QUESTÕES SOBRE MEDIAÇÃO E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

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 1102 QUESTÕES SOBRE MEDIAÇÃO E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL Rejane Galvão Coutinho - UNESP Resumo O texto se insere no âmbito de uma pesquisa sobre formação de arte/educadores como mediadores culturais e sociais. Tem como foco questões sobre a mediação e a educação patrimonial onde se busca refletir sobre o conceito de patrimônio e seus processos de institucionalização com objetivo de atualizar as práticas de educação patrimonial na contemporaneidade. Palavras chave: mediação cultural, educação patrimonial, formação.  S ommaire Le texte s'inscrit dans le cadre de la recherche sur la formation des éducateurs artistique comme médiateurs culturels et sociaux. Il met l'accent sur les questions de la médiation et de la pédagogie du patrimoine, où il tente réfléchir sur la notion de patrimoine et de leur  processus d'institutionna lisation afin d'améliorer les pratiques de l'éducation au patrimoine dans la société contemporaine.  Mots -c lés : médiation culturelle, éducation patrimoni al, formation.  Introdução O texto se insere no âmbito de uma ampla pesquisa sobre formação de arte/educadores como mediadores culturais e sociais, uma pesquisa que se exerce em cursos de formação inicial e continuada, nos níveis de graduação e pós- graduação. Ao expandir o campo de atuação dos arte/educadores para além das fronteiras escolares, se expandem também as questões implícitas no processo de formação. No vasto campo que se abre nesta perspectiva, reconhece-se que um dos papeis preponderantes do arte/educador na contemporaneidade é o de mediar as relações entre a arte, a cultura e os sujeitos envolvidos na ação educacional. No contexto brasileiro, o termo mediação está fortemente associado a práticas educativas desenvolvidas em museus e centros culturais, especialmente aquelas direcionadas às exposições de artes visuais. Esta relação é tingida também por uma conotação conceitual. Usa-se o termo mediação para qualificar ações educativas com orientações sócio construtivistas em contraposição a orientações tradicionais e reprodutivistas.

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Rejane Galvao Coutinho

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    QUESTES SOBRE MEDIAO E EDUCAO PATRIMONIAL

    Rejane Galvo Coutinho - UNESP

    Resumo O texto se insere no mbito de uma pesquisa sobre formao de arte/educadores como mediadores culturais e sociais. Tem como foco questes sobre a mediao e a educao patrimonial onde se busca refletir sobre o conceito de patrimnio e seus processos de institucionalizao com objetivo de atualizar as prticas de educao patrimonial na contemporaneidade. Palavras chave: mediao cultural, educao patrimonial, formao. Sommaire Le texte s'inscrit dans le cadre de la recherche sur la formation des ducateurs artistique comme mdiateurs culturels et sociaux. Il met l'accent sur les questions de la mdiation et de la pdagogie du patrimoine, o il tente rflchir sur la notion de patrimoine et de leur processus d'institutionnalisation afin d'amliorer les pratiques de l'ducation au patrimoine dans la socit contemporaine. Mots-cls: mdiation culturelle, ducation patrimonial, formation.

    Introduo

    O texto se insere no mbito de uma ampla pesquisa sobre formao de

    arte/educadores como mediadores culturais e sociais, uma pesquisa que se exerce

    em cursos de formao inicial e continuada, nos nveis de graduao e ps-

    graduao. Ao expandir o campo de atuao dos arte/educadores para alm das

    fronteiras escolares, se expandem tambm as questes implcitas no processo de

    formao. No vasto campo que se abre nesta perspectiva, reconhece-se que um dos

    papeis preponderantes do arte/educador na contemporaneidade o de mediar as

    relaes entre a arte, a cultura e os sujeitos envolvidos na ao educacional.

    No contexto brasileiro, o termo mediao est fortemente associado a prticas

    educativas desenvolvidas em museus e centros culturais, especialmente aquelas

    direcionadas s exposies de artes visuais. Esta relao tingida tambm por uma

    conotao conceitual. Usa-se o termo mediao para qualificar aes educativas

    com orientaes scio construtivistas em contraposio a orientaes tradicionais e

    reprodutivistas.

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    No entanto, como lembra Ana Mae Barbosa,

    O conceito de educao como mediao vem sendo construdo ao longo dos sculos. Scrates falava da educao como parturio das ideias. Podemos, por aproximao, dizer que o professor assistia, mediava o parto. Rousseau, John Dewey, Vygotsky e muitos outros atribuam natureza, ao sujeito ou ao grupo social o encargo da aprendizagem, funcionando o professor como organizador, estimulador, questionador, aglutinador. O professor mediador tudo isso. (BARBOSA, 2009, p.13)

    Para entendimento de um conceito mais amplo de mediao e, consequentemente,

    da ideia do professor mediador, a autora convoca importantes pensadores do ato

    educacional que atuaram em pocas e contextos diversos, tendo em comum uma

    perspectiva democrtica de educao. Mais prximo de nossa poca e de nosso

    contexto, Paulo Freire que tambm bebia nessas mesmas fontes, defendia a ideia

    de que aprendemos uns com os outros mediatizados pelo mundo. A complexidade

    desta aparentemente simples constatao desmonta aquela lgica unidirecional do

    ato educacional e convoca uma multilgica fundada no dilogo. O professor

    mediador que organiza, estimula, questiona e aglutina em sua ao educativa

    precisa considerar as relaes de uns com os outros e as vrias camadas

    contextuais que o mundo nos oferece.

    O campo da arte e da cultura com suas abrangentes possibilidades campo frtil de

    mediao entre nosotros e o mundo. A arte/educao pode enfrentar estes desafios

    desde que reconsidere seus paradigmas e reveja seus objetivos. A Proposta

    Triangular vem possibilitando pensar a arte como cultura, considerando as prticas

    de produo, de difuso e de recepo em seus contextos e relaes como

    dimenses da mediao cultural.

    O entendimento da mediao cultural est nesta pesquisa atrelado ao entendimento

    mais amplo de arte como cultura, da ao educativa como prtica dialgica e ao

    compromisso do educador mediador com as dimenses polticas da prxis

    educacional. A pesquisa trata, portanto, de um campo de formao que busca no

    segregar os arte/educadores a partir de seus espaos de atuao (da educao

    formal e da educao no-formal), mas, justamente busca estimular os trnsitos

    entre estes territrios demarcados por prticas muitas vezes concorrentes, mas que

    podem ser compreendidas e exercidas de forma complementar.

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    Para aprofundar as reflexes sobre as questes da mediao no campo da

    arte/educao um dos caminhos buscar compreender os mecanismos que definem

    e delimitam os objetos, as prticas e contextos a serem mediados. Neste sentido, os

    objetos e prticas patrimoniais tm presena de destaque pelas representatividades

    e valores que agregam nas prticas sociais.

    De imediato, o termo patrimnio nos remete a tudo aquilo que herdamos do

    passado, o que recebemos como legado de valor e que merece ser conservado. No

    entanto, o conceito de patrimnio se constitui nos campos culturais e sociais em

    contextos especficos que os impregnam de sentidos. O conceito de patrimnio

    cultural passa historicamente por um processo de institucionalizao que agrega

    valores que os qualificam de forma diferenciada diante de outros legados.

    Em processos de formao comeamos a adentrar este campo atravs de

    perguntas fundamentais que buscam revelar: por que algumas obras e objetos,

    algumas construes ou stios histricos, ou mesmo algumas prticas culturais,

    merecem o ttulo de patrimnio cultural e outros acervos no tm este merecimento?

    Quais os critrios seletivos que definem o que se constitui como patrimnio? Quais

    processos determinam o que se constitui como patrimnio?

    importante alertar que o texto traz algumas consideraes e reflexes feitas a

    partir do espao de formao de arte/educadores. No somos especialistas em

    patrimnio, mas nos colocamos no papel de mediadores que de forma crtica

    buscam desvelar as relaes de poder que atravessam este campo.

    Consideraes sobre a institucionalizao do patrimnio

    A origem do movimento patrimonial est estreitamente relacionada com a viso

    humanista e universalista de cultura, uma perspectiva que se constitui ao longo da

    histria ocidental e se consolida no sculo XIX com a expanso do capitalismo, do

    imperialismo com suas prticas coloniais e com o desenvolvimento dos

    conhecimentos filosficos, cientficos, tecnolgicos e das redes de comunicao que

    se estabelecem na geopoltica do mundo reconhecido como civilizado. nessa

    poca que se produzem estudos e pesquisas no sentido de definir e estabelecer

    critrios e valores para qualificar evolutivamente as culturas.

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    Em conseqncia, no final desse sculo e incio do sculo XX que os pases do

    hemisfrio Norte que se auto-identificam como civilizados, definem e regulam a

    proteo de seus bens culturais considerados patrimoniais. Os primeiros

    documentos oficiais surgem com a Liga das Naes em 1919 e so reconhecidos

    em 1935. As discusses iniciais giram em torno de regras gerais de conduta para

    proteo de bens patrimoniais dos pases em perodos de guerra, condizente com a

    situao vivida naquele momento na Europa. Com a criao da Organizao das

    Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNESCO em 1945, uma

    srie de convenes estabelecida buscando regular, disciplinar e criar

    instrumentos jurdicos internacionais para a promoo e proteo dos bens culturais

    patrimoniais.

    Ao percorrer a seqncia de ttulos das convenes promulgadas pela UNESCO de

    1952 a 2005, tm-se um panorama do teor das questes que pautaram as

    discusses institucionais sobre patrimnio cultura no perodo. Por exemplo, s em

    1970 a preocupao com o trfico ilcito de bens culturais entre pases e continentes

    foi regulamentada, um grave problema tratado juridicamente depois que deixou de

    ser prtica corrente de potncias dominantes sob povos dominados durante sculos.

    Apenas em 2001 houve o reconhecimento oficial da diversidade cultural dos povos

    atravs de uma declarao que em 2005 se formulou como uma conveno de

    proteo e promoo da diversidade das expresses culturais, e as questes

    referentes ao patrimnio imaterial foram reguladas na conveno de 2003.

    Diante dessa histria importante entender quais so os critrios e valores

    defendidos e promovidos pela concepo humanista e universalista de cultura para

    suas aes patrimoniais. Busca-se privilegiar as produes mais virtuosas, hericas,

    singulares e tidas como essenciais para elevar espiritualmente a humanidade. Neste

    sentido, um patrimnio cultural definido por sua antiguidade, pela excelncia

    cultural e tangibilidade diante de sua cultura particular e por seu carter de

    documento universal para a humanidade, critrios que se modificam nos diferentes

    contextos e pocas, como veremos mais adiante. Pode-se dizer tambm que

    resultante de um processo de seleo cultural natural no tempo histrico, ou seja, a

    sua perenidade comprova a sua dimenso identitria em relao cultura por sua

    resistncia fsica e principalmente simblica.

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    Assim, segundo os documentos oficias, o patrimnio cultural pode ser definido como

    um bem material ou imaterial, herana do passado para o presente e o futuro, com

    valores e caractersticas que contribuem para a permanncia e identidade da cultura

    a que pertence. Dos bens materiais tem-se desde conjuntos urbanos ou locais e

    stios dotados de expressivo valor histrico ou arqueolgico, a casas, palcios,

    igrejas, praas, ou esculturas, pinturas e artefatos de um modo geral. Consideram-

    se bens imateriais a literatura, msica, linguagens e manifestaes coletivas e/ou

    festivas, como costumes e fazeres. Recentemente no Brasil, por exemplo, foram

    tombados como bens imateriais o acaraj na Bahia e o frevo em Pernambuco.

    O processo de institucionalizao patrimonial regido por critrios pautados pela

    legislao internacional de acordo com a esfera a que diz respeito. Portanto, um

    bem cultural patrimonial pode ser tombado e reconhecido por diferentes instncias:

    municipais, estaduais, federais e internacionais. Alis, bom saber que em princpio

    todo cidado de forma individual ou coletiva pode requerer o tombamento de bens

    materiais e imateriais, para tal necessrio encaminhar um processo para o

    rgomais prximo que legisla a questo.

    O processo de institucionalizao dos patrimnios no Brasil ocorreu paralelo ao

    movimento internacional no incio do sculo XX. O projeto de criao, em 1937, do

    Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - IPHAN, envolveu a

    intelectualidade modernista e teve como base um anteprojeto idealizado por Mrio

    de Andrade a pedido do ento Ministro da Educao e Sade, Gustavo Capanema.

    Na dcada de 1930, Mrio de Andrade atuava tambm como pesquisador e

    etngrafo, alm de gestor de cultura na Cidade de So Paulo, onde organizou e

    dirigiu o Departamento de Cultura. Seus trabalhos em prol do reconhecimento e

    preservao de todas as formas de manifestaes culturais deram incio a um

    processo que s recentemente se efetivou oficialmente. Como um turista aprendiz

    realizou viagens de pesquisa etnogrficas ao Norte e Nordeste do Brasil recolhendo

    importantes registros materiais e imateriais. Pois, j naquela poca ele defendia a

    preservao no s dos grandes monumentos, da arte erudita ou pura e de peas

    arqueolgicas, mas seu olhar de etngrafo inclua como patrimnio a arte e os

    artefatos da cultura popular e dos povos amerndios, assim como os bens

    imateriais: costumes, cantos, lendas e fazeres, reconhecendo e valorizando a

    diversidade de nossa formao cultural. O legado das pesquisas de Mrio de

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    Andrade continua hoje inspirando outros pesquisadores da cultura brasileira e pode

    tambm ser ponto de partida e alimento para projetos educacionais trans-

    disciplinares, como se qualifica sua prpria ao.

    Na sua atuao como gestor e educador cultural a frente do Departamento de

    Cultura (1935-1937), Mrio de Andrade buscou quebrar o crculo vicioso da

    elitizao promovendo aes educativas de difuso e recepo de bens culturais,

    como o projeto das aulas-concertos da orquestra sinfnica no Teatro Municipal com

    uma programao especialmente selecionada e material de apoio didtico

    informativo e explicativo, ou seja, estabelecendo um processo de mediao em

    msica especialmente pensada para o pblico escolar.

    Antes de So Paulo ter seus museus de arte, Mrio idealizou um Museu Popular que

    no chegou a ser realizado, porm o projeto sugeria que o museu fosse constitudo

    por reprodues, colocando as colees dos grandes museus europeus ao alcance

    de todos. Independente da discusso que se possa ter hoje sobre a qualidade das

    reprodues e a "insubstituvel" presena diante de obras originais, o que

    importante refletir o carter de extenso e de educao contidos na proposta de

    museu de Mrio de Andrade. Para ele, o verdadeiro museu no ensina a repetir o

    passado, porm a tirar dele tudo o quanto ele nos d dinamicamente para avanar

    em cultura dentro de ns, e em transformao dentro do progresso social (Andrade

    Apud Frana, 2002, p. 188). Ele pensava h poca em museu com a funo de

    disseminar conhecimentos para segmentos da populao que no tinham acesso a

    estes conhecimentos, da mesma forma que estamos aqui hoje refletindo sobre a

    democratizao cultural a despeito do processo de elitizao que se incrustou nas

    instituies representativas de nossa cultura, procurando reverter este processo,

    como sugere tambm Ana Mae Barbosa.

    hora dos museus abandonarem seu comportamento sacralizado e assumirem sua parceria com escolas, porque somente as escolas podem dar aos alunos de classe pobre a ocasio e auto-segurana para entrar em um museu. Os museus so lugares para a educao concreta sobre a herana cultural que deveria pertencer a todos, no somente a uma classe econmica e social privilegiada. Os museus so lugares ideais para o contato com padres de avaliao de arte atravs da sua histria, que prepara um consumidor de arte crtico no s para a arte de ontem e de hoje, mas tambm para as manifestaes artsticas do futuro. (Barbosa, 1998, p.19)

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    Revises contemporneas do patrimnio

    A origem do termo patrimnio decorre do grego pater, que significa pai e se encontra

    tambm na origem de termos como ptria, patritico, patro, patriarcal e outros que

    carregam sentidos de legado, de algo que nos antecede e nos dado, de modelos

    de conduta, de valores a preservar e, sobretudo a respeitar. um campo semntico

    carregado de sentidos de conservao, opostos aos sentidos de transformao, de

    troca, de renovao que uma concepo contempornea de cultura demanda.

    Ao trazer para a contemporaneidade os critrios que pautam a definio institucional

    de patrimnio cultural apresentados no tpico anterior - antiguidade, excelncia

    cultural e tangibilidade - percebe-se o quanto estes critrios so relativizados em

    funo dos diversos contextos e valores culturais locais, desfazendo o mito da

    universalidade que os mantm. O movimento de revalorizao da cultura

    contempornea muitas vezes usa os recursos das heranas patrimoniais

    disponveis, alterando as configuraes do passado em funo de necessidades do

    presente, de constituio de novas representaes e/ou de adequaes s

    demandas do desenvolvimento urbano e social.

    Um bom exemplo deste movimento de transmutao o processo de constituio

    do que conhecido desde 1993, como o Museu da Cidade de So Paulo. Um

    Museu sem uma sede fixa, constitudo por doze edificaes e espaos com distintos

    valores histricos dispersos na malha urbana da grande cidade de So Paulo. Um

    Museu sem um conceito preestabelecido, mas que se prope a organizar e dar

    visibilidade a uma histria esfacelada e multifacetada. Fazem parte deste acervo as:

    Casa do Bandeirante, Casa do Sertanista, Capela do Morumbi, Stio Morrinhos,

    Casa do Tatuap, Stio da Ressaca, Monumento Independncia, Casa do Grito,

    Casa Modernista, alm do Solar da Marquesa de Santos, Beco do Pinto e Casa n 1

    que formam o conjunto administrativo localizado no Centro da cidade ao lado do

    Pteo do Colgio.

    O que teria levado o Departamento do Patrimnio Histrico da cidade de So Paulo

    a constituir em pleno final do sculo XX este Museu agregando equipamentos to

    dspares? Cada uma das distintas unidades carrega uma histria que revela

    processos de constituio de representaes significativas para a Cidade e para sua

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    identidade, processos que revelam transmutaes de usos e de adequaes ao

    espao urbano.

    Por exemplo, o que hoje se conhece como Capela do Morumbi no tem documentos

    nem evidncias que confirmem que algum dia aquela edificao foi realmente uma

    capela. Os documentos de 1825 atestam apenas que as runas de taipa de pilo

    faziam parte de uma propriedade de produo de ch. A partir de interpretaes, em

    1940, as runas foram alvo de uma transmutao em capela sob projeto do arquiteto

    modernista Gregrio Warchavchik. O local adquire assim um novo valor histrico

    que agrega um capital simblico ao local da edificao, parte de um capital

    econmico, uma grande expanso imobiliria na regio. Em 1979 o edifcio passa

    por mais uma revitalizao quando foi adaptado para receber atividades culturais.

    Mais recentemente o espao se qualifica como espao de exposio de arte

    contempornea, recebendo instalaes de importantes artistas, como a conhecida

    instalao de Leonilson em 1993, remontada em 2011.

    O caso da Casa Bandeirante tambm exemplo de constituio recente de

    identidade histrica. A construo apresentada como exemplar de uma habitao

    rural paulista dos sculos XVII e XVIII. Os registros do local fazem referncia a

    vrios proprietrios ao longo dos sculos e a edificao foi identificada como

    potencial patrimnio por Mrio de Andrade na dcada de 1930. Hoje, a Casa

    Bandeirante revela as vrias camadas de mutaes da cidade de So Paulo e ao

    mesmo tempo, a partir dela se reconstitui parte significativa da memria da Cidade.

    O processo de re-significao da casa em patrimnio tem incio em 1953 com uma

    reforma para as comemoraes do IV Centenrio de So Paulo; em 1955 aberta

    ao pblico como museu evocativo da poca das bandeiras, com acervo de objetos

    do cotidiano e de processos de produo, recolhidos no interior do Estado, em

    Minas Gerais e no Vale do Paraba. Como revela o prprio texto de apresentao no

    site, a Casa faz parte de um passado histrico idealizado, espao de crtica e

    contextualizao de mitos e documento arquitetnico preservado. Para se

    configurar como espao potencial de crtica e contextualizao, desconstruindo e

    transpondo o mito idealizado, necessrio recursos de mediao tambm crticos e

    contextuais e no simplesmente afirmativos e reprodutivos.

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    Ao longo da histria de constituio dos bens culturais patrimoniais, vrias

    tendncias nas polticas de acesso ao patrimnio foram se firmando e se

    amalgamando. Do ponto de vista da educao, importante identificar as diferentes

    nfases para saber lidar com os processos de mediao implcitos nos contextos.

    Segundo Imanol Aguirre Arriaga (2008) a primeira tendncia se caracteriza pela

    nfase na conservao, influncia do positivismo cientfico na catalogao dos

    bens culturais que alcanou seu pice no final do sculo XIX e incio do XX. Como a

    prpria conservao implica, um dos aspectos marcantes desta tendncia a

    preservao de valores a partir dos objetos selecionados para os representar. Do

    processo resulta uma conformao e legitimao dos valores (gosto, estilo, etc.)

    burgus, consolidando esta classe social. As reas de conhecimento que se ocupam

    do patrimnio sob esta perspectiva so a histria da arte e a restaurao.

    Posteriormente, a difuso adquire tanta importncia quanto a conservao. O que

    rege esta tendncia a ideia de que para se consolidar, necessrio uma

    sensibilidade social e coletiva favorvel aos valores patrimoniais, ou seja, "no

    possvel amar aquilo que no se conhece e no se conservar aquilo que no se

    ama. (Aguirre, 2008, p. 81). Mais recentemente, a nfase no valor formativo do

    patrimnio vem ganhando espao atravs de prticas de mediao sob a bandeira

    da democratizao do acesso cultural. Os espaos museais, por exemplo, deixam

    de ser pensados apenas como espaos de conservao e difuso para serem

    espaos geradores de cultura. Esta tendncia se intensifica nas ltimas dcadas do

    sculo XX quando se instituem departamentos, servios, ou setores de educao na

    maior parte dos museus e centros culturais. A prpria ideia de centro cultural se

    expande tambm neste perodo, quando surgem, aqui no Brasil, vrios centros

    irradiadores de cultura ligados a instituies financeiras, por exemplo.

    Imanol Aguirre Arriaga (2008) aponta ainda que h outras tendncias, no to

    evidentes nas polticas culturais, mas no menos significativas. Aliada s polticas de

    conservao se une a perspectiva de concepo da cultura como elemento

    aglutinador de identidades coletivas, quando se usa os bens culturais com fins

    polticos e ideolgicos. Esta tendncia vai agregar, por exemplo, aos nomes de

    vrios museus o termo nacional. Ou, no caso citado da Casa Bandeirante, quando

    se evoca a partir de uma edificao exemplar de sculos passados uma

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    homenagem aos episdios das bandeiras, to discutvel processo de conquista de

    territrios no perodo colonial brasileiro.

    Alm das tendncias de ordem identitria e ideolgica, h tambm interesses

    tursticos e econmicos associados s polticas patrimoniais. a ocasio de somar

    capital simblico com capital econmico, forjando a valorizao de certos stios ou

    fatos histricos que no teriam de outra forma uma representatividade nos contextos

    local ou nacional. o caso da criao da Capela do Morumbi, que relatamos

    acima, para a valorizao da expanso imobiliria do local.

    As dinmicas sociais vo demarcando tanto os limites dos bens culturais quanto

    seus usos. Sejam por razes de ordem econmica e turstica, sejam por motivaes

    ideolgicas ou polticas, no h localidade, regio ou pas que no disponha de um

    catlogo patrimonial onde se rene o mais significativo, valioso ou digno de

    reconhecimento cultural.

    Possibilidades e impossibilidades na mediao do patrimnio

    Ao compreender como os mecanismos institucionais operam na constituio dos

    patrimnios, uma constatao bvia vem a tona: o campo educacional vem

    trabalhando em associao com o campo cultural institucionalizado no processo de

    legitimao de seus valores e de seus discursos. A economia das trocas simblicas

    de Pierre Bourdieu nos d outros instrumentos de anlise para compreender e

    confirmar estas operaes e associaes entre os campos educacionais e culturais.

    Mas, ser que h meios para ultrapassar e transformar esta situao?

    Em uma anlise da situao, Bernard Darras (2008) destaca trs solues que

    podem nos ajudar a refletir sobre o papel da mediao nas relaes patrimoniais.

    1. O patrimnio elitista se reserva para as elites.

    Esta uma situao bastante usual. Quando as operaes de conservao e de

    exposio dos signos da elite so organizadas para ajudar a prpria elite a perceber

    suas caractersticas prprias e as qualidades de sua comunidade, com intuito de

    perenizar, reforar e perpetuar sua identidade simblica de classe e grupo. um

    processo coerente e legitimado pelo xito. uma operao que favorece a

    aprendizagem interna do grupo social de destino e por extenso, favorece tambm

    queles que aspiram integrar este grupo ou so seus servidores. Por exemplo, sabe-

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    se que o pblico espontneo que frequenta museus de arte formado pela elite que

    j detm o capital econmico e simblico, assim como, por aqueles que desejam

    incorporar estes capitais.

    Nas sociedade democrticas, as elites levam a cabo uma dupla operao: por um

    lado, conservar, manter e institucionalizar suas prticas; por outro, construir sua

    legitimidade e imp-la sob o trip de noes de excelncia, nacionalidade e

    universalidade. Uma mediao nesta perspectiva ir reforar o processo de

    legitimao atravs de prticas unidirecionais e informativas, fazendo uso do

    discurso institudo em torno do patrimnio, como os discursos dos historiadores,

    conservadores, crticos, curadores, etc..

    2. A democratizao do patrimnio das elites

    O projeto de democratizao guiado essencialmente por concepes intelectuais e simblicas da cultura que aspiram propiciar a elevao do povo (demos) por meio e atravs de qualidades e valores de algo que, segundo se cr, pertence a categoria das melhores obras. (Darras, 2008, p.138)

    sob este argumento que tem incio o processo de institucionalizao do

    patrimnio, como vimos no primeiro tpico do texto, e podemos aqui reforar a

    crtica a determinao dos critrios de seleo do que "se cr serem as melhores

    obras". Os grandes museus e monumentos emblemticos do mundo foram criados

    sob esta orientao.

    Vale ressaltar que ao operar a democratizao dos bens da elite, os agentes da

    cultura levam a cabo uma ao de neutralizao dos vnculos sociais desses bens.

    um ato poltico que consiste em desvincular os objetos de seus usos e prticas

    sociais originais, desintegrando suas relaes sistmicas.

    Este processo de suspenso, neutralizao e secularizao permite apagar os laos sociais que mantinham as obras quando estavam em seu meio original. Este tipo de museificao ao mesmo tempo uma despolitizao social e uma re-politizao patrimonial. (Darras, 2008, p.140).

    Cria-se assim a categoria de objetos patrimoniais, que leva a crer que o autntico

    destino desses objetos sempre foi o de participar desse universo. A tarefa de

    suspenso pressupe uma descontextualizao, seguida de uma re-

    contextualizao que tem como foco os aspectos histricos, patrimoniais, estticos e

    artsticos, ento percebidos como os "verdadeiros" sentidos dos objetos. Os

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    exemplos anteriormente citados dos equipamentos do Museu da Cidade de So

    Paulo so exemplares neste caso. As mediaes sob esta perspectiva so as que

    apresentam menor ndice de xitos, pois na tentativa de democratizar os objetos e

    valores da elite, em geral recorre-se aos mesmos discursos de legitimao, a partir

    dos cdigos dos especialistas. Esses discursos legitimadores das polticas

    patrimoniais no encontram eco no grande pblico que continua no estabelecendo

    processos de identificao com os bens patrimoniais.

    3. A cultura democrtica e a ecologia das culturas

    Darras nos introduz a ideia de ecologia das culturas como possibilidade de reativar

    os traos apagados pelo processo de suspenso, como um caminho para reintegrar

    o objeto na cultura de seu tempo. Uma ideia muito prxima do que se entende por

    processo de contextualizao.

    Esta concepo ecolgica implica transformaes nos modos de difuso e exibio

    dos objetos patrimoniais, quando se utilizam recurso e estratgias de mediao para

    aproximar a recepo das possveis condies de origem de tais objetos. Estas

    estratgias aclarariam os vnculos e tenses e ajudariam a entender a diversidade

    cultural de uma poca, seus movimentos e transformaes.

    Esta concepo sistmica e ecolgica dos objetos patrimoniais distribudos em seu

    entorno de conhecimento e prticas, seria sem dvida mais etnogrfica e

    antropolgica do que artstica, no impedindo no entanto, a presena da faceta

    artstica. Uma mediao nesta direo reforaria a dimenso contextual do processo

    de recepo, revelando as vrias camadas que se sobrepem e se articulam na

    leitura dos objetos patrimoniais, estabelecendo aproximaes identitrias mais

    legtimas, portanto, com chances de xito mais evidentes.

    Como educadores, importa compreender os mecanismos que agem no campo da

    cultura para tentar instaurar processos de mediao crticos que faam com que o

    patrimnio revele sentidos para os sujeitos de hoje. Importa tomar os usurios do

    patrimnio cultural como comunidades de aprendizagem, capazes de dotar de

    sentidos os objetos, artefatos e prticas culturais.

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    Referncias

    ARRIAGA, Imanol Aguirre; FONTAL, Olaia; DARRAS, Bernard; RICKENMANN, Ren. El acesso al patrimonio cultural. Retos y debates. Pamplona, Espanha: Ctedra Jorge Oteiza; Universidade Pblica de Navarra, 2008.

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    BARBOSA, Ana Mae. Tpicos utpicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.

    BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvo (Orgs.). Arte/Educao como mediao cultural e social. So Paulo: Editora UNESP, 2009.

    COUTINHO, Rejane Galvo. A cultura ante as culturas na escola e na vida, In: Horizontes culturais: lugares de aprender. Secretaria de Educao, Fundao para o Desenvolvimento da Educao: organizao, Devanil Tozzi e outros. So Paulo: FDE, 2008, p. 39-50.

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    LOURENO, Maria Ceclia Frana. Museus grande. Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, Braslia, n. 30, p. 188, 2002.

    Sites consultados

    www.unesco.org.br

    www.museudacidade.sp.gov.br/museu.php

    www.museudacidade.sp.gov.br/casadobandeirante.php

    Rejane Galvo Coutinho Professora doutora do Instituto de Artes da UNESP onde atua com formao de educadores no campo das artes visuais na graduao e ps-graduao. atualmente coordenadora do Programa de Ps-graduao em Artes (Mestrado e Doutorado) e do Curso de Especializao em Artes na modalidade EAD, convnio Redefor/UNESP. Desenvolve projetos e pesquisa sobre arte/educao como mediao cultural e social.