QUILOMBO, AGRICULTURA DE COIVARA E REVOLUÇÃO … orais completos... · Deseja-se desenvolver aqui...

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  • Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248

    QUILOMBO, AGRICULTURA DE COIVARA E REVOLUO

    VERDE NA REGIO CACAUEIRA DA BAHIA

    Eduardo Alfredo Morais Guimares Doutorando em Estudos tnicos e Africanos - UFBA Professor Assistente da Universidade do Estado da Bahia e Bolsista da Fapesb. [email protected]

    RESUMO: Apresento, nesta comunicao, os resultados preliminares do projeto de

    pesquisa O Quilombo est na mesa, em desenvolvimento na Comunidade Quilombola

    de Empata Viagem, localizada no Municpio de Mara, estado da Bahia. Na construo

    do texto, perseguiram-se as seguintes questes: a etnognese quilombola; a agricultura

    de coivara e o cultivo da mandioca para a produo de farinha; a expanso do cultivo

    do cacau nos territrios quilombolas, as inter-relaes do Cacau Cabruca com a

    agricultura de Coivara; o impacto de agroqumicos fertilizantes e corretivos de solo - e

    agrotxicos na cultura alimentar dos quilombos.

    PALAVRAS-CHAVE: Quilombo; mandioca; cacau; agrotxicos.

    Introduo

    O objetivo desta comunicao apresentar um pouco da histria da agricultura

    das comunidades quilombolas da Regio do Empata Viagem, localizada no municpio

    de Mara, Estado da Bahia. Deseja-se desenvolver aqui uma narrativa dos fatores que

    possibilitaram a ocupao do territrio e, mais especificamente, obter algumas

    concluses sobre o processo de formao das roas com nfase nas mudanas que

    ocorreram nas prticas agrcolas e nas estratgias de subsistncia das comunidades. O

    Empata Viagem uma regio do municpio de Mara habitada por cerca de 250

    famlias distribudas em sete pequenos quilombos: Empata Viagem, Baixa Funda, P de

    Serra, Domingo Branco, Macadamia, Rua de Palha e So Paulo. Nos quilombos, as

    narrativas do processo de formao das roas repetem-se com uma uniformidade

    extremamente grande. De acordo com os depoimentos, a ocupao do territrio

    comeou com a ocupao das terras por grupos negros em fuga/resistncia

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    escravido e modificou-se com o passar do tempo, com a chegada de descendentes

    dos ltimos escravos.

    Os Quilombos so, por assim dizer, ddivas da mandioca. A produo e venda

    da farinha de mandioca e seus subprodutos tem sido ao longo de sculos a principal

    atividade econmica. O plantio do tubrculo feito por um tipo de agricultura de corte e

    queima com forte influncia da herana ancestral indgena. Agricultores e agricultoras

    abrem uma clareira de preferncia na mata grossa, ou mesmo em diferentes estgios

    de sucesso da floresta e ateiam fogo. Dessa maneira, os nutrientes so incorporados

    ao solo e a so estabelecidos cultivos de mandioca e das diversas plantas da

    agricultura de subsistncia.

    Por um lado, possvel afirmar que a agricultura de coivara e, sobretudo, a

    farinha de mandioca possibilitaram a ocupao e a prpria sobrevivncia das

    comunidades nesse territrio, caracterizado por uma invisibilidade social que se vincula

    marginalidade econmica e a sua localizao em reas intersticiais das principais

    plantaes de cacau. De fato, a coivara, segundo Lucia Munari, uma das formas

    mais antigas e relevantes de interveno humana no meio ambiente (...) alicerada

    sobre um conhecimento profundo dos processos naturais e das espcies florestais

    (2009:16). Ainda, de acordo com Munari, um nmero crescente de especialistas

    defende que as coivaras so sustentveis sob baixas presses de uso do solo

    (2009:20). Por outro lado, de maneira aparentemente paradoxal, foi a agricultura da

    revoluo verde1 que possibilitou os avanos da economia agrcola em direo a

    escala de mercado, sobretudo, a partir da expanso e intensificao do cultivo de cacau

    nos quilombos.

    A agricultura de corte e queima e a cultura do cacau

    No obstante a predominncia da cultura da mandioca no territrio, o cultivo

    cacau esteve presente desde os momentos iniciais do processo de ocupao. No

    1 Modelo de agricultura que chegou ao auge entre as dcadas de 1960-1970, direcionado ao aumento da

    produo agrcola alicerado em melhorias genticas em sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanizao e reduo de custos de manejo com a implantao de monocultivos de elevada produtividade.

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    entanto, de acordo com Irenio Monteiro, bisneto da velha Honria, uma das primeiras

    habitantes do lugar, o cacau era assim lugares, boqueiro, roa de crrego (...), mas

    depois desse negocio de festa de adubo se expandiu! Essa nova realidade influenciou

    de maneira decisiva na diminuio gradativa do plantio da mandioca e na abertura de

    novas roas de cacau e, por consequncia no incremento na utilizao de agroqumicos

    fertilizantes e corretivos de solo - e agrotxicos. Vejamos de perto o processo. No

    perodo inicial da cacauicultura, entre meados do sculo XVIII e ltimos anos do sculo

    XIX, a mandioca foi o alimento bsico dos pioneiros, responsveis pelas primeiras

    plantaes de cacau nas terras mais frteis, midas e de fcil acesso, localizadas s

    margens dos grandes rios, distantes, portanto das principais regies produtoras de

    farinha de mandioca. A cultura do cacau s comeou a concorrer por terras com os

    cultivos de subsistncia e, em especial com a mandioca no final do sculo XIX, no

    movimento de expanso da cacauicultura para reas de floresta com solos de elevada

    fertilidade e chuvas abundantes, localizadas aproximadamente a 50-65 km da costa

    (PIASENTIN & SAITO, 2014:64). Ora, esse movimento, aproximou as roas de cacau

    dos cultivos de mandioca e das Casas de Farinha, fator de fundamental importncia em

    virtude da crescente demanda de alimento para um contingente de mo de obra em

    franca expanso. O percurso no acaba ai. Na dcada de 1970, a politica pblica de

    crdito agrcola e os incentivos utilizao intensiva de insumos e tecnologias

    modernas novas variedades hbridas, fertilizantes qumicos e pesticidas possibilitou

    a expanso do cultivo para solos de baixa fertilidade natural.

    Pois bem, a expanso do cultivo do cacau foi o fator determinante para a

    implantao de grandes fazendas de cacau nos territrios dos quilombos de Empata

    Viagem. No movimento inicial de expanso o cacau se beneficiou de conhecimentos

    agronmicos ancestrais de tcnicas de plantio no sub-bosque da floresta tropical que,

    envolve inclusive, saberes vinculados agricultura de coivara, o que pode ser

    percebido no depoimento de Raimundo, irmo por parte de pai de Irenio Monteiro,

    O senhor me entrega uma mata e diz assim: Raimundo eu quero uma mata cabrucada e raleada em ponto de cacau. Eu quero o cacau embaixo dessa cabruca sem tirar a mata. A eu vou esclarecer ao Senhor, eu vou lhe dar o cacau plantado.... Eu vou lhe garantir que no vou tirar a mata toda... mas que tem de tirar a mata tem! Eu meto o faco debaixo, cabruco ela todinha de fora a

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    fora do jeito que vai plantar mandioca, depois entro no raleamento, naquelas madeiras mais finas, mais finas, largando as altas. Naqueles lugares que abre demais eu planto duas ou trs touceiras de banana. No fim quando eu lhe terminar, quando eu lhe entregar est a cabruca pronta: por debaixo o cacau e a madeira t em cima que no empata mais... A madeira alta no empata o cacau!

    Nos momentos derradeiros do processo de expanso da cacauicultura, final da

    dcada de 1960, anos 1970 e, sobretudo nos primeiros anos da dcada de 1980, as

    grandes fazendas de cacau se estabeleceram no Empata Viagem consolidando um

    processo marcado pela substituio de roas de mandioca e capoeiras florestas

    secundrias que se desenvolvem em locais em que se realizou a coivara (MUNARI,

    2010: 17), por plantaes de cacau. Finalmente, entre o final dos anos 1980 e inicio

    dos anos 1990, momentos iniciais da epidemia da Vassoura de Bruxa, doena que

    devastou as lavouras de cacau2 e, praticamente, toda economia regional, a expanso

    da cacauicultura foi intensificada no Empata Viagem, alcanando as terras que restaram

    aos quilombolas, propiciando a consolidao entre os pequenos agricultores do pacote

    tecnolgico da Revoluo Verde 3.

    Pois bem, com a expanso da cacauicultura as roas quilombolas encolheram e,

    como consequncia direta, a agricultura de coivara tambm cedeu espao s novas

    tecnologias agrcolas trazidas pelos grandes fazendeiros. O relato de Julho, agricultor

    aposentado, exemplar: naquele tempo o cara morava aqui Macadmia ia botar

    roa l no Minrio! Criava porco vontade, Solto! Hoje no d, vizinho um junto do

    outro!. Nas coivaras de mato grosso, ainda segundo Julho, junto com a mandioca os

    quilombolas plantavam fava, feijo de corda, mangal, abobora, quiabo, tomate minha

    me trazia um cesto, maxixe, jil, tudo. E hoje os quilombolas plantam e no d, ou

    melhor, s d no adubo. De acordo com Julho, hoje presentemente Deus no cu e

    essa aposentadoria. Tudo compra fora. S no compra na rua folha!.

    2 Doena causada pelo fungo Crinipellis perniciosa

    3 Modelo de agricultura que chegou ao auge entre as dcadas de 1960-1970, direcionado ao aumento da

    produo agrcola alicerado em melhorias genticas em sementes, uso intensivo de insumos industriais,

    mecanizao e reduo de custos de manejo com a implantao de monocultivos de elevada

    produtividade.

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    Para tornar esse ponto mais preciso, importante lembrar que Empata Viagem

    est em um territrio com topografia acidentada, ladeado por vales florestados e frteis

    onde os quilombolas plantavam o cacau: boqueires e roas de crrego. Com o

    movimento de expanso da cacauicultura as roas de cacau mais antigas passaram ao

    domnio das grandes fazendas e o territrio dos quilombos ficou circunscrito aos setores

    mais altos onde predominam solos degradados fisicamente e com baixos teores de

    nutrientes, utilizados no passado para o cultivo da mandioca e outras culturas de

    subsistncia atravs da agricultura de coivara.

    A revoluo verde e o cacau cabruca 4

    Pois bem, as tecnologias introduzidas pela CEPLAC5 foram importantes para a

    expanso das lavouras de cacau para alm dos boqueires e das margens dos

    crregos nas propriedades dos prprios quilombolas. No entanto, mesmo incorporando

    novos conhecimentos agronmicos, os quilombolas retiveram elementos importantes de

    um habitus (BOURDIEU 1989: 81) no sentido de histria incorporada agronmico

    ancestral que possibilita o plantio do cacau no sub-bosque da floresta tropical,

    alicerado, sobretudo no conhecimento de tcnicas de poda, de manejo de sombra e,

    sobretudo de roagem seletiva que permite o plantio do cacau misturado com grandes

    rvores e com coisas que no se planta e que s se desfruta (depoimento de Irenio

    Monteiro). Em depoimentos coletados durante a pesquisa de campo muitas foram as

    manifestaes indicativas de tal posicionamento:

    Na minha roa um cedro fica! No pr derrubar a paparaba no! Essa biriba no corta uma! Pindaba no corta! Inhaba tambm no corto... que uma madeira que a gente precisa no dia de amanh!

    Na falha voc pode plantar uma banana da terra. A banana da prata voc tem que plantar. Voc deve plantar o p de laranja. Um p de jaca que

    4 Cacau-Cabruca um sistema ecolgico de cultivo agroflorestal. Baseia-se na substituio de estratos

    florestais por uma cultura de interesse econmico.ceplac.gov.br/radar/sistema_agro.htm 5 A Ceplac - Comisso do Plano Executivo da Lavora Cacaueira - foi criada em 1957 com o objetivo inicial

    de gerenciar as dvidas da cacauicultura baiana. Com a criao do CEPEC - Centro de Pesquisas do Cacau em 1962, do Departamento de Extenso em 1963 e o Departamento de Educao em 1965 a Ceplac passou a desempenhar um papel importante na pesquisa, extenso rural e formao de mo de obra para a cultura do cacau. (LVARES-AFONSO, 2011, p. 107)

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    nasceu agente no vai cortar, claro! Na roagem uma madeira de lei voc no pode cortar. Quando a roa da gente que a gente quer cevar um p de cedro, um p de sucupira agente ceva....

    No entanto, mesmo plantado misturado, sem adubar o cacau no produz como

    antigamente. Segundo dona Leonor, tem que adubar todo ano, seno no bota. As

    roas de mandioca, por outro lado, tambm esto decadentes, a mandioca est

    apodrecendo toda e quando vai arrancar s arranca a metade. E tem tambm que

    adubar a mandioca. A agricultura de coivara continua viva nas falas dos agricultores

    que ainda utilizam o fogo para fazer seus roados: tem que queimar a terra, sem

    queimar no d!

    por isso que no antigo era mais fcil. No antigo botava um roado de mato grosso, plantava e no tinha esse negcio de adubar nada e dava l vontade. (....). Eu tenho uma roa l no boqueiro que as pessoas que chega, que est acostumado a botar adubo (....), h dvida! Tirei banana da terra, tirei milho, tem cacau que fez um ano em maro quase esgalhando sem uma gota de adubo. Semana passada eu cortei um cacho de banana da terra que deu 53 quilos! Hoje, nem todo mundo tem uma rea assim pr voc chegar e fazer esse trabalho.

    Concluindo

    Por fim, possvel concluir que, mesmo sem ter lido Franz Capra, Irenio

    Monteiro, Seu Manoel, Bar, Z Conceio, Julho, dona Altamira, dona Leonor e muitos

    outros quilombolas que conheci em Empata Viagem sabem que a diversidade promove

    a sustentabilidade: sistemas vivos, em constante movimento e presos teia da vida,

    que, como ecossistemas prximos aos naturais, so comunidades sustentveis de

    plantas, animais e microrganismos (CAPRA 2006: 13). De uma forma ou de outra,

    sabem tambm que o fogo importante para reduzir a acidez dos solos e,

    disponibilizar atravs das cinzas produzidas os nutrientes armazenados na biomassa

    (MUNARI, 2009: 17).

    Segundo os entrevistados, o Empata Vigem um lugar bom, mas no passado

    era muito melhor. No passado tinha muito mato grosso para cortar e fazer roa, no

    faltava o de comer. Hoje, a terra pouca e s d no adubo. Os agroqumicos

    fertilizantes e corretivos de solo - e agrotxicos so largamente utilizados, mas no

    garantem a produtividade. comum o ataque de brocas no cacau e as razes da

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    mandioca apodrecem com facilidade. A epidemia da Vassoura de Bruxa destruiu muitas

    roas e os rgos de assistncia tcnica no conseguiram deter a doena. A

    recuperao das lavouras ocorreu sem a ao dos tcnicos. o que ilustra o

    depoimento de Seu Julho:

    Em tenho um pedao de cacau, roa velha, primeiro ano eu colhi, colhi dois sacos de cacau. No segundo ano deu essa Vassoura de Bruxa, eu cheguei l tava todos os galhos secos. T perdida! Larguei l, passou um ano, passou outro, passou outro, trs anos; um vizinho meu disse: Julho voc foi l sua roa? Eu no, l no piso mais, tudo levou fim (...). Cheguei l a roa estava renovada e tinha cacau, um bocado de cacau!.

    REFERNCIAS

    ADAMS Cristina. 2000. As Roas e o Manejo da Mata Atlntica pelos Caiaras: Uma Reviso. Intercincia, 25 (3): 143-150. Asociacin Interciencia. Venezuela. (www.redalyc.org/articulo.oa?id=33904504; acesso em 19.07.2014). ANJOS. Rafael Sanzio Araujo dos Anjos. 2006. Cartografia e Quilombos: Territrios tnicos africanos no Brasil. In: AFRICANA STUDIA. 9: 337-355. Edio do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP), Coimbra. BOURDIEU. Pierre.1989. O Poder Simblico. Lisboa/Rio de Janeiro. Difel/Bertrand Brasil. CAPRA, Fritjof. 2006. Como a natureza sustenta a Teia da Vida. Alfabetizao Ecolgica. Stone, Michael K. & Barlow, Zenobia (org.). So Paulo. Cutrix. KIUCHI, Tachi & SHIREMAN, Bill. 2003. O Que a Floresta Tropical nos ensinou. So Paulo. Cutrix. MUNARI, Lucia Chamlian. 2010. Memria Social e Ecologia Histrica: a Agricultura de Coivara das populaes quilombolas do Vale do Ribeira e sua relao com a formao da Mata Atlntica. Dissertao de mestrado. Instituto de Biocincias da Universidade de So Paulo-USP. (www.teses.usp.br/teses/disponiveis/41/41134/tde-07032010-134736/pt-br.php; acesso em 01.01.2014.).

    PIASENTIN, Flora Bonazzi. SAITO. Carlos Hiroo. 2014. Os Diferentes Mtodos de Cultivo de Cacau no Sudoeste da Bahia: aspectos histricos e percepes. Boletim do Museu Emlio Goeld. Cincias Humanas. Belm. 9(1): 61-78. (http://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v9n1/05.pdf; acesso 20.06.2014).