturaDurante o período Getúlio Vargas se ges-

tou um projeto de intervenção do Estado no

*secretário de Cultura de Maceió

Eduardo bonfim*

o Estado como responsável por um desenvolvimento cultural em novas bases

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sentido de aportar instrumentos públicos na cultura. Hoje temos um aparato institucional mais modernizado, atualizado, detalhado. E a explicação que encontramos para isso está no fato de todo esse período ter sido permeado pela ruptura com a Velha República, o que le-vou à construção de novos instrumentos para o aparelho estatal.

O espírito da Revolução de 1930, de ruptura e modernização do Estado brasileiro, constituiu, sim, esses aparelhos em que atuamos e intera-gimos como gestores municipais, estaduais, in-clusive como gestores nacionais de cultura.

Para se ter uma ideia do que se gestou na Era Vargas, basta ressaltar que o então minis-tro da Educação, Gustavo Capanema, inaugu-rou, através de legislação, de ações e de outros instrumentos, vários organismos culturais, como a Superintendência de Educação Musi-cal e Artística, o Instituto Nacional do Cinema, o Serviço de Radiodifusão Educativa, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Serviço Nacional de Teatro, o Instituto Nacio-nal do Livro e o Conselho Nacional de Cultura. Todas essas instituições foram aperfeiçoadas, hoje têm outros nomes ou foram recicladas para outro contexto. Mas esse aparato existe até a atualidade.

Além disso, grandes contingentes de in-telectuais progressistas e de artistas se incor-

poraram nesse processo, durante esse período – um paradoxo, se levarmos em consideração a fase autoritária do primeiro governo Vargas. Cândido Portinari, Oscar Niemeyer e uma sé-rie de outros intelectuais foram incorporados no “fazer cultura”. Dentro desse contexto, po-demos dizer que estamos atuando dentro de um continuum histórico, de uma herança, em termos das estruturas de políticas públicas, na área da cultura.

O segundo momento histórico que mere-ce destaque é o governo Juscelino Kubitschek, uma continuidade desse processo de desenvol-vimento nacional da cultura e que acrescenta – mas não cria um salto de qualidade ou uma ruptura para uma etapa superior – dois pontos muito fortes: a criação de Brasília e a funda-ção da Universidade de Brasília, com incidên-cia muito intensa em nossa atividade cultural, numa fase de grande industrialização e muito otimismo nacional.

E, por fim, há o governo de João Goulart. Na sua época tivemos a cultura como refle-xão, como intervenção na sociedade. A cul-tura passou a ser elemento de transformação, principalmente com três iniciativas: o cinema novo, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) e um teatro de reflexão contemporânea e transfor-madora.

EdUARdO bONFIM

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Em seguida, veio a ditadura, que forjou no povo brasileiro uma cultura da resistência de-mocrática e popular. Um período em que essa cultura foi instrumento de luta e, embora em condições extremamente adversas, ela se enri-queceu e adquiriu grande vigor.

A nova elite cultural de FHC e a desconstrução do EstadoOutro período que desejo abordar é o de

Fernando Henrique Cardoso. Como secretário de Cultura de Maceió, convivi com seu gover-no. A cultura, durante as duas gestões tucanas, viveu um paradoxo.

Os aparatos institucionais estavam a ser-viço de uma elite refinada, requintada, exibi-cionista, e o governo FHC precisava romper com esse modo de cultura das oligarquias re-gionais para promover certa modernização nos espaços culturais institucionais. Mas não o fez no sentido de levar a cultura para as suas raízes populares, democratizá-la para amplos setores da sociedade, e sim para compor uma nova elite cultural que correspondesse às necessida-des do desenvolvimento do projeto neoliberal. Nessa época, existia a máxima de que no go-verno FHC a cultura era um bom negócio.

Desta forma, se constituiu uma “moder-nização” de políticas culturais do Estado, que formou, por sua vez, uma forte camada de in-

telectuais e agentes culturais que se transfor-maram nessa elite da era FHC ainda existente. E persiste até hoje o embate entre a elite de gestores culturais, desprovida de um projeto nacional para a cultura e intimamente associa-da a uma visão cultural eminentemente globa-lizante, versus aqueles que pensam na cultura, mesmo a de valor universal, voltada profunda-mente para um projeto nacional de cultura. E nós convivemos com esse embate no dia-a-dia, no concreto, como gestores públicos de políti-cas culturais.

Quando nos reportamos à questão da Lei Rouanet – que, na sua essência, tem um caráter extremamente conservador, e não democrati-zador – surge essa luta. Quando o Ministério da Cultura (MinC) busca uma reformulação dessa lei, com discursos os mais diferenciados possíveis, ele se defronta, exatamente, com a resistência de uma cultura, de ações culturais de instituições que sobrevivem muito bem à custa da Lei Rouanet. Os dados estatísticos do ministério a que temos acesso, por meio do site do MinC, revelam a concentração de po-der, de renda e de iniciativas culturais à custa da Lei Rouanet. Cerca de 80% das iniciativas dessa lei encontram-se no Centro-Sul do país. Ademais, dentro desse percentual, de 70% a 80% estão em nichos de setores poderosos da área da cultura.

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Foi a tentativa de desconstrução do Esta-do na área cultural sob um falso discurso de democratização. Por esse caminho, na realida-de, houve uma reformulação da elite cultural em nosso país.

Governo Lula: embate por um desen-volvimento cultural em novas basesA grande resistência à reformulação da Lei

Rouanet não é uma discussão do ponto de vista mais teórico, de conceitos e valores. É uma dis-cussão de poder, dinheiro, concentração de ren-da no campo cultural. Essa é a questão central.

Fala-se de dirigismo e estatismo quando, na realidade, não há nenhuma prova de que ações dessa natureza estejam sendo tomadas. Permeia-se na grande mídia, na realidade, a defesa do monopólio do poder e da renda nos meios de comunicação e de cultura. Essa questão é que está como elemento do combate teórico e político, dentro do mundo cultural. Estamos vivenciando esse embate e temos de nos posicionar e adotar conteúdo para termos uma linha de ação, como gestores públicos, na questão da democratização do acesso às políti-cas públicas culturais.

A Lei Rouanet é a expressão maior de uma estratégia que visava a desconstruir o Esta-do nacional. E, até hoje, os gestores culturais na Era Lula – ou seja, no período em que vi-

vemos – lidam com esse grande conflito, esse confronto de ideias. Nesse sentido, as políticas culturais no governo Lula vivenciam desde o seu primeiro dia essa luta.

Segundo, há uma batalha em outro campo: entre a necessidade de se constituir um mer-cado para a cultura brasileira e uma cultura de mercado. São duas coisas distintas. O governo FHC buscou “democratizar” e “arejar” o mundo dos gestores culturais públicos e privados com uma cultura de mercado. Lato sensu, o governo, neste novo momento que vivemos, busca cons-tituir um mercado para a cultura brasileira.

Mas, a doutrina neoliberal associada ao impulso de dominação imperial mudou a es-tratégia, induzindo a uma falsa contradição entre a sociedade e o Estado. Construiu uma extensa malha de ONGs, uma poderosa e bem financiada agenda de conflitos e dispersão à unidade social além de contrárias à soberania das nações emergentes pelo desenvolvimento econômico e cultural.

Atualmente, também ressurge o debate sobre se as políticas nacional-desenvolvimen-tistas estariam superadas – mas não porque negadas, e sim no sentido de que precisem de uma ruptura para um salto maior. E esse salto maior se expressa na necessidade de uma cul-tura associada a um Novo Projeto de Desenvol-vimento Nacional.

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Então, a rigor podemos dizer que há três períodos distintos na história recente: o mo-mento em que o Estado passa a atuar na cul-tura; o governo FHC, em que o Estado passa a ter uma visão de desconstrução da sua pró-pria política; e, agora, com Lula, a necessida-de de retomar uma nova política de desenvol-vimento cultural em novas bases. Ao PCdoB cabe também avançar nesse projeto, elaborar uma política mais avançada com sentido es-tratégico.

Por um Projeto nacional de Desenvolvimento para a culturaO que precisamos compreender é que nos

falta ainda um Projeto Nacional de Desenvol-vimento para a área da cultura. É responsabi-lidade do Estado – não só o Estado nacional, mas os regionais e os municipais – levar à frente um projeto que eleve o desenvolvimento nacional também na área cultural. Em outras palavras, é a centralidade da questão nacional na cultura.

Porque, se não estiverem incorporados a um Projeto Nacional e guiados por um rumo estratégico, os movimentos e organizações so-ciais que atuam na cultura poderão constituir--se em uma nova casta cultural.

Se não houver um Projeto Nacional, po-pular e democrático para a cultura, como um

instrumento de reflexão e de referência para a sociedade como um todo, de todo o povo bra-sileiro, florescerá uma cultura multifacetária e disforme, pontilhada de interesses de castas, “tribais” e multiculturalistas, que não corres-ponderão às necessidades culturais estratégi-cas da sociedade brasileira.

Portanto, é fundamental um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento na economia e também na cultura, que represente uma supe-ração do momento atual, mas não no sentido da sua negação, e sim no sentido de nosso con-tinuum histórico, para o século XXI, que cor-responda às novas exigências do mundo em que vivemos.

Então, quero dizer que na experiência que vivo como gestor não me sinto absolutamente em condições para, no dia-a-dia – no contexto de uma grande batalha política, teórica, ideoló-gica –, levar à frente nossas políticas culturais sem fazer essa reflexão diária e permanente.

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O Nós do Morro existe há 23 anos. De re-pente, começo a ver agora a discussão de

uma política cultural, um debate sobre esse plano nacional de cultura. Tenho visto, então, várias questões sobre as quais já pensávamos há muito tempo, mas nunca tínhamos sido ou-vidos. Isso ficou martelando em minha cabeça. No dia da entrega dos Pontos de Cultura, fiquei maluco, porque percebi ali a descentralização da cultura. Era difícil acreditar que a ação re-almente iria acontecer. E aconteceu, no estado do Rio de Janeiro e no Brasil todo. A questão dos Pontos de Cultura é algo que me deixa ma-luco mesmo, porque vivemos a vida toda den-tro de uma centralização muito grande.

Sou produto dessa centralização. Sou mi-grante, goiano, vivo no Rio de Janeiro há 34 anos, e moro no Vidigal. Cheguei em busca da cultura, do sonho de viver no eixo Rio-São Pau-

lo. Mas – talvez por ter sido pobre a vida toda, mas sempre com muitas oportunidades – me incomodou muito o fato de eu viver no morro do Vidigal há tantos anos, e ver tantas pessoas talentosas, mas sem oportunidades.

Um dia, consegui aquele sonho de viver no “eixão”, morar num apartamento em São Paulo ou no Rio e trabalhar com pessoas mara-vilhosas, como Domingos de Oliveira e Marília Pera. Mas algo me iluminou, não sei exata-mente o quê.

Certo dia, tinha ido com Marília Pera a Nova Iorque para apresentar um espetáculo e, chegando lá, todo mundo queria ir para a Broa dway, mas não me interessava; queria ir para a off, off, off Broadway. Queria ver o que a favela de lá fazia, porque eu morava na favela do Rio. Queria ver o samba de birosca, que era o blues na praça. Fui atrás disso e fiquei enlou-

*coordenador do grupo Nós no Morro

Guti Fraga*

descentralizar a cultura:

dar oportunidades iguais é

caminho para a mudança

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quecido com a qualidade do que vi, o cuidado nas coisas feitas para as pessoas que não têm oportunidades. E feitas com qualidade, com beleza.

Isso me intrigou muitíssimo. No avião, quando estava voltando, já pensava em largar tudo, começar do zero, porque queria fundar um projeto no Vidigal, com o qual as pessoas pudes-sem ter oportunidades. Pensei em começar um projeto de teatro, mas não simplesmente montar um grupo de teatro e, sim, formar um grupo com uma filosofia de vida, no qual a base fosse o cole-tivo. Essa seria a mudança da história.

Dar oportunidadesQueria levar adiante a ideia de multiplicar:

da mesma forma que se tem uma oportuni-dade, é importante repassar essa oportunida-de para alguém; ter solidariedade, disciplina, organização e responsabilidade – o que não é caretice, mas a única forma de as coisas fun-cionarem. E ser um bom cidadão, dizer “com licença, por favor, muito obrigado”. Isso não depende de classe social, nem de ser ou não terceiro mundo, nem de nada, depende de ser humano. E essa transformação a repetição é que fará. Não adianta.

Então, fundamos esse projeto com o objeti-vo de dar oportunidades, mas, claro, sem vender miséria. Dentro de meus conhecimentos, bus-

quei todas as metodologias da minha vida. De Stanislávski, a Grotowski, Boal, Almir Haddad. Uma pessoa que mexeu muito com minha ca-beça foi Paulo Freire. Não sou um intelectual. Mas não precisa ser intelectual para entendê-lo.

Busquei um processo metodológico pelo qual as pessoas pudessem compreender as coisas básicas da arte, por meio de um conhe-cimento próximo a elas. Foi muito engraçado porque eu já estava na mídia, na história, mas, encontrando e experimentando, no Vidigal, o máximo de sua arte, de seu conhecimento. E, quando chegava ao Leblon, ia tomar um chopp, as pessoas perguntavam como estava o “teatri-nho lá no morro?”. Eu sabia que iria comprar a briga do estereótipo. Vivemos um estereótipo. Esse projeto, quando o fundamos, não foi sim-plesmente para formar ator, mas pela arte.

Ninguém vai viver de teatro, é uma men-tira. Mas pode-se viver a arte. E o que é isso? O que é socialmente poder viver a arte? E que transformação isso pode provocar em sua vida? Porque a arte nos dá viagens inimagináveis. E ela não caminha sozinha. Não consigo ver a arte caminhar sem a educação.

O que mais encontrávamos – e hoje ainda é terrível – é garoto no ensino médio que não sabe ler. E aí detectamos ser preciso trabalhar a família, a educação e o projeto. Esse triângulo precisava andar junto.

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GUTI FRAGA

Mas, como fazer isso? Às vezes é osso duro de roer. Antigamente havia muita diretora de escola falando da escola como se fosse sua. Isso é papo furado. A escola é da comunidade. Vie-mos com essa história, comprando brigas.

Por isso, ficamos durante 15 anos sem ga-nhar um centavo de nenhum órgão público. As pessoas sempre me diziam “se liga, cuidado, não prepara a cama para vagabundo deitar”. E é verdade. De fato, existe a questão do inte-resse partidário. Às vezes as pessoas nos bus-cavam querendo chegar lá e falar do partido e tal. Mas na arte não tem partido, não tem re-ligião. As diferenças se encontram em prol de um objetivo comum. E nós trabalhamos dessa forma em nossa vida. Cada um tem seu partido político, sua religião, seu time de futebol. Mas temos, e dividimos, a arte.

Somos patrocinados pela Petrobras há oito anos e, a meu ver, realmente precisamos de uma política cultural de continuidade, não apenas de um ano.

transformação pela artePara o Nós do Morro no Vidigal, normal-

mente, vêm cerca de 1.500 pessoas na época de inscrição. Nós, no máximo, temos 80 vagas. Isso ocorre porque o projeto é uma referência, porque somos sérios. Podemos dizer que temos uma grade de aula invejável. Podemos compa-

rar com as escolas profissionalizantes existen-tes, mas, na minha opinião, são uma loucura. Como se forma um ator com um ano de aula? Três meses de interpretação, três de improvi-sação, três de corpo e três de canto. E acabou. Na grade do Nós do Morro, há aulas de his-tória do teatro, história do cinema, literatura dramática, improvisação, interpretação, capo-eira, voz, canto, contação de história. É uma grade invejável, no mundo todo, não apenas aqui. A maioria das crianças entra no projeto com 7 anos de idade. E que cidadão é esse que começa no Nós no Morro, estudando este tipo de questão, e hoje na 8ª série?

Em minha opinião, a grande transforma-ção que acontece através da arte é a pessoa passar a saber quem é, passar a saber de suas possibilidades, a conhecer seus direitos. Vira um cidadão diferente. A arte não passa sim-plesmente por uma questão de visibilidade, de estar no cinema, de fazer um filme ou a novela das oito. Isso de entrar no mercado de traba-lho, claro, é legal também. Hoje é raro ver um filme brasileiro que não tenha alguém do Nós no Morro. Mas temos um pacto de vida.

A pessoa pode estar na novela das oito, no melhor filme nacional, mas ela precisa ter um compromisso de alma, precisa estar em suas bases, ajudando a pintar, ajudando a fazer, ajudando a varrer. Porque só o coletivo pode

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transformar alguma coisa. O Nós no Morro é um projeto sociocultural, cuidamos da nossa cultura. Ali experimentamos e vivemos pro-fundamente a nossa arte.

Por isso, hoje tenho um orgulho incrível de perceber essa preocupação com uma políti-ca nacional cultural de verdade, que passa por uma descentralização de grande importância. Porque esse nosso estereótipo de fazer teatro, arte e cinema na favela é o mesmo que existe no eixo Rio-São Paulo em relação a uma cidade do interior, por exemplo. Quando se faz teatro no interior, por mais que se esteja experimen-tando profundamente, as pessoas dizem “ah, você faz um teatrinho no interior? Legal”.

Esse é um problema cultural nosso. Mas acredito realmente na possibilidade de agora acontecer uma grande transformação nacional.

Nós fomos a Brasília apresentar o espe-táculo Os dois cavaleiros de Verona numa confe-rência de jovens ruralistas. Lá, caí do cavalo. Percebi que existe outro Brasil que não conhe-cemos. Fiquei chocado com o que vi lá. Pergun-tei para um dos garotos qual era seu grande sonho. Ele respondeu “só sonho do tamanho que posso sonhar”.

Eles têm atividades culturais a 300 km da capital, na roça. Então perguntei a outro meni-no como ele sobrevivia e ele me disse que ca-pinava. “Com 7 anos de idade ganhei uma en-

xada de presente do meu pai”, ele falou. Fiquei muito emocionado e quase chorei na hora.

Saí, peguei meu elenco que estava no ca-marim e disse “vão conhecer a realidade, ver o Brasil”. Então todos saíram e foram se en-volver com as pessoas, para se conhecerem e trocar experiências. Aí vi que olhávamos muito para nosso umbigo. Pensamos e falamos muito e apenas do nosso Rio de Janeiro. Mas o Brasil é muito doido, tem esses filhos de sem-terra hoje, por exemplo, que buscam uma política cultural.

Portanto, a meu ver, é um momento ver-dadeiro o que estamos vivendo. Tenho muita fé nessa mudança. Não temos de vender miséria. Chega. Este é um país que adora ser paterna-lista. E o paternalismo é uma porcaria para os pobres, porque não muda nada para eles. Te-mos de chegar de igual para igual. E, para isso, as possibilidades precisam ser iguais. Acredito que aí é que pode haver uma grande mudança.

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A cultura é um assunto estratégico que, infelizmente, ainda não foi devidamente

assimilado pela sociedade. De maneira geral, nem mesmo o nosso governo compreende pro-fundamente a importância da cultura dentro do projeto de nação.

A valorização da cultura ainda é uma dis-puta importante que consiste, entre outros aspectos, em deslocá-la do campo do supér-fluo, do secundário, para o centro da cons-trução de uma grande nação, uma nação de iguais, uma nação capaz de enfrentar os de-safios do século XXI.

A construção de novas bases no MinCEvidentemente, é inquestionável que

houve avanços enormes. Quando chegamos ao Ministério da Cultura (MinC), a pasta não representava muita coisa. Sequer encontramos

um lastro sobre o qual o ministério pudesse se desenvolver. Pelo contrário. Seu principal lema era “cultura: um bom negócio”, o que nos cho-cou bastante.

Claro, a cultura é um bom negócio, mas é muito mais do que isso. Esse lema refletia uma ideologia, uma lógica dentro do aparelho esta-tal; por isso, tivemos de construir tudo sobre novas bases.

O ministro Gilberto Gil teve importância decisiva; um grande artista popular colocando seu carisma e seu capital político a serviço des-sa construção. Gil foi nosso outdoor. Foi nosso aríete, nosso escudo protetor. Compramos to-das as brigas que precisavam ser compradas. E Gil foi inquestionável no apoio, na defesa, na vocalização dessa necessidade de deslocar a cultura de uma posição supérflua, secundária, para uma posição central.

*ministro de Estado da Cultura

juca Ferreira*

o deslocamento da cultura para o centro do projeto de nação

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No entanto, essa missão ainda precisa tri-lhar um longo e árduo caminho porque apesar de ser uma necessidade evidente, fazer esse deslocamento não é algo fácil. É preciso ter em mente que não existe possibilidade de se pen-sar no ser humano sem essa dimensão. O que nos diferencia dos outros animais é exatamen-te a necessidade e a possibilidade de simboli-zação.

Mas, essa necessidade e essa possibilida-de são desprezadas pela maioria dos projetos nacionais. No Brasil, particularmente, nunca se deu atenção nem se teve o cuidado que a cultura merece para ocupar o lugar que sempre deveria ter ocupado: o de elemento fundamen-tal de constituição da nação.

Temos uma riqueza cultural imensa. Talvez a cultura brasileira seja uma das mais diversas e mais ricas do mundo, e é fruto da construção do próprio povo brasileiro. O Estado sempre es-teve muito aquém desse patrimônio, a não ser em momentos muito específicos e através de ações isoladas. As políticas, na verdade, nunca se constituíram em sua plenitude para dar su-porte a isso.

reafirmação do BrasilEstamos vivendo um momento muito es-

pecial de reafirmação do Brasil como nação. Um processo em que, com todos os limites – e

são muitos –, o país – e aí o presidente Lula e seu governo têm tido um papel importante – está vivendo um momento excepcional de in-clusão de milhares de brasileiros na sociedade.

Essa inclusão é que possibilitou ao Brasil ser o primeiro país no mundo a sair da crise. A economia brasileira começou a crescer no-vamente, apesar de o mercado internacional ainda estar retraído. Lula teve um papel im-portante nisso. Entre outras ações, soube não subestimar a importância do comércio interna-cional para a economia brasileira. Em alguns momentos, o presidente chegou a ser ridicu-larizado por pregar a diversificação do comér-cio internacional brasileiro e acabar com a de-pendência de duas ou três relações comerciais. Hoje, menos de 20% das relações comerciais brasileiras são com os Estados Unidos.

Quando o presidente dizia que tínhamos de estabelecer uma relação privilegiada com a América Latina, particularmente no âmbito do Mercosul, com a África e a Ásia, a imprensa brasileira deu um pinote monstruoso, tentando achincalhá-lo como se fosse um erro gritante. Mas o resultando é que agora temos uma estru-tura comercial que dá grande suporte ao país.

Porém, o que de fato tem permitido o crescimento do Brasil e a rápida recuperação da economia é o mercado interno. Quando o presidente Lula assumiu, o mercado brasilei-

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JUCA FERREIRA

ro era um pouco maior que o da Inglaterra, aquela ilhazinha perdida no mar do Norte. Era ridículo o mercado brasileiro ser praticamente do mesmo tamanho que o daquele país, consi-derando as proporções territoriais e populacio-nais do Brasil. Nossa economia já estava acos-tumada a essa condição e a ser uma economia para poucos, refletindo a estrutura social ex-cludente da maioria da população.

Portanto, a associação do desenvolvimen-to com a inclusão é uma conquista inimagi-nável da sociedade brasileira. Isso é que nos possibilitará construir uma grande nação. Sem esse vetor, todas as outras construções são frá-geis, não por uma questão meramente econo-micista, mas porque se trata de garantir solidez suficiente para desenvolver as relações sociais dentro do país.

Esse contexto é que nos possibilita pensar no papel da cultura no Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (NPND). Hoje, já temos uma marca. E tal marca faz com que, no deba-te em torno da sucessão presidencial de 2010, todas as forças políticas – inclusive as tradi-cionalmente ligadas a essa exclusão e dela se alimentaram – reconheçam que esse processo é irreversível porque foi incorporado pela so-ciedade.

Os tais “formadores de opinião” evapora-ram e perderam a capacidade de influenciar a

maioria da população porque esta desfruta e participa de um processo político ao qual está sendo incorporada como cidadã. Esse aspecto é um marco importante para pensarmos a ques-tão cultural.

A cultura no novo Projeto nacional de Desenvolvimento

A discussão hoje é absolutamente diferen-te do que teria sido há 20 anos ou em qual-quer outro momento, porque estamos vivendo um momento especial. Precisamos consolidar culturalmente a construção que vivemos neste momento no país. Reconstituir e aprofundar valores, estabelecer padrões de solidariedade, reconhecer a diversidade humana do Brasil são alguns dos pontos que compõem a missão incontornável da cultura. A nação é feita de complexidade e diversidade que vai desde a di-versidade cultural até a humana; isso é que nos faz sermos homens, mulheres, gays, negros, brancos, mestiços. E o Brasil é tão complexo que talvez hoje sejamos o maior laboratório de diversidade no mundo.

Há cerca de dois meses fui, como mi-nistro, visitar uma região do Paraná há 200 anos colonizada pelos eslavos, principalmente ucranianos e poloneses. E desde lá estou per-cebendo que temos um discurso ainda atra-sado sobre a diversidade. Quando falamos do

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Brasil nos orgulhamos de ele ser uma mistu-ra, um amálgama, uma mestiçagem entre ne-gros, índios e portugueses. Mas, na verdade, hoje já temos 30 milhões de italianos e des-cendentes; temos mais libaneses no Brasil do que no Líbano; e temos ainda a maior colô-nia japonesa do mundo. Em nosso território vivem alemães, franceses, finlandeses, prati-camente todas as nações e culturas mundiais fazem parte hoje do Brasil, e com graus dife-renciados de relacionamento.

Nessa região do Paraná, quando eu dizia “vocês são brasileiros”, as pessoas eram iman-tadas de energia, os olhos ficavam úmidos. E, então, eu complementava: “O Brasil é ge-neroso o suficiente para não exigir que vocês se aculturem e deixem de ser o que são. Pelo contrário, vocês têm uma missão de incorpo-rar a essa complexidade brasileira o que vocês representam como singularidade dessa com-plexidade”. São impressionantes a alegria e o sentimento daquelas pessoas; era como se eu fosse um padre ungindo-as com água benta. Fui o primeiro ministro a visitar a região, com um discurso de assimilação, de incorporação. E eu chamava a atenção para o fato de o gover-no Lula ter essa marca: buscar fazer com que todos se sintam brasileiros e o possam ser na medida do possível, para criarmos, juntos, um processo de construção da igualdade.

A economia brasileira está se consolidan-do e temos políticas públicas sendo constituí-das. Mas, aponto três aspectos que constituem essa insuficiência a que me referi. Primeiro: não enfrentaremos os desafios do século XXI, nem seremos uma grande nação e nem uma nação de iguais se não formos capazes de ofe-recer educação de qualidade para todos. Este é um ponto que já está no imaginário da nossa cidadania. Mas, ainda precisa ser constituída. Não pode ser um esforço apenas do Ministé-rio da Educação ou das secretarias estaduais e municipais. Trata-se de uma tarefa muito com-plexa. Afinal, o que é educação? Quais os pa-péis da educação neste momento que o Brasil vive?

A segunda deficiência – a meu ver também de toda a sociedade brasileira e não apenas dos governos – é a questão da sustentabilidade. Não há mais possibilidade de contornar esse problema em nenhum lugar do mundo. É um tema de várias facetas: a preservação dos re-cursos naturais, das florestas, das águas; o uso racional desses recursos; a vida urbana; a tec-nologia e a matriz energética; etc. São muitas as questões que vão modificar profundamente muitos dos procedimentos e tecnologias hoje aplicados.

A terceira deficiência é a cultural. A cultura ainda não faz parte do grande debate nacional.

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Ainda é muito difícil fazer com que a sociedade compreenda a importância da cultura. As cor-rentes políticas que se revezam no poder – e, por questão de justiça, incluo a nossa, que dá sustentação ao governo – compreendem muito vagamente o papel da cultura. Gostam quando a cultura dá dividendos em curto prazo. E esta é a parte mais fácil de convencer porque a po-pulação valoriza essa dimensão.

Mas, quando se trata de construir a in-fraestrutura necessária para que o povo tenha desenvolvimento cultural, os gastos com essa área passam a ser secundários diante de ou-tros, vistos como prioritários. E a cultura é dei-xada em segundo plano.

Cultura como necessidade humanaPor tudo isso, acredito que para mudar

essa situação o primeiro passo é tratar a cultu-ra como necessidade humana básica e incon-tornável. Não há possibilidade de realizar ple-namente a condição humana sem garantirmos condições de desenvolvimento cultural para todos os indivíduos e para as coletividades.

O segundo ponto consiste no fato de que se a cultura é uma necessidade, é também um direito. O ser humano tem direito a realizar to-das as suas necessidades. Uma sociedade justa é uma sociedade que garante a realização ple-na desses direitos. Portanto, o Estado tem obri-

gação de garantir as condições para sua plena realização. É preciso consolidar essa visão em nossa sociedade e principalmente nos gover-nos. E este é um processo difícil, marcado por muita luta política e ideológica.

Na maioria das vezes a cultura e a ação do Estado são vistas apenas como uma ação de apoio a artistas. E a cultura não pode ser pensada dessa forma. O papel do Estado não é satisfazer demandas de artistas, mas respon-der às necessidades da sociedade na área cul-tural. E os artistas devem ser os grandes alia-dos porque o Estado não realiza cultura; ele a promove e cria as condições necessárias para sua plena realização. Por isso, é preciso haver uma grande aliança com os artistas.É o mesmo que deve acontecer na área da saúde com os médicos, ou na área da educação com os pro-fessores. Mas em nenhuma destas duas áreas alguém imagina que o Estado vá existir para alimentar apenas os professores e os médicos. Isso é elementar, mas ao mesmo tempo é mui-to complexo porque a demanda do setor cultu-ral é muito vinculada às suas necessidades e às suas demandas, e este setor não compreende a dimensão social que a cultura tem. Exemplifi-ca essa incompreensão a visita de um artista ao então ministro Gilberto Gil. Ele disse: “Gil, eu gosto de muitas coisas que vocês fazem, mas uma coisa me incomoda: vocês estão trazendo

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parte do Ministério do Desenvolvimento Social aqui para dentro”. Como se houvesse a possi-bilidade de desenvolver a cultura sem garantir seu acesso pleno a todos.

Hoje, por exemplo, estamos colocando mais recursos no cinema do que na época da Embrafilme e recuperamos a capacidade de fa-zer cinema no Brasil. Hoje, por um lado,já há de 80 a 100 filmes produzidos por ano no país. Por outro, mais de 90% dos municípios brasileiros não têm sequer um cinema. Em muitas cida-des, esses cinemas ficam dentro de shoppings a um preço absolutamente proibitivo para a grande maioria da população. Então, como se desenvolve uma indústria cinematográfica se a população não tem acesso aos cinemas?

Portanto, obviamente essas são duas di-mensões do mesmo processo. Não há possi-bilidade de pensar em ficar irrigando com di-nheiro público a produção cultural sem que se desenvolva a dimensão social dessa produção cultural. As duas questões são faces da mesma moeda: irriga-se, desenvolve-se e alimenta-se a capacidade criativa de nossos artistas e pro-dutores e, ao mesmo tempo, devem ser satis-feitas as necessidades e demandas da popula-ção que tem direito à cultura, principalmente quando essa produção cultural é feita a partir do dinheiro público.

Capacidade de subjetivaçãoNesse sentido, houve a grande ruptura do

governo Lula – porque compreendemos que o Estado tem responsabilidades e que a cultura não é supérflua, não é algo para ser tratado, como dizia Gil, “como a cereja do bolo”, como algo que só serve para enfeitar depois de tudo pronto.Na verdade, a cultura é parte essencial da construção dessa nova sociedade, porque não conseguiremos enfrentar os desafios do século XXI se as pessoas não tiverem capaci-dade de subjetivação complexa, de reflexão, de pensamento crítico, de relacionamento com os mais diversos processos que a contemporanei-dade exige de todos nós no dia a dia.

A cultura é, portanto, elemento funda-mental até mesmo quando pensamos estrita-mente sob o ponto de vista do desenvolvimen-to, mesmo que a realização da condição hu-mana seja deixada um pouco à margem para construir a reflexão. Até mesmo no aspecto econômico, porque o manuseio e a utilização de novas tecnologias exigem pessoas quali-ficadas. E preparar essas pessoas não é algo aritmético, de simples capacitação para o mer-cado. Na verdade, trata-se de formar pessoas equipadas com mentalidade, discernimento e preparação para manusear uma série de infor-mações e processos cognitivos que se dão hoje na sociedade e que, muitas vezes, não estão ao

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acesso de todos. E boa parte de nosso povo está excluída exatamente por não ter acesso a esses meios, a essa possibilidade de reflexão e às in-formações a respeito.

Essa é uma situação muitíssimo radical no Brasil. Cito como exemplo uma experiência pessoal. Costumo fazer compras todos os sába-dos. E, no supermercado, comecei a observar os carrinhos dos mais pobres. Fiquei impres-sionado com a baixa qualidade da alimentação que eles consomem; eles compram tudo aquilo que brilha, que tem propaganda na televisão. Compram aqueles biscoitos que parecem de isopor, salsichas vermelhas e muito refrigeran-te, produtos que não têm qualidade e infor-mação nutricional mínima para o mais básico, que é fazer a seleção e a escolha dos alimentos disponíveis.

Portanto, esse problema vai desde a mais elementar capacidade de garantir a sua sobre-vivência até as questões mais complexas, como enfrentar uma crise de valores onde as pessoas têm de ter um aparato mínimo pessoal, inclu-sive para poder se relacionar com a comple-xidade do processo. Dispor dessa formação é um direito da população. Não é possível deixar para o mercado a missão de construir essa for-mação. Afinal, o mercado tem interesse, uma vez que está voltado para o lucro. As empresas se organizam para investir e ter retorno.

Cabe ao Estado ser o instrumento social para a constituição desse saber. Isso não é es-tatismo. Não acredito na possibilidade de es-tatizar a cultura. O Estado tem um papel fun-damental dentro desse conjunto complexo de funções formado pelas organizações da socie-dade.

Desmonte do EstadoQuando chegamos ao Ministério, o pri-

meiro impacto que todos tivemos foi ver o quanto o Estado brasileiro estava desmontado. E onde isso se deu de maneira mais forte foi exatamente na área cultural. Bem ou mal, se alguém pensar em acabar com as escolas pú-blicas, no dia seguinte acontece uma revolução no Brasil. Se alguém eliminar completamen-te o caótico serviço público de saúde, teremos manifestações na mesma hora. O mesmo, po-rém, não acontece na cultura. Então, tudo foi destruído.

A primeira coisa necessária para mudar essa situação foi resgatarmos o real papel do Estado na cultura e assumirmos ser necessário haver um deslocamento importante do lugar da cultura no desenvolvimento do país. E nós, que trabalhávamos nessa esfera, tínhamos a obrigação de propor isso, de batalhar por essa mudança, de ampliar o horizonte do governo. Porque não basta incorporar economicamente

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ou aumentar o poder aquisitivo da população. É preciso incluir a cultura na cesta básica dos direitos, da casa e da mesa do cidadão. Essa foi a nossa grande batalha.

Para construir uma política pública den-tro do Ministério, estruturamos nosso traba-lho em três níveis. E isso deu originalidade, inclusive reconhecida fora do Brasil, às políti-cas do ministério. No primeiro nível tratamos a cultura como fato simbólico, que é a subs-tância maior da política pública. Isso significa desenvolver linguagens, criar infraestrutura que permita desenvolver e apoiar as mais va-riadas iniciativas culturais, inclusive da popu-lação mais pobre, para que ela possa ter suas expressões culturais reconhecidas.

O próximo ponto é encarar a cultura como direito, um fator de cidadania. Temos – e estamos perseguindo isso – de desenvolver a possibilidade de acesso pleno à cultura por parte de todos os brasileiros.

No terceiro nível é colocar a cultura como setor econômico importante e, por isso, preci-sa de atendimento do Estado como acontece em outros setores até mesmo com menos im-portância econômica do que a cultura. Hoje, o setor cultural é responsável, segundo o IBGE, por 5% do emprego formal e por pouco mais de 5% do PIB brasileiro. O próprio IBGE re-conheceu não ter estudado todas as cadeias econômicas, nem ter visto as repercussões da

cultura nelas. Mas, há reflexos positivos da atividade cultural que acabam envolvendo, estimulando e fortalecendo outras economias.

Lembro-me que, logo no início, a primei-ra entrevista dada pelo ministro Gilberto Gil foi ao Le Monde. A jornalista perguntou qual seria a marca de sua gestão. E Gil respondeu: “abrangência”. A jornalista me olhou, pedin-do socorro para entender o significado daqui-lo. E o próprio Gil explicou: “vieram vários pu-blicitários e políticos amigos aqui dizendo ‘não queira fazer tudo, escolha duas ou três coisas e faça bem feito. Faça como o José Serra e aí vai dar certo e vocês sairão prestigiados’”.

Aquilo parecia uma farsa. Se a cultura é complexa, é diversa, se escolhermos o cinema, podemos deixar o teatro de lado; se escolher-mos linguagens artísticas, podemos acabar abandonando as manifestações tradicionais; se escolhermos o desenvolvimento cultural, podemos relegar a preservação do patrimônio. Ou seja, isso não é possível. Precisamos mesmo é de abrangência. Essa complexidade do corpo simbólico do país é que precisa de carinho, de cuidado, de apoio, de fomento e de incentivo.

Evidentemente, ampliamos muito o pro-blema porque quando Gil disse isso ele com-plementou: “cultura não é só arte e muito menos arte consagrada. Tudo o que tem carga simbólica, tudo o que ultrapassa o limite do funcional passa a interessar ao Ministério da

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Cultura. Gastronomia, cultura digital, moda, tudo”. Resultado: o problema que já era gran-de ficou maior. Mas é isso mesmo: estamos construindo uma política e precisávamos es-tabelecer a cartografia, a perimetral dessa car-tografia, do que é cultura. Não basta focar na diversidade; é preciso também atentar para a questão da amplitude.

Estabelecido esse padrão, passamos a cons-truir as políticas. Na área de patrimônio, de me-mória, estamos revitalizando o Instituto do Pa-trimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Desenvolvemos um programa – o Monumenta – que já estava adormecido e hoje atuamos com ele em quase todas as capitais brasileiras e tam-bém em muitas cidades do interior que tenham patrimônio histórico tombado.

Desenvolvemos trabalhos com os museus; unificamos seus orçamentos, estamos recupe-rando vários deles por todo Brasil e estimulan-do museus privados, municipais e estaduais, como forma de fortalecer esse tecido de prote-ção das marcas identitárias do Brasil.

Também desenvolvemos a política de au-diovisual. Como já coloquei, estamos recupe-rando nossa capacidade de fazer cinema. Va-mos abrir uma política industrial com o BN-DES na área de animação. O Brasil tem con-dições de ser um grande produtor nessa área. E deve ser uma política industrial porque só assim funciona. Não adianta colocar uma mi-

galhinha ali para que se faça um desenho um pouco melhor.

Esse conjunto de ações, entre outras que devem ser feitas, vai tornando a superestrutu-ra simbólica brasileira densa e vai enfraque-cendo o processo de invasão do lixo cultural de tudo quanto é lugar do mundo, principalmen-te de uma mesma matriz que acaba formando a sensibilidade e a visão de mundo das pessoas no Brasil, quando temos possibilidade de fazer coisas que se pareçam conosco, que reflitam nossa realidade e que dialoguem com todo o nosso contexto cultural.

Pontos de CulturaE então começamos a inventar coisas.

Acredito que a maior delas foi os Pontos de Cultura, uma ação simples que parte do nosso reconhecimento de que o povo brasileiro faz cultura em todas as condições. E assim o povo acabou inventando uma tecnologia de prote-ção de suas comunidades, de construção da autoestima, de sentimento de pertencimento, de experiências estéticas às vezes bem com-plexas, apesar da pouca participação do Es-tado brasileiro. Ainda não existe esse censo, mas estimamos que possa haver muito mais de 100 mil grupos culturais, às vezes bem qualificados, por essas periferias das regiões metropolitanas, nos assentamentos, em tri-bos indígenas etc.

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E o que fizemos? Muito simples: reconhe-cemos que o povo faz cultura e que também tem direito de acesso a recursos públicos. No entanto, teríamos de ser muito delicados para não cooptar, mas, pelo contrário, empoderar-mos essa experiência a partir do acesso à tec-nologia e a recursos que ampliassem seus be-nefícios. Essa experiência hoje já está sendo copiada em outros países do mundo e coube a nosso querido Célio Turino organizar tudo isso.

É uma experiência genial. Pessoas que vi-vem em condições absolutamente dantescas, com sua comunidade entregue à violência e o meio ambiente degradado, criando belas ex-periências culturais. Certa vez, abri O Globo e vi a notícia de uma pessoa que criou uma bi-blioteca sobre uma palafita em Pernambuco. E, então, disse: “vamos lançar nossa política de leitura nessa biblioteca”. E foi uma confusão. Recebi uma informação do gabinete de segu-rança que o ministro não poderia entrar. Por coincidência, ou não, era a favela mais violenta de Recife. Fomos informados de que se fosse para ir, teria de ser com aparato policial. E eu disse: “não quero ir com aparato policial. Que-ro ir com o pessoal do Ministério”. Mas acabei tendo de ir com um aparato policial impressio-nante. E uma senhora na frente de um deles disse: “eles mataram três jovens aqui na sema-na passada”. Mais adiante, provoquei o biblio-

tecário perguntando: “você quer que eu cons-trua ali em terra firme uma biblioteca maior, ampla, com muito mais livros, com infraes-trutura?”. Ele respondeu: “Não. Enquanto minha comunidade viver nestas condições, os livros têm de ficar aqui também. Se não, per-de o sentido”. Se isso não é política, me digam o que é. Na porta da biblioteca estava escrito: “Nós não somos pobres, nós somos roubados”. Quer dizer, às vezes a classe média subestima o pessoal que está lá, mas esse pessoal está de olho no lado de cá.O Ponto de Cultura é esse reconhecimento. Vi coisas muito interessan-tes nessas minhas viagens como ministro. Vi uma orquestra de jovens lavradores que toca Bach, Vivaldi, Luiz Gonzaga. Os meninos são músicos clássicos e tocam com qualidade e se-renidade absolutas. Perguntei-lhes: “Não é di-fícil?”. Eles responderam: “Ah, a melhor parte é quando tomamos banho e saímos correndo para vir tocar”.

vale-CulturaOutra grande invenção foi o Vale-Cultura.

O Ministério vem aumentando o financiamen-to à produção cultural, mas faltava uma coisa: o Brasil não consegue incorporar nem 20% dos brasileiros em nenhuma das atividades cultu-rais significativas, a não ser a televisão aberta. Ou seja, o povo só tem isso como vinculação

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extensiva com a cultura. Não chega a 10% os brasileiros que alguma vez na vida entraram em um museu. Só 13% vão ao cinema e com a frequência em torno de um filme por mês. Só 17% dos brasileiros compram livros. Com o teatro e os espetáculos de dança, o índice tam-bém é pequeno e nunca chegou a 20%.

Portanto, com um apartheid cultural desses não há possibilidade de se pensar no Estado apenas estimulando a produção e a criação cul-tural para que apenas uma camada muito pe-quena da sociedade possa desfrutar dela. Isso não fortalece o Brasil e não cria uma nação de fato. Por isso, estamos perseguindo estimular o acesso com base naquelas três vertentes com que trabalhamos. Já temos vários mecanismos.

Os próprios Pontos de Cultura são uma política de acesso. Além disso, estamos ze-rando o número de municípios sem biblioteca no Brasil. Mas, ainda é pouco. A maioria dos municípios precisa de centenas de bibliotecas. Inauguraremos, também, uma nova geração de bibliotecas que não serão depósitos de livros à espera dos que já têm o livro. Elas serão ver-dadeiros centros culturais indutores da leitura, que relacionam o livro a uma série de outras curiosidades e necessidades intelectuais e ati-vidades.

Mas, o Vale-Cultura abre a todos os tra-balhadores uma possibilidade que se esten-

derá a todos os brasileiros. Há pressão dos funcionários públicos para serem incluídos e estou apoiando esta ideia. Afinal, por que só para os trabalhadores das empresas privadas? A pessoa tem acesso a um cartão magnético com um valor nominal inicial de 50 reais – acho pouco e o presidente Lula também. Mas a Receita diz que isso já vai significar quase 3 bilhões de reais de incentivo ao consumo cul-tural. Com o do trabalhador – de 5 reais ape-nas por mês – e com o da empresa, irá para 7 bilhões de reais, dinheiro que será injetado na atividade cultural.

O primeiro grande benefício é o acesso, a compra de livros, CDs, cinema, espetáculos. Mas existem muitas outras possibilidades. Os negócios culturais se aproximarão de onde essas pessoas moram porque 7 bilhões é di-nheiro em qualquer lugar do mundo. Por isso, vão querer construir cinema, livraria etc. mais perto dessas pessoas e com preços mais bara-tos, quebrando assim um pouco dessa lógica de economia para poucos. Os CDs legais serão incentivados proporcionalmente diante do CD pirata.

Existe uma pesquisa – a primeira em gran-de escala feita com a “nova classe média” – que se debruçou sobre as pessoas que, durante o governo Lula, deixaram as classes D e E e pas-saram à classe C. Boa parte dessas pessoas dis-

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se não se sentir parte da classe média por não terem acesso ao lazer qualificado. Eis a cultura como demanda da classe C.

Orçamento e relações interministeriaisRecentemente, o Ministério da Cultura,

que contava com 0,2% das Receitas Totais de Impostos da nação, passou para 0,6%. É um crescimento, mas não dá para comemorar. É preciso avançar mais. Poucos estados ou mu-nicípios ultrapassam esse patamar medíocre de menos de 1%, com – e para – atividades e políti-cas tão importantes que têm papel fundamental na construção deste Brasil que queremos.

Mas, apesar de haver uma avaliação muito positiva na sociedade – é a pasta mais bem ava-liada –, o Ministério da Cultura ainda é muito isolado e o apoio a ele muito passivo. Não nos metemos em nenhuma confusão com dinheiro público, nem em nenhuma crise da Esplanada dos Ministérios, embora os opositores tenham tentado fazer parecer que sim. Nossa concep-ção é a de que o Estado é um instrumento da sociedade que tem, entre outras missões, a de dar qualidade de vida, promover a igualdade e responder às demandas de toda a sociedade.

Além disso, temos procurado qualificar o Ministério e ainda tem muita coisa a ser feita neste sentido. A burocracia segue sendo muito

forte e resiste demais às mudanças. Por diver-sas vezes, tive de intervir pessoalmente, como ministro e antes como secretário executivo, para garantir que determinadas decisões do Ministério no plano político se realizassem. A burocracia resiste e tende a repetir os pro-cedimentos e os valores tradicionais. Mudar isso faz parte de um processo que estamos en-campando porque é necessário conseguirmos superar a instância burocrática e a dificultação de acesso à cultura que essa instância acaba criando.

Temos relações com quase todos os outros ministérios. A política do Ministério da Justiça e Segurança, por exemplo, tem na cultura um dos principais referenciais. O ministro Tarso Genro tem dito que quer substituir a polícia por processos de qualificação de vida das pes-soas que vivem nas periferias e áreas mais vio-lentas. E estamos nesses lugares abrindo Pon-tos de Cultura, pontos de leitura, financiando e levando atividades culturais para essas comu-nidades. Abriremos também em breve linhas de capacitação.

Temos relações muito boas também com a área de saúde, com o Ministério das Relações Exteriores. Mas, a relação evoluiu menos com um ministério que deveria ter andado mais: o da Educação. É preciso levar a cultura para a sala de aula. As novas gerações têm direito a

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uma educação mais qualificada. E não há edu-cação qualificada sem arte e cultura. O papel da escola não é apenas formar para o mercado de trabalho, mas formar cidadãos, garantir a pos-sibilidade de as pessoas terem uma subjetivi-dade complexa, desenvolverem sua capacidade crítica. E a arte e a cultura são instrumentos essenciais para qualificar a educação no Brasil.

Com o Ministério de Meio Ambiente tam-bém estamos conseguindo trabalhar com áre-as como a da consciência e da educação am-biental, de maneira que não seja aquela coisa chata, pequena, reduzida. Na verdade, trata-se de questionar uma série de valores, comporta-mentos e visões de mundo, e possibilitar que as pessoas e as comunidades possam desenvol-ver uma compreensão da sustentabilidade em suas próprias relações com o meio ambiente, com a natureza, e com seus padrões de con-sumo.

Processo irreversívelSou otimista. Estamos vivendo um pro-

cesso muito importante no país, que não é ir-reversível, mas já conta com uma rede muito grande de partícipes, e dificilmente regredirá. Não é apenas um ministério, mas uma nova geração de gestores municipais e estaduais, em grande parte, afinadíssima com esse mesmo processo e com essa consciência da importân-

cia da cultura e da exigência de tratá-la como um bem social de primeira qualidade e como um direito de toda a população.

Concluo reafirmando que vivemos um bom momento do ponto de vista cultural. As pessoas estão começando a confiar no Estado brasileiro. Todas as camadas e categorias de brasileiros estão demandando os seus direitos na área cultural a seus municípios, estados e ao próprio Ministério.

Conforme havia colocado, obviamente este não é um processo irreversível, mas dificil-mente voltará atrás porque já existe um marco e um reconhecimento geral. Poucos reclamam dessa compreensão. Outro dia o secretário de Cultura do estado de São Paulo disse, sobre esse debate a respeito da Lei Rouanet, que em-bora o dinheiro seja público deve ser dado para a empresa privada porque esta saberia melhor o que fazer com ele. Acredito que este tipo de posicionamento está ficando raro. Dá até para colocar num museu. Sinal dos tempos.

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Fundada em 1535, por Duarte Coelho, Olin-da é uma das cidades mais antigas do país.

Foi capital de Pernambuco até 1827 e teve im-portante papel na história do Brasil. Possui cer-ca de 10 quilômetros de Sítio Histórico, dife-renciado pelo conjunto de litoral, casarios, mo-numentos e rica vegetação. É Patrimônio Cul-tural da Humanidade, concedido pela Unesco, desde 1982.

Ainda sobre títulos, em 2006 Olinda con-quistou o de primeira Capital Brasileira da Cul-tura, por meio do Ministério da Cultura, com ampla campanha que teve como protagonista a própria população, elevando assim a auto-estima do nosso povo. Em 2008, Olinda rece-beu outro importante título, o de Memória do Mundo que resgata o primeiro plano diretor do país com o conjunto documental Livros Forei-ros, de 1537.

Mas Olinda vai muito além de seu Sítio Histórico. Com fortes raízes culturais é uma ci-dade que possui cerca de 400 mil habitantes, distribuídos em 40 km². Em Pernambuco é a maior densidade demográfica, e a 5ª maior do Brasil. Possui receita de R$ 200 milhões. Go-verná-la é um grande desafio. No início do pro-jeto político do PCdoB, que rege a cidade desde 2001, o município estava atravessando difícil situação e, em se tratando de Patrimônio e Cul-tura, havia uma ameaça concreta – denunciada em matéria na revista Veja – de Olinda perder o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, tal era o descaso do poder público com a pre-servação do patrimônio cultural.

Praticamente todos os equipamentos cul-turais estavam fechados, depredados. O carna-val, completamente descaracterizado. E ainda existia uma dívida junto a funcionários, além

*secretária municipal de Cultura de Olinda

Márcia Souto*

olinda: política cultural que valoriza o povo

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da falta de manutenção urbana e de muito lixo nas vias da cidade.

Orçamento pequeno, sem credibilidade no mercado porque fornecedores e empreiteiros estavam sem pagamento, salários atrasados do funcionalismo e baixa autoestima da popula-ção. Essa era a realidade do município em nos-sa primeira gestão. Olinda era, realmente, um grande desafio.

Uma das primeiras medidas adotadas pela gestão municipal do PCdoB foi definir eixos centrais de uma política cultural. O pri-meiro deles foi o fortalecimento da identida-de nacional, com a valorização do patrimônio cultural, tanto o edificado quanto o imaterial. Defendemos o resgate de nossas tradições, da formação do povo, a valorização das expres-sões populares.

Também investimos na restauração e na requalificação dos equipamentos e espaços públicos para que as manifestações pudessem aparecer. Além disso, com a democratização da gestão, fizemos a estruturação de um calen-dário cultural de eventos. Inserimos a cultura dentro do projeto de desenvolvimento econô-mico da cidade, pois cultura e turismo são ca-racterísticas/vocações naturais de Olinda. Im-plementamos, então, uma série de ações em que podemos identificar exatamente os eixos da política cultural traçada para Olinda.

Carnaval e calendário culturalComeço pelo primeiro Carnaval que organi-

zamos na cidade. A festa é um evento que não é feito pelo poder público. O povo olindense faz o Carnaval. As pessoas se organizam em blocos, agremiações, maracatus, desfilam e fazem a fes-ta acontecer. Ao poder público cabe organizar. E não sabíamos como em tão pouco tempo garan-tir a organização da maior festa popular do nos-so estado. Havia uma questão gravíssima: a falta de dinheiro. Além disso, não existia uma política de valorização econômica do Carnaval. No pri-meiro ano da captação de recursos conseguimos R$ 50 mil com patrocínio de uma empresa de bebida. Recebemos o dinheiro e gastamos mui-to mais para garantir a exclusividade de venda da bebida nas ruas. A partir dali, se desenvolveu um potencial econômico para o Carnaval.

Ainda no período de Carnaval, a eficácia da lei que proíbe a instalação do som eletrô-nico foi uma forte característica de nossa ges-tão, que garantiu o resgate das agremiações carnavalescas e grupos populares. A proibição do som mecânico durante o Carnaval existia desde 1997, mas não era cumprida. A partir daí, conseguimos garantir a volta do Carnaval tradicional, com o desfile das tradicionais agre-miações de fantasia, das orquestras de frevo, dos grandes maracatus, caboclinhos e todas as manifestações culturais do nosso povo.

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E como o Carnaval é a maior festa popular de nosso estado, serve como instrumento para inserir debates na vida, no dia-a-dia das pesso-as. Então, a festa traz temas e homenageados a cada edição. Em 2010, Olinda reverenciou os 35 anos do Mamulengo Só-Riso. Os temas se expressam na cenografia do Carnaval. Outros temas como “Memória do Mundo”, “350 anos da Restauração Pernambucana”, “Capital Bra-sileira da Cultura” foram destacados nos anos anteriores.

Em 2010 fechamos a captação para o Carnaval e apenas uma empresa do setor de bebidas investiu, a partir de licitação, R$ 2,9 milhões para garantir a venda exclusiva duran-te os 4 dias de festa. Este ano, transitaram por Olinda mais de 1,5 milhão de pessoas durante os quatro dias de folia. Os números mostram a evolução da captação de recursos e do poten-cial econômico que tem a cultura popular.

Atualmente, diversos eventos integram o calendário cultural da cidade. No Sítio Histó-rico de Olinda acontece, por exemplo, a Mimo (Mostra Internacional de Música de Olinda). O evento cresceu e hoje temos um trabalho que envolve um público de mais de 100 mil pes-soas e 800 músicos. Hoje, a Mimo realiza 22 concertos abertos ao público, dentro das igrejas de Olinda. Conta também com um forte pro-grama de formação de novos músicos, além de

capacitações e cursos de regência. Um trabalho integrado com o Centro de Educação Musical em Olinda fazendo chegar música de qualida-de a nossas escolas públicas. É um dos princi-pais eventos de música do país, um encontro da música popular com a erudita, clássica.

Outro destaque do nosso calendário é o Olinda Arte em Toda Parte, onde todos os ate-liês de artes plásticas se voltam para uma es-pécie de exposição coletiva, com a edição de catálogo anual. Em Olinda, a atividade está na 9ª edição e reúne 100 ateliês e cerca de 350 ar-tistas. O Olinda Arte em Toda Parte cria uma oportunidade de aproximação entre artistas e consumidores, que enchem as ladeiras da cida-de de cores e alegria.

O projeto NegroSambaSim resgata a questão do samba, da preservação dessa raiz, e também destaca a luta pela igualdade ra-cial. Há ainda o Olinda Jazz que promove um intercâmbio de nossa cultura com a África e com alguns países da Europa, em especial a Holanda. Todos os projetos buscam fortalecer a vocação natural da cidade, incentivar o que produtores, artistas e jovens já desenvolvem em seu dia-a-dia.

As festas juninas marcam o calendário do nordeste. No período do São João, em todos os bairros de Olinda tem arraial. E no centro his-tórico há shows, forró pé-de-serra, valorizando

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o que a cultura popular apresenta. Outras ati-vidades com programação cultural foram re-centemente inseridas no calendário da cidade, como Natal e Semana Santa.

Fica em Olinda o único quilombo urbano demarcado de nosso estado, o Quilombo Ur-bano Portão do Gelo – Nação Xambá, em São Benedito. Com o registro de tombamento e a demarcação da área passam a ser implantadas políticas públicas diferenciadas, voltadas para a comunidade negra. O Quilombo Nação Xam-bá é hoje o principal polo de resgate da cultura afro durante o carnaval, e lá também funcio-na um Ponto de Cultura, numa ação integrada com o governo federal.

Olinda abriga também diversas manifes-tações culturais de conteúdo religioso, como as inúmeras procissões durante todo o ano e em especial na Semana Santa, e como a Noi-te para os Tambores Silenciosos e o Encontro Ganga Zumba no carnaval, mostrando que existe espaço para toda a diversidade cultu-ral, tão evidente na construção e formação da nossa cidade.

Para discutir a política cultural da cidade com a população, estruturamos em Olinda o Sistema Municipal de Cultura, nos moldes do Sistema Nacional de Cultura. O Conselho Municipal de Política Cultural e o Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda

trabalham de forma integrada à Secretaria de Patrimônio e Cultura, inseridos nos grandes temas em debate na cidade, e com a participa-ção paritária da sociedade civil. Aqui criamos fóruns temáticos para debater a política públi-ca de todas as áreas e segmentos, e discutir de forma diferenciada em conferências estadual e nacional. Realizamos nossa II Conferência Municipal de Cultura, com participação de to-dos os segmentos culturais, com um debate de qualidade, no caminho da construção de nosso Programa Municipal de Cultura.

Hoje, Olinda participa de diversas ações do governo federal. Temos hoje 23 Pontos de Cultura. Em proporção, Olinda é a cidade que mais tem Pontos de Cultura no país. Todos eles desenvolvem uma parceria direta com a Pre-feitura. Acompanhamos o trabalho através das ações desenvolvidas na cidade e fazemos a capacitação dos grupos culturais para os Pon-tos de Cultura. Atualmente, temos um depar-tamento de identificação de potencialidades e cruzamos nosso cadastro cultural com os edi-tais publicados. Mais de 1.300 pessoas já fize-ram a capacitação na prefeitura.

Equipamentos urbanosO Museu do Mamulengo é o primeiro

centro deste tipo na América Latina. O mamu-lengo é uma expressão popular que trata do

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MARCIA SOUTO

dia-a-dia do nosso povo, conta as histórias, os conflitos sociais, retrata dificuldades e anseios. O Museu do Mamulengo é o mais visitado do estado de Pernambuco. Seu principal acervo retrata a cultura popular, desde os casamentos forçados até o cangaço.

O Teatro do Bonsucesso, que estava to-talmente destruído, encontra-se em fase de conclusão. Ele foi a base de toda a história do teatro de Pernambuco. Além dessa iniciativa, também levamos adiante a reestruturação do Cine Olinda Convenções, fechado há 40 anos. Atualmente, já se encontra reformada toda a parte estrutural do espaço. Projetamos ainda a requalificação do Mercado Eufrásio Barbosa, que será o Museu de Arte Popular de Pernam-buco.

Estamos promovendo a requalificação do Alto da Sé, primeira experiência do Prodetur em centro histórico. O projeto prevê o embuti-mento de fiação, a construção de um mercado de artesanato e a colocação de um elevador pa-norâmico. O Alto da Sé é o ponto turístico mais visitado do estado de Pernambuco. No Sítio Histórico temos algumas ruas com o embuti-mento da fiação executado, mas faremos ainda 48 ruas, o que possibilita uma série de vanta-gens, principalmente na área do audiovisual.

Hoje, Olinda tem em execução quase R$10 milhões em projetos no Programa Monumen-

ta. Dentro dele, a importante obra do Fortim, no Sítio Histórico, onde foi construído um es-paço para grandes eventos e o sistema de fi-nanciamento de imóveis privados para a recu-peração estrutural na Cidade Alta. A Prefeitura levou adiante também a obra de requalificação do Largo do Rosário, área referência do movi-mento negro de Pernambuco. A confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Olinda é hoje um patrimônio imaterial.

A concepção de requalificação e preserva-ção do centro histórico, a que buscamos cada vez mais valorizar, é o desenvolvimento eco-nômico em aliança com o morador. O morador traz vida, qualifica, cuida, participa do dia-a--dia do centro histórico. Precisamos recuperar todos os equipamentos, criar novos espaços, com a visão de que precisam ter um fim cul-tural coletivo, que busque o desenvolvimento, mas adequado à realidade local.

Para tudo acontecer, a gestão municipal de Patrimônio e Cultura trabalha de forma integrada com as demais secretarias adminis-trativas. Os projetos acontecem de forma co-esa ao lado da Secretaria de Obras, nas ações de urbanização integrada em comunidades no entorno do Sítio Histórico. Na área da Educa-ção, a partir do título de Capital Brasileira da Cultura, o governo também tomou a decisão de fazer de Olinda capital brasileira de leitura.

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E criou a Brigada Paulo Freire, que combate o analfabetismo em todas as áreas do município. Ainda na Educação, trabalhamos de forma que os temas dos anos letivos estejam sempre li-gados ao resgate de autoestima, da história do povo, à questão da nacionalidade. Nas escolas, também entregamos aos diretores materiais sobre educação patrimonial, para que seja dis-cutida a importância da preservação do centro histórico.

Essa é Olinda, Patrimônio Cultural da Hu-manidade, Capital Brasileira da Cultura, Me-mória do Mundo. Cidade pequena, com pro-blemas de cidade grande, habitada por gente criativa, alegre, receptiva, protagonista de lu-tas libertárias. Muito foi realizado pela ampla aliança política liderada pelo PCdoB, já em sua terceira gestão. Mas muito ainda há por fazer. Através de iniciativas que envolvem o poder público e a população local, nossa gestão vem tocando seus projetos. Pelo nosso entendimen-to, todos os títulos alcançados por Olinda são conquistas conjuntas e, sendo assim, os méri-tos precisam ser compartilhados. Trata-se de um resgate coletivo da autoestima do cidadão olindense. E o desafio continua.

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Para os objetivos táticos e estratégicos do PCdoB, a cultura tem papel fundamen-

tal. E, nesse sentido, deve ser um dos aspectos mais importantes dentro de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento que os comunis-tas têm defendido como alternativa brasileira para se caminhar rumo ao socialismo.

A estrutura do pensamento do PCdoB – explicitado no novo Programa aprovado em seu 12º Congresso – compreende duas partes fundamentais: o rumo e o caminho, ou seja, o objetivo final e como alcançá-lo. O rumo – meta maior do Partido – compreende a estratégia e deve resultar na implantação do socialismo. Ao caminho – aquilo que temos diante de nós, partindo das condições atuais – denominamos tática. Trata-se, portanto, de trabalharmos em cima da relação estabelecida entre esses dois aspectos.

O PCdoB sempre teve a compreensão de que o Brasil – formado por uma sociedade de capitalismo relativamente desenvolvido, com uma economia complexa de desenvolvimento médio, onde a maioria do povo já é formada por trabalhadores e onde há uma grande e po-derosa burguesia – está objetivamente maduro para o socialismo. Afinal, não estamos diante de uma sociedade atrasada, pré-capitalista.

Quando defendemos um socialismo adap tado às condições e necessidades de nosso país, estamos dizendo que não existe modelo único ou universal. Existe, sim, uma compreensão geral do que é o socialismo, mas sua aplicação varia conforme a realida-de histórica, econômica, política e social de cada nação. Ficou para trás aquela concepção de que o modelo soviético servia para todo o mundo. Essa é uma das mais importantes li-

*presidente nacional do PCdoB

Renato Rabelo*

A cultura e a construção do caminho brasileiro rumo ao socialismo

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ções tiradas por nós da experiência socialista do século XX.

Processo de transiçãoDa mesma maneira, o PCdoB defende que

não existe passagem abrupta para o socialismo, mas sim uma transição. Aliás, historicamente, toda formação econômica, social e política su-planta a anterior num processo relativamente demorado. A substituição do feudalismo pelo capitalismo demorou cerca de 300 anos. So-mente depois dessa fase de transformações, de acumulação primitiva e mesmo de revoluções pontuais e radicais é que o capitalismo conse-guiu se impor.

Portanto, outra lição deixada pelas expe-riências passadas é que se trata de ilusão, de idealismo imaginar ser possível passarmos di-retamente do capitalismo para o socialismo. A sociedade nova surge nas entranhas da velha.

E o que é socialismo? Basicamente, o po-der da maioria, que são os trabalhadores. E economicamente o que é? A predominância da propriedade social dos meios de produção. Es-ses conceitos são universais.

Agora, a aplicação desses conceitos é dife-rente em cada país, conforme cada realidade. O objetivo do PCdoB é a transição a um socia-lismo tipicamente brasileiro, levando em conta nossa cultura, nossa experiência histórica, a

realidade econômica e social etc. Este é o rumo que perseguimos.

Entretanto, a grande questão é o caminho para se chegar a tal rumo. Antes, procuráva-mos desenvolver o que seria essa transição ao socialismo – da qual estamos distantes ainda – e, evidentemente, ao tentar fazer isso, podí-amos estar especulando ou copiando modelos de outros países.

O Programa Socialista atual inverte essa lógica. Nele, o Partido situa seu objetivo maior, mas se detém e desenvolve o caminho, que é o que está diante de nós atualmente. Como dis-se Karl Clausewitz, o grande teórico da guerra, com a estratégia pode-se muito pouco porque é um objetivo a ser perseguido e, portanto, está mais distante. Com a tática, pode-se ver tudo porque está diante de nós. Temos de enfrentar o que é tangível, o que está colocado no presen-te e é isso que o novo Programa faz.

O caminho proposto pelo Programa Socia-lista é, assim, a aplicação de um NPND. Novo porque se sabe que o nacional-desenvolvimen-tismo aplicado a partir dos anos 1930 por Ge-túlio Vargas e que buscava modernizar o Brasil se esgotou por volta dos anos 1980. De lá para cá, passou a existir uma constante crise de mo-delos. E, com a predominância do neoliberalis-mo na década de 1990, ficou completamente para trás a possibilidade de se aplicar um mo-

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delo de desenvolvimento realmente nacional, democrático, de base popular, levando em con-ta o progresso social.

O modelo desenvolvimentista começa a ser retomado a partir da posse de Lula em 2003, ganhando força em seu segundo manda-to, iniciado em 2007. O seu primeiro governo serviu para colocar “a casa em ordem”, pois Fernando Henrique Cardoso deixara o país numa situação gravíssima.

O segundo governo procura situar – ainda que enfrentando muitas dificuldades – o que seria esse Projeto Nacional de Desenvolvimen-to, destacando 4 bases fundamentais: sobera-nia, independência, democratização da socie-dade – levando em conta também o progresso social – e integração solidária com os países vizinhos, visando à integração continental.

O PCdoB defende ser preciso dar curso ao Programa, mas com o objetivo de elevar esse conjunto de concepções a um NPND mais es-truturado e robusto. Primeiramente, ele deve ser anti-imperialista, afinal, o país não pode ter um projeto nacional se estiver subordinado a uma grande potência. Este aspecto primordial visa a aprofundar a questão da soberania e da independência do Brasil em todos os terrenos.

A outra característica do NPND é ser anti-latifundiário porque ainda existem, no Brasil, grandes e inúmeras propriedades territoriais

de baixa produtividade ou mesmo de produti-vidade próxima de zero. Isso é algo atrasado e é preciso ser eliminado de vez. É uma questão fundamental para a verdadeira democratiza-ção do país.

O terceiro aspecto do NPND deve ser atin-gir o que chamamos de oligarquia financeira, setor capitalista que prevalece – e ainda tem grande força mesmo com a crise do capitalis-mo – como centro do sistema. A financeiriza-ção é uma lógica perversa que gera dinheiro sem passar pelo setor produtivo. Para o capi-talista, é uma maravilha porque não precisa se envolver com a produção, com trabalhadores. Mas, deu no que deu: a hipertrofia da esfera financeira levou o mundo a uma das piores cri-ses da história. O rentismo, o parasitismo têm de acabar e os investimentos devem estar vol-tados para o incremento da produção e a valo-rização do trabalho.

Em resumo, o PCdoB defende um NPND que seja anti-imperialista, antilatifundiário e antioligarquia financeira. Ou seja, trata-se de um projeto que vai além das limitações desse programa atual iniciado por Lula. O presidente estabeleceu as bases, mas é preciso ir além.

Forças sociaisMas um projeto de desenvolvimento com

essas características precisa da união de diver-

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sas forças para ser levado adiante. Primeira-mente, temos de contar com a maioria da po-pulação, ou seja, os trabalhadores, além de ca-madas da classe média que compõem também essa base social. Ao mesmo tempo, precisamos do apoio de camadas formadas por pequenos, médios e até mesmo grandes empresários vol-tados para o setor produtivo. Essas camadas sociais podem ser atraídas para a construção de um projeto de desenvolvimento como esse.

E tal projeto de desenvolvimento, nas con-dições do Brasil, precisa ter como aspectos cen-trais a nação, o Estado e a economia.

A nação brasileira é jovem porque nosso país tem pouco mais de 500 anos. Quando o Brasil foi descoberto, já existia uma série de países e civilizações fortes e de grande expres-são que há séculos se desenvolviam. Mas, ape-sar de jovem, o Brasil conseguiu o que muitos países não conseguiram: ter um povo único, com uma cultura própria que integra todas as que formaram nossa nação.

O brasileiro é um povo uno e com grande capacidade de integração não apenas dos po-vos que estiveram na origem de sua formação – índios, negros e portugueses –, mas também dos povos que vieram depois, do século XIX para cá e, sobretudo, no século XX. Temos uma série de outras influências culturais em nosso território – como italianos, japoneses, polone-

ses, alemães etc. – que também têm influen-ciado a cultura geral do Brasil.

Precisamos, então, construir a nação com essa capacidade de integrar a diversidade, o que não é um trabalho fácil. Temos de marcar a identidade do país e neste ponto o aspecto cul-tural é muito importante para que possamos desenvolver o país tanto na esfera econômica quanto na questão humana.

Mas, a formação dessa identidade nacio-nal depende, por exemplo, de fatores econômi-cos, humanos e espirituais que compõem uma nação. Não podemos relegar esse problema a um plano secundário. Muitas vezes, porém, a esquerda não leva essa questão em considera-ção, achando que o problema é apenas na área social e na exigência da democratização.

Todos aqueles que procuraram construir uma sociedade superior à sociedade capitalis-ta sempre o fizeram baseados numa determi-nada nação e não sobre o abstrato. Aliás, na Revolução de 1917, por exemplo, os valores nacionais russos forjados desde Alexandre Niévski eram ressaltados porque se tratava de edificar uma nação.

Defesa nacionalMuitas vezes, a esquerda brasileira tam-

bém acabou se confundindo na questão da defesa nacional. Argumenta-se em algumas

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áreas que não se deve gastar dinheiro com ar-mamentos. Pois defendo que o Brasil tenha arma nuclear porque é a única forma, hoje, de defender verdadeiramente a nação. Não por acaso a China, a partir de 1949, tratou logo de resolver o assunto e desenvolveu seu arma-mento nuclear. O nível da batalha dissuasória no mundo se dá entre os que têm arma sobre os que não têm.

É inteiramente correto pedir a não prolife-ração de armas nucleares, desde que seja para todos os países. E hoje os Estados Unidos têm arma nuclear, mas não admitem que outros tenham. Que história é essa? O Brasil é um país continental. Como defenderemos nossas gigantescas costas repletas de reservas de pe-tróleo na camada pré-sal? São necessários uns cinco submarinos atômicos movidos a energia nuclear. O mesmo acontece com a necessidade de defendermos a Amazônia. Precisamos de um sistema forte de defesa de nossas riquezas.

A defesa nacional não é uma questão qualquer; é uma questão estratégica. Quem procura desviar a atenção dessa discussão é exatamente quem está interessado em fazer com que o Brasil não tenha condições dissu-asórias, de maneira que outras potências pos-sam facilmente tomar conta do território e das riquezas nacionais sem que o país tenha meios de se defender. Dentre os nossos vizinhos, há

países de base industrial e território muito me-nores – como o Chile – com um nível de arma-mento muito superior ao do Brasil.

Estado nacionalCom relação à questão do Estado nacional,

podemos dizer que hoje ele ainda é antidemo-crático, de raízes bastante atrasadas. Por isso, é necessário renovar as instituições brasileiras. Não por acaso temos uma Câmara de Deputa-dos e um Senado que não refletem a verdadei-ra correlação de forças na sociedade e a reali-dade do que é o povo. A maioria dos brasileiros é formada por trabalhadores que deviam ter a maioria no Congresso Nacional. No entanto, não é isso o que acontece. Essa realidade desi-gual se reflete também no plano político e mu-dar o contexto atual demanda uma profunda reforma política.

O sistema eleitoral brasileiro é raro no mundo. Aqui, elege-se a pessoa e o partido fica de fora. O eleitor, quando vota, não quer sa-ber de partido. E a pessoa eleita dessa manei-ra acha que está acima do partido. Então, na hora de compor a base para governar, é preciso conversar com centenas de pessoas, cada uma com um pleito, um projeto próprio. Como se governa um país desses?

A interlocução democrática depende dos partidos e isso é assim no mundo inteiro.

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Como construir uma democracia e aprofundá--la da maneira como o sistema brasileiro se encontra hoje? Por isso, o PCdoB defende o financiamento público de campanhas e a lista pré-ordenada de candidatos. Seria preciso uma reforma política, que teria caráter infraconsti-tucional. Apesar disso, não se consegue fazê-la exatamente porque essas pessoas perderiam o status, os privilégios e assim travam o processo de mudança do sistema.

Além do mais, o Estado brasileiro e suas instituições estão desaparelhados para o pla-nejamento de médios e longos prazos. A cada dois anos temos alguma eleição que, muitas vezes, pode mudar totalmente a correlação de forças e nossas instituições não dão conta des-sas mudanças.

Economia nacionalNo caso da economia, temos um sistema

complexo, relativamente desenvolvido. No entanto, qual o problema? Um deles é o bai-xo nível de investimento. Segundo a Cepal, para que um país da América Latina não fi-que defasado em relação às economias mais modernas devido aos avanços tecnológicos, seria preciso um investimento da ordem de 25% a 28% do PIB. O Brasil ainda não chegou aos 19%. Portanto, um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento precisará enfrentar essa

questão, buscando investimentos de, no mí-nimo, 25% para que o país alcance um cresci-mento anual do PIB da ordem de 6% durante 10 a 20 anos. Dessa forma, é possível alcançar o nível das economias centrais e ser uma na-ção altamente desenvolvida.

Mas, como fazer isso? Qual a fonte de in-vestimento? Resumidamente, é preciso con-dições abundantes de crédito que, no caso do Brasil, dependia – e em boa medida ainda de-pende muito – de uma parcela importante de recursos de fora. Com o baque da crise capita-lista sobre as principais economias mundiais, o país acabou sofrendo especialmente pela queda dos investimentos estrangeiros. Mas, a adver-sidade também fez com que fossem buscadas saídas próprias e ganhou ainda mais importân-cia o papel do polo bancário público brasileiro, ativado e fortalecido a partir do governo Lula.

Um setor público bancário forte é funda-mental para o investimento em um Projeto Na-cional de Desenvolvimento, para esse crédito de médio e longo prazo. É importante ressaltar, nesse sentido, que o Brasil é o único país do mundo em que os bancos privados não em-prestam dinheiro. Eles vivem principalmente de títulos do Tesouro Nacional, uma anomalia sem tamanho. E o próprio Tesouro retroali-menta essa situação.

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A contradição da culturaNo Programa Socialista partimos de con-

tradições diversas para definir as tarefas de um PND. E uma dessas contradições é exatamente a questão da cultura. Afinal, a cultura sempre foi pensada do ponto de vista econômico, mas ela tem um sentido muito maior, abarcando a esfera da formação e do desenvolvimento hu-mano, o que faz com que tenha um papel estra-tégico no caminho que estamos construindo.

O Programa Socialista trata das “vulne-rabilidades a que estão submetidas a cultura brasileira e a consciência nacional decorrentes da pressão ideológica e da disseminação de va-lores nocivos à afirmação da soberania do país, provenientes do monopólio midiático estran-geiro e também local, bem como de sua indús-tria de diversão e entretenimento”. Há, portan-to, uma grande pressão ideológica no campo cultural, o que faz com que a defesa da cultura nacional e a luta por seu florescimento não seja uma tarefa qualquer.

Como já colocou o atual ministro da Cul-tura, Juca Ferreira, o papel da cultura é algo evidente, mas por vezes parece não existir. O governo de Fernando Henrique Cardoso suca-teou até mesmo os instrumentos mais básicos da fruição cultural. A cultura precisa ser enca-rada como algo essencial, como um direito hu-mano universal, mas também como um direito

à participação cultural. Essa é uma contradi-ção fundamental que tem de ser resolvida no NPND.

Dizemos, inclusive, que o NPND deve con-ter uma linha de ação que dê respostas a um conjunto de tarefas fundamentais. Entre elas, a afirmação e o florescimento da cultura brasi-leira e da consciência nacional. Para a garantia da edificação de um Estado democrático mo-derno capaz de imprimir uma marcha contí-nua de desenvolvimento e de ampla liberdade política para o povo, é preciso estabelecer o di-reito à comunicação, com abertura de acesso gratuito aos meios de comunicação de massa.

A questão da comunicação é outro fator fundamental para a viabilização da cultura na-cional. Com esses instrumentos de comunica-ção de massa que temos no país, antidemocrá-ticos, elitistas e concentrados, como é possível enfrentar essa questão? Por isso é necessário uma reforma que democratize, de fato, os meios de comunicação.

Pensar na cultura no NPND, portanto, en-globa democratização e uma série de reformas e aberturas. Para o PCdoB, a cultura é fator es-sencial para o desenvolvimento humano e da nação.

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O papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal de desenvOlvimentO

Minha trajetória vem da juventude, vem do sonho da revolução socialista. Mas

também acumulei experiência nos movimen-tos de base, na igreja, no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). E acredito ser importante tratar desses anos de engaja-mento como forma de contribuir com o debate sobre a cultura e o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.

Hoje, posso dizer que me sinto mais per-tencente ao PCdoB e que o comunismo está cada vez mais vivo dentro de mim. O PCdoB foi o primeiro e único partido a que me filiei de fato. E um dos fatores que me fizeram tomar essa decisão foi a participação dos comunistas no movimento social e no programa Cultura Viva. A cultura é uma porta que se abre e faz com que possamos sonhar.

Em busca de um sonhoAo longo da minha caminhada, vivenciei

momentos difíceis, mas também importantes para a história do Brasil. Tive oportunidade de planejar desde a segurança pessoal de Lula, quando ele ainda era líder sindical, até ocupa-ções de movimentos de sem-terra. Era um mo-mento em que almejávamos a revolução. Mas, naquele momento, por causa da ditadura mi-litar, esse sonho fugia por entre nossas mãos.

Com o surgimento do Partido dos Traba-lhadores, em 1980, muitas forças passaram a integrá-lo, entre elas o PCBR, que atuava numa espécie de clandestinidade dentro das muitas correntes que compõem o PT. E, como comu-nista – mas também como artista e amante das artes que sempre fui –, percebi que a esquerda estava brigando entre si e que não havia mais

*membro da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e do Comitê Estadual do PCdoB-RN

Teotônio josé Roque*

A construção do sonho socialista através da cultura

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sentido minha militância. Vejo que naquele momento não estávamos construindo a tão sonhada revolução, mas sim uma série de apa-relhos. Não havia entendimento, então, disse para mim mesmo “dessa forma não estamos fazendo uma nova sociedade”.

Nesse contexto, me afastei da política e mergulhei na arte da fotografia. Tive o prazer e o privilégio de ser o único brasileiro a fotogra-far o funeral de Che Guevara, 30 anos após sua morte. E foi conversando com o PCdoB sobre a doação desse acervo para seu Centro de Me-mória que tomei mais contato com os Pontos de Cultura.

Pontos de Cultura: um sonho comunistaO Ponto de Cultura é o sonho de um co-

munista – Célio Turino –, que permite a outros comunistas sonharem e perceberem ainda ser possível fazer a revolução por meio do movi-mento cultural. Dessa forma, eu e muitos que estavam querendo participar dessa luta sem entrar em estruturas aparelhadas nos encon-tramos.

Descobrimos, então, qual o nosso papel, como comunistas, dentro desse movimento, papel este que consiste também em resgatar outros comunistas soltos por aí.

Viajo pelo Brasil e posso falar desses Pon-tos de Cultura. Neles, podemos achar griôs,

quilombolas, terreiros, hip-hop, teatro, teatro de rua etc. Quer dizer, havia pelo país uma sé-rie de manifestações que também buscavam fazer sua revolução. Mas, faltava uma linha que orientasse essas manifestações fazendo com que a cultura dialogasse com a política. Este é um dos papéis dos comunistas.

Nessas andanças pelo país, percebemos que a cultura de massa faz com que o artista fique longe da população e de seus problemas cotidianos. Mas, com os Pontos de Cultura, o artista passa a se comprometer com a socie-dade. Certa vez, um desses artistas me disse: “dessa forma, ajudo a fazer com que os garo-tos não levem pancada da polícia”. Ou seja, esse indivíduo não é mais apenas artista, mas também um construtor dessa nova sociedade. E assim é que podemos começar novamente a sonhar.

O resgate dessa busca por um sonho é algo muito importante para aqueles que atuam no mundo das artes e da cultura. Num determi-nado momento, nós, artistas, começamos a não ter mais sonhos, perspectivas e objetivos. A arte é feita por fazer. Até que surgiram os Pontos de Cultura, uma oportunidade em nível nacional ainda com poucos recursos, mas que potencializa essas ações e mexe com o íntimo de cada um. É como termos diante de nós uma corrente que começa a fechar seus elos e nos fazer perceber que não estamos sós.

TEOTôNIO JOSÉ ROqUE

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O papel da cultura nO nOvO prOjetO naciOnal de desenvOlvimentO

Esse processo nos leva a ver que, nova-mente, é possível pensar numa revolução. Não mais com as armas de outrora, mas com a cul-tura. Aqui entra o PCdoB. Olhando cada um de nós, comunistas, entendo que somos irmãos e que juntos podemos construir um novo Brasil, um novo sistema, uma nova forma de relacio-namento; estes são aspectos subjetivos que nunca encontrei em outros lugares. E os Pon-tos de Cultura buscam esse mesmo caminho.

Em busca desse sonho é que passei a fazer parte dos Pontos de Cultura desde seu início, sendo um dos primeiros a ter edital aprovado no Rio Grande do Norte. Por esse caminho – com a ajuda de Célio Turino – me reaproximei do Partido em meu estado buscando ter uma atuação mais política e ativa no meio cultural.

Ao unir a política e a cultura, minha atu-ação no PCdoB com minhas ações no meio cultural, fui percebendo que, de fato, estamos trabalhando em rede e precisamos ter clareza quanto à diretriz dos comunistas para a área. Assim, a meu ver, é que começaremos a criar uma forma de atuar melhor, de maneira que eu e outros não nos sintamos mais perdidos porque agora temos uma teoria nos nutrindo. Atuamos de modo orgânico tanto dentro dos Pontos de Cultura como também dentro da cultura em geral e dentro de um partido que realmente está fazendo a revolução neste país, da forma como é possível de se fazer.

Por fim, ressalto que embora os Pontos de Cultura sejam uma criação comunista, eles não afastam aqueles que não fazem parte do PCdoB. Trata-se de uma ação ampla que con-grega outras bandeiras e que permite o diálo-go entre diversas opiniões. É assim, com união e diversidade, que poderemos construir uma nova forma de revolução através da cultura.

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reflito neste texto sobre o papel da cultura em um Novo Projeto Nacional de Desen-

volvimento (NPND), tomando por base o de-bate realizado no 12º Congresso do PCdoB so-bre a política de quadros, elemento que enten-demos como essência verdadeira do partido.

O PCdoB chegou a um alto grau de ma-turidade do pensamento político. No novo Programa Socialista, fizemos uma revisão me-todológica muito importante da relação entre estratégia e tática. Esse é um tema que sempre expôs certa falta de maturidade da esquerda brasileira. Em torno disso, em geral, a esquer-da brasileira se dividiu, em decorrência de um pensamento ainda um pouco mecânico, esque-mático ou importado de outras realidades.

Mas acredito sinceramente que chegamos a um ponto de amadurecimento jamais alcan-

çado. Há clareza de que lutamos pelo socialis-mo. Essa é a razão de existir do PCdoB. E luta-mos pelo socialismo no seio dessa grande ba-talha por um NPND, compreendido como um terceiro grande salto civilizatório da sociedade brasileira. O socialismo é o rumo e o caminho é o Projeto Nacional de Desenvolvimento.

Evidentemente, nessa formulação, a questão nacional acaba adquirindo uma cen-tralidade muito grande, e em torno disso a esquerda brasileira nunca conseguiu fazer in-teiro ajuste de contas. A questão hoje é como fazer a revolução, combinando a bandeira socialista com a bandeira nacional. Conside-ramos que o problema essencial desse pensa-mento estratégico é precisamente a hegemo-nia. Hegemonia no sentido de liderar de fato a sociedade brasileira.

*secretário de Organização do PCdoB

walter Sorrentino*

os quadros na luta de ideias e o projeto político do partido

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É preciso constituir a liderança política, intelectual e moral desse projeto político na so-ciedade. E, nas condições de hoje do Brasil e do mundo, isso implica provavelmente uma luta muito prolongada, onde essas forças avança-das, entre as quais o PCdoB se inclui, possam alcançar prevalência, predominância, vanguar-da, liderança, hegemonia.

E vamos tomando consciência de que isso implica também uma luta cultural muito po-derosa. É preciso penetrar muito a fundo nos poros da sociedade, fazer-se presente em todos os campos da vida social, das relações sociais, dos conflitos sociais, sempre procurando re-lacionar as questões e os objetivos imediatos concretos com um projeto maior – o projeto de um terceiro grande salto civilizatório na socie-dade brasileira que, para nós comunistas, se identifica com o socialismo.

Portanto, a luta cultural vai adquirindo uma importância muito maior do que aquela que costumeiramente se deu. A cultura sem-pre tem a capacidade de ser as antenas do tem-po, de se antecipar. Ela capta tendências que a mente racional de um político nem sempre capta. E o papel da cultura ajuda a consolidar a confiança, a compreensão de um projeto, ou de um processo.

Por um partido presente em todos os campos da luta e vida socialTemos debatido muito a questão de que

ainda nós, marxistas, comunistas, não só do Brasil, somos um tanto escolásticos. Nós que-remos construir o partido de que necessitamos a partir de uma teoria abstrata de partido. Mas o partido precisa responder e ser pensado em função dessa estratégia de luta pela hegemo-nia. E a política de quadros é parte integrante desse processo.

A política de quadros apresentada é bas-tante inovadora. Pretendemos renovar o arsenal como parte desse esforço de atualização de con-cepções e práticas de partido que vem se fazen-do nos últimos anos. Acredito que a política de quadros pode dar a conhecer à sociedade brasi-leira um partido de princípios e ao mesmo tem-po muito arejado, muito moderno, democrático, e tolerante na forma de lidar com os quadros. Ou seja, temos uma política de quadros assenta-da em uma base ideológica, mas, sobretudo, em um projeto político magno, que é o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.

Ela pretende implementar uma grande renovação no papel, nas feições, nas funções dos quadros. Estimular uma qualificação, es-pecialização e representatividade crescentes. Quer dizer, pretendemos romper com certa vi-

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são monotônica, bolchevique, sobre os quadros do partido. Ainda está muito gravada em nós, em decorrência até do período na ilegalidade, a imagem do quadro que deixa tudo para trás e se dedica apenas ao partido. Este seria um quadro provavelmente hemiplégico. Não é des-se tipo de quadro só que precisamos.

Precisamos de quadros representativos na sociedade, influentes. Que sejam bons naquilo que fazem, que tenham o respeito de seus pa-res. Isso leva tempo porque, sobretudo no ter-reno da cultura, da arte, das ciências, isso exige atuar nas instituições próprias desses meios, que também têm uma liturgia própria, assim como o PCdoB tem a sua.

Alguém para chegar até o Comitê Central (CC) do PCdoB demora cerca de 20 anos de militância. Para chegar até a Sociedade Brasi-leira para o Progresso da Ciência (SBPC) tam-bém demora cerca de 20 anos de pesquisa. Se acharmos que quadro bom é a pessoa tirada de lá para ser colocada no CC, deixando assim de dar contribuição na pesquisa, então, já há aí um problema. Temos de ter uma visão es-tratégica: a luta pela hegemonia precisa acon-tecer em todos os campos da sociedade, nas ciências, nas artes, nos governos, nas ruas, na academia, nos movimentos sociais, assim como nas Forças Armadas, no Judiciário, no aparelho de Estado.

O movimento comunista pegou as teses de partido e transformou certas normas – que foram datadas, exigências de uma época – em princípios. Aliás, transformou certos costumes em normas e certas normas em princípios. E então ficou tudo engessado. Criou-se uma ideia de que partido comunista bom é o que faz de tal maneira, se não fizer desta forma sig-nifica que não é bom. Esta é uma visão muito reducionista do partido, em geral ligada a um modelo determinado de processo revolucioná-rio, muitas vezes exigindo ação predominante-mente clandestina do partido...

As pessoas podem perguntar por que tar-dou tanto essa discussão da política de quadros. A meu ver, isso só era possível com o amadure-cimento e a clareza do pensamento estratégico. Porque se fôssemos pensar em uma estratégia de guerra popular prolongada, cercar a cidade pelo campo, seria preciso outro tipo de partido, outro tipo de quadro. Se fosse uma estratégia hoje à velha moda bolchevique, de ficar entrin-cheirado esperando a luta de classes entrar nos trinques para haver uma greve geral, uma in-surreição e um assalto ao poder, a política de quadros também não seria esta, mas outra.

Militantes na luta de ideiasNeste novo momento, há um determinado

tipo de quadro, uma tipologia, melhor dizendo,

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que são os quadros mais diretamente atuantes na luta de ideias. É uma definição inteiramen-te nova. Tradicionalmente usamos o termo in-telectualidade, mas resolvemos não usá-lo nes-te caso. Primeiro, porque de certo modo todo militante do partido é um intelectual orgânico. Mas, sobretudo, porque pretendemos estabe-lecer uma definição funcional e dinâmica para designar os quadros que, pelo seu papel, atuam mais diretamente na luta de ideias, indepen-dentemente de serem intelectuais ou não, ou membros da intelectualidade ou não.

Isso é importante porque abarca todo um conjunto de pessoas que, por profissão ou de-dicação, atuam com a produção de cultura, de ciência, de pensamento, informação, por meio de instituições do campo artístico, científico, ju-rídico, cultural e do Estado. Para nós, isso é re-levante porque temos consciência de que nesse terreno se dá a maior defasagem da atividade partidária. Ou seja, os quadros atuantes nesse tipo de frente, em geral, são acometidos por um sentimento de baixo aproveitamento. Acham – com muita razão – que o partido nem sabe di-reito o que eles estão fazendo e que isso prova-velmente não seria importante para o partido.

Além disso, se estabelecem às vezes con-tradições entre os compromissos desse cidadão com a instituição respectiva e com o partido. Porque o tempo é finito, o dia tem 24 horas.

Então, o militante tem a sua instituição, tem que ganhar a vida, e tem o partido.

Essa realidade se constituiu por muitas ra-zões. Há motivos históricos, porque o PCdoB ficou completamente isolado ideologicamente, sobretudo nos anos 1960. Primeiro, pela ruptu-ra de 1962; segundo, pela ditadura; e terceiro, porque, tendo rompido com a URSS, ficou um pouco no campo de China e Albânia, depois rompeu com a China, e então, ficou alinhado apenas com a Albânia. Tornou-se o partido “fi-lho da Albânia”. Esse é um isolamento ideoló-gico muito poderoso. Não entraremos no méri-to de se foi certo ou errado, mas ainda hoje isso pode ser visto. Recentemente, quando Augus-to Chagas foi eleito como presidente da UNE, a revista Veja fez uma matéria comparando o PCdoB com os hitleristas. Então, essas marcas ficam estereotipadas.

O segundo motivo para que tenha havido uma espécie de rebaixamento do papel desses quadros ligados à luta de ideias no partido foi a falta de maturidade do pensamento estratégi-co. Porque o que predominava absolutamente em nosso pensamento era a militância conce-bida como ativismo político-social. E, na luta de ideias, a militância nem sempre se dá por intermédio de ativismo político-social. O me-tro das coisas era: o bom militante é o ativista. Mas, se um cientista está produzindo ciência,

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como ele pode ser um ativista? Para ele ser ativista, teria de rebaixar a atividade, ser um sindicaleiro. Isto é um erro, é uma visão muito rebaixada. Lembro de um bom camarada, en-genheiro que desenhou o controle do tráfego aéreo do Rio de Janeiro (na Aeronáutica, du-rante a ditadura, tarefa de segurança nacional) que foi preso por participar de pichação para A Tribuna da Luta Operária.

No novo Programa do PCdoB, fizemos uma formulação nova, também de corte estra-tégico, que tende a ser a resposta para as se-guintes questões: como será a revolução bra-sileira e em que momento estamos desse pro-cesso? Estamos num momento de acumulação de forças. E há uma teoria, uma linha política, para a acumulação de forças, que não se faz espontaneamente.

A acumulação de forças combina luta polí-tica, social e de ideias. A luta política no senti-do também eleitoral, não apenas institucional; a luta social que mobiliza as forças-motrizes essenciais: trabalhadores, juventude, intelec-tualidade, mulheres etc.; e a luta de ideias, que avalio ser, no fundo, a mãe de todas as bata-lhas. Do ponto de vista dos comunistas não pode haver muita dúvida em torno disso. Os comunistas serão sempre capazes de produzir pensamento crítico acerca do real, com uma perspectiva transformadora.

Há várias razões para essa defasagem no partido em relação aos quadros da luta de ideias, mas finalizo, então, constatando que os comunistas subestimam essa questão. A meu ver, o partido erra, se atrasa. Dedica ainda pou-cas energias à luta de ideias. Nos últimos anos, está melhorando bastante neste aspecto. Mas é uma coisa que choca. Na primeira curva do ca-minho, prefere o que dá benefícios imediatos, prefere o ativismo.

Nós nos debruçamos sobre a questão particular da relação do partido com esse tipo de quadro. Existe uma tradição muito forte do PCdoB de muita politização do pen-samento e das relações internas. Isso quer dizer que nós, no PCdoB, nos unificamos es-sencialmente pela política e mais concreta-mente pela tática.

Na relação com a intelectualidade lato sensu, a política tanto unifica quanto afasta. Esse é um problema, porque os intelectuais não são por definição bons políticos. Política é uma atividade hoje muito especializada, que tem a sua arte, a sua ciência. Não é porque a pessoa é muito inteligente, ou tem muita bagagem cultural, filosófica, econômica que é um bom político.

Por isso, como a política nem sempre soma e às vezes afasta, é como se o partido se visse privado de seu principal handicap. “Eu unifico

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pela política, mas estas pessoas não se unifi-cam pela política, então nós nos afastamos”. Portanto, claro, nesse diálogo, nessa relação, temos de ter alguns cuidados a mais.

Estabelecer laços assentados na estratégiaNós precisávamos forjar os laços entre os

quadros atuantes na luta de ideias e o partido, em outras bases, não apenas nessas tradicio-nais da tática. Primeiro, era preciso assentar isso, discutir o papel da cultura, da ciência e do conhecimento, num pensamento mais estraté-gico, que é o NPND. Quer dizer, se assentamos mais na estratégia, não sofremos muito os efei-tos das divisões que podem ser observadas na tática cotidiana.

Também precisávamos basear essa relação no desenvolvimento do pensamento revolucio-nário. Nós vivemos uma crise do marxismo no sentido histórico e precisamos nos congregar para enfrentar juntos essa crise do socialismo, do marxismo. E temos de ter, então, muita to-lerância, muito respeito recíproco. Porque opi-niões discrepantes sempre há, mas se temos respeito pelo quadro e pelo que ele pensa, po-demos estabelecer um contrato determinado de defender o projeto do partido. Vamos discu-tir as diferenças de forma madura e organizada de maneira a não prejudicar o partido.

A meu ver, isso é possível. Essa é a pro-posta que fazemos exatamente por estarmos numa situação muito retardatária na relação com esses companheiros que atuam mais dire-tamente com a luta de ideias. Um dos terrenos mais salientes desse tipo de quadro é a cultura.

Então, nos propusemos à experiência de considerarmos, em princípio, todos os que atu-am nessa frente de quadros, ou seja, na área de cultura, pelo menos nesse início, todos nós participantes deste encontro somos quadros, porque a definição de quadro que adotamos é dinâmica, funcional e larga. É preciso nos en-cararmos dessa maneira para acertarmos que papel temos dentro do partido.

A partir deste pressuposto, precisamos es-tabelecer como manter as pessoas em ligação com o projeto político partidário. Na área da cultura isso é mais complexo porque, muitas vezes, a pessoa é mera filiada do partido, mas é um quadro expressivo na sociedade. O que ela diz tem influência na sociedade.

Vejamos o exemplo do vereador Netinho de Paula. É um sujeito extremamente inteli-gente, que se transformará num comunista. Ele já era instintivamente, por sua origem social, e hoje está mais maduro; mas, há um ano, ele não era um comunista. E, no entan-to, é um quadro, filiado ao PCdoB e que fala para milhões de pessoas. Setenta por cento

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da população de São Paulo sabem quem é o Netinho.

Portanto, política de quadros é a forma de estabelecer esses liames. Na área da cultu-ra, cada um, em geral, é uma instituição e isso inclui também a vaidade. Em alguns lugares, é preciso tomar cuidado, temos de saber lidar com isso.

Coletivo nacional de culturaPara construir e administrar essa ligação

dos quadros com o projeto do partido,estamos constituindo um coletivo nacional da área de cultura que corresponda, de alguma maneira, à condição de locus de militância. A intenção é fazer uma boa experiência, porque isso pode ser um embrião que possamos aplicar também, por exemplo, criando um coletivo nacional de cientistas, que também têm singularidades.

Não queremos organizar um grêmio aca-dêmico na área de cultura, queremos um co-letivo de cultura para ser uma referência, para disputar posições intelectuais e políticas no país. Um organismo que seja capaz de repre-sentar o nome do PCdoB, de reconstituir apa-relhos ideológicos e culturais que influenciem a luta pela hegemonia, que elabore linhas para que nós, na atividade editorial, de comunica-ção, em todos os terrenos da vida partidária, possamos repercuti-las na sociedade.

Precisamos de um coletivo nacional de cultura para ser um ponto alto de elaboração e, evidentemente, se corresponsabilizar com as demais instâncias partidárias por dirigir a atuação nos aparelhos ideológicos e culturais, como o Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca), a Teia, as Conferências de Cultura etc.

Como tudo na vida, para essa experiência dar certo é preciso ter uma coordenação, que hoje é cada vez menos física e cada vez mais virtual. Não vamos conseguir fazer nada se os militantes entre si não se ligarem. Mas não precisa haver reunião presencial muito frequente. Nós dirigi-mos um partido de 200 mil membros, e realiza-mos três reuniões do Comitê Central por ano e uma reunião da Comissão Política por mês.Um coletivo de cultura pode ser dirigido com três reuniões por ano bem planejadas. É preciso ter método, conteúdo, projeto, política. Mas é pre-ciso que cada um tenha uma espécie de GPS, para comunicar onde está, o que está fazendo, produzindo, agitando. Hoje é fácil termos uma informação abrangente em tempo real.

Talvez o mais difícil seja combinar o cole-tivo nacional com as instâncias estaduais. Não sei ainda como fazer, porque não tenho um mapa do que sejam as forças em cada estado. Mas talvez uma meta estratégica do coletivo nacional possa ser, ao cabo de algum tempo, instituir 10 ou 15 coletivos estaduais.

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uma nova realidadeA tradição dos comunistas nesse terreno é

muito grande, remonta aos anos 1940, sobre-tudo 1950. Não vamos retornar àquela tradi-ção, nem é necessário, porque era outro tempo e as coisas hoje são diferentes. Não temos tan-ta força quanto naquele tempo, mas não so-mos tão esquemáticos e tão donos da verdade quanto naquele tempo.

A meu ver, o Brasil está diante de novos horizontes enquanto nação. Só com oito anos de governo Lula – um governo meeiro sob ou-tros aspectos –, o Brasil já se repôs. Os próxi-mos 10, 20, 30 anos poderão ser tanto o que fo-ram os anos 1950, quanto o que foram os anos 1920. De ambos os períodos germinaram exi-gências de transformações. Nos anos 1920, re-voltas e levantes deram na Revolução de 1930.

E os anos 1950 foram dourados. O Brasil ganhou a Copa, fez o Cinema Novo, fez a Bos-sa Nova. O Brasil bombou no mundo! Hoje, novamente está bombando. Está se redefinin-do quanto a seu lugar no mundo. É um país muito querido por sua cultura, sua identidade, pela civilização nova a que deu lugar. Não há um povo no mundo que não simpatize com o brasileiro. E isso em muito se deve à cultura. Portanto, os próximos anos serão muito pro-veitosos no Brasil, e a cultura tem um papel central nisso.

Temos a compreensão de que é preciso superar qualquer subestimação do papel dos companheiros da luta de ideias. E, necessaria-mente, teremos de constituir mais instrumen-tos. Quem sabe mais adiante o coletivo, junto com a Fundação Maurício Grabois, possa ter um boletim, uma revista, por exemplo. O cole-tivo é apenas o primeiro passo.

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O papel

da cultura nO

nOvO prOjetO

naciOnal de

desenvOlvimentO

ISBN 978-85-72-77-116-0

Os textos que aqui publicamos são a contribuição

de convidados e dirigentes do PCdoB

que apresentaram uma exposição no

seminário “O papel da cultura no novo projeto nacional de desenvolvimento”,

realizado de 14 a 16 de agosto de 2012,

no Rio de Janeiro.

Entender a cultura de uma sociedade tão complexa como a brasileira implica conhecer o que lhe é reconhecido como próprio, assim como todo o processo incessante de trocas, passadas e contemporâneas, que, afinal, marcam tão profundamente a própria formação e continuidade do Brasil.