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Quinta Turma

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Quinta Turma

HABEAS CORPUS N. 107.285-RJ (2008/0114769-1)

Relatora: Ministra Laurita Vaz

Impetrante: Leonardo Rosa Melo da Cunha - Defensor Público

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Paciente: Maria da Penha do Nascimento

EMENTA

Habeas corpus. Processual Penal. Delito de falsidade ideológica.

Pedido de trancamento da ação penal. “Privilégio constitucional

contra a auto-incriminação: garantia básica que assiste à generalidade

das pessoas. A pessoa sob investigação (parlamentar, policial ou

judicial) não se despoja dos direitos e garantias assegurados” (STF,

HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 25.03.2008).

Princípio nemo tenetur se detegere. Positivação no rol petrifi cado dos

direitos e garantias individuais (art. 5º, inciso LXIII, da Constituição

da República): opção do Constituinte Originário brasileiro de

consagrar, na Carta da República de 1988, “diretriz fundamental

proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda [à Constituição dos

Estados Unidos da América], que compõe o bill of rights” norte-

americano (STF, HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello,

DJ de 25.03.2008). Precedentes citados da Suprema Corte dos

Estados Unidos: Escobedo v. Illinois (378 U.S. 478, 1964); Miranda

v. Arizona (384 U.S. 436, 1966), Dickerson v. United States (530

U.S. 428, 2000). Caso Miranda v. Arizona: fi xação das diretrizes

conhecidas por “Miranda Warnings”, “Miranda Rules” ou “Miranda

Rights”. Direito de qualquer investigado ou acusado a ser advertido de

que não é obrigado a produzir quaisquer provas contra si mesmo, e de

que pode permanecer em silêncio perante a autoridade administrativa,

policial ou judiciária. Investigada não comunicada, na hipótese, de tais

garantias fundamentais. Fornecimento de material grafotécnico pela

paciente, sem o conhecimento de que tal fato poderia, eventualmente,

vir a ser usado para fundamentar futura condenação. Laudo pericial

que embasou a denúncia. Prova ilícita. Teoria dos frutos da árvore

envenenada (fruits of the poisonous tree). Ordem concedida.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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1. O direito do investigado ou do acusado de ser advertido de que

não pode ser obrigado a produzir prova contra si foi positivado pela

Constituição da República no rol petrifi cado dos direitos e garantias

individuais (art. 5º, inciso LXIII). É essa a norma que garante status

constitucional ao princípio do Nemo tenetur se detegere (STF, HC n.

80.949-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ de 14.12.2001),

segundo o qual ninguém é obrigado a produzir quaisquer provas

contra si.

2. A propósito, o Constituinte Originário, ao editar tal regra, “nada

mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema normativo

instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental

proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda [à Constituição dos

Estados Unidos da América], que compõe o Bill of Rights norte-

americano” (STF, HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello,

DJ de 25.03.2008).

3. “Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou

parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado

– ainda que convocada como testemunha (RTJ 163/626 - RTJ

176/805-806) –, possui, dentre as várias prerrogativas que lhe são

constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio

e de não produzir provas contra si própria” (RTJ 141/512, Rel. Min.

Celso de Mello).

4. Nos termos do art. 5º, inciso LXIII, da Carta Magna “o preso

será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado,

sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Tal regra,

conforme jurisprudência dos Tribunais pátrios, deve ser interpretada

de forma extensiva, e engloba cláusulas a serem expressamente

comunicadas a quaisquer investigados ou acusados, quais sejam: o

direito ao silêncio, o direito de não confessar, o direito de não produzir

provas materiais ou de ceder seu corpo para produção de prova etc.

5. Na espécie, a autoridade policial, ao ouvir a Paciente durante

a fase inquisitorial, já a tinha por suspeita do cometimento do delito

de falsidade ideológica, tanto é que, de todas as testemunhas ouvidas,

foi a única a quem foi requerido o fornecimento de padrões gráfi cos

para realização de perícia, prova material que ensejou o oferecimento

de denúncia em seu desfavor.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

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6. Evidenciado nos autos que a Paciente já ostentava a condição de investigada e que, em nenhum momento, foi advertida sobre seus direitos constitucionalmente garantidos, em especial, o direito de fi car em silêncio e de não produzir provas contra si mesma, resta evidenciada a ilicitude da única prova que embasou a condenação. Contaminação do processo, derivada da produção do laudo ilícito. Teoria dos frutos da árvore envenenada.

7. Apenas advirta-se que a observância de direitos fundamentais não se confunde com fomento à impunidade. É mister essencial do Judiciário garantir que o jus puniendi estatal não seja levado a efeito com máculas ao devido processo legal, para que a observância das garantias individuais tenha efi cácia irradiante no seio de toda a sociedade, seja nas relações entre o Estado e cidadãos ou entre particulares (STF, RE n. 201.819-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen

Gracie, Rel. p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ de 27.10.2006).

8. Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia com base em outras provas.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi, Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ-AP) e Gilson Dipp votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 09 de novembro de 2010 (data do julgamento).

Ministra Laurita Vaz, Relatora

DJe 07.02.2011

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Laurita Vaz: Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar,

impetrado em favor de Maria da Penha do Nascimento, contra acórdão proferido

pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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Alega o Impetrante, em suma, a falta de justa causa para a ação penal

instaurada contra a Paciente por infração ao art. 299 do Código Penal, na

medida em que “a perícia (exame grafotécnico) realizada no bojo da inquisa

constitui prova ilícita, portanto processualmente inadmissível” (fl . 03). Salienta

que “a imprestabilidade jurídica do exame grafotécnico levado a cabo pela

Autoridade Policial para embasar a acusação criminal lançada contra o ora

Paciente prescinde de análise do valor daquela prova” (fl s. 03-04).

Requer, assim, a concessão de liminar “para sustar o trâmite do Processo

n. 2007.001.121607-7, ora em curso perante o juízo da 35ª Vara Criminal

da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, até o julgamento fi nal do presente

habeas” (fl . 29) e, no mérito, “a extinção do processo originário sem julgamento

do mérito [...] desentranhando-se, ainda, a prova ilícita, qual seja, o Laudo de

Exame de Documentos n. 1546894” (fl . 29).

O pedido liminar foi indeferido nos termos da decisão de fl s. 98-99.

Foram prestadas as informações da Autoridade Impetrada à fl . 104, com a

juntada de peças processuais pertinentes à instrução do feito.

A douta Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se às fl s. 297-

300, opinando pela concessão da ordem – o que se vê da seguinte ementa:

Habeas corpus. Falsidade ideológica - art. 299 CP. Trancamento de ação penal. Justa causa. Denúncia baseada em prova ilícita. Alegado cerceamento ao direito de não produzir prova contra si mesma que se verifi ca. Ordem concedida. (fl . 297)

É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora): A tese defensiva deve ser acolhida.

É sabido que o trancamento da ação penal por ausência de justa causa é

uma medida excepcional, somente cabível em situações, nas quais, de plano, seja

perceptível o constrangimento ilegal, o que ocorre na espécie.

A denúncia encontra-se assim fundamentada, ad lítteram:

[...] A acusada, Maria da Penha do Nascimento, era copeira na Empresa Comissária Rio, prestando serviços, há dois anos, no Instituto Municipal Fernando Magalhães, tendo promanado do seu punho os grafismos que preencheram os receituários médicos acima apontados, em um total de 07 (sete).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

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Consoante o laudo acostado às fl s. 54-55: “...os receituários descritos... foram produzidos pelo punho gráfico de Maria da Penha do Nascimento, face as correspondências morfogenéticas constatadas entre tais grafi smos e os padrões gráfi cos da referida pessoa...”.

Assim agindo, a denunciada, consciente e voluntariamente, fez inserir declaração falsa em documento público, com o fi m de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, razão pela qual está incursa nas sanções do art. 299, caput, 07 (sete) vezes, na forma do artigo 69, ambos do Código Penal. (fl . 60)

Com efeito, verifica-se, na hipótese, que a Paciente, que trabalhava

como copeira do Instituto de Saúde Fernando Magalhães-RJ, foi denunciada

com base, apenas, no laudo pericial que atestou que a escrita constante nos

receituários são do punho da Paciente.

No despacho da autoridade policial que determinou sua oitiva na fase

inquisitorial, de 26.12.2005, já havia sido prevista a colheita de material

probatório da Paciente, para exame grafotécnico (fl . 220). Portanto, a despeito

de, no dia 13.01.2006, a Paciente ter sido ouvida na condição de “envolvida” (fl .

231), já ostentava, claramente, a qualidade de investigada.

Da leitura do termo de declaração da Paciente (repita-se, onde não consta a

Paciente na qualidade de indiciada), às fl s. 231-232, não há nenhuma menção ao

fato de que qualquer manuscrito seu seria comparado com as receitas falsifi cadas

em nome do Dr. Flávio Monteiro. Porem, a documentação de fl s. 234-237,

assinada pela Paciente, foi utilizada para fi ns periciais. Acrescente-se, ainda, que

a Paciente, não foi acompanhada de defensor ou de advogado, nem ninguém que

pudesse lhe esclarecer sobre o fato de que era desobrigada a produzir quaisquer

provas que pudessem ser utilizadas contra si.

[...] Nome: Maria da Penha do Nascimento (Envolvido)

[...] Constumes:

Contradita: (Sem)

Compromisso Legal:

Inquirido, disse:

Que trabalha como copeira na Empresa Comissaria Rio, prestando serviços há dois anos no Instituto Fernando Magalhães, sempre no horário noturno, de 19h às 17h da manhã do dia seguinte, em regime de plantão 12 h por 36 h; [...]; Que a declarante afi rma não conhecer o verdadeiro Dr. Flávio que foi vítima de furto de seu carimbo; Que se coloca à disposição para qualquer esclarecimento; E mais não disse. (fl . 231-232).

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Como bem observado pelo Ministério Público Federal em seu parecer,

a autoridade policial, ao inquirir a Paciente, nos autos do inquérito policial, já a

tinha por suspeita do cometimento do delito, tanto é que, de todas as testemunhas

ouvidas, a Paciente foi a única a quem foi requerido o fornecimento de padrões

gráfi cos para fi ns de realização de perícia (fl s. 220), como de fato ocorreu e

ensejou, como já assinalado, o oferecimento de denúncia em seu desfavor.

Nesse contexto, uma vez evidenciado nos autos que a Paciente já ostentava

a condição de investigada e que, em nenhum momento, foi advertida sobre seus

direitos constitucionalmente garantidos, em especial, o direito de fi car em silêncio e

de não produzir provas contra si mesma, resta evidenciada a ilicitude da prova, a

teor do disposto no art. 5º, incisos LVI e LXIII, da Constituição da República,

in verbis:

LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícito;

[...] LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado

Em suma, a Paciente não foi informada de que não era obrigada e fornecer

qualquer material gráfi co, desde a sua assinatura, que pudesse incriminá-la. Nem

havia, durante o ato, defensor que pudesse esclarecê-la que qualquer manuscrito

seu, até mesmo sua assinatura, seria usada para fi ns periciais, o que de fato

ocorreu.

Cumpre reproduzir, quanto ao direito do investigado de ser advertido de

que não pode ser obrigado a produzir prova contra si, trecho de emblemática

decisão proferida pelo eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal

Federal:

Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado – ainda que convocada como testemunha (RTJ 163/626 – RTJ 176/805-806) -, possui, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si própria, consoante reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 141/512, Rel. Min. Celso de Mello).

Esse direito, na realidade, é plenamente oponível ao Estado, a qualquer de seus Poderes e aos seus respectivos agentes e órgãos. Atua, nesse sentido, como poderoso fator de limitação das próprias atividades de investigação e de persecução desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes, Tribunais e Comissões Parlamentares de Inquérito, p. ex.).

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Cabe registrar que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio, ao explicitar, agora em sede constitucional, o postulado segundo o qual “Nemo tenetur se detegere”, nada mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema normativo instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda que compõe o “Bill of Rights” norte-americano.

Na realidade, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal (HC n. 80.530-MC-PA, Rel. Min. Celso de Mello). Trata-se de prerrogativa, que, no autorizado magistério de ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Direito à Prova no Processo Penal”, p. 111, item n. 7, 1997, RT), “constitui uma decorrência natural do próprio modelo processual paritário, no qual seria inconcebível que uma das partes pudesse compelir o adversário a apresentar provas decisivas em seu próprio prejuízo (...)”.

O direito de o indiciado/acusado (ou testemunha) permanecer em silêncio - consoante proclamou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em Escobedo v. Illinois (1964) e, de maneira mais incisiva, em Miranda v. Arizona (1966) - insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal.

A importância de tal entendimento fi rmado em Miranda v. Arizona (1966) assumiu tamanha significação na prática das liberdades constitucionais nos Estados Unidos da América, que a Suprema Corte desse país, em julgamento mais recente (2000), voltou a reafi rmar essa “landmark decision”, assinalando que as diretrizes nela fi xadas (“Miranda warnings”) – dentre as quais se encontra a prévia cientifi cação de que ninguém é obrigado a confessar ou a responder a qualquer interrogatório – exprimem interpretação do próprio “corpus” constitucional, como advertiu o então “Chief Justice” William H. Rehnquist, autor de tal decisão, proferida, por 07 (sete) votos a 02 (dois), no caso Dickerson v. United States (530 U.S. 428, 2000), daí resultando, como necessária conseqüência, a intangibilidade desse precedente, insuscetível de ser derrogado por legislação meramente ordinária emanada do Congresso americano (“... Congress may not legislatively supersede our decisions interpreting and applying the Constitution ...”).

Cumpre rememorar, bem por isso, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC n. 68.742-DF, Rel. p/ o acórdão Min. Ilmar Galvão (DJU de 02.04.1993), também reconheceu que o réu não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu “status poenalis”.

Esta Suprema Corte, fi el aos postulados constitucionais que expressivamente delimitam o círculo de atuação das instituições estatais, enfatizou que qualquer indivíduo submetido a procedimentos investigatórios ou a processos judiciais de natureza penal “tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. ‘Nemo tenetur

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se detegere’. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal” (RTJ 141/512, Rel. Min. Celso de Mello).

Em suma: o direito ao silêncio - e de não produzir provas contra si próprio - constitui prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer dos Poderes da República. (STF, HC n. 94.082-MC-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 25.03.2008).

É o que também se extrai do seguinte precedente de relatoria do eminente

Ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, ad litteram:

Habeas corpus: cabimento: prova ilícita.

1. Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento: sempre que, da imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade: precedentes do Supremo Tribunal.

II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo (CF, art. 5º, LVI): considerações gerais.

2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade - à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira - para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação.

III. Gravação clandestina de “conversa informal” do indiciado com policiais.

3. Ilicitude decorrente - quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental - de constituir, dita “conversa informal”, modalidade de “interrogatório” sub- reptício, o qual - além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C.Pr.Pen., art. 6º, V) -, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio. 4. O privilégio contra a auto-incriminação - nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição - além da inconstitucionalidade superveniente da parte fi nal do art. 186 C.Pr.Pen. - importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência - e da sua documentação formal - faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em “conversa informal” gravada, clandestinamente ou não.

IV. Escuta gravada da comunicação telefônica com terceiro, que conteria evidência de quadrilha que integrariam: ilicitude, nas circunstâncias, com relação a ambos os interlocutores.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 703

5. A hipótese não confi gura a gravação da conversa telefônica própria por um dos interlocutores - cujo uso como prova o STF, em dadas circunstâncias, tem julgado lícito - mas, sim, escuta e gravação por terceiro de comunicação telefônica alheia, ainda que com a ciência ou mesmo a cooperação de um dos interlocutores: essa última, dada a intervenção de terceiro, se compreende no âmbito da garantia constitucional do sigilo das comunicações telefônicas e o seu registro só se admitirá como prova, se realizada mediante prévia e regular autorização judicial.

6. A prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de conversa telefônica alheia é patentemente ilícita em relação ao interlocutor insciente da intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado.

7. A ilicitude da escuta e gravação não autorizadas de conversa alheia não aproveita, em princípio, ao interlocutor que, ciente, haja aquiescido na operação; aproveita-lhe, no entanto, se, ilegalmente preso na ocasião, o seu aparente assentimento na empreitada policial, ainda que existente, não seria válido. 8. A extensão ao interlocutor ciente da exclusão processual do registro da escuta telefônica clandestina - ainda quando livre o seu assentimento nela - em princípio, parece inevitável, se a participação de ambos os interlocutores no fato probando for incindível ou mesmo necessária à composição do tipo criminal cogitado, qual, na espécie, o de quadrilha.

V. Prova ilícita e contaminação de provas derivadas (fruits of the poisonous tree).

9. A imprecisão do pedido genérico de exclusão de provas derivadas daquelas cuja ilicitude se declara e o estágio do procedimento (ainda em curso o inquérito policial) levam, no ponto, ao indeferimento do pedido. (STF, HC n. 80.949-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ de 14.12.2001).

A propósito, o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça:

Habeas corpus. Direito Penal. Crime de desobediência cometido por diretor administrativo da Assembléia Legislativa do Espírito Santo. Recalcitrância ao chamamento de autoridade policial. Inocorrência. Atipicidade. Indiciado acobertado pelo princípio constitucional da ampla defesa. Prerrogativa de não produzir prova contra si. Trancamento da ação penal.

1. Consoante entendimento sufragado na jurisprudência desta Corte Federal Superior, o trancamento da ação penal na via angusta do habeas corpus, medida excepcional que é, somente cabe nas hipóteses em que se demonstrar, na luz da evidência, primus ictus oculi, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade.

2. Para a confi guração do delito de desobediência, imprescindível se faz a cumulação de três requisitos, quais sejam, desatendimento de uma ordem, que essa ordem seja legal, e que emane de funcionário público.

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3. Em inexistindo recalcitrância do acusado ao cumprimento de ordem legal, não há falar em crime de desobediência.

4. Inerente ao princípio constitucional da ampla defesa está a prerrogativa de o acusado não produzir prova contra si, que compreende, induvidosamente, o direito de permanecer em silêncio, seja na fase inquisitorial, seja na judicial.

5. Ordem concedida para trancar a ação penal. (HC n. 17.121-ES, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, julgado em 04.09.2001, DJ 04.02.2002, p. 566.)

Conclui-se que o direito a não se auto-incriminar contém cláusulas que devem

ser expressamente comunicadas a quaisquer investigados ou acusados, quais sejam,

o direito ao silêncio, o direito de não confessar, o direito de não produzir provas

materiais ou de ceder seu corpo para produção de prova etc.

Advirto, ainda, que a observância aos direitos fundamentais não se confunde

com fomento à impunidade. É mister essencial do Judiciário garantir que o jus

puniendi estatal não seja levado a efeito com máculas ao devido processo legal,

para que a observância das garantias individuais tenha efi cácia irradiante no

seio de toda a sociedade, seja nas relações entre o Estado e cidadãos ou entre

particulares (STF, RE n. 201.819-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/

Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ de 27.10.2006).

Foi por tal razão, inclusive, que a Suprema Corte dos Estados Unidos,

no julgamento do caso Miranda v. Arizona (384 U.S. 436), já no ano de 1966,

defi niu que qualquer suspeito de cometimento de delito deve ser advertido,

antes de ser ouvido acerca dos fatos pela autoridade estatal, sobre seu direito de

permanecer em silêncio; de que poderá se consultar com advogado e, caso não

possa expender de recursos para a contratação, um defensor ser-lhe-á nomeado,

sem custos; e que eventual confi ssão ou fornecimento de outra prova poderá

eventualmente ser considerada em juízo contra si.

Na hipótese, repita-se, resta evidenciado nos autos que a Paciente era

suspeita do cometimento dos fatos e inclusive já ostentava a condição de

investigada, ainda que não tenha sido formalizado nos autos do inquérito

policial. Porém, em nenhum momento, foi advertida sobre seus direitos

constitucionalmente garantidos, em especial, o direito de fi car em silêncio e de

não produzir provas contra si mesma.

Assim, resta evidenciada a ilicitude da única prova que embasou o

oferecimento da denúncia. Consequentemente, é de se aplicar, no caso, a teoria

dos frutos da árvore envenenada, pois verifi ca-se a ocorrência de contaminação

do processo, derivada da produção do laudo ilícito.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 705

Ante o exposto, concedo a ordem, determinando o trancamento da ação

penal proposta em face da Paciente, sem prejuízo do oferecimento de nova

denúncia, com base em outras provas.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 130.981-RS (2009/0044054-1)

Relator: Ministro Jorge Mussi

Impetrante: Rodrigo Bittencourt Mudrovitsch e outro

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Paciente: Luís Felipe Cunha

EMENTA

Habeas corpus. Termo circunstanciado instaurado para apurar a

suposta prática de crime de desobediência. Pedido de trancamento.

Requerimento do Ministério Público para que fossem fornecidos

dados cadastrais de usuário de telefonia fixa que expressamente

solicitou a não divulgação de tais informações. Existência de dúvida

sobre a legalidade do pedido ministerial. Ausência de dolo. Atipicidade

manifesta. Constrangimento evidenciado.

1. O trancamento de inquérito policial ou de ação penal é medida

excepcional, só admitida quando restar provada, de forma indubitável,

a ocorrência de circunstância extintiva da punibilidade, de ausência de

indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito e, ainda, da

atipicidade da conduta.

2. Para a configuração do crime de desobediência, exige-se

que a ordem, revestida de legalidade formal e material, seja dirigida

expressamente a quem tem o dever de obedecê-la, e que o agente

voluntária e conscientemente a ela se oponha.

3. No caso dos autos, percebe-se a patente atipicidade da conduta

atribuída ao paciente, uma vez que pairam dúvidas sobre a legalidade

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da ordem emanada, inexistindo, ainda, o elemento subjetivo necessário

à confi guração do delito de desobediência, qual seja, o dolo.

4. Quanto à legalidade do requerimento formulado pelo

Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Estado do Rio

Grande do Sul, o certo é que embora à época dos fatos existissem

decisões judiciais proferidas nas instâncias ordinárias que afi rmavam

a legitimidade do Parquet para requisitar informações cadastrais de

clientes do serviço de telefonia fi xa independentemente de autorização

judicial, a efi cácia de tais provimentos jurisdicionais encontrava-se

suspensa por força de medidas cautelares concedidas pelo Tribunal

Regional Federal da 4ª Região e pelo Supremo Tribunal Federal.

5. Assim, havendo dúvidas acerca da própria legalidade da

requisição feita pelo Ministério Público para que fossem enviados

dados cadastrais de usuário de telefonia fixa que expressamente

solicitou a não divulgação dessas informações, não há que se falar

em prática do delito de desobediência por funcionário da empresa de

telefonia que se julga impedido de fornecê-las.

6. Ademais, no que se refere ao elemento subjetivo necessário

à confi guração do delito previsto no artigo 330 do Código Penal,

na hipótese vertente não se pode considerar que o paciente tenha

deliberadamente se recusado a cumprir a determinação do Parquet,

tampouco que tenha agido com inequívoca vontade de desobedecer,

porquanto explicitou as razões jurídicas pelas quais entendia impossível

cumprir a solicitação formulada.

7. Ordem concedida para trancar o Termo Circunstanciado

n. 001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial

Criminal do Foro Central de Porto Alegre-RS.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto

do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Honildo Amaral de Mello Castro

(Desembargador convocado do TJ-AP), Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia

Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 707

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.

Brasília (DF), 25 de novembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Jorge Mussi, Relator

DJe 14.02.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Jorge Mussi: Trata-se de habeas corpus substitutivo de

recurso ordinário com pedido liminar, impetrado contra acórdão proferido pelo

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (HC n. 70023016918).

Noticiam os autos que o paciente, na qualidade de gerente jurídico da

empresa Brasil Telecom S/A, teria se recusado a atender a requisição formulada

pelo Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul,

consistente no fornecimento de dados cadastrais de usuário de serviço de

telefonia fi xa, para fi ns de instrução de procedimento administrativo, já que

desprovida da necessária autorização judicial.

Tal negativa teria como fundamento o direito à intimidade dos usuários

que solicitaram a não divulgação de seus dados cadastrais, hipótese verifi cada

nos autos, em respeito ao disposto no artigo 5º, inciso X, da Constituição

Federal, bem como aos artigos 3º, incisos V, VI, IX e XII, e 72, ambos da Lei

Geral de Telecomunicações. Anunciam os impetrantes, também, a existência de

decisão judicial, proferida nos autos da Medida Cautelar n. 2007.04.00.020775-

0, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que “desautoriza o Ministério

Público (em qualquer de suas esferas) a requisitar dados cadastrais de assinantes

de serviços de telefonia diretamente às concessionárias, ausente decisão judicial

específi ca” (fl . 4).

Diante da negativa de fornecimento de tais dados, o Subcorregedor-Geral

do Ministério Público do Rio Grande do Sul determinou a remessa de cópia

do respectivo expediente para distribuição perante uma das varas criminais da

Comarca de Porto Alegre-RS, a fi m de se apurar eventual responsabilidade penal

do paciente na prática do crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal).

O feito foi distribuído ao 2º Juizado Especial Criminal da Comarca de Porto

Alegre-RS, sendo designada audiência preliminar do termo circunstanciado

para 08.04.2009.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

708

Sustentam os impetrantes que a conduta atribuída ao paciente seria atípica, pois teria atuado em conformidade tanto com o ordenamento jurídico pátrio, que veda a divulgação, sem autorização judicial, das informações cadastrais dos usuários do serviço de telefonia fi xa, como com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, que alberga tal sigilo, sob pena de violação aos direitos à intimidade e à privacidade.

Defendem, ainda, a existência de decisões judiciais que impedem o Ministério Público de requisitar, sem autorização judicial, informações sobre cadastros de usuários de serviços de telefonia, citando as decisões proferidas por ocasião do julgamento da Medida Cautelar Inominada n. 2007.04.00.020775-0, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, bem como da Ação Cautelar n. 1.928, do Supremo Tribunal Federal.

Alegam, também, que o Ministério Público não teria atribuição para requisitar informações cadastrais acobertadas pelo sigilo da intimidade, aduzindo que as disposições do artigo 129, inciso VI, da Constituição Federal, e artigo 26, inciso II, da Lei n. 8.625/1993, devem ser interpretadas de acordo com os demais dispositivos que integram o ordenamento jurídico, “especialmente no que se refere aos núcleos de proteção das garantias constitucionais fundamentais” (fl . 17).

Com estas considerações, asseveram que a ordem emanada do Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul seria ilegal, razão pela qual a conduta do paciente, consistente na negativa de prestação das informações protegidas pelo sigilo, não confi guraria o ilícito previsto no artigo 330 do Código Penal, sendo, portanto, atípica.

Por esta razão, seria dever do representante do Ministério Público atuante perante o juízo de primeira instância apresentar pedido de arquivamento do termo circunstanciado, sob pena de violação ao disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal, já que sequer seria viável a proposta de transação penal, conforme o disposto no artigo 76 da Lei n. 9.099/1995.

Por fi m, asserem que, na hipótese de se ter por legal a requisição formulada pelo Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul, o paciente teria atuado em erro de proibição, pois baseou-se em precedentes jurisprudenciais de diversos tribunais pátrios, razão pela qual estaria afastada a sua culpabilidade.

Pretendem, alfim, o trancamento do Termo Circunstanciado n. 001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central de Porto Alegre-RS.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 709

A liminar foi deferida, nos termos da decisão de fl s. 257-259.

Prestadas as informações (fl s. 269-289 e 291-299), o Ministério Público

Federal, em parecer de fl s. 301-307, manifestou-se pela concessão da ordem.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Jorge Mussi (Relator): Conforme relatado, com este habeas corpus pretende-se, em síntese, o trancamento de termo circunstanciado instaurado para apurar a suposta prática do delito de desobediência pelo paciente.

Segundo consta dos autos, o Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul solicitou à Gerência Jurídica da Brasil Telecom o fornecimento dos dados de titular de linha telefônica fi xa (fl . 81), pleito que não foi prontamente atendido pela citada empresa de telefonia sob o fundamento de que seria necessária autorização judicial para a disponibilização das informações requeridas (fl . 82).

O órgão ministerial reiterou a solicitação formulada, esclarecendo a “dispensabilidade da providência reclamada”, tendo em vista que não se trataria “de quebra de sigilo telefônico ou escuta judicialmente deferida”, mas apenas de “identifi cação de titular de linha telefônica, para fi ns de instrução de procedimento de natureza administrativo-disciplinar” (fl . 83).

Em resposta, a Brasil Telecom insistiu na impossibilidade jurídica de fornecimento das informações requeridas, sob o fundamento de que os usuários que solicitaram a não divulgação de seus dados cadastrais teriam direito à intimidade, informando, ainda, que existiria decisão judicial, proferida nos autos da Medida Cautelar n. 2007.04.00.020775-0, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a respaldar a negativa de cumprimento da requisição formulada (fl s. 84-88).

O Subcorregedor-Geral do Ministério Público do Rio Grande do Sul determinou, então, a remessa de cópia do respectivo expediente para distribuição perante uma das varas criminais da Comarca de Porto Alegre-RS, a fi m de se apurar eventual responsabilidade penal do paciente na prática do crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal), tendo sido o feito distribuído ao 2º Juizado Especial Criminal da Comarca de Porto Alegre-RS, determinando-se a designação de audiência preliminar (fl . 110).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

710

Impetrado habeas corpus na origem, a Turma Recursal Criminal dos

Juizados Especiais do Estado do Rio Grande do Sul denegou a ordem, em

acórdão que recebeu a seguinte ementa:

Habeas corpus. Alegação de constrangimento ilegal. Solicitação de informações cadastrais pelo Ministério Público. Recusa no fornecimento. Designação de audiência para oferta de transação. Pretensão de suspensão ou trancamento de procedimento penal.

O Ministério Público não solicitou que a empresa procedesse à quebra de sigilo telefônico, buscando tão somente informação cadastral visando instruir processo, no interesse da justiça.

Ausente pretensão de quebra de sigilo telefônico ou de comunicação telefônica ou, ainda, violação da intimidade do cliente da empresa de telefonia.

A designação de audiência para oferta de transação penal à paciente não se constitui em ato ilegal ou confi gurador de abuso que admita Habeas Corpus. (fl . 136).

Irresignada, a defesa aforou novo mandamus, o qual inicialmente não foi

conhecido (fl . 207), mas teve o seu mérito apreciado após a concessão da ordem

por esta colenda Quinta Turma, em aresto que restou assim resumido:

Habeas Corpus. Alegação de Ausência de justa causa. Trancamento da ação penal.

O trancamento da ação penal só se justifica quando, de plano, constatar-se a atipicidade do fato ou, que o acusado não é o autor ou, a existência de causa excludente de ilicitude. A via estreita do habeas corpus é imprópria para apreciação analítica da prova. Ordem denegada. (fl . 246).

Pois bem. De tudo quanto foi exposto, tem-se que assiste razão aos

impetrantes.

Inicialmente é preciso destacar que é cediço que o trancamento de

inquérito policial ou de ação penal é medida excepcional, só admitida quando

restar provada, de forma indubitável, a ocorrência de circunstância extintiva da

punibilidade, de ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do

delito e, ainda, da atipicidade da conduta.

Contudo, no caso dos autos percebe-se a patente atipicidade da conduta

atribuída ao paciente, uma vez que pairam dúvidas sobre a legalidade da ordem

emanada pelo órgão ministerial, inexistindo, ainda, o elemento subjetivo

necessário à confi guração do delito de desobediência, qual seja, o dolo.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 711

Quanto à legalidade do requerimento formulado pelo Subcorregedor-Geral

do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o certo é que embora à

época dos fatos existissem decisões judiciais proferidas nas instâncias ordinárias

que afi rmavam a legitimidade do Parquet para requisitar informações cadastrais

de clientes do serviço de telefonia fi xa independentemente de autorização

judicial (liminar deferida na Ação Civil Pública n. 2006.71.00.033295-

7, da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, e Agravo de Instrumento n.

2006.04.00.034026-3, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região), a

efi cácia de tais provimentos jurisdicionais encontrava-se suspensa por força

da medida cautelar concedida nos autos da Medida Cautelar Inominada n.

2007.04.00.020775-0, daquele mesmo Sodalício, que atribuiu efeito suspensivo

ao recurso especial interposto pela Brasil Telecom S/A contra o acórdão do

aludido agravo de instrumento, efeito também atribuído ao respectivo recurso

extraordinário, em medida cautelar deferida pelo Supremo Tribunal Federal

(Ação Cautelar n. 1.928).

Denota-se, portanto, que a matéria debatida nos autos ainda não possui

solução pacífi ca na jurisprudência dos Tribunais pátrios o que, por si só, revela

a impossibilidade de se imputar ao paciente o delito de desobediência, que

pressupõe a emissão de ordem legal por funcionário público.

Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci leciona que “é indispensável

que o comando (determinação para fazer algo, e não simplesmente pedido ou

solicitação) seja legal, isto é, previsto em lei, formal (ex: emitido por autoridade

competente) e substancialmente (ex.: estar de acordo com a lei).” (Código Penal

Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1.084-1.085).

Assim, havendo dúvidas acerca da própria legalidade de requisição pelo

Ministério Público, independentemente de ordem judicial, de dados cadastrais

de usuário de telefonia fi xa que expressamente solicitou a não divulgação dessas

informações, não há que se falar em prática do delito de desobediência por

funcionário da empresa de telefonia que se julga impedido de fornecê-las.

Ademais, no que se refere ao elemento subjetivo subjetivo necessário à

confi guração do delito previsto no artigo 330 do Código Penal, tem-se que o

agente deve voluntária e conscientemente se opor à ordem legal emanada de

funcionário público.

Como visto, na hipótese vertente não se pode considerar que o paciente

tenha deliberadamente se recusado a cumprir a determinação do Ministério

Público, tampouco que tenha agido com inequívoca vontade de desobedecer,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

712

porquanto explicitou as razões jurídicas pelas quais entendia impossível cumprir

a solicitação formulada.

Desse modo, não sendo certa a legalidade do requerimento ministerial

dirigido à Brasil Telecom, bem como não havendo dolo do paciente em

descumpri-lo, inviável o prosseguimento da investigação instaurada na origem.

Ante o exposto, concede-se a ordem para trancar o Termo Circunstanciado

n. 001/2.07.007.2857-1, em trâmite perante o 2º Juizado Especial Criminal do

Foro Central de Porto Alegre-RS.

É o voto.

HABEAS CORPUS N. 139.998-RS (2009/0121507-4)

Relator: Ministro Jorge Mussi

Impetrante: Augusto Fauvel de Moraes e outro

Impetrado: Tribunal Regional Federal da 4ª Região

Paciente: Carlos Henrique de Almeida

Paciente: Carla Márcia Michelin de Almeida

EMENTA

Habeas corpus. Descaminho (artigo 334 do Código Penal).

Investigação criminal iniciada antes da conclusão do procedimento

administrativo fiscal. Impossibilidade. Constrangimento ilegal

evidenciado. Concessão da ordem.

1. Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da

persecução penal no delito de descaminho pressupõe o esgotamento da

via administrativa, com a constituição defi nitiva do crédito tributário.

Doutrina. Precedentes.

2. Embora o delito de descaminho esteja descrito na parte

destinada aos crimes contra a Administração Pública no Código

Penal, motivo pelo qual alguns doutrinadores afi rmam que o bem

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 713

jurídico primário por ele tutelado seria, como em todos os demais

ilícitos previstos no Título IX do Estatuto Repressivo, a Administração

Pública, predomina o entendimento de que com a sua tipifi cação

busca-se tutelar, em primeiro plano, o erário, diretamente atingido

pela ilusão do pagamento de direito ou imposto devido pela entrada,

pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

3. O delito previsto na segunda parte do caput do artigo 334

do Código Penal confi gura crime material, que se consuma com a

liberação da mercadoria pela alfândega, logrando o agente ludibriar as

autoridades e ingressar no território nacional em posse das mercadorias

sem o pagamento dos tributos devidos, não havendo, por conseguinte,

qualquer razão jurídica para não se lhe aplicar o mesmo entendimento

já pacifi cado no que se refere aos crimes materiais contra a ordem

tributária, cuja caracterização só ocorre após o lançamento defi nitivo

do crédito fi scal.

4. A confi rmar a compreensão de que a persecução penal no

crime de descaminho pressupõe a constituição defi nitiva do crédito

tributário, tem-se, ainda, que a própria legislação sobre o tema reclama

a existência de decisão fi nal na esfera administrativa para que se possa

investigar criminalmente a ilusão total ou parcial do pagamento de

direito ou imposto devidos (artigo 83 da Lei n. 9.430/1996, artigo 1º,

inciso II, do Decreto n. 2.730/1998 e artigos 1º e 3º, § 7º, da Portaria

SRF n. 326/2005).

5. Na hipótese vertente, ainda não houve a conclusão do

processo administrativo por meio do qual se apura a suposta ilusão do

pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação por

parte dos pacientes, pelo que não se pode falar, ainda, em investigação

criminal para examinar a ocorrência do crime de descaminho.

6. Ordem concedida para trancar o inquérito policial instaurado

contra os pacientes.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

714

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto

do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Honildo Amaral de Mello Castro

(Desembargador convocado do TJ-AP), Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia

Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.

Brasília (DF), 25 de novembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Jorge Mussi, Relator

DJe 14.02.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Jorge Mussi: Trata-se de habeas corpus com pedido liminar

impetrado em favor de Carlos Henrique de Almeida e Carla Márcia Michelin de

Almeida, apontando como autoridade coatora o Tribunal Regional Federal da 4ª

Região (HC n. 2009.04.00.012006-9-RS).

Noticiam os autos que os pacientes estão sendo investigados pela suposta

prática do crime de descaminho, pois, na qualidade de responsáveis legais da

empresa Max Nutrition Comercial, Importadora, Exportadora e Distribuidora

Ltda., teriam utilizado “faturas falsas ou adulteradas para subfaturar importações

realizadas por esta empresa como artifício para iludir o fi sco” (fl . 64).

Sustenta o impetrante que o inquérito policial teria sido instaurado antes

do lançamento defi nitivo do débito fi scal, tendo em vista a existência de recurso

pendente na esfera administrativa, faltando, por isso, justa causa à defl agração

do procedimento criminal, ao argumento de que o crime de descaminho deveria

receber o mesmo tratamento do crime de sonegação fi scal, já que o tipo penal

em tutelaria o interesse arrecadador do Estado, tratando-se de crime material.

Requer a concessão da ordem para que seja trancado o inquérito policial

em apreço.

A liminar foi indeferida, nos termos da decisão de fl s. 150-151.

Prestadas as informações (fl s. 156-181), o Ministério Público Federal, em

parecer de fl s. 183-189, manifestou-se pela concessão da ordem.

É o relatório.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 715

VOTO

O Sr. Ministro Jorge Mussi (Relator): Conforme relatado, com este habeas

corpus pretende-se, em síntese, o trancamento de inquérito policial instaurado contra os pacientes para apurar a suposta prática do delito de descaminho, ao argumento de que ainda não teria sido concluído o procedimento administrativo fi scal.

Segundo consta dos autos, o Ministério Público Federal requereu a abertura de inquérito policial em face dos pacientes, diante da possível prática do delito previsto no artigo 334 do Código Penal:

Remeto a Vossa Senhoria o anexo procedimento administrativo MPF/PR/RS 1.29.000.000259/2008-42 e requisito a instauração de inquérito policial para apurar a possível ocorrência de crime de descaminho, delito tipifi cado no artigo 334 do Código Penal, conduta atribuída aos gestores da empresa Max Nutrition Comercial, Importadora, Exportadora e Distribuidora Ltda., que teriam iludido o pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação, por meio da apresentação de documentos inidôneos e de declarações falsas perante as autoridades alfandegárias, com o registro de preços subfaturados. (fl . 66).

Por meio de portaria, o Departamento de Polícia Federal iniciou

procedimento para investigar eventual responsabilidade penal dos pacientes:

Considerando o teor do ofício OF/COOCRIM/PR/RS n. 2.195/2008, oriundo do Ministério Público Federal em Porto alegre, o qual apresenta o mandado de segurança n. 2007.71.00.047419-7, protocolizada nesta SR/DPF/RS sob o n. 08430.010240/2008-10;

Resolve:

Instaurar Inquérito Policial para apurar a responsabilidade penal pela possível existência do crime de descaminho, previsto no artigo 334 do Código Penal, por Carlos Henrique de Almeida e Carla Marcia Michelin de Almeida, responsáveis legais da empresa Max Nutrition Comercial, Importadora, Exportadora e Distribuidora Ltda. - CNPJ n. 00.749.105/0001-48, sem prejuízo de outros que possam surgir no decorrer das investigações, haja vista que, em 31.07.2007, a Receita Federal instaurou Procedimento Especial de Controle Aduaneiro face a denúncias de utilização de faturas falsas ou adulteradas para subfaturar importações realizadas por esta empresa como artifício para iludir o fi sco. (fl . 64).

Foi impetrado, então, habeas corpus perante a 7ª Turma do Tribunal

Regional Federal da 4ª Região, que denegou a ordem pleiteada, mantendo o

inquérito policial instaurado contra os pacientes, em acórdão que recebeu a

seguinte ementa:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

716

Penal. Habeas corpus. Trancamento de inquérito policial. Delito de descaminho. Alegação de inexistência de lançamento definitivo do crédito tributário. Incabimento.

O argumento de que o delito de descaminho exige constituição defi nitiva do crédito tributário não tem sido acolhido neste TRF 4ªR, na medida em que o bem jurídico tutelado pelo delito previsto no art. 334 do Código Penal não se restringe ao mero interesse fiscal, razão pela qual não pode ser equiparado às típicas infrações penais contra a ordem tributária, de que é exemplo o art. 1º da Lei n. 8.137/1990, razão pela qual resta inviável falar-se em trancamento de inquérito policial (Precedentes). (fl . 139).

Pois bem. Compulsando os elementos constantes dos autos, tem-se que assiste razão aos impetrantes.

Inicialmente, é preciso destacar que existe controvérsia, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, sobre a possibilidade de se condicionar a persecução penal no delito de descaminho ao esgotamento da esfera administrativa.

Para uma primeira corrente, a inexigibilidade do exaurimento da via administrativa no ilícito disposto no artigo 334, caput, segunda parte do Código Penal decorreria, essencialmente, da diferença existente entre os crimes contra a ordem tributária e o delito de descaminho, notadamente no que se refere aos bens jurídicos por eles tutelados.

Contudo, tal objeção não prospera, devendo prevalecer a tese pela qual é indispensável a conclusão do procedimento administrativo fi scal para que possa ter início a apuração penal do crime de descaminho.

Topografi camente, o delito de descaminho encontra-se na parte destinada aos crimes contra a Administração Pública no Código Penal, motivo pelo qual há os que afi rmam que o bem jurídico primário por ele tutelado seria, como em todos os demais ilícitos previstos no Título IX do Estatuto Repressivo, a Administração Pública.

Por essa razão, aduz-se que não seria possível condicionar a persecução penal ao esgotamento das instâncias administrativas, uma vez que a tutela da moralidade pública, da regularidade nas importações e exportações, prescindiria da constituição defi nitiva do crédito tributário.

Todavia, embora o delito de descaminho seja, de fato, pluriofensivo, é certo que predomina o entendimento de que com a sua tipifi cação busca-se tutelar, em primeiro plano, o erário, diretamente atingido pela ilusão do pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 717

A propósito, é essa a lição de Cezar Roberto Bitencourt:

Bem jurídico tutelado, como em todas as infrações penais constantes do Título XI do Código Penal, Parte Especial, é a Administração Pública, no plano genérico. O bem jurídico tutelado específi co, no entanto - a despeito de todos os fundamentos que se têm procurado atribuir à criminalização do contrabando ou descaminho -, é, acima de tudo, a salvaguarda dos interesses do erário público, diretamente atingido pela evasão de renda resultante dessas operações clandestinas ou fraudulentas. Num plano secundário, não se pode negar, visa-se também proteger a moralidade pública com a repressão de importação e exportação de mercadoria proibida, que podem, inclusive, produzir lesão à saúde pública, à higiene, etc. e não deixa de proteger igualmente a indústria e a economia nacionais como um todo, com o fortalecimento de barreiras alfandegárias. (Código Penal Comentado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1.103).

Desse modo, percebe-se que assim como nos crimes contra a ordem tributária previstos na Lei n. 8.137/1990, no descaminho a integridade do erário é o bem jurídico fundamentalmente protegido, o que, por si só, e num primeiro momento, já justifi ca o condicionamento da persecução penal à conclusão do procedimento administrativo de apuração do débito fi scal.

Isso porque o descaminho, na forma de iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria, configura crime material, que se consuma com a liberação do produto pela alfândega, logrando o agente ludibriar as autoridades e ingressar no território nacional em posse dos bens sem o pagamento dos tributos devidos.

Ora, como no delito previsto na segunda parte do caput do artigo 334 do Código Penal vislumbra-se a ocorrência de resultado naturalístico, consistente na falta de arrecadação dos tributos pertinentes, não há qualquer razão jurídica para não se lhe aplicar o mesmo entendimento já pacifi cado no que se refere aos crimes materiais contra a ordem tributária, cuja caracterização só ocorre após o lançamento defi nitivo do crédito fi scal.

Mas não é só. Apesar de haver quem entenda que o descaminho não pode ser equiparado aos crimes contra a ordem tributária, principalmente porque não confi guraria técnica estatal de arrecadação, tendo por fi nalidade única a repressão penal da conduta, sem qualquer preocupação com a satisfação do débito fi scal, o certo é que a infração penal prevista no artigo 334, caput, segunda parte, do Código Penal caracteriza, sim, um ilícito tributário, que em tudo se assemelha aos disciplinados na Lei n. 8.137/1990, constando do Código Penal somente por uma questão de opção legislativa.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

718

Nessa esteira, Cezar Roberto Bitencourt, ao tratar da distinção entre o

descaminho e os demais crimes contra a ordem tributária, assinala que:

Com efeito, com o crime de descaminho deixa-se de recolher todos os tributos que lhe são inerentes, tais como o imposto de importação e exportação (II e IE); o imposto de produtos industrializados (IPI) - substituto do antigo imposto de consumo -, pois, via de regra, o objeto material do descaminho é produto industrializado; e o imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS). Constata-se que o descaminho, a despeito de implicar, direta e simultaneamente, “sonegação” automática de inúmeros impostos, é tipificado e classificado como crime contra a Administração Pública, por opção político-criminal do legislador, e não como crime contra a ordem tributária, que, tecnicamente, não constituiria nenhum disparate se houvesse opção legislativa em atribuir-lhe essa natureza. (Op. cit., p. 1.108).

Aliás, conveniente registrar que foi justamente a similitude existente

entre o descaminho e os crimes contra a ordem tributária que fez com que a

colenda Sexta Turma desta Corte Superior estendesse ao delito do artigo 334

do Código Penal a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do

tributo, estabelecida no artigo 34 da Lei n. 9.249/1995, a qual, expressamente,

só abrangeria os ilícitos tributários defi nidos na Lei n. 8.137/1990 e na Lei n.

4.729/1965.

O acórdão recebeu a seguinte ementa:

Processo Penal. Habeas corpus. Descaminho. Extinção da punibilidade. Pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia. Aplicação do art. 34 da Lei n. 9.249/1995. Ubi eadem ratio ibi idem ius.

1. Não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral.

2. Diante do pagamento do tributo, antes do recebimento da denúncia, de rigor o reconhecimento da extinção da punibilidade.

3. Ordem concedida.

(HC n. 48.805-SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 26.06.2007, DJ 19.11.2007, p. 294)

A confirmar a compreensão de que a persecução penal no crime de

descaminho pressupõe a constituição defi nitiva do crédito tributário, tem-se,

ainda, que a própria legislação sobre o tema reclama a existência de decisão fi nal

na esfera administrativa para que se possa investigar criminalmente a ilusão

total ou parcial do pagamento de direito ou imposto. Senão vejamos.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 719

O caput do artigo 83 da Lei n. 9.430/1996, estabelece que a representação

fiscal para fins penais nos crimes contra a ordem tributária e nos delitos

de apropriação indébita e de sonegação de contribuição previdenciária só

deve ser encaminhada ao Ministério Público após o esgotamento da esfera

administrativa, verbis:

Art. 83. A representação fi scal para fi ns penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão fi nal, na esfera administrativa, sobre a exigência fi scal do crédito tributário correspondente.

Por sua vez, o Decreto n. 2.730/1998, que dispõe sobre o encaminhamento

ao Ministério Público Federal da representação fi scal para fi ns penais de que

trata o artigo 83 da Lei n. 9.430/1996, prevê, expressamente, no inciso II do

artigo 1º, a fi gura típica do descaminho:

Art. 1º O Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional formalizará representação fi scal, para os fi ns do art. 83 da Lei n. 9.430, de 27 de dezembro de 1996, em autos separados e protocolizada na mesma data da lavratura do auto de infração, sempre que, no curso de ação fi scal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda ou decorrente de apreensão de bens sujeitos à pena de perdimento, constatar fato que confi gure, em tese;

(...)

II - crime de contrabando ou descaminho.

Finalmente, a Portaria SRF n. 326/2005, ao discriminar o procedimento

que deve ser observado pelo auditor-fi scal quando se deparar com a suposta

prática do delito previsto no artigo 334 do Código Penal determina que seja

formalizada representação fi scal para fi ns penais (artigo 1º), bem como que a

ela sejam anexadas as peças da decisão fi nal do processo administrativo fi scal

no qual não tenha havido o pagamento do tributo, para o encaminhamento ao

Ministério Público Federal, nos termos do artigo 3º, § 7º, que se encontra assim

redigido:

§ 7º Transitada em julgado a decisão sem que o crédito tenha sido extinto pelo pagamento, ressalvadas as hipóteses de que tratam o art. 15, caput e § 2º, II, da Lei n. 9.964, de 2000, e o art. 9º da Lei n. 10.684, de 2003, as peças da

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

720

decisão fi nal, que confi rmam a existência do ilícito tributário caracterizador de crime, serão juntadas, por cópia, à representação fi scal para fi ns penais, que será remetida, no prazo máximo de dez dias, pelo Delegado ou Inspetor da Receita Federal, responsável pelo controle do processo administrativo-fi scal, ao órgão do Ministério Público Federal que for competente para promover a ação penal.

Da leitura conjugada de todos os dispositivos legais acima mencionados,

conclui-se que a defl agração da persecução penal no delito de descaminho

pressupõe o trânsito em julgado da decisão na esfera administrativa, somente

após o que se poderá falar em ilícito tributário.

Sobre o tema, cumpre trazer à baila a posição de Celso Delmanto, Roberto

Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto, para

quem “a natureza tributária do delito de descaminho (art. 334, caput, segunda

parte)”, enseja o mesmo tratamento dado aos crimes contra a ordem tributária

e contra a Previdência Social, para os quais “é pacífi co o entendimento de que

o inquérito policial ou o processo criminal só poderão ser instaurados após o

término do processo administrativo-fi scal” (Código Penal Comentado. 8ª ed.

São Paulo: Saraiva, 2010, p. 960).

Guilherme de Souza Nucci adota idêntica orientação, consignando que se

houver o pagamento do imposto devido, falta justa causa para a ação penal pela

ausência de dolo do agente:

Atualmente, pode-se vincular o ajuizamento da ação penal ao término de procedimento administrativo instaurado para apurar a sonegação fiscal decorrente da importação ou exportação de mercadoria. É preciso considerar que, havendo plena quitação do imposto devido à Receita Federal, não se mantém a justa causa para a ação penal. O descaminho, por ausência de dolo, não subsiste, devendo, pois, ser trancada a ação penal ou o inquérito policial. (Código Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1.103).

Em arremate, vale ressaltar que esta também tem sido a orientação deste

Sodalício que, por meio da egrégia Sexta Turma, tem condicionado a persecução

criminal pelo crime de descaminho ao exaurimento da via administrativa:

Descaminho (caso). Habeas corpus (cabimento). Matéria de prova (distinção). Esfera administrativa (Lei n. 9.430/1996). Processo administrativo-fiscal (pendência). Ação penal (extinção).

1. Determina a norma (constitucional e infraconstitucional) que se conceda habeas corpus sempre que alguém esteja sofrendo ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação; trata-se de dar proteção à liberdade de ir, fi car e vir,

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 721

liberdade induvidosamente possível em todo o seu alcance. Assim, não procedem censuras a que nele se faça exame de provas. Precedentes do STJ.

2. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83 da Lei n. 9.430/1996, há de se entender que a condição ali existente é condição objetiva de punibilidade, e tal entendimento também se aplica ao crime de descaminho (Cód. Penal, art. 334).

3. Em hipótese que tal, o descaminho se identifi ca com o crime contra a ordem tributária. Precedentes do STJ: HCs n. 48.805, de 2007, e 109.205, de 2008.

4. Na pendência de processo administrativo no qual se discute a exigibilidade do débito fi scal, não há falar em procedimento penal.

5. Recurso ordinário provido para se extinguir, relativamente ao crime de descaminho, a ação penal.

(RHC n. 25.228-RS, Rel. Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, julgado em 27.10.2009, DJe 08.02.2010)

Penal. Habeas corpus. Descaminho. Trancamento da ação penal. Ausência de prévia constituição do crédito tributário na esfera administrativa. Natureza tributária do delito. Ordem concedida.

1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua caracterização, do lançamento defi nitivo do tributo devido pela autoridade administrativa.

2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que tutela, dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma orientação, já que pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir (iludir).

Precedente.

3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no que tange ao delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo prescricional.

(HC n. 109.205-PR, Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), Sexta Turma, julgado em 02.10.2008, DJe 09.12.2008, RT vol. 882, p. 569)

Na hipótese vertente, ainda não houve a conclusão do Processo

Administrativo n. 1094.000012/2008-49, por meio do qual se apura a suposta

ilusão do pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação por

parte dos pacientes, mediante a apresentação de documentos inidôneos e de

declarações falsas perante as autoridades alfandegárias, conforme o documento

acostado à fl . 60, cuja veracidade e atualidade das informações foi atestada

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

722

por meio de acesso à pagina do Ministério da Fazenda localizada na internet,

pelo que não se pode falar, ainda, em investigação criminal para examinar a

ocorrência de crime de descaminho.

Ante o exposto, concede-se a ordem para trancar o Inquérito Policial n.

1774/08-SR/DPF-RS instaurado contra os pacientes.

É o voto.

HABEAS CORPUS N. 146.790-SP (2009/0175157-7)

Relator: Ministro Gilson Dipp

Impetrante: Francisco Emerson Mouzinho de Lima

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Paciente: Teresinha Monteiro dos Santos

EMENTA

Criminal. Habeas corpus. Estelionato. Pena-base fi xada acima

do mínimo legal. Maus antecedentes. Reincidência. Prazo de cinco

anos entre a extinção da pena e a data do novo delito não decorrido.

Ausência de bis in idem. Existência de duas condenações penais

transitadas em julgado. Regime aberto e conversão de pena corporal

em restritiva de direitos. Acusada reincidente. Impossibilidade de

concessão dos benefícios. Ordem denegada.

I. A teor do art. 63 do CP, o qual preleciona que apenas não deverá

ser reconhecida a reincidência quando decorrido o lapso temporal de

cinco anos entre a data do cumprimento da pena anterior ou de sua

extinção e o cometimento do novo delito, infere-se a incidência da

referida circunstância agravante.

II. A existência de duas condenações transitadas em julgado em

desfavor da agente permite a fi xação da pena-base acima do mínimo

legal e o reconhecimento da agravante da reincidência, sem que se

vislumbre a ocorrência de bis in idem.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 723

III. Não obstante o quantum da pena imposta, o fato de se tratar

de acusada reincidente e o reconhecimento de circunstâncias judiciais

desfavoráveis não permitem o desconto da reprimenda em regime

aberto (Precedentes).

IV. A conversão da pena corporal em restritiva de direitos

encontra óbice no inciso II do art. 44 do Estatuto Repressor, que veda

a concessão do benefício ao réu reincidente em crime doloso.

IV. Ordem denegada, nos termos do voto do Relator.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. “A

Turma, por unanimidade, denegou a ordem. “Os Srs. Ministros Laurita Vaz,

Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 16 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Gilson Dipp, Relator

DJe 1º.02.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Gilson Dipp: Trata-se de habeas corpus, com pedido de

liminar, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que

deu provimento parcial ao apelo interposto em favor de Teresinha Emerson

Mouzinho de Lima.

A paciente foi condenada à pena de 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de

reclusão, em regime inicialmente semiaberto, pela prática, por duas vezes, do

delito previsto art. 171, caput, c.c. art. 29 e art. 69, caput, todos do Código Penal.

Irresignada, a defesa interpôs apelo perante o Colegiado estadual, que

restou parcialmente provido, tão somente para reduzir o quantum da pena ao

patamar de 01 (um) ano, 04 (quatro) meses e 10 (dez) dias de reclusão, por cada

um dos crimes, totalizando 02 (dois) anos, 08 (oito) meses e 20 (vinte) dias, a ser

descontada em regime intermediário.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

724

Daí a presente irresignação, na qual o impetrante alega que a sentença

condenatória merece reparo, uma vez que teria sido considerada a reincidência

da paciente, devendo ser aplicado o regime aberto para desconto da pena, assim

como convertida a reprimenda corporal em restritiva de direitos.

Ademais, assevera que a apenada não ostenta maus antecedentes, sendo

que a condenação nos autos da Ação Penal n. 2003/03 retroagiu em prejuízo da

ora paciente, já que, na data dos fatos descritos nos autos, era a acusada primária.

Pugna-se, assim, pelo estabelecimento do regime aberto, bem como pela

conversão da pena corporal por restritiva de direitos.

Liminar indeferida à fl . 100.

Informações prestadas às fl s. 105-137 e 154-182.

A Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se pela denegação da

ordem (fl s. 141-146).

É o relatório.

Em mesa para julgamento.

VOTO

O Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator): Trata-se de habeas corpus, com

pedido de liminar, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo, que deu provimento parcial ao apelo interposto em favor de Teresinha

Emerson Mouzinho de Lima.

A paciente foi condenada à pena de 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de

reclusão, em regime inicialmente semiaberto, pela prática, por duas vezes, do

delito previsto art. 171, caput, c.c. art. 29 e art. 69, caput, todos do Código Penal.

Irresignada, a defesa interpôs apelo perante o Colegiado estadual, que

restou parcialmente provido, tão somente para reduzir o quantum da pena ao

patamar de 01 (um) ano, 04 (quatro) meses e 10 (dez) dias de reclusão, por cada

um dos crimes, totalizando 02 (dois) anos, 08 (oito) meses e 20 (vinte) dias, a ser

descontada em regime intermediário.

Daí a presente irresignação, na qual o impetrante alega que a sentença

condenatória merece reparo, uma vez que teria sido considerada a reincidência

da paciente, devendo ser aplicado o regime aberto para desconto da pena, assim

como convertida a reprimenda corporal em restritiva de direitos.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 725

Ademais, assevera que a apenada não ostenta maus antecedentes, sendo

que a condenação nos autos da Ação Penal n. 2003/03 retroagiu em prejuízo da

ora paciente, já que, na data dos fatos descritos nos autos, era a acusada primária.

Pugna-se, assim, pelo estabelecimento do regime aberto, bem como pela

conversão da pena corporal por restritiva de direitos.

Passo à análise da irresignação.

O Juízo de Direito da Comarca de Itatiba, no bojo da sentença

condenatória, asseverou:

Em primeira lugar, considerando as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal, especialmente a existência de antecedentes criminais e o prejuízo suportado pelas vítimas, demonstrando conduta totalmente reprovável, fi xo a pena-base acima do mínimo legal, ou seja, em 02 (dois) anos de reclusão e 50 (cinquenta) dias-multa, para cada um dos crimes.

Tendo em vista que a ré é reincidente, conforme certidão de fl s. 198, deve ser reconhecida a agravante prevista no artigo 61 do Código Penal, em portanto, ocorrer um aumento da pena-base de 1/3 (um terço), o que refaz um total de 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de reclusão e 66 (sessenta e seis dias-multa).

Não há causas de aumento ou diminuição a serem consideradas.

O regime inicial de cumprimento da pena é o regime semiaberto, tendo em vista o exposto quando da fi xação da pena-base, principalmente a existência de antecedentes e a reincidência da ré (fl s. 22-23).

O Colegiado de origem, por seu turno, ao reformar o julgado de primeiro

grau, consignou:

A dosimetria da pena merece reparo.

Na primeira fase, as penas foram fi xadas acima do mínimo legal, em dois anos de reclusão e pagamento de cinquenta dias-multa, para cada um dos crimes de estelionato, em razão dos maus antecedentes e pelo prejuízo suportado pelas vítimas.

A reprimenda da acusada Teresinha ainda foi majorada, na fração de um terço, pela reincidência.

O prejuízo patrimonial causado pelas condutas não autoriza o reconhecimento da circunstância judicial relacionada com as consequências do crime, porquanto ausentes maiores informações sobre a situação econômico-financeira das ofendidas, o que impede avaliar a extensão do desfalque aos patrimônios.

(...) No concernente a apelante Teresinha, apenas a certidão de fl s. 186 pode ser considerada como maus antecedentes, em atenção ao princípio constitucional da

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

726

presunção de inocência, de modo que é sufi ciente para o aumento em um sexto, perfazendo um ano e dois meses de reclusão, mais o pagamento onze dias-multa. Pela reincidência certifi cada a fl s. 198, majoro a sanção em um sexto, percentual que entendo mais adequado para reprovação do crime, totalizando um ano, quatro meses e 12 dias-multa, para casa um dos delitos.

(...) A reincidência da ré Teresinha desautoriza a substituição (art. 44, inciso II, do CP).

O regime prisional semiaberto foi corretamente fixado para a apelante Teresinha, considerando-se seus maus antecedentes e a reincidência, uma vez que o mais brando seria insufi ciente para reprovação e prevenção do crime (fl s. 11-14).

Com efeito, nos termos do consignado na certidão acostada aos autos às fl s. 86, a paciente foi condenada à pena de 01 (um) ano e 03 (três) anos autos do Processo n. 417/97, pela prática do delito previsto no art. 171, caput, c.c. art. 29, ambos do Código Penal. Ademais, os fatos apurados nos autos da ação penal retrocitada foram praticados em 06.08.1997, tendo a sentença condenatória transitado em julgado em 24.06.1998.

De outro lado, os delitos relacionados à presente impetração teriam sido levados a efeito em 24 de outubro de 2002 e 14 de janeiro de 2003.

Nesse contexto, a teor do art. 63 do CP, o qual preleciona que apenas não deverá ser reconhecida a reincidência quando decorrido o lapso temporal de cinco anos entre a data do cumprimento da pena anterior ou de sua extinção e o cometimento do novo delito, deve-se reconhecer a incidência da referida circunstância agravante.

Deveras, não obstante a ausência de informação acerca do término do cumprimento da pena corporal imposta à paciente nos autos do Processo n. 417/97, tendo sido a sentença proferida em 10.12.1997, com a expedição de mandado de prisão em 11.12.2007, não de infere o transcurso do prazo de 05 (cinco) anos entre a data da condenação emanada dos autos alhures mencionados e a data dos fatos apurados no Processo n. 463/03, o qual ensejou a presente impetração.

De outra banda, no tocante aos maus antecedentes, verifi ca-se a existência de outra condenação, nos autos do Processo n. 332/94, no qual foi condenada à pela de 01 (um) ano de reclusão, pela prática do delito de estelionato, o que possibilita a majoração da pena-base, nos termos do art. 59 CP.

Diante disso, a existência de duas condenações transitadas em julgado em

desfavor da agente, nos termos do consignado nas instâncias ordinárias, permite

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 727

a fi xação da pena-base acima do mínimo legal e o reconhecimento da agravante

da reincidência, sem que se vislumbre a ocorrência de bis in idem.

Nesse sentido, trago à colação o seguinte julgado deste Colegiado:

Habeas corpus. Penal. Tráfi co de drogas. Fixação da pena-base. Quantidade de droga. Justifi cativa válida. Reincidência e maus antecedentes. bis in idem. Inocorrência.

1. O art. 42 da Lei n. 11.343/2006 impõe ao julgador considerar, com preponderância sobre o previsto no art. 59, do Código Penal, a natureza e a quantidade da droga, tanto na fi xação da pena-base, quanto na determinação do grau de redução da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal.

2. A fixação da pena-base acima do mínimo legal também restou suficientemente justificada pelos antecedentes do Paciente - detentor de três condenações transitadas em julgado, respectivamente, em 28.10.2003, 09.01.2005 e 15.05.2006. Como se vê, na hipótese de o magistrado singular ter valorado negativamente os antecedentes do Paciente, para majorar a pena-base, em razão de uma condenação anterior transitada em julgado, e, na 2ª etapa, ter considerado outra condenação defi nitiva para agravar a pena pela reincidência, impossível falar-se em bis in idem.

3. Não obstante a constatação de algumas impropriedades, verifica-se que o quantum de aumento na fi xação da pena-base se revela proporcional e fundamentado, pois as instâncias ordinárias consideraram, concretamente, os elementos acidentais que extrapolam consideravelmente o tipo penal básico imputado ao Paciente. Como é cediço, excetuados os casos de patente ilegalidade ou abuso de poder, é vedado em sede de habeas corpus o amplo reexame das circunstâncias judiciais consideradas para a individualização da sanção penal, porquanto requerem a análise de matéria fático-probatória.

4. Desse modo, diante das circunstâncias judicias desfavoráveis, que, de fato, emprestaram à conduta do Paciente especial reprovabilidade e que não se afi guram inerentes ao próprio tipo penal em comento, não há como, diante da ausência de manifesta ilegalidade, redimensionar a pena aplicada pelo julgador, porquanto dentro dos limites da razoabilidade e proporcionalidade.

5. Ordem denegada.

(HC n. 134.433-MG, Relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe de 18.10.2010).

De outro lado, o artigo 33 do Código Penal, em seu § 2º, alínea c,

preleciona:

O condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

728

Na hipótese, não obstante o quantum da pena imposta, o fato de se tratar de

acusado reincidente e o reconhecimento de circunstâncias judiciais desfavoráveis

não permitem o desconto da reprimenda em regime aberto.

Nesse sentido, trago à colação o seguinte precedente deste Tribunal:

Habeas corpus. Furto qualifi cado. Dosimetria da pena. Pena-base fi xada acima do mínimo legal. Duas qualificadoras. Utilização de uma como circunstância judicial desfavorável. Possibilidade. Reincidência invocada na primeira e na segunda fase. Bis in idem. Regime semiaberto. Ilegalidade. Não ocorrência.

1. Na fixação da pena, adotou o legislador o sistema trifásico, devendo o magistrado, na primeira fase, estabelecer a pena-base entre os limites mínimo e máximo indicado na lei, observadas as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, sendo certo que a sua estipulação acima do mínimo legal exige devida fundamentação, a teor do disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal.

2. Existindo duas qualifi cadoras, uma pode servir para qualifi car o delito e a outra como circunstância judicial desfavorável. Precedentes.

3. A valoração da reincidência tanto na primeira fase, para aumentar a pena-base, quanto como agravante genérica, implica verdadeiro bis in idem.

4. Embora a pena privativa de liberdade não ultrapasse 4 anos de reclusão, havendo o reconhecimento de circunstância judicial desfavorável e sendo o paciente reincidente, não há como fi xar o regime aberto.

5. Habeas corpus parcialmente concedido tão-só para reduzir a pena do paciente para 3 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, e 70 dias-multa, mantido o regime semiaberto estipulado na sentença.

(HC n. 140.442-MS, Relator Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Sexta Turma, DJe de 21.06.2010).

De igual modo, a conversão da pena corporal em restritiva de direitos

encontra óbice no inciso II do art. 44 do Estatuto Repressor, que veda a

concessão do benefício ao réu reincidente em crime doloso.

A propósito, trago à baila o seguinte precedente desta Turma:

Processual Penal. Habeas corpus. Art. 180, § 1º, do Código Penal. Nulidade. Não apreciação de pedido de vista dos autos fora de cartório. Inocorrência. Comparecimento do advogado constituído no dia do julgamento. Ausência de prejuízo. Substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos. Reincidência. Impossibilidade.

I - Ao contrário do que alega o impetrante, não houve cerceamento de defesa no julgamento do recurso de apelação, pois a respectiva sessão foi adiada em

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 729

duas oportunidades em atendimento a requerimento da defesa para melhor exame da quaestio. Ademais, o patrono do paciente compareceu à sessão de julgamento no dia aprazado sem manifestar interesse em realizar sustentação oral.

II - Constatado ser o paciente reincidente e, ainda, ressaindo do v. acórdão atacado que as circunstâncias do crime não lhe favorecem, escorreita se revela a decisão que não autorizou a substituição da pena (Precedente desta Corte).

Ordem denegada.

(HC n. 96.770-SP, Relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe de 04.10.2010).

Ante o exposto, denego a ordem.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 160.590-SP (2010/0014825-7)

Relator: Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ)

Impetrante: Renata Simões Stabile Bucceroni - Defensora Pública

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Paciente: J A da S (preso)

EMENTA

Habeas corpus. Processual Penal. Órgão colegiado composto

majoritariamente por juízes convocados, por norma constitucional

ou legal. Nulidade. Inexistência. Ofensa ao princípio do juiz natural.

Inocorrência. Precedentes.

1. Através do julgamento do RE n. 597.133-RS (17.11.2010),

em regime de repercussão geral, o STF fi xou a orientação de que

não há nenhuma violação ao princípio do juiz natural quando a

Turma julgadora é composta, na sua maioria, por juízes convocados

de primeiro grau. Entendimento, esse, que homenageia a duração

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

730

razoável do processo, “materializando o ideal de uma prestação

jurisdicional célere e efetiva”.

2. Sendo tal entendimento adotado pela Quinta Turma do

Superior Tribunal de Justiça, aferindo estarem dentro da legalidade

os julgamentos proferidos pelos órgãos fracionários com quantitativo

majoritário de juízes convocados. Desta forma, resta superada a

jurisprudência em sentido contrário emanada anteriormente por esta

Corte.

3. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Senhores Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de

Justiça, por unanimidade, denegar a ordem.

Os Srs. Ministros Gilson Dipp e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro

Relator.

Ausentes, justifi cadamente, os Srs. Ministros Laurita Vaz e Napoleão

Nunes Maia Filho.

Brasília (DF), 08 de fevereiro de 2011 (data do julgamento).

Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ),

Relator

DJe 21.02.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso especial impetrado, ao

argumento de que o ora paciente sofre constrangimento ilegal, em virtude de o

recurso de Apelação ter sido julgado por Colegiado composto, em sua maioria,

por Juízes convocados, em afronta ao princípio constitucional do juiz natural.

Noticia que o apelo foi provido, em parte, para ser mantida a sentença

que o condenara pela prática do delito previsto nos artigos 213 e 214, c.c. o

artigo 223, na forma do artigo 69, todos do Código Penal, reduzindo-se a pena

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 731

anteriormente aplicada em 1/6 (um sexto), fi xando-a, defi nitivamente, em 24

(vinte e quatro) anos de reclusão, em regime inicial fechado.

Postulara o provimento do mandamus, a fim de se anular o acórdão

vergastado, em obediência ao princípio do juiz natural.

Exmo. Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima indeferiu o pedido liminar (fl s.

36).

Informações prestadas (fl s. 40-48).

No seu parecer, o douto Ministério Público Federal opinou pela denegação

da ordem (fl s. 151-153).

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ) (Relator): O pleito do impetrante, em síntese, é anular o acórdão do

Tribunal a quo sob a assertiva de violação aos princípios do juiz natural e do

duplo grau de jurisdição em face do colegiado não ter sido composto por

desembargadores em sua maioria.

Ao paciente não assiste razão, pois o inconformismo com o fato do

julgamento em segundo grau da ação ou recurso ter sido efetivado mediante a

participação em sua maioria por juízes convocados, que gozam de competência

e imparcialidade, não provoca constrangimento ilegal.

Ressalto, outrossim, que o órgão fracionário composto pelos referidos

magistrados, previamente indicados, com base na Constituição ou norma

legal, situa-se dentro da estrita observância dos princípios constitucionais do

juiz natural, da publicidade, duplo grau de jurisdição, da duração razoável do

processo e celeridade processual.

 É certo que a Terceira Seção desta Corte, anteriormente havia fi rmado o

entendimento de que o julgamento realizado por órgão fracionário, composto

única ou em maioria por juízes convocados, padecia de vício de nulidade

absoluta. Isso porque, fundamentava-se que tal fato violava o princípio do juiz

natural, bem como os artigos 93, III, 94, e 98, I, da Constituição Federal.

No entanto, este entendimento está superado quando, sob o regime de

repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal em sessão plenária, realizada em

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

732

17 de novembro de 2010, pacifi cou a tese de que o julgamento de apelação por

órgão composto majoritariamente por juízes convocados, conforme os preceitos

contidos em lei específi ca, não viola os princípios constitucionais do juiz natural,

duplo grau de jurisdição, do devido processo legal e seus consectários lógicos

da ampla defesa e do contraditório. (RE n. 597.133-RS, relator Min. Ricardo

Lewandowski)

Dentre outros precedentes do pretório Excelso, com a mesma

fundamentação, cito o seguinte julgado:

Habeas corpus. Princípio do juiz natural. Câmara composta majoritariamente por juízes de 1º grau convocados. Precedentes. Ordem denegada.

1. É pacífi ca a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que não viola o princípio do juiz natural a convocação de juízes de primeiro grau para compor órgão julgador do respectivo tribunal. Precedente: HC n. 86.889, da relatoria do ministro Menezes Direito.

2. No julgamento do HC n. 96.821 (Sessão de 08.04.2010 - acórdão pendente de publicação), o Plenário desta nossa Corte fi xou a orientação de que não há nenhuma violação ao princípio do juiz natural quando a Turma julgadora é composta, na sua maioria, por juízes convocados de primeiro grau. Entendimento, esse, que homenageia a duração razoável do processo, “materializando o ideal de uma prestação jurisdicional célere e efetiva”.

3. Ordem denegada (STF - HC n. 96.821, Rel. Ministro Ricardo Lewandowisk, Tribunal Pleno, DJe de 25.06.2010).

Diante da cristalização da orientação emanada pela Excelsa Corte, a

nova vertente vem sendo seguida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de

Justiça, aferindo estarem dentro da legalidade os julgamentos proferidos pelos

órgãos fracionários com quantitativo majoritário de juízes convocados, pois tal

ocorrência, por si só, não viola os princípios constitucionais do devido processo

legal e do juiz natural.

Extraio o seguinte julgado:

Habeas corpus. Processual Penal. Julgamento de recursos. Órgão colegiado composto majoritariamente por juízes convocados. Ausência de violação ao princípio do juiz natural. Convocação que atende à Constituição Federal e à lei federal. Ausência de intimação do defensor. Nulidade. Anulação do julgamento. Concessão da ordem.

1. Não ofende o princípio constitucional do juiz natural a convocação de juízes de primeiro grau para, nos casos de afastamento eventual ou férias de

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 733

desembargador titular, compor o órgão julgador do respectivo Tribunal, desde que observadas as diretrizes legais.

2. A composição majoritária do órgão julgador de Tribunal por juízes de primeiro grau, desde que observada a lei de regência, como se deu no caso, não viola o princípio constitucional do juiz natural.

Precedentes do STF e do STJ.

3. Esta Corte Superior de Justiça tem entendimento no sentido de que a ausência de intimação pessoal do defensor público da sessão de julgamento do recurso de apelação torna nulo o acórdão nela proferido, por cerceamento de defesa. Precedentes.

4. Ordem concedida em parte para determinar que outro julgamento seja proferido, desta vez com a devida intimação da Defensoria Pública.

(HC n. 167.512-SP, Rel. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ-AP), Quinta Turma, julgado em 09.11.2010, DJe 29.11.2010)

Com esses fundamentos, na esteira dos recentes julgados desta Egrégia

Corte e do Supremo Tribunal Federal, e por não haver qualquer nulidade na

composição da turma julgadora, em face dos motivos articulados, não merece

acolhida a pretensão postulada.

Diante do exposto, conheço do habeas corpus e denego a ordem.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 166.778-BA (2010/0053073-0)

Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho

Impetrante: Janjório Vasconcelos Simões Pinho e outros

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado da Bahia

Paciente: Itamar da Silva Rios

EMENTA

Habeas corpus preventivo. Crime de responsabilidade de

prefeito. Art. 1º, II do DEL n. 201/1967 (empréstimo de carro

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

734

da prefeitura para fi ns particulares de terceiros). Recebimento da

denúncia pelo Tribunal estadual, sem afastamento do prefeito do

cargo. Inadmissibilidade da pretensão de trancamento da ação penal.

Acusação aceita pelo Tribunal de forma motivada. Fato, em princípio,

típico. Recepção do DEL n. 201/1967 pela atual Constituição.

Violação ao princípio da indisponibilidade/indivisibilidade da

ação penal. Crime de responsabilidade que é próprio de prefeito.

Incompetência da 1ª Câmara Criminal para o julgamento do paciente.

Questão não enfrentada pelo Tribunal a quo. Ausência de documentos

comprobatórios da alegação. Parecer do MPF pela denegação da

ordem. Ordem denegada.

1. O trancamento da Ação Penal por meio de Habeas Corpus

é medida excepcional, somente admissível quando transparecer dos

autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da

conduta ou a extinção da punibilidade, circunstâncias não evidenciadas

na hipótese em exame.

2. A impetração envereda por argumentação relativa ao mérito

da acusação, sustentando a ausência de dolo do acusado; todavia, a tese

defensiva não é daquelas que se apresentam induvidosa e somente por

meio da análise da prova a ser judicializada será possível concluir pela

existência ou não do dolo específi co na conduta do paciente.

3. Quanto à violação ao princípio da indisponibilidade/

indivisibilidade da Ação Penal, poque não denunciado o Vereador

condutor do veículo sinistrado, a tese não comporta acolhida, pois o

crime de responsabilidade em apuração é próprio de Prefeito.

4. A alegação de que, nos termos da Lei de Organização Judiciária

do Estado da Bahia, o julgamento de Prefeito compete ao Pleno do

Tribunal de Justiça, e não à Câmara Criminal, carece de adequada

comprovação, pois não juntados cópias das referidas normas estaduais,

fato que obstaculiza a análise da questão.

5. O DEL n. 201/1967 tem sido constantemente aplicado

tanto por esta Corte como pelo STF sem se cogitar de qualquer

inconstitucionalidade.

6. Ordem denegada.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 735

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem. Os Srs. Ministros

Jorge Mussi, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 02 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator

DJe 13.12.2010

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Trata-se de Habeas Corpus

com pedido de liminar impetrado em favor de Itamar da Silva Rios, Prefeito

do Município de Capim Grosso-BA, contra acórdão proferido pelo TJBA, que

recebeu a denúncia ofertada em desfavor do paciente pela suposta prática do

crime previsto no art. 1º, II do DEL n. 201/1967, nos termos do acórdão assim

ementado, por seu caput:

Ação penal originária. Prefeito municipal denunciado como incurso nas penas do art. 1º, inciso II do Decreto-Lei n. 201/1967. Alcaide que cedeu veículo ofi cial para vereador, tendo este procedido o traslado de amigos e familiares para festa junina, e antes de chegar ao seu destino envolveu-se em acidente automobilístico. Peça acusatória descrevendo regularmente os fatos e imputando a prática de crime em tese pelo acusado, alicerçada em elementos sufi cientes de materialidade e indícios de autoria. Desnecessidade de decretação da prisão preventiva e do afastamento doa alcaide. Denúncia recebida. (fl s. 196).

2. Aduz a impetração, em síntese: (a) a ausência de crime eis que o fato

constitui um indiferente penal; (b) ausência de dolo específi co, pois o veículo

foi utilizado de forma adequada e necessária para servir ao paciente enquanto

prefeito, que não autorizou o transporte de outras pessoas; (c) a não receptação

do DEL n. 201/1967 pela atual constituição; (d) violação ao princípio da

indisponibilidade/indivisibilidade da Ação Penal, porquanto não denunciado

o Vereador condutor do veículo sinistrado; (e) incompetência da 1ª Câmara

Criminal para o julgamento do paciente.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

736

3. Indeferido o pedido de liminar (fl s. 214), foram solicitadas informações,

as quais, contudo, não foram prestadas.

4. O MPF, em parecer subscrito pelo ilustre Subprocurador-Geral da

República Francisco Dias Teixeira, manifestou-se pela denegação da ordem (fl s.

247-252).

5. É o que havia de relevante para relatar.

VOTO

O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. No que interessa,

o Tribunal Baiano aduziu o seguinte:

Consta da denúncia oferecida pelo Ministério Público do Estado da Bahia que

(...) o Alcaide, inquinando os princípios da legalidade, moralidade e impessoabilidade, utilizou indevidamente veículo público pertencente à Comuna que dirige, para satisfazer fi ns particulares.

Com efeito, desde que assumiu a Prefeitura de Capim Grosso, o Alcaide, por diversas vezes, emprestou veículos ofi ciais ao Vereador Ednon Oliveira Queiroz, seu correligionário político, permitindo a este que usufruísse em suas atividades privadas.

Nessa toada, em 24 de junho de 2006, o Vereador Ednon utilizava o veículo municipal de marca Ford Ranger, com placa policial JQS 1422, para dirigir-se a uma festa junina, na cidade de Senhor do Bonfi m, levando consigo dois fi lhos, uma nora, um sobrinho e um outro EDIL.

Ocorre que, na data supra, próximo ao Município do Senhor do Bonfi m, por volta das 15:30 horas, o Vereador Ednon perdeu a direção do carro e capotou, conforme Boletim de Acidente de Trânsito 560799 às fl s. 10-14.

O veículo público sofreu diversas avarias, sendo o seu reparo arcado pelos cofres municipais, cujo valor total correspondeu a R$ 15.840,82 (quinze mil, oitocentos e quarenta reais e oitenta e dois centavos). Assim, além da conduta criminosa de utilizar de forma proposital e indevida o referenciado bem público em benefício de seu apadrinhado político, o Alcaide assumiu o risco e acabou concorrendo para o prejuízo suportado pelo erário.

(...).

Como se sabe, o recebimento da exordial acusatória, mero juízo de admissibilidade, envolve sempre a análise da peça vestibular, a qual deve

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 737

preencher os requisitos insculpidos no art. 41 do Código de Processo Penal Brasileiro.

Na atual fase do processo, este colegiado reúne-se unicamente para deliberar sobre o recebimento ou rejeição da denúncia ou queixa, sendo, posteriormente, no caso de prosseguimento do feito, analisada a ação propriamente dita, depois de todos os demais trâmites processuais, onde, inclusive, existe o exercício do amplo direito de defesa.

(...).

A peça acusatória ora analisada contém a descrição precisa do fato considerado criminoso, com todas as suas circunstâncias, atribuindo ao acusado a prática de crime de responsabilidade, haja vista ter o réu cedido ao seu amigo e vereador Ednon Oliveira de Queiroz, nos termos das suas declarações prestadas no procedimento preparatório de Inquérito Civil (fl s. 24-25), o carro ofi cial, tendo este procurado efetuar o traslado de amigos e familiares para o município de Senhor do Bonfi m, em época de festividades juninas (24 de junho de 2006), fato, ademais, que gerou grande prejuízo ao erário em virtude do acidente com o mencionado veículo ocorrido quando se aproximava da supracitada municipalidade (fl s. 11-14), automóvel que precisou de reparos no valor total de R$ 15.840,82 (quinze mil, oitocentos e quarenta reais e oitenta e dois centavos) (fl s. 81-82), fato que se coaduna, portanto, com o tipo descrito no art. 1º, inciso II do Decreto-Lei n. 201/1967, a saber:

Art. 1º - São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

II - utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos;

Destarte, sendo o veículo um bem da Administração e confi gurada a utilização indevida, ou seja, imprópria, fora do âmbito da fi nalidade a que é destinado, está caracterizado, em tese, o tipo penal, razão pela qual, mesmo que não houvesse o acidente automobilístico, a exordial acusatória deveria ser recebida.

(...).

Além disso, não é demais ressaltar que a denúncia ou queixa não precisa ser demasiadamente extensa, devendo restringir-se ao indispensável à confi guração da fi gura delitual penal e às demais circunstâncias que envolvem o fato e que possam infl uir na sua caracterização (Fernando da Costa Tourinho Filho, in Código de Processo Penal Comentado, 8ª edição, p. 148).

Portanto, o fato descrito na peça de acusação adequa-se ao apontado tipo penal, até porque as questões envolvendo a atipicidade da conduta somente levam à rejeição da denúncia quando for evidente, mediante os elementos já

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

738

constantes dos autos, que o fato não constitui crime. Se houve a necessidade da produção de provas não é possível refutar-se a peça acusatória. Para o recebimento da denúncia basta que a conduta descrita, em tese, confi gure-se como crime.

(...).

Ademais, a análise acerca da possibilidade de acolhimento das alegações relativas à desclassifi cação da conduta para a infração político-administrativa descrita no art. 4º, inciso VIII do Decreto-Lei n. 201/1967, bem como ao dolo, requerem exame de provas a serem colhidas na instrução criminal. (fl s. 198-203).

2. Tenho reiteradamente afi rmado, seguindo a maciça jurisprudência das

Cortes Superiores do País, que o trancamento da Ação Penal por meio de

Habeas Corpus é medida excepcional, somente admissível quando transparecer

dos autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado, a atipicidade da conduta

ou a extinção da punibilidade. Na hipótese, tais circunstâncias não estão

evidenciadas.

3. Com efeito, a impetração envereda por argumentação relativa ao

mérito da acusação. Sustenta a ausência de dolo do acusado, que estaria em festa

patrocinada por outro Município a serviço, tendo pedido ao colega Vereador que o

buscasse na referida localidade com o carro da prefeitura. Afi rma, ainda, que não teria

consentido com o transporte de terceiras pessoas.

4. Ora, a tese defensiva não é daquelas que se apresentam induvidosa.

Somente por meio da análise da prova a ser judicializada será possível concluir

pela existência ou não do dolo específi co na conduta do paciente. Nesse sentido:

Ementa: Recurso ordinário em habeas corpus. Penal. Processual Penal. Crime de responsabilidade de prefeito. Alegação de falta de justa causa. Trancamento de inquérito. Habeas corpus denegado no Superior Tribunal de Justiça. Decisão em perfeita consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Análise de matéria fático-probatória: impossibilidade. Recurso ao qual se nega provimento. 1. O trancamento de inquérito, em habeas corpus, apresenta-se como medida excepcional, que só deve ser aplicada quando evidente a ausência de justa causa, o que não ocorre quando a lei supostamente violada pelo Paciente não foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça e a denúncia descreve conduta que confi gura crime em tese. 2. Decisão do Superior Tribunal de Justiça devidamente fundamentada e em consonância com o entendimento deste Supremo Tribunal sobre a matéria. 3. Na tímida via do habeas corpus, não se permite a análise do conjunto fático-probatório, em evidente substituição ao processo de conhecimento. Precedentes. 4. Recurso ao qual se nega provimento. (RHC n. 100.961-SC, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 20.05.2010).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 739

Processo Penal. Habeas corpus. Crime de responsabilidade de prefeito. Decreto-Lei n. 201/1967, art. 1º, XIII. Contratação temporária, sem concurso, fora das hipóteses legais. Remissão a lei municipal de 1990. Existência de lei federal relativamente mais restritiva em 1993. Fatos ocorridos em 2003. Contratação tida por ilegal em duas instâncias judiciais. Atipicidade não manifesta. Trancamento. Impossibilidade.

1. O trancamento da ação penal, por falta de justa causa, na angusta via do habeas corpus, pressupõe manifesta atipicidade ou o claro afastamento do jus puniendi. In casu, a alegação de atipicidade se embasa no fato de o paciente determinar a realização de contratação temporária, sem concurso, lastreando-se em lei municipal. Ocorre que: a) quando da deliberação, vigia lei federal relativamente mais restritiva (especifi camente em relação ao caso em testilha, visto que não preveria a hipótese de contratação de guardas municipais), não sendo evidente, portanto, a alegação de legalidade do comportamento; b) o Poder Judiciário, já em duas instâncias, considerou a contratação ilegal. Daí ser mais apropriado destinar o debate acerca da vexata quaestio às vias ordinárias.

2. Ordem denegada, cassada a liminar. (HC n. 78.218-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 17.05.2010)

Habeas corpus. Prefeito municipal. Crime de responsabilidade e formação de quadrilha. Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia inexistente. Contas julgadas irregulares pelo TCE-TO. Prazo de 15 dias para o oferecimento da denúncia. Obediência ao prazo impróprio, cuja inobservância não causa nulidade. Rito da lei especial (Lei n. 8.038/1990) observado. Prévia notifi cação do paciente para o oferecimento de defesa antes do recebimento da denúncia. Acusação aceita pelo Tribunal de forma motivada. Afastamento do paciente do cargo de prefeito devidamente fundamentado na garantia da ordem pública, do erário municipal e da instrução criminal. Parecer do MPF pela denegação do writ. Ordem denegada, cassando a liminar inicialmente deferida.

1. Inviável o pleito de trancamento da Ação Penal por inépcia da denúncia, porquanto a inicial acusatória descreve minimamente os fatos e suas circunstâncias, possibilitando o amplo exercício do direito de defesa.

(...).

4. O egrégio Tribunal a quo, ao aceitar a acusação, o fez de forma motivada, manifestando-se, inclusive, sobre os pontos levantados pelo ora paciente quando da apresentação da defesa preliminar.

(...).

6. Ordem denegada, cassando-se a liminar inicialmente deferida, em conformidade com o parecer ministerial. (HC n. 102.818-TO, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 27.04.2009)

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

740

5. Quanto à violação ao princípio da indisponibilidade/indivisibilidade

da Ação Penal, porquanto não denunciado o Vereador condutor do veículo

sinistrado, a tese não comporta acolhida, pois o crime de responsabilidade

em apuração é próprio de Prefeito. Eventual conduta criminosa ou infração

administrativa cometida pelo Vereador deve ser apurada em outra sede.

6. No tocante à alegação de que, nos termos da Lei de Organização

Judiciária do Estado da Bahia, o julgamento de Prefeito compete ao Pleno do

Tribunal de Justiça, e não à Câmara Criminal, conforme previsto no Regimento

Interno daquela Corte de Justiça, como bem assinalou o douto representante

do Parquet Federal, carece de mínima comprovação, pois não foram juntados

cópias das referidas normas estaduais, fato que obstaculiza a análise do pedido,

no ponto.

7. Por fi m, ressalte-se que o DEL n. 201/1967 tem sido constantemente

aplicado tanto por esta Corte como pelo STF sem se cogitar de qualquer

inconstitucionalidade.

8. Ante o exposto, denega-se a ordem, em consonância com o parecer

ministerial.

HABEAS CORPUS N. 181.848-MS (2010/0147020-9)

Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho

Impetrante: Henoch Cabrita de Santana - Defensor Público

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul

Paciente: Luís Antônio de Souza

Advogado: Fabiano Caetano Prestes - Defensor Público da União

EMENTA

Habeas corpus. Violação de direito autoral (art. 180, § 2º do CPB). Pena: 2 anos de reclusão e 180 dias-multa. Regime inicial fechado. Sanção substituída por duas restritivas de direitos. Exposição à venda, de 2.000 dvd’s e cd’s piratas. Inadmissibilidade da tese de

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 741

atipicidade da conduta, por força do princípio da adequação social. Incidência da norma penal incriminadora. Parecer pela denegação da ordem. Ordem denegada.

1. A pretensão em reconhecer-se causa excludente de ilicitude, consubstanciada no estado de necessidade, ante a alegada crise financeira pela qual o paciente passava, requisita, à evidência, aprofundada dilação probatória, o que se mostra inexeqüível na estreita via cognitiva do writ.

2. O paciente foi surpreendido por policiais comercializando, com violação de direito autoral, 2.000 dvd’s e cd’s conhecidos vulgarmente como piratas; fi cou constatado, conforme laudo pericial, que os dvd’s e cd’s são cópias não autorizadas para comercialização.

3. Mostra-se inadmissível a tese de que a conduta do paciente é socialmente adequada, pois o fato de que parte da população adquire tais produtos não tem o condão de impedir a incidência, diante da conduta praticada, do tipo previsto no art. 184, § 2º do CPB.

4. Ordem denegada, conforme parecer ministerial.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem. Os Srs. Ministros

Jorge Mussi, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 02 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator

DJe 13.12.2010

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Cuida-se de Habeas

Corpus, sem pedido liminar, impetrado em favor de Luís Antônio de Souza, em

adversidade ao acórdão proferido pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado

Mato Grosso do Sul, que negou provimento ao Apelo defensivo. O aresto

objurgado restou assim ementado:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

742

Apelação criminal. Penal e Constitucional. Violação de direitos autorais. Venda de CD e DVD falsificados. Suposta ausência de exame das teses defensivas. Improcedência. Pleito absolutório. Aplicação do princípio da insignificância. Não incidência. Arguição incidental de inconstitucionalidade do art. 184, § 2º, do Código Penal. Situação diversa da prevista no art. 12, da Lei n. 9.609/1998. Proteção de bens jurídicos diferentes. Confl ito aparente de normas. Critério da especialidade. Inconstitucionalidade não reconhecida. Pedido de aplicação do art. 21 do Código Penal. Impossibilidade. Não provimento.

Não se cogita a nulidade da sentença, por suposta falta de análise de teses defensivas argüidas por ocasião das alegações fi nais, quando o magistrado a quo, além de tê-las examinado, ainda que sucintamente, expendeu argumentação que, por sua própria coerência e lógica, afastam as argumentações contrárias ao raciocínio exposto.

A alegação de se encontrar em difi culdades fi nanceiras, e até mesmo a de que a conduta perpetrada vem sendo aceita socialmente não afastam a incidência do tipo penal, quando há clara ofensividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Assim, aquele que é flagrado com enorme quantidade de CD e DVD falsifi cados não pode alegar que sua conduta seja insignifi cante, tampouco que o fato seja um irrelevante penal e muito menos seja possível a incidência da regra inserta no art. 21, do Código Penal.

O crime previsto no art. 184, § 2º, do Código Penal, refere-se à proteção de direitos autorais envolvidos com as obras fonográfi cas – objetos de falsifi cações em larga escala – e por esta razão recebeu proteção maior do legislador, sendo diversa é a situação albergada pela norma do art. 12, da Lei n. 9.609/1998, que se refere especifi camente à violação de direitos de autores de programas de computador.

O estabelecimento de pena maior a uma espécie de delito, em detrimento das reprimendas previstas para tipos penais que protegem bens jurídicos diversos, não ofende o princípio da proporcionalidade, haja vista que ao legislador não é vedado criar punição maior às condutas ilícitas que causam maior prejuízo à sociedade.

Não há inconstitucionalidade na criação de tipo penal mais gravoso previsto no art. 184, § 2º, do Código Penal, mas apenas confl ito aparente entre essa regra jurídica e aquela prevista no art. 12, da Lei n. 9.609/1998, que se resolve pelo critério da especialidade.

Apelação Criminal defensiva a que se nega provimento, dado o acerto do apreço singular (fl s. 337).

2. Depreende-se do autos que o paciente foi condenados a 2 anos de

reclusão e 180 dias-multa, em regime inicial aberto, por infração ao art. 184, §

2º do CPB, sendo a pena privativa de liberdade substituída por duas restritivas

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 743

de direitos consistentes na prestação de serviço à comunidade e limitação de fi m

de semana.

3. Sustenta a impetração, em síntese, a aplicação, na espécie, do princípio

da adequação social da ação praticada, requerendo, consequentemente, o

reconhecimento da atipicidade da conduta.

4. Indeferida a liminar (fl s. 364), o MPF, em parecer subscrito pelo ilustre

Subprocurador-Geral da República Pedro Henrique Távora Niess, manifestou-se

pela denegação da ordem, porquanto a norma penal incriminadora aplicada à

espécie é taxativa (fl s. 207-211).

5. Era o que havia para relatar.

VOTO

O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Cinge a questão

sobre viabilidade da aplicação, na espécie, do princípio da adequação social da

ação praticada, com o consequente reconhecimento da atipicidade da conduta.

2. Inicialmente, referente à pretensão em reconhecer-se causa excludente

de ilicitude, consubstanciada no estado de necessidade, ante a alegada crise

fi nanceira pela qual o paciente passava, a tese, à evidência, requisita aprofundada

dilação probatória, o que se mostra inexequível na estreita via cognitiva do writ.

3. No tocante à aplicação do princípio da adequação social, consignou o

acórdão objurgado, in ipsis verbis:

De fato, este e. Tribunal, por diversas vezes já entendeu pela aplicação do princípio da insignifi cância e, por conseguinte, a atipicidade da conduta quando, em tese, infringiram direitos autorais por pequenas quantias de produtos de reprodução fonográfi ca.

In casu, tratam-se de 985 CD’s e 1.016 DVD’s, conforme relação circunstanciada às f. 10-25.

Embora seja de conhecimento de todos que os preços praticados, em geral, não ultrapassam os valores de R$ 3,00 e R$ 5,00 a unidade, a quantidade apreendida em uma única ocasião torna expressiva a lesividade da conduta, mormente considerada a sua distribuição no pequeno município de Vicentina.

Alegar as mazelas sociais e até mesmo adequação social de condutas, não afasta a incidência do tipo penal quando há verdadeira ofensividade ao bem jurídico-penal, não se encontrando insignifi cância na conduta ou resultado e, tampouco, a irrelevância penal do fato (fl s. 272-273).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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4. Nessa esteira, conforme fundamentado pela decisão do Tribunal a quo,

mostra-se improsperável a tese de que a conduta do paciente é socialmente

adequada, pois o fato de que parte da população adquire tais produtos não tem

o condão de impedir a incidência, diante da conduta praticada, do tipo previsto

no art. 184, § 2º do CPB.

5. Ante o exposto, em consonância com o parecer ministerial, denega-se a

ordem.

6. É o voto.

HABEAS CORPUS N. 189.541-MT (2010/0203400-0)

Relator: Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ)

Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso

Advogado: Marcio Frederico de Oliveira Dorileo - Defensor Público

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso

Paciente: César Augusto Andrade Pereira (preso)

Advogado: Antonio Ezequiel Inácio Barbosa - Defensor Público da União

EMENTA

Habeas corpus. Tráfi co de drogas. Pedido de liberdade provisória.

Impossibilidade. Art. 44, caput, da Lei n. 11.343/2006. Vedação legal.

Não revogação pela nova redação do art. 2º da Lei n. 8.072/1990,

conferida pela Lei n. 11.464/2007. Alegação de condições pessoais

favoráveis como fundamento para concessão de liberdade provisória.

Insufi ciente. Ordem denegada.

1. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça vem decidindo

no sentido de que ao acusado por tráfi co de drogas, cumprindo prisão

cautelar, é vedada a concessão de liberdade provisória. Tal proibição

legal contida no art. 44 da Lei n. 11.343/2006, não foi revogada com

a alteração do art. 2º, II, da Lei 8.072/1990 pela Lei n. 11.464/2007.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 745

2. O reconhecimento da repercussão geral pelo Supremo

Tribunal Federal no RE n. 601.384-RS, sob a relatoria do Min. Marco

Aurélio, com referência ao mérito deste writ, em regra, não sobresta os

processos pendentes de julgamento nesta Corte.

3. As Turmas componentes da Terceira Seção do Superior

Tribunal de Justiça já cristalizaram o entendimento de inexistir

constrangimento ilegal quando a manutenção da custódia cautelar

sufi cientemente fundamentada, retratar a necessidade da medida para

a garantia da ordem pública e aplicação da lei penal.

4. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Senhores Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de

Justiça, por unanimidade, denegar a ordem.

Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho

e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 03 de fevereiro de 2011 (data do julgamento).

Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ),

Relator

DJe 21.02.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário impetrado

em favor de César Augusto Andrade Pereira, ao argumento de que o ora paciente

sofre constrangimento ilegal, porque o Tribunal a quo denegou a ordem onde se

pleiteava o relaxamento da prisão cautelar em face da ausência dos requisitos da

preventiva.

Noticia que o paciente foi preso em fl agrante pela prática, em tese, do

crime de tráfi co de substância entorpecente previsto no art. 33, caput, da Lei n.

11.343/2006.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

746

Aduz o impetrante que a segregação do paciente deve ser desconstituída

em face do constrangimento ilegal perpetrado, pois a decisão que determinara

sua prisão cautelar é desprovida dos requisitos autorizadores preconizados no

art. 312 do Código de Processo Penal.

Postulara o provimento do mandamus, a fim de se conceder a ordem

liberatória, em face dos seu induvidoso direito em responder ao processo

criminal em liberdade, em obediência ao princípio da presunção de inocência.

Exmo. Sr. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador

convocado do TJ-AP) indeferiu o pedido liminar (fl s. 116-117).

Informações prestadas (fl s. 129-147).

No seu parecer, o douto Ministério Público Federal opinou pela denegação

da ordem (fl s. 151-153).

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ) (Relator): O pedido inicial, em síntese, expõe a tese da possibilidade da

concessão de liberdade provisória ao acusado por crime de tráfi co de drogas, a

despeito do previsto no art. 44 da Lei n. 11.343/2006.

Ao paciente não assiste razão pelos fundamentos a seguir.

É notório que o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária realizada em

11.09.2009, reconhecera a Repercussão Geral no julgamento do RE 601.384-

RS, sob a relatoria do Exmo. Sr. Min. Marco Aurélio cujo mérito refere-se à

impossibilidade de concessão de liberdade provisória aos acusados por crime de

tráfi co de drogas, preconizado pelo art. 44 da Lei n. 11.343/2006. No entanto,

enquanto o mérito do referido Recurso Extraordinário não for julgado pela

Excelsa Corte, persiste o entendimento cristalizado deste Colegiado.

No mesmo sentido:

Agravo regimental. Processual Civil. Embargos de divergência em recurso especial. Sobrestamento. Repercussão geral reconhecida pelo STF. Descabimento. Acórdão embargado que examina o mérito do recurso especial. Paradigmas que não conhecem do apelo. Não cabimento dos embargos de divergência. Acórdão embargado em consonância com a jurisprudência atual da Terceira Seção. Súmula n. 168-STJ.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 747

1. É descabido o pedido de sobrestamento do julgamento do presente recurso, em decorrência do reconhecimento da repercussão geral da matéria objeto nele veiculada pelo Supremo Tribunal Federal. De acordo com o prescrito no art. 543-B do Código de Processo Civil, tal providência apenas deverá ser cogitada por ocasião do exame de eventual recurso extraordinário a ser interposto contra decisão desta Corte.

2. Não são cabíveis embargos de divergência quando o aresto paradigma adentra no mérito do recurso e o embargado sequer o conhece, especifi camente quando o acórdão embargado adentra no mérito do recurso especial e os acórdãos paradigmas sequer conhecem do apelo por reconhecer a natureza constitucional da matéria.

3. Estando o acórdão embargado em sintonia com o atual entendimento consolidado deste Superior Tribunal, deve incidir a Súmula n. 168-STJ, que preconiza que “Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado.” 4. Agravo regimental desprovido.

(AgRg nos EREsp n. 863.702-RN, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 13.05.2009, DJe 27.05.2009)

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça em remansosos

julgados expõe o entendimento de que a vedação expressa do art. 44, da Lei n.

11.343/2006, norma especial e anterior, não confl ita com a não proibição do

inciso II, do art. 2°, da Lei n. 8.072/1990, com redação dada pelo art. 1º, da Lei

n. 11.464/2007, norma geral e posterior ou com a norma geral do parágrafo

único do art. 310 do Código de Processo Penal.

Com efeito, a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei do Tráfico de

Entorpecentes de 2006 demonstram relação de especialidade com o Código

de Processo Penal, por disciplinarem através de critérios distintos a liberdade

provisória. Todavia, é de sobrelevar-se que a primeira, ao elencar todos os tipos

penais considerados hediondos faz-se genérica para com a segunda, já que se

refere a um deles, qual seja o tráfi co ilícito de entorpecentes.

Diante do exposto, a expressa proibição legal à concessão do benefício do

réu responder a ação penal em liberdade, enquanto cumpre prisão cautelar, é

razão idônea e sufi ciente para a denegação do pleito deste writ.

Confi ra-se o seguinte precedente:

Criminal. Habeas corpus. Tráfi co de entorpecentes. Pleito de absolvição. Provas insufi cientes à condenação. Análise inviável na via estreita do writ. Necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório. Liberdade provisória. Réu preso

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

748

em fl agrante e que respondeu ao processo sob custódia. Vedação à liberdade provisória mantida. Apelação julgada. Execução da pena. Sentença transitada em julgado. Ordem parcialmente conhecida e denegada.

I. A análise das alegações concernentes ao pleito de absolvição do réu demandaria análise do conjunto fático-probatório, inviável em sede de habeas corpus.

II. É sabido que a via estreita do writ é incompatível com a investigação probatória, nos termos da previsão constitucional que o institucionalizou como meio próprio à preservação do direito de locomoção, quando demonstrada ofensa ou ameaça decorrente de ilegalidade ou abuso de poder (art. 5º, inciso LXVIII), sendo que nenhuma dessas hipóteses restou prontamente evidenciada, razão pela qual a impetração não merece ser conhecida no particular.

III. Hipótese em que o juízo de primeiro grau negou ao réu o direito ao apelo em liberdade, considerando o fato desse ter sido preso em fl agrante delito, tendo permanecido sob custódia durante o curso do processo, bem como a existência de vedação expressa à concessão de liberdade provisória os apenados pela prática do delito de tráfi co de entorpecentes, conforme disposto no art. 44 da Lei n. 11.343/2006.

IV. No tocante à alegada inconstitucionalidade da vedação ao direito de liberdade provisória aos acusados pela prática do delito de tráfi co de drogas, em que pese o Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário n. 601.384-RS, ter se manifestado pela existência de repercussão geral, a questão constitucional ainda não foi dirimida, devendo prevalecer o entendimento consolidado no âmbito desta Turma até o julgamento final da matéria pelo Pretório Excelso, no sentido da existência de vedação expressa à concessão do benefício aos acusados pela prática do delito de tráfi co de entorpecentes.

V. Considerando-se a validade da proibição prevista no art. 44 da Lei n. 11.343/2006, no que se refere à concessão de liberdade provisória, conclui-se também pela vedação ao apelo em liberdade a réu que não pode ser benefi ciado com o direito à liberdade provisória (Precedentes).

VI. Apelação defensiva que já foi julgada, tendo a sentença condenatória transitado em julgado, sem a interposição de recursos extraordinário e especial em favor do impetrante.

VII. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, denegada.

(HC n. 139.475-RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 21.10.2010, DJe 08.11.2010)

Outrossim, a tese da ausência de fundamentação capaz de justifi car a

manutenção da prisão cautelar não prevalece. Ressalto que o entendimento

supramencionado se demonstra suficiente para denegar a irresignação do

impetrante.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 749

O Tribunal a quo ao denegar a ordem fundamentou que o paciente não

afastara, de forma inequívoca, as razões da ordem judicial que determinara

sua segregação, diante da necessária garantia da exiquibilidade da efetivação

da reprimenda ou, ainda, comprovara através dos elementos colacionados ser

possuidor das condições pessoais favoráveis.

Desta forma, verifi co que o acórdão hostilizado se fi rmou no mesmo sentido

da orientação do Superior Tribunal de Justiça que perfi lha o entendimento de ser

legal a manutenção da custódia cautelar quando sufi cientemente fundamentada,

em face das características delineadas, retratam, in concreto, a necessidade da

medida para a garantia da ordem pública e aplicação da lei penal.

Em conformidade, o precedente:

Processual Penal. Habeas corpus. Duplo homicídio qualifi cado e estelionato. Prisão preventiva. Apontada ausência de fundamentação. Segregação cautelar fundamentada na garantia da aplicação da lei penal. Peculiaridades do caso. Réu que, após ser benefi ciado com o relaxamento de sua custódia, ausentou-se reiteradamente do distrito da culpa, sem informar ao juízo processante seu novo endereço.

I - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional (HC n. 90.753-RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 22.11.2007), sendo exceção à regra (HC n. 90.398-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 17.05.2007).

Assim, é inadmissível que a finalidade da custódia cautelar, qualquer que seja a modalidade (prisão em fl agrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de decisão de pronúncia ou prisão em razão de sentença penal condenatória recorrível) seja deturpada a ponto de configurar uma antecipação do cumprimento de pena (HC n. 90.464-RS, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU de 04.05.2007). O princípio constitucional da não-culpabilidade se por um lado não resta malferido diante da previsão no nosso ordenamento jurídico das prisões cautelares, por outro não permite que o Estado trate como culpado aquele que não sofreu condenação penal transitada em julgado (HC n. 89.501-GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 16.03.2007). Desse modo, a constrição cautelar desse direito fundamental (art. 5º, inciso XV, da Carta Magna) deve ter base empírica e concreta (HC n. 91.729-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 11.10.2007). Assim, a prisão preventiva se justifi ca desde que demonstrada a sua real necessidade (HC n. 90.862-SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJU de 27.04.2007) com a satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do Código de Processo Penal, não bastando, frise-se, a mera explicitação textual de tais requisitos (HC n. 92.069-RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 09.11.2007). Não

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

750

se exige, contudo fundamentação exaustiva, sendo suficiente que o decreto constritivo, ainda que de forma sucinta, concisa, analise a presença, no caso, dos requisitos legais ensejadores da prisão preventiva (RHC n. 89.972-GO, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 29.06.2007).

II - Na hipótese, a segregação cautelar encontra-se devidamente fundamentada em dados concretos extraídos dos autos que denotam que o paciente, benefi ciado com o relaxamento de anterior prisão cautelar, ausentou-se, reiteradamente, do distrito da culpa sem comunicar ao Juízo processante o seu novo endereço, vindo a ser localizado, através de reportagem televisiva, em localidade próxima à fronteira com outro país.

III - Condições pessoais favoráveis não têm o condão de, por si só, garantirem a revogação da prisão preventiva, se há nos autos, elementos hábeis a recomendarem a manutenção da custódia cautelar (Precedentes).

Ordem denegada.

(HC n. 127.036-SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Rel. p/ Acórdão Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 19.08.2009, DJe 08.03.2010)

Diante do exposto, conheço do habeas corpus e denego a ordem.

É como voto.

RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 29.027-SP (2010/0176974-6)

Relator: Ministro Gilson Dipp

Recorrente: Dante Prati Fávaro

Advogado: Tales Castelo Branco

Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo

EMENTA

Criminal. Recurso ordinário em habeas corpus. Crimes praticados

em procedimento licitatório. Emendatio libeli. Extinção da punibilidade.

Subsunção não verifi cada de imediato. Recurso desprovido.

I. O reconhecimento da falta de justa causa para a ação penal,

na via estreita do habeas corpus, somente é possível se constatado, de

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 751

pronto, sem a necessidade de exame valorativo dos elementos dos

autos, a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a

acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade, o que não se verifi cou

no caso.

II. Recurso ordinário desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. “A

Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso.” Os Srs. Ministros

Laurita Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi votaram com o Sr.

Ministro Relator.

Sustentou oralmente: Dr. Frederico Crissiúma de Figueiredo (p/ recte)

Brasília (DF), 14 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

Ministro Gilson Dipp, Relator

DJe 17.12.2010

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Gilson Dipp: Trata-se de recurso ordinário em habeas

corpus, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que

denegou a ordem no writ impetrado em favor de Dante Prati Fávaro. O

julgamento restou assim ementado:

Habeas corpus. Crime. Classifi cação. Denuncia. Falsifi cação de documento público. Falsidade ideológica. Peculato. - Pretendida mutação da classificação do delito para os crimes previsto nos artigo 92 e 93, ambos da Lei n. 8.666, de 21.06.1993, com a conseqüente extinção da punibilidade - Impossibilidade - Questão tine exige discussão aprofundada da prova inadmissível em sede de habeas corpus. Denúncia que descreve deforma correta as condutas imputadas em consonância com os tipos penais indicados pela Justiça Pública. Hipótese em que a classifi cação aventada pelo impetrante não se amolda prima facie ao caso vertente. - Matéria fática que deve ser apreciada oportunamente porque diz respeito ao mérito da causa e extrapola os limites do writ - Constrangimento ilegal - Inexistência - Ação penal que não se mostra manifestamente ilegal nem contempla constrangimento ou abuso - Ordem de habeas corpus denegada. (fl . 93).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

752

Infere-se dos autos ter sido o recorrente denunciado como incurso nas penas dos arts. 297, caput (Falsifi cação de documento público), 299, caput (Falsidade Ideológica) e 312, caput (Peculato), todos do Código Penal, por fatos ocorridos no âmbito do Departamento de Limpeza Urbana do Município de São Paulo-SP.

Notifi cado para apresentar resposta preliminar, a defesa buscou demonstrar que a imputação subsumia-se a um único contexto fático, devendo os delitos serem classifi cados juridicamente para o disposto nos arts. 92 e 93, ambos da Lei n. 8.666/1993, pugnando pela incidência da prescrição da pretensão punitiva, ante o máximo da pena in abstrato prevista para aqueles delitos.

A pretensão defensiva não logrou êxito.

Em seguida, foi impetrado habeas corpus na Corte local, apontando como autoridade coatora o Juízo de Direito da 18ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo, no qual o impetrante pretendia o reconhecimento da extinção da punibilidade do paciente.

A Corte a quo, à unanimidade de votos, denegou a ordem, por entender que as condutas descritas na denúncia, em tese, amoldam-se a tipos penais descritos na norma incriminadora, sendo inadequada a via eleita para o exame de provas e do mérito da causa, cuja análise melhor seria enfrentada no curso da instrução processual, sob o crivo do contraditório e do devido processo legal (fl s. 95-97).

Daí a presente irresignação, na qual são repisados os argumentos aventados na ordem originária, no sentido de que “os artigos 89 a 98 da Lei de Licitações dispõem, especifi camente, sobre os crimes passíveis de serem praticados durante o processo licitatório (...) inquestionavelmente trata-se de lei especial, que prevalece à regra geral, por aplicação do princípio da especialidade, contido no artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil.” (fl s. 110-111).

Ademais, aponta constrangimento no prosseguimento da ação penal quando a pretensão punitiva estatal já teria sido alcançada pela prescrição.

Pugna-se pela reforma do acórdão recorrido, com a incidência do instituto da emendatio libeli e o reconhecimento da extinção da punibilidade do recorrente.

A Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se pelo desprovimento do recurso (fl s. 140-153).

Em petição juntada aos autos, a defesa informa que a ação penal em análise foi suspensa no juízo de primeira instância, aguardando-se o deslinde deste recurso.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 753

Em sede de memoriais, reitera os argumentos contidos na impetração.

É o relatório.

Em mesa para julgamento.

VOTO

O Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator): Trata-se de recurso ordinário em

habeas corpus contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que

denegou a ordem no writ impetrado em favor de Dante Prati Fávaro.

Infere-se dos autos ter sido o recorrente denunciado como incurso nas

penas dos arts. 297, caput (Falsifi cação de documento público), 299, caput

(Falsidade Ideológica) e 312, caput (Peculato), todos do Código Penal, por fatos

ocorridos no âmbito do Departamento de Limpeza Urbana do Município de

São Paulo-SP.

Notifi cado para apresentar resposta preliminar, a defesa buscou demonstrar

que a imputação subsumia-se a um único contexto fático, devendo os delitos

serem classifi cados juridicamente para o disposto nos arts. 92 e 93, ambos

da Lei n. 8.666/1993, pugnando pela incidência da prescrição da pretensão

punitiva, ante o máximo da pena in abstrato prevista para aqueles delitos.

A pretensão defensiva não logrou êxito.

Em seguida, foi impetrado habeas corpus na Corte local, apontando como

autoridade coatora o Juízo de Direito da 18ª Vara Criminal da Comarca de

São Paulo, no qual o impetrante pretendia o reconhecimento da extinção da

punibilidade do paciente. Sem êxito.

Daí a presente irresignação, na qual são repisados os argumentos aventados

na ordem originária, no sentido de que “os artigos 89 a 98 da Lei de Licitações

dispõem, especifi camente, sobre os crimes passíveis de serem praticados durante

o processo licitatório (...) inquestionavelmente trata-se de lei especial, que

prevalece à regra geral, por aplicação do princípio da especialidade, contido no

artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil.” (fl s. 110-111).

Aponta constrangimento no prosseguimento da ação penal quando a

pretensão punitiva estatal já teria sido alcançada pela prescrição.

Pugna-se pela reforma do acórdão recorrido, a incidência do instituto da

emendatio libeli e o reconhecimento da extinção da punibilidade do recorrente.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

754

Passo à análise da irresignação.

A controvérsia posta em debate neste recurso cinge-se a dirimir a dúvida

sobre o confl ito aparente de normas entre os arts. 297, caput (Falsifi cação de

documento público), 299, caput (Falsidade Ideológica) e 312, caput (Peculato),

todos do Código Penal e os dispositivos inseridos nos arts. 92 e 93 da Lei n.

8.666/1993.

A prevalecer a norma especial de licitações, que prevê penas menores, em

tese, estaria prescrita a pretensão punitiva estatal, favorecendo os interesses da

defesa e do recorrente, pois os fatos em análise datam de outubro do ano 2000.

Consultando os autos, verifi ca-se que a exordial acusatória narra fatos

que se amoldam in abstrato a delitos previstos no Código Penal. Neste aspecto,

transcreve-se trechos da denúncia, relevante para o julgamento. Vê-se:

Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, no dia 30 de outubro de 2000, nas dependências do Departamento de Limpeza Urbana do Município de São Paulo, nesta cidade e Comarca, o primeiro valendo-se do cargo público que exercia, agindo em concurso e previamente combinados entre si, Antonio Fernando Gimenez e Dante Prati Favaro qualifi cados às fl s. 150 e 156 respectivamente, falsificaram e alteraram, em parte, documento público verdadeiro (...) os denunciados fi zeram inserir, em documento público, declaração falsa, com o fi m de prejudicar direito e criar obrigação para a Municipalidade.

(...) agindo em concurso e previamente combinados entre si e com outros indivíduos ainda não identificados, Antonio Fernando Gimenez (funcionário público em função de direção) e Dante Prati Favaro substituíram folhas do contrato elaborado pela municipalidade, alterando o conteúdo da cláusula 7ª, referente à duração do negócio jurídico.

(...)

Desta forma, falsifi cou, em parte, documento público verdadeiro.

(...)

No ensejo, para supostamente validar os delitos cometidos, Maria do Espírito Santo Gama de Souza e Adílson Sirabello inseriram, no mencionado documento público, informação falsa, após ser-lhes entregue o documento por Antonio Fernando Gimenez, o qual levou os primeiros a crer, em evidente erro, na regularidade do ato realizado.

Estes imaginavam que o contrato gozava de licitude, desconhecendo, portanto, o elemento subjetivo do injusto presente no artigo 299, caput, do Código Penal. Estas elementares, por sua vez, os indiciados muito bem conheciam.

(...)

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 755

Inequívoco que o desvio dos valores relativos a estes negócios jurídicos foram causados pelo denunciado Antonio Ferraz Gimenez, uma vez que, ao dar feição de licitude ao contrato - inclusive à cláusula 7ª, que permitia a prorrogação contrária ao edital - induziu Marco Antonio Fialho e Alfredo Luiz Buso, bem como os representantes da Empresa que sucederam o Codenunciado, a acreditarem lícitas tais prorrogações.

Todavia, estes não sabiam que a continuidade do negócio era ilícita verdadeiramente e, assim, ao darem destinação dos dinheiros a esta operação, incidiram na conduta capitulada no artigo 312, caput, do Código Penal.

As infrações penais previstas na lei de licitações, cuja subsunção a defesa

pretende incidir no caso em análise têm o seguinte regramento:

Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modifi cação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei: (Redação dada pela Lei n. 8.883, de 1994)

Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei n. 8.883, de 1994)

Parágrafo único. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.

Art. 93. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Com efeito a jurisprudência desta Corte fi rmou entendimento no sentido

de que o reconhecimento da falta de justa causa para a ação penal, na via estreita

do habeas corpus, somente é possível se constatado, de pronto, sem a necessidade

de exame valorativo dos elementos dos autos, a atipicidade do fato, a ausência

de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade.

Contudo, na singularidade do caso em análise, vê-se que as condutas

imputadas na denúncia não se distanciam dos tipos penais indicados pela

acusação nem tampouco se amoldam perfeitamente aos dispositivos da lei

especial, a ensejar o imediato reconhecimento da alegada prescrição da pretensão

punitiva deduzida pela defesa.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

756

Nesta linha de raciocínio, inviável em sede de mandamus alterar a

classifi cação jurídica indicada na exordial do Parquet e reconhecer a extinção da

punibilidade do recorrente sem que sejam suprimidas as instâncias ordinárias

na cognição aprofundada das demais circunstâncias elementares e do acervo

probatório a serem colhidos ao longo da instrução, sob o crivo da dialeticidade

que inspira o devido processo legal.

Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário.

É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.142.630-PR (2009/0102844-1)

Relatora: Ministra Laurita Vaz

Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS

Procurador: Fabiano Haselof Valcanover e outro(s)

Recorrido: Ministério Público Federal

Recorrido: Associação dos Aposentados e Pensionistas do Brasil

Advogado: Marcelo Augusto Angioletti e outro(s)

EMENTA

Processual Civil e Previdenciário. Recurso especial. Ação civil pública destinada à tutela de direitos de natureza previdenciária (no caso, revisão de benefícios). Existência de relevante interesse social. Legitimidade ativa ad causam do Ministério Público. Reconhecimento.

1. Para fi ns de tutela jurisdicional coletiva, os interesses individuais homogêneos classifi cam-se como subespécies dos interesses coletivos, previstos no art. 129, inciso III, da Constituição Federal. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Por sua vez, a Lei Complementar n. 75/1993 (art. 6º, VII, a) e a Lei n. 8.625/1993 (art. 25, IV, a) legitimam o Ministério Público à propositura de ação civil pública para a defesa de interesses individuais homogêneos, sociais e coletivos. Não subsiste, portanto, a alegação de falta de legitimidade do Parquet para a ação

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 757

civil pública pertinente à tutela de direitos individuais homogêneos, ao argumento de que nem a Lei Maior, no aludido preceito, nem a Lei Complementar n. 75/1993, teriam cogitado dessa categoria de direitos.

2. A ação civil pública presta-se à tutela não apenas de direitos individuais homogêneos concernentes às relações consumeristas, podendo o seu objeto abranger quaisquer outras espécies de interesses transindividuais (REsp n. 706.791-PE, 6ª Turma, Rel.ª Min.ª Maria Th ereza de Assis Moura, DJe de 02.03.2009).

3. Restando caracterizado o relevante interesse social, os direitos individuais homogêneos podem ser objeto de tutela pelo Ministério Público mediante a ação civil pública. Precedentes do Pretório Excelso e da Corte Especial deste Tribunal.

4. No âmbito do direito previdenciário (um dos seguimentos da seguridade social), elevado pela Constituição Federal à categoria de direito fundamental do homem, é indiscutível a presença do relevante interesse social, viabilizando a legitimidade do Órgão Ministerial para fi gurar no polo ativo da ação civil pública, ainda que se trate de direito disponível (STF, AgRg no RE AgRg/RE n. 472.489-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 29.08.2008).

5. Trata-se, como se vê, de entendimento fi rmado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a quem a Constituição Federal confi ou a última palavra em termos de interpretação de seus dispositivos, entendimento esse aplicado no âmbito daquela Excelsa Corte também às relações jurídicas estabelecidas entre os segurados da previdência e o INSS, resultando na declaração de legitimidade do Parquet para ajuizar ação civil pública em matéria previdenciária (STF, AgRg no AI n. 516.419-PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 30.11.2010).

6. O reconhecimento da legitimidade do Ministério Público para a ação civil pública em matéria previdenciária mostra-se patente tanto em face do inquestionável interesse social envolvido no assunto, como, também, em razão da inegável economia processual, evitando-se a proliferação de demandas individuais idênticas com resultados divergentes, com o consequente acúmulo de feitos nas instâncias do Judiciário, o que, certamente, não contribui para uma prestação jurisdicional efi ciente, célere e uniforme.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

758

7. Após nova reflexão sobre o tema em debate, deve ser

restabelecida a jurisprudência desta Corte, no sentido de se reconhecer

a legitimidade do Ministério Público para fi gurar no polo ativo de ação

civil pública destinada à defesa de direitos de natureza previdenciária.

8. Recurso especial desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conhecer do recurso, mas lhe negar provimento. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.

Brasília (DF), 07 de dezembro de 2010 (data do julgamento).

Ministra Laurita Vaz, Relatora

DJe 1º.02.2011

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Laurita Vaz: Trata-se de recurso especial interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ementado, essencialmente, nos seguintes termos, in verbis:

Ministério Público Federal. Ação civil pública. Benefi ciários da Previdência Social. Legitimidade ativa.

O Ministério Público Federal tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos dos benefi ciários da Previdência Social. Precedentes desta Corte e do STF.

Sendo o Ministério Público Federal autor da ação civil pública, desnecessária sua atuação como custos legis, conforme decidiu esta 5ª Turma por ocasião do julgamento da Apelação Cível n. 2002.72.05.001195-1-SC, Rel. Juiz Federal Luiz Antonio Bonat, D.E. de 13.05.2008.

Previdenciário. Revisão de benefício. Renda mensal inicial. IRSM de fevereiro de 1994 (39,67%).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 759

“O cálculo da renda mensal inicial de benefício previdenciário concedido a partir de março de 1994 inclui a variação integral do IRSM de fevereiro de 1994 (39,67%)”, nos termos da Súmula n. 77 deste TRF4ª Região.

[...]. (fl . 175)

Nas razões do recurso especial, além de dissídio pretoriano, aponta o INSS violação aos arts. 1º, 2º e 6º, todos da Lei Complementar n. 75/1993, bem como ao art. 21 da Lei n. 7.347/1985 c.c. os arts. 81, 82 e 92, da Lei n. 8.078/1990.

Pugna pela extinção do feito sem julgamento do mérito, alegando a ilegitimidade do Ministério Público Federal para promover ação civil pública pertinente a reajustes e revisões de benefícios previdenciários.

Aduz, inicialmente, que os direitos relativos a benefícios previdenciários

são disponíveis, e que a Constituição Federal, em seu art. 127, atribui ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, entende que, ausente o caráter da indisponibilidade, não estaria o Órgão Ministerial legitimado para a propositura da ação civil pública (fl s. 196-197).

Sustenta a ilegitimidade do Ministério Público para a defesa de qualquer

direito individual homogêneo, asseverando que, uma interpretação sistemática, sob o prisma da Constituição Federal (arts. 127 e 129, III), levando em conta a ordem cronológica em que foram editados os principais diplomas que tratam das funções do Ministério Público, conduz à conclusão de que não é função do Parquet a proteção de direitos individuais, ainda que homogêneos, e que o Ministério Público “somente possui legitimidade para a ACP destinada à defesa de interesses ou direitos difusos ou coletivos – ou seja – não a tem quanto aos interesses ou direitos individuais homogêneos, pois destes não cogita a CF/1988 (art. 129, III), nem a LC n. 75/1993 (art. 83, III)” (fl s. 198-199).

Alega, ainda, a ilegitimidade ad causam do Ministério Público para defesa de direitos individuais homogêneos sem relação de consumo, bem como a inadequação

da ação civil pública para tal fi m. Para tanto, aduz que a ação civil pública, embora sirva para a defesa do consumidor, não serve para a defesa de direitos individuais homogêneos de outras espécies de interesses, como, no caso, os interesses dos segurados da Previdência Social, por falta de previsão legal (fl . 202), e, ainda, que “a relação jurídica entre os benefíciários e o INSS nada tem de relação de consumo, uma vez que não se trata de fornecimento de bens ou serviços” (fl . 206).

Oferecidas as contrarrazões (fl s. 229-235), e admitido o recurso na origem, ascenderam os autos à apreciação desta Corte.

É o relatório.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

760

VOTO

A Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora): A controvérsia posta em análise

no presente recurso consiste em verifi car se o Ministério Público Federal tem

legitimidade para fi gurar no polo ativo de ação civil pública relativa à matéria de

natureza previdenciária.

A questão de fundo, não atacada no apelo nobre, diz respeito à revisão de

benefícios previdenciários concedidos a partir de março de 1994, com inclusão

da variação integral do IRSM de fevereiro de 1994 (39,67%) nos salários-de-

contribuição integrantes do período básico de cálculo, antes da conversão em

URV. A Corte de origem entendeu ser cabível a revisão, e, tal como a magistrada

de primeiro grau, restringiu os efeitos do julgado à Subseção Judiciária de

Curitiba-PR, na forma do art. 16 da Lei n. 7.347/1985.

A preliminar em discussão já foi objeto de vários julgados proferidos

no âmbito da Terceira Seção deste Tribunal, cuja jurisprudência oscilou,

inicialmente, ora a favor, ora contrariamente à legitimidade do parquet para o

ajuizamento de ação civil pública no trato de questões previdenciárias.

Posteriormente, veio esta Corte a sedimentar a atual orientação,

desfavorável à tese da legitimidade, com base nas seguintes premissas: (a) o

benefício previdenciário traduz direito disponível, não abrangido pelo art.

127 da Constituição Federal, que assegura ao Ministério Público a defesa dos

interesses individuais indisponíveis e (b) as relações jurídicas entre o INSS e

os benefi ciários do regime de Previdência Social não são relações de consumo,

afastando, assim, a aplicação do art. 81, III, do Código de Proteção e Defesa do

Consumidor, que trata dos direitos individuais homogêneos.

E com base nesse entendimento, este Tribunal tem recusado a legitimidade

ad causam do Ministério Público em ações civis públicas que objetivam discutir

questões ligadas à seguridade social, como, por exemplo, direitos relativos à

concessão de benefício assistencial a idosos e portadores de defi ciência, revisão

de benefícios previdenciários, equiparação de menores sob guarda judicial a

fi lhos de segurados, para fi ns previdenciários.

Em que pese o atual e respeitável posicionamento, acima explanado,

entendo que deve haver nova refl exão sobre o tema ora em debate, em face

das razões adiante expostas, calcadas, sobretudo, no relevante interesse social

envolvido no ajuizamento da ação civil pública de natureza previdenciária.

Pois bem.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 761

Registre-se, desde logo, que não prospera a genérica alegação autárquica de ilegitimidade ad causam do Ministério Público para defesa de “qualquer direito individual homogêneo”, ou, ainda, de direitos individuais homogêneos sem relação de consumo, bem como não subsiste a alegação de inadequação da ação civil pública para a tutela de direitos individuais homogêneos sem relação de consumo.

Tais insurgências encontram obstáculo, de início, na Lei Complementar n. 75/1993, cujo art. 6º, quanto ao ponto, estabelece textualmente que, in verbis:

Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:

[...]

VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:

[...]

d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos;

[...]

XII - propor ação civil coletiva para defesa de interesses individuais homogêneos (grifei)

É o que também se observa da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional

do Ministério Público) que, em seu art. 25, autoriza o Ministério Público a

fi gurar como titular da ação civil pública para a proteção de outros interesses

difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos. Confi ra-se, por

oportuno, o texto da aludida norma, litteris:

Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

[...]

IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:

a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente [...], e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos; (grifei)

Vale ainda registrar que, após a alteração promovida pela Lei n. 8.078/1990

(Código de Proteção e Defesa do Consumidor), incluindo o art. 21 na Lei n.

7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), o alcance desse instrumento processual

restou ampliado, de modo a abranger a defesa de interesses difusos, coletivos e

individuais homogêneos fora das relações de consumo.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

762

Nesse sentido já se manifestou esta Corte Superior de Justiça, conforme se

verifi ca do seguinte julgado, in verbis:

Recurso especial. Processo Civil. Ação civil pública. Defesa de direitos individuais homogêneos de servidores públicos federais. Cabimento. Legitimidade do sindicato. Precedentes.

1. De acordo com a jurisprudência consolidada deste Superior Tribunal de Justiça, o artigo 21 da Lei n. 7.347/1985, com redação dada pela Lei n. 8.078/1990, ampliou o alcance da ação civil pública também para a defesa de interesses e direitos individuais homogêneos não relacionados a consumidores.

2. Recurso especial improvido. (REsp n. 706.791-PE, 6ª Turma, Rel.ª Min.ª Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 02.03.2009 - grifei)

Acerca do tema, conclusiva é a lição doutrinária de HUGO NIGRO

MAZZILI, ao afi rmar que, litteris:

E a defesa de ‘interesses individuais homogêneos? Só os interesses individuais homogêneos de consumidores podem ser protegidos no processo coletivo, ou qualquer interesse individual homogêneo pode ser objeto de ação civil pública da Lei n. 7.347/1985, sejam eles de consumidor ou não?

Como em momento algum a LACP se refere expressamente aos interesses individuais homogêneos, uma análise mais apressada poderia fazer crer que essa espécie de interesses transindividuais estaria fora da cobertura da ação civil pública, exceto, apenas, quanto aos interesses individuais homogêneos relativos aos consumidores, que poderiam ser defendidos por meio de ação coletiva prevista no CDC. Nesse teor, aliás, alguns acórdãos chegam a afi rmar que “os interesses e direitos individuais homogêneos, de que trata o art. 21 da Lei n. 7.347/1985, somente poderão ser tutelados, pela via da ação coletiva, quando os seus titulares sofrerem danos na condição de consumidores”.

Esse entendimento restritivo não se sustenta, porém, em face do sistema conjugado da LACP e do CDC, que se integram reciprocamente. Com efeito, estão também alcançados pela tutela coletiva os interesses individuais homogêneos, de qualquer natureza, relacionados ou não com a condição de consumidores dos lesados. Por isso, e em tese, cabe também a defesa de “qualquer interesse individual homogêneo” por meio da ação civil pública ou coletiva, até porque seria inconstitucional impedir o acesso coletivo à jurisdição.

Inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial de interesses transindividuais. Por isso, além das hipóteses já expressamente previstas em diversas leis (defesa de meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, crianças e adolescentes, pessoas portadoras de defi ciência, investidores lesados no mercado de valores mobiliários, ordem econômica, economia popular, ordem urbanísticas) –

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 763

quaisquer outros interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos podem em tese ser defendidos em juízo por meio da tutela coletiva, tanto pelo Ministério Público como pelos demais co-legitimados do art. 5º da LACP e art. 82 do CDC. (in “A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio público e outros interesses” - 21ª ed. rev., ampl. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 718-719 - grifei).

Melhor sorte não assiste ao INSS quando, pugnando por uma interpretação

sistemática sob o prisma de dispositivos da Constituição Federal, alega que (a) o

inciso III do aludido art. 129 da Lei Maior viabiliza a legitimidade do Ministério

Público apenas para a defesa de interesses ou direitos difusos ou coletivos, mas

não para a defesa de direito individual homogêneo e que (b) sendo disponíveis os

direitos relativos a benefícios previdenciários, o Ministério Público não teria

legitimidade para a ação civil pública, uma vez que estaria ausente o caráter de

indisponibilidade a que alude o art. 127 da Carta Magna.

Ressalte-se, nesse ponto, que a legitimidade do Ministério Público para a

ação civil pública, embora disciplinada em lei complementar e em leis ordinárias,

como visto, é tema de envergadura constitucional, tratado diretamente pela

Carta Magna nesses artigos.

E, sendo certo que a Constituição Federal confi ou ao Supremo Tribunal

Federal a última palavra em termos de interpretação de seus dispositivos, a

solução do tema em apreço, mormente das questões em torno dos mencionados

preceitos constitucionais, reclama necessária incursão, também, na jurisprudência

daquela Augusta Corte.

A começar pelo art. 129, inciso III, da Constituição Federal, registre-

se que o Pretório Excelso, apreciando o RE n. 163.231-SP, fi rmou diretriz

jurisprudencial no sentido de que, no gênero “interesses coletivos”, ao qual se

refere tal inciso, compreendem-se os “interesses individuais homogêneos”, como

subespécie, cuja tutela pode ser requerida pelo Ministério Público mediante

ação civil pública.

A propósito, confi ra-se a ementa do referido julgado, in verbis:

Recurso extraordinário. Constitucional. Legitimidade do Ministério Público para promover ação civil pública em defesa dos interesses difusos, coletivos e homogêneos. Mensalidades escolares: Capacidade postulatória do Parquet para discuti-las em juízo.

1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa

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764

da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127).

2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III).

[...]

4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos.

4.1. Quer se afi rme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classifi cam como direitos individuais para o fi m de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção fi nalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.

[...]

Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação. (Tribunal Pleno, DJ de 29.06.2001, Rel. Min. Maurício Corrêa - grifei)

Em outra oportunidade, ao apreciar o RE n. 195.056-PR, embora

recusando a legitimação do Órgão Ministerial no feito, o Supremo Tribunal

Federal assentou que “Certos direitos individuais homogêneos podem ser

classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com

interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública

presta-se a defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa.

CF, art. 127, caput, e art. 129, III” (Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ

de 30.05.2003).

E em julgado mais recente:

Recurso extraordinário. Agravo regimental. Ação civil pública. Legitimidade ativa. Ministério Público. Defesa de direitos individuais homogêneos. Súmula STF n. 286: inaplicabilidade.

[...]

2. O Ministério Público detém legitimidade para propor ação civil pública na defesa de interesses individuais homogêneos (CF/1988, arts. 127, § 1º, e

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 765

129, II e III). Precedente do Plenário: RE n. 163.231-SP, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 29.06.2001.

3. Agravo regimental improvido. (AgRg no RE n. 514.023-RJ, 2ª Turma, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, DJ de 05.02.2010)

Desse modo, cai por terra a tese recursal de que o Ministério Público

não tem legitimidade para a ação civil pública quanto aos direitos individuais

homogêneos, ao argumento de que nem a Constituição Federal, em seu art. 129,

III, e nem a Lei Complementar n. 75/1993, em seu art. 83, III, teriam cogitado

de tais direitos (fl . 199).

E não se perca de vista que o art. 6º, VII, a, da Lei Complementar

n. 75/1993, bem como o art. 25, IV, a, da Lei n. 8.625/1993, dispositivos

anteriormente citados, estabelecem ser competência do Ministério Público

promover a ação civil pública não apenas para a defesa de direitos individuais

homogêneos, como, também, para a proteção de interesses sociais e coletivos.

Ainda nesse particular, registrem-se os seguintes julgados, destacados

dentre outros, em que a Corte Especial deste Tribunal firmou orientação

no sentido de que, havendo relevante interesse social, é cabível o manejo da

ação civil pública pelo Órgão Ministerial para defesa de direitos individuais

homogêneos:

Processual Civil. Embargos de divergência. Ação civil pública. Legitimidade. Ministério Público. Contratos de fi nanciamento. SFH. Súmula n. 168-STJ.

1. O Ministério Público possui legitimidade ad causam para propor ação civil pública objetivando defender interesses individuais homogêneos nos casos como o presente, em que restou demonstrado interesse social relevante. Precedentes.

[...]

3. Embargos de divergência não conhecidos. (EREsp n. 644.821-PR, Corte Especial, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 04.08.2008)

Agravo regimental. Embargos de divergência. Processo Civil. Julgamento monocrático. Jurisprudência pacífica acerca da matéria. Ação civil pública. Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Ministério Público. Legitimidade ativa. Precedentes.

[...]

II - O Ministério Público possui legitimidade para ajuizar ação civil pública na defesa de mutuários do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), uma vez que os contratos para a aquisição da casa própria são firmados por pessoas

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766

hipossuficientes, restando caracterizado, assim o relevante interesse social. Precedentes da “e. Corte Especial”.

Agravo regimental desprovido. (AgRg nos EREsp n. 274.508-SP, Corte Especial, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 10.04.2006)

Também não há como prevalecer a alegação autárquica, fundada no art. 127

da Constituição Federal, de que, em se tratando, in casu, de direitos disponíveis,

o Órgão Ministerial não teria legitimidade ad causam.

O fato de o direito perseguido por determinada classe ou grupo de pessoas

ser disponível não constitui fundamento sufi ciente para afastar a sua tutela pelo

Parquet, mediante a ação civil pública, pois, conforme já proclamado, há muito,

nesta Quinta Turma, “Há certos direitos e interesses individuais homogêneos

que, quando visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e impessoal,

passam a representar mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, mas

verdadeiros interesses sociais, sendo cabível sua proteção pela ação civil pública”

(REsp n. 95.347-SE, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 1º.02.1999).

Não é outro o posicionamento de ADA PELEGRINI GRINOVER:

Muito embora a Constituição atribua ao MP apenas a defesa de interesses individuais indisponíveis (art. 127), além dos difusos e coletivos (art. 129), III), a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos levou o legislador ordinário a conferir ao MP a legitimação para agir nessa modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos disponíveis. Em conformidade, aliás, com a própria Constituição, que permite a atribuição de outras funções ao MP, desde que compatíveis com sua fi nalidade (art. 129, IX).

A dimensão comunitária das demandas coletivas, qualquer que seja seu objeto, insere-as sem dúvida na tutela dos interesses sociais referidos no art. 127 da CF. (in “A Ação Civil Pública e a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos, Revista de Direito do Consumidor - São Paulo: RT, n. 5, jan/mar. 1993, p. 213).

Assim, para fins de legitimidade do Ministério Público para a ação

civil pública, quando se tratar de direitos individuais homogêneos, ainda que

disponíveis, o que deve ser observado é a presença do relevante interesse social

de que se reveste o direito a ser tutelado.

E isso ocorre com os direitos sociais insertos na Constituição Federal,

conforme resta claro do seguinte julgado, recentemente prolatado por esta

Corte, tendo em mira a incumbência constitucional atribuída ao Ministério

Público no art. 127, caput, da Lei Maior, litteris:

Jurisprudência da QUINTA TURMA

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Processual Civil. Ação civil pública. Direitos individuais homogêneos. Relevante interesse social. Ministério Público. Legitimidade. Registro profissional no Conselho de Medicina Veterinária. Exame.

[...]

2. O Superior Tribunal de Justiça reconhece a legitimidade ad causam do Ministério Público, seja para a tutela de direitos e interesses difusos e coletivos seja para a proteção dos chamados direitos individuais homogêneos, sempre que caracterizado relevante interesse social.

[...]

5. O Ministério Público é legítimo para defender, por meio de ação civil pública, os interesses relacionados aos direitos sociais constitucionalmente garantidos.

Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp n. 938.951-DF, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 10.03.2010 - grifei)

Desse entendimento não destoa a jurisprudência da Suprema Corte, que

tem reconhecido a legitimidade do Ministério Público para a ação civil pública

destinada à proteção de direitos sociais, tais como a moradia e a educação.

Nesse sentido, vale observar o pronunciamento monocrático da lavra

do Min. Carlos Velloso, no qual restou assente que “Se se tem presente, por

exemplo, a relevância que a Constituição empresta à moradia, consagrada

como direito social, assim direito fundamental, CF, art. 6º [...] a interpretação

abrangente, ora preconizada, tal como preconizamos relativamente à educação,

no acórdão do RE n. 195.056-PR, linhas atrás indicado, para o fi m de tornar

o órgão do Ministério Público legitimado para a defesa do direito ou interesse

aqui discutido, decorrente de um direito fundamental, ajusta-se ao espírito da

Carta, porque confere maior efi cácia aos princípios por ela consagrados” (RE n.

247.134-MS, DJ de 09.12.2005 - grifei).

Por oportuno, anote-se o entendimento adotado no já citado RE n.

163.231-SP, quando a Corte Constitucional assinalou que, “Cuidando-se de

tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado

e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da

capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que

se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de

extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o

abrigo estatal.” (grifei).

E tal como o fez quanto à moradia e à educação – que, na linha do

entendimento do Pretório Excelso, podem ser objeto de tutela pelo Ministério

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

768

Público –, a Constituição Federal, em seu art. 6º, elevou a previdência social à

categoria de garantia fundamental do homem, inserindo-a no rol dos direitos

sociais.

Veja-se que os direitos sociais, nas palavras de ALEXANDRE DE

MORAES, “são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como

verdadeiras liberdades positivas de observância obrigatória em um Estado Social

de Direito, tendo por fi nalidade a melhoria de condições de vida aos hipossufi cientes,

visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos

do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal” (in “Direito

Constitucional” - 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 177 - grifei).

A relação existente entre o art. 1º, da Constituição Federal, acima citado,

e as funções institucionais do Ministério Público foi demonstrada com precisão

quando do julgamento do RE n. 228.177-MG, relatado pelo Min. Gilmar

Mendes, conforme se percebe do seguinte trecho extraído desse julgado:

[...] a Constituição, ao tratar do Ministério Público como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbiu-lhe do indisponível dever de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os “interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput). E não há dúvida de que o dispositivo constitucional do art. 127, caput, remete para os valores fundamentais protegidos pela Constituição, especialmente os expressos em direitos e interesses decorrentes da dignidade da pessoa humana, a soberania, a cidadania, dos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político, como fundamentos da República, tal como defi nido no art. 1º. (RE n. 228.177-MG, 2ª Turma, DJe de 05.03.2010)

Desse modo, há de se constatar, no âmbito do direito previdenciário,

um dos seguimentos da seguridade social, expressamente elencado no rol dos

direitos sociais, a indiscutível presença do relevante interesse social, que viabiliza

a legitimidade do Órgão Ministerial para fi gurar no polo ativo da ação civil

pública.

Ainda do magistério doutrinário de HUGO NIGRO MAZZILLI, extrai-

se a seguinte lição:

Em vista de sua destinção, o Ministério Público está legitimado à defesa de quaisquer interesses “difusos”, graças a seu elevado grau de dispersão e abrangência, o que lhes confere conotação social. E quanto aos interesses “coletivos” (em sentido estrito) e “individuais homogêneos”, estaria o Ministério Público sempre autorizado à sua defesa?

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 769

Há três linhas principais de respostas que costumam ser dadas a essa indagação.

[...]

Assim, passemos à terceira linha de resposta à indagação acima, e que é aquela por nós preconizada. Para esta posição, deve-se levar em conta, em concreto, a efetiva conveniência social da atuação do Ministério Público em defesa de interesses transindividuais. Essa conveniência social em que sobrevenha atuação do Ministério Público deve ser aferida em concreto a partir de critérios como estes: a) conforme a natureza do dano (p. ex., saúde, segurança e educação públicas); b) conforme a dispersão dos lesados (a abrangência social do dano, sob o aspecto dos sujeitos atingidos); c) conforme o interesse social no funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico (previdência social, captação de poupança popular, questões tributárias etc.)

[...]

Enfi m, se em concreto a defesa coletiva de interesses transindividuais assumir relevância social, o Ministério Público estará legitimado a propor a ação civil pública correspondente. Convindo à coletividade como um todo a defesa de um interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo, aí sim é que não se há de recusar ao Ministério Público assuma sua tutela. Corretamente destacou Consuelo Yoshida que a legitimidade ad causam ativa e o interesse processual do Ministério Público na tutela jurisdicional coletiva dos direitos individuais homogêneos decorrem da relevância social dos interesses materiais envolvidos.

Assim, é incorreto dizer, “simpliciter”, que o Ministério Público não pode defender interesses individuais homogêneos disponíveis. Se a defesa de tais interesses envolver larga abrangência ou acentuado interesse social, deverá ser empreendida pela instituição. (ob. cit., pp. 106-108 e 110 - grifei)

Convém destacar a lição do Min. Sepúlveda Pertence em judicioso voto-

vogal proferido no julgamento do RE n. 195.056-PR, anteriormente citado.

Na ocasião, Sua Excelência, chamava a atenção para a análise do art. 127

da Constituição Federal sob a ótica da expressão “interesses sociais” contida

nesse dispositivo, no que denominou de interesse social segundo a constituição,

expressão essa que, como se pode perceber, tem perfeita aplicação à seguridade

social. Veja-se:

[...] para orientar a demarcação, a partir do art. 129, III, da área de interesses individuais homogêneos em que admitida a iniciativa do MP, o que reputo de maior relevo, no contexto do art. 127, não é o incumbir à instituição a defesa dos interesses individuais indisponíveis mas, sim, a dos interesses sociais.

[...]

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

770

[...] a eventual disponibilidade pelo titular de seu direito individual, malgrado sua homogeneidade com o de outros sujeitos, não subtrai o interesse social acaso existente na sua defesa coletiva.

Ao contrário, são de direitos disponíveis as hipóteses mais notórias de indiscutida legitimação do MP para a ação civil pública de defesa de interesses homogêneos, a começar daqueles dos consumidores e dos outros casos de anterior previsão legal, já referidos.

O problema é saber quando a defesa da pretensão de direitos individuais homogêneos, posto que disponíveis, se identifi ca com o interesse social ou se integra no que o próprio art. 129, III, da Constituição denomina patrimônio social. Não é fácil, no ponto, a determinação do critério da legitimação do Ministério Público.

[...]

Penso, como visto, que a adstrição da legitimidade do MP aos casos de previsão legal expressa, embora razoavelmente objetiva, seria um critério insufi ciente para a identifi cação do interessa social na defesa de direitos coletivos: dado que deriva da Constituição a legitimação do MP para a hipótese, não se pode reputar exaustivo o critério que delega ao legislador o poder de demarcar a função de um órgão constitucional essencial à jurisdição.

Creio, assim, que - afora o caso de previsão legal expressa - a afi rmação do interesse social para o fi m cogitado há de partir da identifi cação do seu assentamento nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da República, nela consagrados.

[...]

Esse critério – que se poderia denominar de interesse social segundo a Constituição – ainda que nem sempre explicitado em tese, parece estar subjacente a diversas decisões judiciais, algumas já citadas, que tem reconhecido a legitimação do MP para a defesa de direitos individuais homogêneos, seja ou não a hipótese simultaneamente enquadrável no âmbito da tutela dos consumidores: recorde-se, por exemplo, as questões relativas ao custo da educação privada [...], à seguridade social, à saúde – desde o caso dos usuários de planos de assistência ao do conjunto de trabalhadores carentes, vítimas de doença profi ssional oriunda das condições de trabalho de determinada empresa (STJ, REsp n. 58.682, 08.10.1996, Direito, RDA 207/283). (grifei)

É oportuno o exemplo da seguridade social citado no trecho acima

transcrito, pois, conforme preconiza a Lei Complementar n. 75/1993, em

seu art. 5º, II, d, é função institucional do Ministério Público da União zelar

pela observância dos princípios constitucionais relativos à seguridade social.

Ressalte-se, ainda, que, conforme estabelece esse mesmo art. 5º, em seu inciso

I, é função institucional do Ministério Público a defesa da ordem jurídica e dos

interesses sociais.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 771

Também por ser pertinente à análise do tema deduzido no presente apelo,

traz-se à colação recente julgado do Supremo Tribunal Federal, prolatado no

AgRg/RE n. 472.489-RS, interposto pelo INSS, no qual era discutido o direito

dos segurados da previdência social à obtenção de certidão parcial de tempo de

serviço.

Nesse julgado, restou rechaçada a alegação do INSS de violação aos arts.

127 e 129, inciso III, da Constituição Federal, sendo reconhecida a legitimidade

do Ministério Público para a defesa daqueles direitos individuais homogêneos,

tendo em vista a existência do relevante interesse social discutido na ação.

Merecem transcrição as doutas razões veiculadas nesse julgado, litteris:

Esse entendimento - que reconhece legitimidade ativa ao Ministério Público para a defesa, em juízo, dos direitos e interesses individuais homogêneos, quando impregnados de relevante natureza social - refl ete-se na jurisprudência fi rmada por esta Suprema Corte [...].

[...]

Tenho para mim que se revela inquestionável a qualidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública objetivando, em sede de processo coletivo - hipótese em que estará presente “o interesse social, que legitima a intervenção e a ação em juízo do Ministério Público (CF 127 caput e CF 129 IX)” (NELSON NERY JUNIOR, “O Ministério Público e as Ações Coletivas”, in “Ação Civil Pública”, p. 366, coord. por Édis Milaré, 1995, RT - grifei) -, a defesa de direitos individuais homogêneos, porque revestidos de inegável relevância social, como sucede com o direito de petição e o de obtenção de certidão em repartições públicas (CF, art. 5º, XXXIV), que traduzem prerrogativas jurídicas de índole eminentemente constitucional, ainda mais se analisadas na perspectiva dos direitos fundamentais à previdência social (CF, art. 6º) e à assistência social (CF, art. 203).

Na realidade, o que o Ministério Público postulou nesta sede processual nada mais foi senão o reconhecimento - e conseqüente efetivação - do direito dos segurados da Previdência Social à obtenção da certidão parcial de tempo de serviço.

Nesse contexto, põe-se em destaque uma das mais significativas funções institucionais do Ministério Público, consistente no reconhecimento de que lhe assiste a posição eminente de verdadeiro “defensor do povo” (HUGO NIGRO MAZZILLI, “Regime Jurídico do Ministério Público”, p. 224-227, item n. 24, “b”, 3ª ed., 1996, Saraiva, v.g.), incumbido de impor, aos poderes públicos, o respeito efetivo aos direitos que a Constituição da República assegura aos cidadãos em geral (CF, art. 129, II), podendo, para tanto, promover as medidas necessárias ao adimplemento de tais garantias, o que lhe permite a utilização das ações coletivas, como a ação civil pública, que representa poderoso instrumento processual

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

772

concretizador das prerrogativas fundamentais atribuídas, a qualquer pessoa, pela Carta Política, “(...) sendo irrelevante o fato de tais direitos, individualmente considerados, serem disponíveis, pois o que lhes confere relevância é a repercussão social de sua violação, ainda mais quando têm por titulares pessoas às quais a Constituição cuidou de dar especial proteção” [...].

[...]

A existência, na espécie, de interesse social relevante, amparável mediante ação civil pública, ainda mais se põe em evidência, quando se tem presente - considerado o contexto em causa - que os direitos individuais homogêneos ora em exame revestem-se, por efeito de sua natureza mesma, de índole eminentemente constitucional, a legitimar, desse modo, a instauração, por iniciativa do Ministério Público, de processo coletivo destinado a viabilizar a tutela jurisdicional de tais direitos. (Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, DJe de 29.08.2008 - grifei)

Tal julgado restou assim ementado:

Direitos individuais homogêneos. Segurados da Previdência Social. Certidão parcial de tempo de serviço. Recusa da autarquia previdenciária. Direito de petição e direito de obtenção de certidão em repartições públicas. Prerrogativas jurídicas de índole eminentemente constitucional. Existência de relevante interesse social. Ação civil pública. Legitimação ativa do Ministério Público. A função institucional do Ministério Público como “defensor do povo” (CF, art. 129, II). Doutrina. Precedentes. Recurso de agravo improvido.

- O direito à certidão traduz prerrogativa jurídica, de extração constitucional, destinada a viabilizar, em favor do indivíduo ou de uma determinada coletividade (como a dos segurados do sistema de previdência social), a defesa (individual ou coletiva) de direitos ou o esclarecimento de situações.

- A injusta recusa estatal em fornecer certidões, não obstante presentes os pressupostos legitimadores dessa pretensão, autorizará a utilização de instrumentos processuais adequados, como o mandado de segurança ou a própria ação civil pública.

- O Ministério Público tem legitimidade ativa para a defesa, em juízo, dos direitos e interesses individuais homogêneos, quando impregnados de relevante natureza social, como sucede com o direito de petição e o direito de obtenção de certidão em repartições públicas. Doutrina. Precedentes. (grifos no original)

Registre-se que o entendimento em prol da legitimidade do Parquet para a

ação civil pública tanto em matéria relativa à previdência social quanto à matéria

relativa à assistência social vem sendo reiteradamente adotado no âmbito

do Supremo Tribunal Federal, resultando, inclusive, em reforma de acórdãos

prolatados pelas Quinta e Sexta Turmas deste Superior Tribunal de Justiça.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 773

Com efeito, ao apreciar, por decisão monocrática, o AG n. 516.419-

PR (DJe de 12.02.2010), o relator do feito, Min. Cezar Peluso, acolheu o

agravo e proveu o Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público,

reconhecendo ao Parquet a legitimidade para ação civil pública, cujo objeto era a

revisão de benefícios previdenciários.

É o que se verifi ca dos seguintes trechos dessa decisão:

1. Trata-se agravo de instrumento contra decisão que indeferiu processamento de recurso extraordinário interposto de acórdão do Superior Tribunal de Justiça e assim ementado:

Processual Civil e Previdenciário. Ação civil pública. Revisão de benefício previdenciário. Direitos individuais disponíveis. Ausência de relação de consumo entre o INSS e o segurado. Ministério Público Federal. Ilegitimidade ativa ad causam.

I - Trata-se de Ação Civil Pública objetivando a condenação da autarquia à revisão da renda mensal inicial de benefícios previdenciários concedidos anteriormente à vigência da Lei Maior, com a correção dos 24 primeiros salários de contribuição integrantes do PBC pelos índices das ORTNs/OTNs/BTNs.

II - A quaestio trazida à baila diz respeito a direito que, conquanto pleiteado por um grupo de pessoas, não atinge a coletividade como um todo, não obstante apresentar aspecto de interesse social. Sendo assim, por se tratar de direito individual disponível, evidencia-se a inexeqüibilidade da defesa de tais direitos por intermédio da ação civil pública. Destarte, as relações jurídicas existentes entre a autarquia previdenciária e os segurados do regime de Previdência Social não caracterizam relações de consumo, sendo inaplicável, in casu, o disposto no art. 81, III, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Precedentes.

Recurso conhecido e provido. (fl . 07).

Sustenta o recorrente, com base no art. 102, III, a, ofensa ao disposto nos arts. 127 e 129, II e III, da Constituição da República. Aduz que

Por sua vez, a indisponibilidade do direito não está relacionada com o direito patrimonial. No caso, tendo sido atingido direito fundamental do homem, como é a previdência social, tem-se por violado interesse indisponível, ainda que desse mesmo interesse decorra parcela patrimonial. (fl . 30).

2. Consistente o recurso.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

774

A tese adotada está em desconformidade com a jurisprudência desta Corte, que reconhece a legitimação ad causam do Ministério Público, assim para a tutela de interesses e direitos difusos e coletivos – os transindividuais de natureza indivisível –, como para a proteção de direitos individuais homogêneos, sempre que estes, tomados em conjunto, ostentem dimensão de grande relevo social, ligada a valores e preceitos que, hospedados na Constituição da República Federal, sejam pertinentes a toda a coletividade. Nesses casos, a atuação do Ministério Público afeiçoa-se a seu perfi l institucional, voltado ao resguardo do interesse social e dos direitos coletivos, considerados em sentido amplo (CF, art. 127 e 129, incs. III e IX). [...].

[...]

3. Do exposto, acolho o agravo e, desde logo, conheço do recurso extraordinário e dou-lhe provimento, para declarar a legitimidade do Ministério Público. (grifos no original)

Registre-se que, contra tal decisão, o INSS interpôs agravo regimental,

aduzindo que, em se tratando de direitos individuais disponíveis, de interesse de

grupo ou de classe de pessoas, o Parquet não possuiria legitimidade para discutir

a concessão/revisão de benefícios previdenciários por meio de ação civil pública.

O regimental foi relatado pelo Min. Gilmar Mendes, tendo a Segunda

Turma do Pretório Excelso, à unanimidade, negado provimento ao recurso

autárquico, em acórdão assim ementado, in verbis:

Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Ação civil pública. Interesse individual homogêneo. 3. Relevância social. Ministério Público. Legitimidade. 4. Jurisprudência dominante. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AI n. 516.419-PR, DJe de 30.11.2010)

O mesmo posicionamento foi adotado no RE n. 613.044-SC (DJe

de 25.06.2010), da relatoria da Min.ª Carmen Lúcia, restando declarada a

legitimidade do Parquet para a propositura de ação civil pública que objetivava

discutir critérios de concessão de benefício assistencial a idosos e portadores de

defi ciência física (art. 203, V, da Constituição Federal):

[...]

1. Recurso extraordinário interposto com base no art. 102, inc. III, alínea a, da Constituição da República contra o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

Previdenciário. Ação civil pública. Benefício assistencial de prestação continuada. Lei n. 8.742/1993. Modifi cação dos critérios legais textualmente

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 775

previstos para a concessão. Ilegitimidade ativa do Ministério Público. Direitos patrimoniais disponíveis. Relação de consumo descaracterizada. Precedentes do STJ. Recurso do INSS provido.

1. O Ministério Público não detém legitimidade ad causam para a propositura de ação civil pública que verse sobre benefícios previdenciários, uma vez que se trata de direitos patrimoniais disponíveis e inexistente relação de consumo. Precedentes.

2. Prejudicado o exame do recurso especial da União.

3. Recurso especial da autarquia provido para declarar a ilegitimidade ativa do Ministério Público (fl . 514).

[...]

2. O Recorrente alega que o Tribunal a quo teria contrariado os arts. 93, inc. IX, 127 e 129, inc. III, da Constituição da República.

[...]

4. Razão jurídica assiste ao Recorrente.

5. A controvérsia em debate cinge-se à legitimidade do Ministério Público para a interposição de ação civil pública na qual se discutem os critérios adotados pela autarquia previdenciária para a concessão do benefício assistencial, previsto no art. 203, inc. V, da Constituição.

O Supremo Tribunal Federal fi rmou entendimento no sentido de ser legítima a atuação do Ministério Público na defesa de direitos que, embora individuais, possuam relevante interesse social, pois os chamados direitos individuais homogêneos estariam incluídos na categoria de direitos coletivos abrangidos pelo art. 129, inc. III, da Constituição da República (RE n. 163.231, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 29.06.2001).

Ressalte-se, nesse sentido, o voto proferido pelo Relator do Agravo de Instrumento no Recurso Extraordinário n. 472.489, Ministro Celso de Mello, no qual se reconheceu o direito de segurados da Previdência Social à obtenção de certidão parcial de tempo de serviço e a legitimidade do Ministério Público para propor ação com esse objetivo [...]

[...]

6. Na espécie vertente, pretende o Recorrente ver declarada sua legitimidade para a propositura de ação civil pública na qual se discutirão os critérios adotados pela autarquia previdenciária para a concessão do benefício assistencial, previsto no art. 203, inc. V, da Constituição da República.

Não há como deixar-se de reconhecer o relevante interesse social que a questão apresenta, ainda que não trate de relação de consumo, como afi rmado a título de óbice pelo Tribunal de origem. Além disso, é de se considerar que

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

776

a Constituição da República dispensa atenção especial aos portadores de defi ciência e aos idosos (art. 203, inc. V).

O acórdão recorrido, portanto, diverge da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

7. Pelo exposto, dou provimento ao recurso extraordinário (art. 557, § 1ª-A, do Código de Processo Civil e art. 21, § 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal) para declarar a legitimidade do Ministério Público Federal para propor ação civil pública nos termos postos e determino o retorno dos autos ao Superior Tribunal de Justiça para que prossiga no julgamento do recurso especial. (Grifos no original)

Também foi reconhecida naquela Augusta Corte a legitimidade do

Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública nos seguintes

julgados monocráticos:

(a) RE n. 549.419-DF, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 06.08.2010, objeto da

ação civil pública: revisão de benefício previdenciário;

(b) RE n. 607.200-SC, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 06.08.2010, objeto da

ação civil pública: revisão de benefícios previdenciários;

(c) RE n. 491.762-SE, Rel.ª Min.ª Carmen Lúcia, DJe de 26.02.2010,

objeto da ação civil pública: equiparação de menores sob guarda judicial a fi lhos

de segurados, para fi ns previdenciários;

(d) RE n. 444.357-PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 11.11.2009,

objeto da ação civil pública: critério de concessão do benefício assistencial a

portadores de defi ciência e idosos (art. 203, V, da Constituição Federal).

Impende ainda ressaltar que o reconhecimento da legitimidade do

Ministério Público para a ação civil pública em matéria previdenciária implicaria

inegável economia processual, evitando a proliferação de demandas individuais

idênticas com o consequente acúmulo de feitos nas instâncias do Judiciário.

A propósito:

Recurso especial. Previdenciário. Ação civil pública. Ministério Público Federal.

O Ministério Público está legitimado a defender direitos individuais homogêneos, quando tais direitos têm repercussão no interesse público.

O exercício das ações coletivas pelo Ministério Público deve ser admitido com largueza. Em verdade a ação coletiva, ao tempo em que propicia solução uniforme para todos os envolvidos no problema, livra o Poder Judiciário da maior praga que o afl ige, a repetição de processos idênticos.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 777

Recurso conhecido, mas desprovido. (REsp n. 413.986-PR, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 11.11.2002)

Acrescente-se, ainda, a lição de RODOLFO CAMARCO MANCUSO,

para quem “... especialmente nos casos em que há expressiva dispersão dos

lesados (por exemplo, aplicadores em caderneta de poupança de certo Banco,

prejudicados pelo incorreto índice remuneratório), haverá extrema conveniência

em que o trato jurisdicional da matéria se faça em modo molecular, assim evitando

a atomização do fenômeno coletivo em múltiplas demandas individuais, ao risco de

decisões discrepantes, em processos mais demorados e onerosos” (in “Interesses Difusos,

conceito e legitimação para agir” - 6ª ed., São Paulo: RT, 2004, p. 49 - grifei).

Na hipótese sob exame, a ação civil pública titularizada pelo Parquet tem

por objeto a revisão dos benefícios previdenciários de inúmeros aposentados,

tendo a Corte de origem assinalado, com profi ciência, que, in verbis:

No caso dos autos, o interesse social sobressai, pois evidenciado pelo avultado número de benefi ciários da Previdência Social que tiveram calculada de forma errônea e prejudicial a renda mensal inicial de seus benefícios previdenciários, com significativa redução de seus proventos ao longo dos anos, a projetar refl exos não apenas nas suas próprias vidas e nas de suas famílias, mas em toda a sociedade, com um empobrecimento injustifi cado a levá-los a um processo de exclusão social expressamente repelido pela Constituição Federal e à oneração dos serviços públicos de saúde, educação e assistência social.

A Ação Civil Pública, portanto, é o instrumento adequado, face à economia e praticidade da medida, a obviar o inconveniente do ajuizamento de centenas de ações individuais e a injustiça de não se reparar o prejuízo daqueles que, por ignorância ou difi culdade de meios, não vão à Justiça vindicar seus direitos. (fl . 165)

Assevere-se que, embora esta Corte tenha firmado jurisprudência

desfavorável à tese de legitimidade do Ministério Público em matéria

previdenciária, alguns posicionamentos demonstram ainda existir polêmica em

torno da questão.

É o que se deu, por exemplo, quando do julgamento do REsp n. 396.081-

RS (DJe de 03.11.2008), em que se discutia a legitimidade do Parquet para

ajuizar ação civil pública cujo objeto era garantir o direito de crianças e

adolescentes, sob guarda judicial, à inscrição no RGPS como dependentes, para

fi ns previdenciários.

Na ocasião, embora decidindo conforme a atual jurisprudência, a relatora

do feito, Min.ª Maria Th ereza de Assis Moura, com sua habitual competência,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

778

ressalvou o seu ponto de vista exatamente em razão do relevante interesse social

presente na lide, manifestando-se nos seguintes termos, litteris:

Consoante previsão do parágrafo único do artigo 1º da Lei n. 7.347/1985, introduzido pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, “não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos benefi ciários podem ser individualmente determinados.”

Conquanto referido dispositivo legal não tenha aplicação para os feitos que versam sobre benefícios previdenciários, mas apenas para os casos que cuidam de contribuições previdenciárias, predomina na Terceira Seção desta Corte Superior de Justiça a tese de que não é cabível a propositura de ação civil pública que verse sobre a concessão de benefícios previdenciários, por cuidarem de direitos individuais disponíveis.

[...]

Com a devida vênia da tese que prepondera na Terceira Seção deste egrégio Tribunal, entendo que, em casos como o presente, ainda que os direitos defendidos sejam divisíveis, há legitimidade do Ministério Público diante da existência de relevante interesse social na causa, que versa sobre interesses individuais homogêneos consubstanciados em interesses de crianças e adolescentes sob guarda judicial de serem inscritas como dependentes no Regime Geral da Previdência Social.

[...]

No entanto, em respeito à jurisprudência fi rmada pela Terceira Seção, com a ressalva do meu entendimento acerca do tema, adoto a tese segundo a qual o Ministério Público não tem legitimidade ativa ad causam para propor ação civil pública em defesa de direito à percepção de benefício previdenciário.

Diga-se o mesmo do douto voto-vogal vencido proferido pelo Min.

Napoleão Nunes Maia Filho, prolatado julgamento do REsp n. 661.701-SC (DJe

de 18.05.2009) – cujo acórdão foi posteriormente reformado pelo Supremo

Tribunal Federal, no já citado RE n. 613.044-SC –, in verbis:

1. Senhores Ministros, gostaria de mencionar, não propriamente lembrando, mas apenas frisando, à douta Turma que a categoria da legitimidade processual é muito cara ao processo civil e que surgiu em cena ainda no Século XIX, com a questão do interesse de agir e da possibilidade jurídica quando o processo civil foi estruturado nos seus começos para regular ações e litígios simplesmente binários, ou seja, um indivíduo contra outro. Essa categoria - disse isso em um julgamento da Seção em que fi quei vencido - não dá conta do processo civil

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (221): 693-780, janeiro/março 2011 779

contemporâneo em que os direitos coletivos e multitudinários surgiram com a força decorrente dos direitos fundamentais e com tal força avassaladora que quebrou essa categoria tradicional do processo civil, que é da legitimidade. No caso, é evidente que o direito subjetivo ou material está patente e presente e que o Ministério Público, ao propor essa ação, na verdade, resguarda e tutela um direito multitudinário de pessoas sabidamente hipossufi cientes e que, deixadas ao relento da proteção do Ministério Público, com certeza não demandarão esses direitos ou haverá até retardo admirável na demanda, com prejuízo evidente para a subsistência das pessoas hipossufi cientes ou pobres. A Defensoria Pública poderia também propor a ação, mas nem todas as comarcas nem todos os Estados possuem Defensoria Pública tão capilarizada e tão presente, tão dinâmica até diria e tão empenhada quanto o Ministério Público.

2. Daí por que, Ministro Arnaldo Esteves Lima, reconhecendo a grande ponderabilidade de suas palavras, penso que não há prejuízo para ninguém em se admitir que o Ministério Público promova esse tipo de ação e haverá uma vantagem evidente para as pessoas que são credoras desses benefícios. Quando, na verdade, esses benefícios deveriam ser pagos na via administrativa, sem necessidade de demanda alguma.

3. Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima, com o devido respeito a V. Exa. e ao seu voto, penso que esse rigor na apuração da legitimidade subjetiva ativa do Ministério Público, vem em desfavor das pessoas que estão carecendo de proteção, daí por que quem quer que promova a ação no sentido de amparar os carentes deve merecer acolhida a iniciativa.

4. Assim, mais uma vez, reconhecendo a grande lucidez do voto de V. Exa., peço vênia, respeitosamente, para reconhecer que o Ministério Público tem legitimidade ativa para propor ações em benefício de hipossufi cientes que têm direito a perceber benefícios previdenciários. A questão posta no recurso especial é exclusivamente da legitimidade.

5. Peço vênia a V. Exa. para negar provimento ao recurso do INSS pelas razões que acabei de alinhavar. E julgo prejudicado o recurso especial da União.

Tenho, por fi m, que as razões veiculadas tanto na doutrina quanto na

jurisprudência anteriormente apreciadas embasam, a meu ver, a mudança

de posicionamento desta Corte, no sentido de que, diante da presença do

relevante interesse social envolvido no assunto, seja reconhecida a legitimidade

do Ministério Público para figurar no polo ativo de ação civil pública na

defesa de direitos de natureza previdenciária, cujas normas, constitucionais e

infraconstitucionais, têm por destinatários, em grande parte, pessoas desvalidas

social e economicamente.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

780

Assim, entendo que deve ser restabelecida a antiga jurisprudência desta

Corte, que, com sabedoria e justiça, já reconheceu a legitimidade do Parquet

sobre a questão, conforme inicialmente afi rmado e exemplifi cado no precedente

a seguir citado, in verbis:

Agravo interno. Processual Civil. Ação civil pública. Direitos individuais homogêneos. Ministério Público Federal. Legitimidade. Precedentes do STJ.

I - Conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “O Ministério Público possui legitimidade para propor ação coletiva visando proteger o interesse, de todos os segurados que recebiam benefício de prestação continuada do INSS, pertinente ao pagamento dos benefícios sem a devida atualização, o que estaria causando prejuízo grave a todos os benefi ciários. Sobre as atribuições dos integrantes do Ministério Público, cumpre asseverar que a norma legal abrange toda a amplitude de seus conceitos e interpretá-la com restrições seria contrariar os princípios institucionais que regem esse órgão.” (REsp n. 211.019-SP, Relator Min. Felix Fischer).

II - Agravo interno desprovido. (AgRg no AgRg no AG n. 422.659-RS, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 05.08.2002)

Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.

É o voto.