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QUEM TEM MEDO DAS NOVAS TECNOLOGIAS? - DESCONTRUINDO O DISCURSO DE
MATRIX
Maria conceia o Alves de Lima
UEMS
INTRODUO
Rene Descartes, pensador france s do se culo XVIII, exarou seu veredicto: a natureza
humana e uma moeda de duas faces, a mate ria corporal e a mente espiritual. Esse dualismo
cartesiano (que ja se manifestara muito antes da existe ncia do filo sofo, mas que atingiu o seu
a pice a partir das ide ias deste) tem sido responsa vel, desde tempos imemoriais, por muitos
mitos, meta foras e alegorias que perduram inabala veis neste mundo po s-moderno. No espao
da Internet, por exemplo, o mito do corpo inerte e da mente a mil por hora tornou-se uma
crena quase que inquestiona vel para o senso comum. Eis a o imagina rio que perpassa a
tema tica da trilogia cinematogra fica MATRIX1: a polaridade entre o corpo e a mente, entre o
homem e a ma quina, entre o real e o virtual.
QUEM TEM MEDO DAS NOVAS TECNOLOGIAS?
1. O ps-moderno e o ps humano
No limiar do terceiro milnio, coube ao incremento da Internet marcar o incio do
paradigma ps-moderno, caracterizado pela sociedade em rede e pela cultura digital. Segundo
Santaella (2003, p. 28), trata-se de uma revoluo cultural que nos est colocando no apenas no seio
de uma revoluo tcnica, mas tambm no torvelinho de uma sublevao cultural. Esse novo
ambiente no mais circunscrito aos livros ou aos meios de comunicao de massa o que Pierre Lvy
1 O filme MATRIX foi concebido como uma trilogia (MATRIX, MATRIX Reloaded e MATRIX Revolutions), porm
apenas o primeiro tornou-se sucesso de bilheteria. A continuidade da histria no agradou nem ao grande pblico nem
crtica, pois o contedo filosfico da trama, presente no primeiro filme, diminuiu ou desapareceu nos demais.
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(2003) denomina de ciberespao2, ou seja, o espao de comunicao aberto pela interconexo
mundial dos computadores [...] (p. 92, grifos do autor). A existncia do ciberespao trouxe tona
um novo tipo de realidade, a realidade virtual. Para Lvy (p. 47, grifo do autor), virtual toda
entidade desterritorializada, capaz de gerar diversas manifestaes concretas em diferentes
momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a algum lugar ou tempo em
particular.
Para exprimir essa grande mutao da essncia da cultura, em funo do ambiente virtual
que se desenvolve no ciberespao, Lvy cunhou o neologismo cibercultura, em que a informao
certamente se encontra fisicamente situada em algum lugar, em determinado suporte, mas ela
tambm est virtualmente presente em cada ponto da rede onde seja pedida (ibid., p. 48, grifos do
autor).
As tecnologias digitais que nos rodeiam e com as quais convivemos em todos os momentos
de nosso cotidiano, tanto na vida privada quanto nos espaos pblicos, so tecnologias da
inteligncia, tecnologias cognitivas com as quais interagimos sob o signo da troca e do dilogo. As
interfaces que essas tecnologias apresentam so interfaces de linguagem. Elas falam conosco e no
esto isoladas, mas nos conectam nas redes de troca de informaes, sem comeo nem fim, que
ininterruptamente cruzam o planeta de ponta a ponta. O aspecto sem dvida mais espetacular da era
digital est no poder dos dgitos para manipular toda e qualquer informao com um mesmo
tratamento universal, uma espcie de esperanto das mquinas. Graas digitalizao e compresso
dos dados, todo e qualquer tipo de signo pode ser recebido, estocado, tratado e difundido via
computador.
A tecnologia nada deixa intocado. Tambm, como no h separao entre a cultura e o ser
humano nela imerso, ns somos nossa cultura. Ela molda nossa sensibilidade e nossa mente, muito
especialmente as tecnologias digitais, que so tecnologias da inteligncia. Desde que o homem
ergueu-se sobre os dois ps e conseguiu incorporar a sua primeira tecnologia bsica (a fala), a
inteligncia humana no parou de crescer. Aps a linguagem (um aparato interno), vieram os aparatos
externos: primeiro, os mecnicos, como as ferramentas e as mquinas, depois os eltricos e enfim os
2 Segundo Pierre Lvy (2003, p. 92), a palavra ciberespao foi inventada em 1984 por William Gibson, em seu romance
de fico cientfica Neuromante, para designar tanto o palco de conflitos mundiais das redes digitais, quanto uma nova
fronteira econmica e cultural.
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eletrnicos. Dominada pelo microchip, essa tecnologia est migrando rapidamente da nossa
inteligncia externa para o interior de nosso prprio corpo. O ltimo estgio, prognosticado por
Weibel (apud SANTAELLA, 2003) sero os neurochips e os chips cerebrais, que devero ligar o
crebro ao meio digital o mais diretamente possvel. Muito em breve artefatos minsculos, os
nanorobots j estaro incorporados em nosso prprio corpo, produzindo a mais revolucionria
mutao de que se tem notcia: a mutao da inteligncia. Trata-se do que vem sendo chamado de
informtica pervasiva e de simbiose homem-mquina, que esto levando ao desenvolvimento de um
novo tipo de mente, uma arquitetura de inteligncia coletiva e conectiva.
No h como parar o que vem ocorrendo com a interface ser humano-mquina neste incio
do sculo 21. Quando indagada sobre o destino do homem neste alvorecer do mundo digital,
Santaella (2003) nos fornece como nica resposta a expresso advento do ps-humano. Segundo a
autora, a rpida evoluo do computador comparada com as tecnologias anteriores levou o terico e
artista da realidade virtual Myron Krueger a prever que a interface ltima entre o computador e as
pessoas estar voltada para o corpo e os sentidos humanos.
Levando em conta o impacto dessas mudanas no corpo humano, o desenvolvimento
tecnolgico aponta para as possibilidades de formas de existncia ps-humanas que outro artista e
terico, Roy Ascott (apud SANTAELLA, 2003, p. 32), chama de ps-biolgicas, ou seja, a juno
do ser humano com o silcio, a partir do desenvolvimento das nanotecnologias que, abaixo da pele,
passaro silenciosamente a interagir com as molculas do corpo humano.
Santaella (p. 32) confessa que a expresso ps-humano perturbadora e pode at trazer
muitos mal-entendidos. Entretanto, a expresso tem sido bastante usada para sinalizar as grandes
transformaes que as novas tecnologias da comunicao esto trazendo para tudo o que diz respeito
vida humana, tanto no nvel psquico quanto no social e antropolgico. H alguns autores que at
defendem a idia de que se trata de um passo evolutivo da espcie. De qualquer forma, no se pode
mais ignorar as modificaes pelas quais o ser humano vem passando nessa era virtual. Os seres
mutantes, os cyborgs j no so mais mera fico cientfica.
2. Os sinais dos novos tempos
Exagero? Nem tanto. Bill Gates, em um artigo-depoimento publicado na separata especial
Tecnologia, editada pela revista Veja em agosto de 2007, anuncia a chegada ao mercado dos
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aparelhos que complementam o teclado com recursos de reconhecimento de voz, viso, tato e escrita
manual e acabam com a fronteira entre os idiomas (p. 69). Respondendo aos que lhe perguntam se
a revoluo digital est desacelerando, Bill Gates declara que, muito pelo contrrio, essa revoluo
somente agora est tomando corpo: transformaes ainda mais profundas esto por vir. Alis,
Gates garante uma conectividade digital cada vez maior, principalmente porque j adentramos a
Web 2.0, isto , a Web mvel, que nos acompanhar a todos os lugares, em todos os momentos.
Eis que Bill Gates nos fala de uma nova tecnologia totalmente centrada no usurio, atravs do
recurso de percepo do contexto (p. 70):
Em um futuro no muito distante, qualquer dispositivo poder estar conectado
internet, oferecendo s pessoas tudo aquilo que diz respeito a seus interesses [...].
As notcias se movero automaticamente com os indivduos, durante seus
deslocamentos, de um lugar para outro, circulando tambm de um aparelho para
outro [...]. No ser mais necessrio preocupar-se redes, endereos de e-mail ou
com as diferenas entre os vrios aparelhos como celulares, computadores ou
tocadores de msica digital.
Afirmando que os recursos de computao se tornaro autnticas secretrias particulares,
Gates nos d a entender que os velhos computadores fixos de mesa (os desktops), com seus
teclados e mouses j vo se tornando jurssicos. A entrada e a manipulao de informaes pode
se dar em forma de gestos, toques ou pela prpria interao com os objetos fsicos (p. 71)3. A essa
3 Os ltimos lanamentos da Informtica nos do cincia das seguintes novidades tecnolgicas, a partir de 2009: E-reader foscos para maior conforto dos olhos (como o Kindle, da Amazon, do tamanho de um livro, mas com apenas
um centmetro de espessura, alm de flexvel e que capaz de fazer downloads e armazenar cerca de 2000 livros);
Netbooks (como o IPad da Apple) para a leitura e navegao na Net.
Netfone: celular com acesso direto s redes sociais (Facebook, Orkut, MSN, MySpace , Picasa, YouTube, Flickr etc)
Smartphones (que voam, no mais navegam) na Web e que executam mltiplas tarefas: acessam redes sociais; visualizam pginas simultneas; aceitam comando de voz; funcionam como GPS e possui ferramentas de percepo do contexto; gravam, editam e transmitem vdeos online (TV online); lem cdigos de barras; controlam o carro (travam e destravam portas, abrem o porta-malas, controlam o ar condicionado, do partida no
veculo);
guardam senhas e escaneiam retinas para permitir o acesso; transformam voz em texto; categorizam os contatos do usurio (pessoas online, pessoas por perto, contatos mais usados, pessoas importantes; organizam a agenda telefnica, discam automaticamente e passam para o prximo chamado no fim da ligao;
TV com ligao direta Internet;
TV, cmera e monitores em trs dimenses (3D): a Realidade Virtual (RV);
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nova tendncia, Gates denomina de computao onipresente (pervasive computing), tendo como
interface os objetos cotidianos: a mesa de trabalho, o carro, o telefone ou at a geladeira. Tudo isso
de forma o mais natural, intuitiva e fcil possvel.
3. Bem vindo a MATRIX
Inteligncia artificial, filosofia, teologia, cincia futurista. A saga de MATRIX apresenta o
mundo como uma fico implantada em nossos crebros por robs. A trama de MATRIX (Santaella,
2007) fundamenta-se na oposio entre um mundo real de corpos humanos escravizados (sem o
saber) por computadores hiperinteligentes e o mundo ilusrio de MATRIX, que simula a vida real e
mantm as mentes humanas imersas num sonho virtual controlado por programas computacionais.
Os computadores de MATRIX precisam da energia bioeltrica dos corpos para funcionarem e
entubam os homens desde o seu nascimento em um imenso tero digital. Assim, os seres humanos
passam a vida adormecidos enquanto suas mentes sonham que vivem, nascem, morrem, convivem
com a famlia, trabalham, estudam etc. (p.125):
Matrix tudo, o ar que os humanos parecem respirar, o cho em que pisam, tudo o
que vem, ouvem, sentem. S uma coisa no existe em Matrix: a verdade, uma
verdade que, no caso, seria a conscincia de que se trata de um mundo
inteiramente virtual, enquanto o corpo biolgico dos seres que sonham dorme um
sono eterno (p. 125 126, grifos da autora).
4. Sinopses
Em termos da juno do ser humano com o silcio a partir do desenvolvimento das nanotecnologias, podemos mencionar:
MyLifeBits ou TOTAL RECALL (registro digital de nosso cotidiano) revolucionando: a nossa sade; o nosso legado de vida; o nosso trabalho; a nossa educao;
Checkup digital domstico (captao dos sinais vitais atravs de sensores biomtricos e armazenamento (GOOGLE HEALTH e MICROSOFT HEALTH VAULT): Forerunner (medidor da frequncia cardaca); Withing (medidor de gordura no sangue); Fitbit (dispositivo acoplado pele roupa - para detectar se voc est descansando, exercitando-se ou
queimando calorias o suficiente); Sleep Coach (dispositivo a ser usado durante o sono, para analisar-lhe e orientar-lhe a quantidade e a qualidade).
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Matrix [...] conta a histria do hacker Thomas (Keanu Reeves), tambm chamado de Neo, que
encontra um cara cheio de truques chamado Morpheus (Laurence Fishburne). Ele toma uma plula
vermelha e descobre ento que todo o nosso mundo uma realidade simulada por computadores,
um enorme mundo virtual chamado Matrix. A verdadeira realidade um futuro em que as mquinas
tomaram conta do mundo e mantm os humanos em pequenas cpsulas, onde sua energia usada
para abastecer um gigantesco sistema de inteligncia artificial enquanto a mente deles mantida
em uma espcie de sonho que chamamos de realidade. Morpheus o lder de um grupo de rebeldes
que quer nos libertar das mquinas e acredita que Neo o esperado salvador da humanidade, algo
como um novo messias. Depois de muito treinamento, golpes de kung-fu, roupas sombrias e armas
pesadssimas, Neo consegue transcender a realidade de Matrix, desafiar as leis da fsica e ganhar
poderes sobre-humanos (http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122816.shtml -
Super Interessante, 2003).
Matrix tem como tema a luta do ser humano, por volta do ano de 2200, para se livrar do domnio
das mquinas que evoluram aps o advento da Inteligncia Artificial. Em um recurso extremo para
derrotar as mquinas, a humanidade cobriu a luz do Sol para cortar o suprimento de energia das
mesmas, mas elas adotam uma soluo radical: como cada ser humano produz, em mdia, 120 volts
de energia eltrica, comeam a cultiv-los em massa como fonte de energia. Para que o cultivo fosse
eficiente, os seres humanos passaram a receber programas de realidade virtual, enquanto seus
corpos reais permaneciam mergulhados em habitculos nos campos de cultivo. Essa realidade
virtual, que um programa de computador ao qual todos so conectados, chama-se Matrix e simula
a humanidade do final do sculo XX.
H, porm, perto do calor do centro da terra, uma ltima cidade de seres humanos livres, que
mandam misses em naves para combater as mquinas. O lder de uma dessas misses Morpheus,
um visionrio que vislumbra em um dos habitantes da matrix o escolhido, que vem a ser Neo,
interpretado por Keanu Reeves.
Neo resgatado de seu casulo, sacado da iluso da realidade virtual e passa a ser treinado por
Morpheus. [...]. Em sua saga, Neo atinge o status de Escolhido, no sentido messinico da palavra,
ao ressuscitar e conseguir, dentro da prpria Matrix, controlar o programa e derrotar os
mecanismos antivrus, personalizados por agentes vestidos de terno e culos escuros. Do ponto de
vista do programa, os humanos livres e/ou pensantes so os vrus do planeta Terra
(http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Matrix#Sinopse).
Em que pese o show de efeitos especiais, MATRIX reedita idias de outras criaes
artsticas anteriores (alm comportamentos culturais representativos. Notamos, por exemplo, o tom
das Histrias e Quadrinhos das graphic novels (expresso nos cenrios apocalpticos),. a ao
excessiva dos anims japoneses, a pancadaria dos filmes de kung-fu. Os agentes (homens de preto)
foram inspirados nos guarda-costas do presidente americano John Kennedy. Por sua vez, a plula
vermelha, o coelho branco, o espelho que se liquefaz e muitas das frases ditas pelo personagem
Morpheus devem ser creditados a Lewis Carroll, o autor de Alice no Pas das Maravilhas. A obra
http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122816.shtmlhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ser_humanohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Intelig%C3%AAncia_Artificialhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Solhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Volthttp://pt.wikipedia.org/wiki/Energia_el%C3%A9tricahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Realidade_virtualhttp://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_XXhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Morpheus_%28Matrix%29http://pt.wikipedia.org/wiki/Keanu_Reeveshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Casulohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Messi%C3%A2nicohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Antiv%C3%ADrushttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ternohttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%93culos_escuroshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Terrahttp://pt.wikipedia.org/wiki/The_Matrix#Sinopse
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Neuromancer, de William Gibson, contribuiu com os cyberpunks (os cyborgs que se conectam
realidade virtual por um plug na nuca). Inclusive, esto l os hackers fazendo papel de heris.
5. A filosofia de MATRIX
Parece-nos que o objetivo fundamental de MATRIX explorar o tema da realidade
verdadeira confrontada com a iluso do cotidiano. Alis, a questo filosfica principal do filme
justamente esta: o que o real?
Olhe sua volta. Perceba os detalhes da sua cadeira, do lugar em que voc est, da
textura das suas roupas, do barulho ao fundo [...]. Parecem reais? Eles no poderiam
ser, por exemplo, uma simulao feita por um enorme sistema de inteligncia
artificial? Voc pode achar que no, porque eles sempre estiveram ali [...]. Mas
pense novamente. Existem muitas pessoas, muito inteligentes, que acham que isso
pode ser verdade. Para elas, o mundo talvez no seja como imaginamos. H at
quem acredite que temos 25% de chances de viver mesmo em uma simulao de
computador. Ou seja, talvez a trilogia iniciada em 1999 com o filme Matrix no
seja to despropositada quanto parece
(http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122816.shtml - Super
Interessante, 2003).
Nesse vis, o filme levanta uma gama surpreendente de questes filosficas, sendo que
algumas teorias encaixam-se perfeitamente em MATRIX, como a do filsofo grego Plato. Um
dilogo escrito por ele h quase 2 400 anos narra o mito da caverna, uma histria semelhante do
filme:
Imagine uma priso subterrnea em que as pessoas ficam amarradas ao mesmo
lugar desde a infncia e onde tudo o que conseguem ver so sombras das pessoas e
dos objetos que esto fora. O crcere to eficiente que eles nem percebem que
esto presos e pensam que o mundo mesmo aquele monte de sombras. Caso
sassem, estariam praticamente indefesos, as pernas no funcionariam, os olhos no
conseguiriam enxergar e at a mente se recusaria a aceitar o novo mundo. Seria to
chocante que muitos prefeririam voltar para a caverna e esquecer tudo aquilo
(http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122816.shtml - Super
Interessante, 2003). .
Ns humanos seramos iguais a esses prisioneiros, amarrados a um mundo de aparncias
que no refletem a verdadeira realidade. Assim como Morpheus (que pergunta a Neo se ele j teve
http://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122816.shtmlhttp://super.abril.com.br/superarquivo/2003/conteudo_122816.shtml
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um sonho to real a ponto de se questionar se era sonho ou realidade), tambm Descartes (apud Super
Interessante, 2003) confessa:
Quando penso sobre meus sonhos claramente, vejo que nunca existem sinais certos
pelos quais estar acordado pode se distinguir de estar dormindo. O resultado que
fico tonto e esse sentimento s refora a idia de que eu posso estar sonhando.
6. MATRIX e as religies
Outra rea fartamente explorada na trilogia foi o campo das religies:
Os humanos eram ignorantes do que no podiam ver. Havia muitas iluses, como se eles estivessem mergulhados no sono e se encontrassem em pesadelos. Eles estavam fugindo, perseguindo outros,
envolvidos em ataques, caindo de lugares altos ou voando mesmo sem ter asas. Quando acordam,
eles no vem nada. Ao deixar a ignorncia de lado, no estimam suas obras como coisas slidas,
mas as deixam para trs como um sonho. Essas palavras poderiam muito bem ser ditas por
Morpheus em um de seus discursos a Neo, mas na verdade so trechos do Evangelho da Verdade,
um manuscrito do sculo 4 encontrado em 1945 em um jarro enterrado no Egito. Ele faz parte de
um conjunto de manuscritos chamado Nag Hammadi, que descreve a crena dos gnsticos, um
grupo de cristos que viveu entre os sculos 2 e 5 e possua suas prprias escrituras, crenas e rituais.
a corrente crist que mais se assemelha Matrix.
Eles acreditavam que ns iramos acordar do mundo material e perceber que essa no era a realidade
verdadeira, afirma a professora de histria da religio Frances Flannery Dailey, do Hendrix College,
nos Estados Unidos (Super Interessante, 2003).
MATRIX faz diversas referncias Bblia judaico-crist. Neo, por exemplo, tido como
um messias que ressuscita no final do filme. Ele amigo de Apoc (apocalipse) e Trinity (trindade em
ingls). A ltima cidade humana, Zion, uma referncia a Sio, a antiga terra dos judeus.
Nabucodonosor, a nave de Morpheus, tem o nome do rei babilnico que aparece na Bblia.
Nenhuma religio, entretanto, possui tantas referncias na trilogia quanto o budismo, cuja
idia de samsara ou maya afirma que as nossas vidas no passam de uma grande iluso montada
pelos nossos prprios desejos4. Uma prova dessa ignorncia est no fato de que as pessoas tratarem
as iluses como se fossem reais. Uma vez superada a iluso, atinge-se o nirvana, um estado que as
4 Segundo a Revista Superinteressante (2003), essa idia foi retratada no filme por uma rede de computadores que liga
as percepes dos indivduos, fazendo que eles reforcem entre si a iluso de um mundo que no existe, conforme
relata a historiadora Rachel Wagner, da Universidade de Iowa, que, assim como Frances Dailey, autora de um texto
relacionando o filme s religies.
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palavras no podem descrever, em que a noo de indivduo se perde na unidade divina. Em uma
das cenas do filme, Neo encontra uma criana com trajes de monge budista, que entorta uma colher
com a mente. O segredo, diz a criana, saber que a colher no existe.
7. MATRIX e as cincias futuristas
Ironicamente, as prprias tecnologias usadas em MATRIX-arte podem dar origem aos
primeiros prottipos do que seria a MATRIX-pragmtica. Por exemplo, a agncia de pesquisa
militar do governo americano, a DARPA, pretende utilizar a mesma tecnologia de MATRIX para
criar simulaes de campos de batalha mais envolventes. Outras tecnologias que aparecem no filme
(computadores inteligentes, bem como a capacidade de se injetar informaes diretamente no crebro
humano) podem estar ao nosso alcance em poucas dcadas, segundo pesquisadores como Ray
Kurzweil, um dos mais renomados estudiosos de inteligncia artificial. A capacidade (j projetada)
de analisar o crebro humano em seus mnimos detalhes e reconstru-lo artificialmente permitir a
construo de mquinas andrides (que possuem vrias caractersticas humanas), alm de misturar
neurnios a circuitos eletrnicos para que ambos possam trocar informaes.
DESCONSTRUINDO O DISCURSO DE MATRIX
Vimos que, no cenrio de MATRIX, o bem a realidade concreta e o mal a realidade virtual.
Uma estranha e inquietante alegoria, cujo objetivo mais imediato manifestar uma evidente oposio
imerso nas redes digitais, quando o corpo parece inerte, adormecido e a mente est
hiperativada5. Eis que MATRIX descreve um futuro em que as mquinas mantm a humanidade
presa a uma enorme simulao da nossa realidade. Como garantir que no vivemos na MATRIX?
Por enquanto, a resposta , simplesmente, que no h resposta6.
5 Como se isso no acontecesse tambm quando imergimos na leitura de um livro impresso ou na telona e telinha do cinema e da TV.
6 Alis, a produo de MATRIX esforou-se bastante para complicar a distino entre sonho e realidade, atravs da
tcnica chamada de cinematografia virtual, que simplesmente elimina a diferena entre o que foi filmado no mundo real
e o que obra do computador. O modo convencional de simular objetos com computao grfica mont-los de dentro
para fora: primeiro fazer o esqueleto, depois cobri-lo com texturas e da aplicar a iluminao. Essas imagens, vistas pelos
olhos humanos, parecem, no mximo, um videogame melhorado. A equipe de Reloaded e Revolutions usou uma
abordagem diferente, de fora para dentro. Ela filmou os atores utilizando, ao mesmo tempo, cinco cmeras de ultra-
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Dentre os possveis discursos de MATRIX, detectamos a o discurso do medo, do temor
generalizado do avano das mquinas sobre o humano, temor esse que alimentado por uma
concepo das mquinas como irredutivelmente estranhas ao humano (SANTAELLA, 2004, p.
128). Alis, essa angstia diante da tecnologizao da vida humana no nova, pois parece ter
perpassado todas as etapas civilizatrias. O prprio cinema da era pr-digital nos traz outras
amostragens desse tipo de discurso. O imortal Carlitos, por exemplo, inaugurou o temor dos tempos
modernos atravs das cenas das engrenagens do mundo industrial triturando o operrio. O filme
2001 - Uma Odisseia no Espao prenuncia sombriamente a saga das viagens espaciais, atravs de
uma nave inteligente que, num delrio de loucura, no mais obedece ao comando humano, matando
vrios tripulantes. Ao final, decide vagar indefinidamente, sem rumo, pelo espao, levando consigo
o que restou da tripulao.
Quando se liberta, porm, do poder absoluto da mensagem mtica, um outro discurso se
impe, obrigando-nos, pelo menos parcialmente, a desconstruir a discursividade cartesiana presente
em MATRIX e em outras alegorias que marcaram poca. O prprio filme acha-se repleto de
mensagens sutis de que a mquina jamais controlar o homem. Em termos filosficos, temos,
segundo Plato, que a sada est na filosofia, na educao e na iluminao. Os conselhos de Plato
so, alis, os mesmos que saem da boca de Morpheus para Neo: somente se chega l atravs de um
doloroso processo de autoconhecimento que, uma vez conseguido, torna a pessoa sbia, justa e capaz
de discernir a realidade da iluso com a mesma facilidade com que Neo se desvia das balas.
A religio mais taxativa: para os budistas (assim como para Morpheus), o caminho para a
salvao a transcendncia, a busca pessoal pela iluminao. No entanto, esse caminho no pode ser
ensinado: Buda no se cansava de alertar os seus seguidores: Vocs prprios devem fazer o esfors.
Da mesma forma, Morpheus insiste com Neo: Estou tentando libertar sua mente, Neo. Mas eu s
posso lhe mostrar a porta. Voc quem tem que atravess-la.
A cincia, como j dito, acredita que h 25% de probabilidade de que MATRIX possa
existir. E da? indagam alguns cientistas em suas argumentaes. Embora haja muita dvida sobre
definio, capazes de captar at os poros e defeitos da pele. Depois jogou todo esse material em um software que montou
a cena em trs dimenses. Os diretores puderam, ento, escolher vontade o ngulo e o movimento da filmagem. O
resultado foi o que vimos. Em uma das cenas de Reloaded, por exemplo, Neo luta contra cem cpias de seu maior
adversrio, o agente Smith, todas geradas por computador. Caso esse enquadramento utilizasse uma cmera convencional,
os movimentos em arco obtidos fatalmente destruiriam os equipamentos de filmagem (Super Interessante, 2003).
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se possvel reproduzir artificialmente a conscincia, certamente que um crebro artificial feito com
tecidos biolgicos pode ser consciente, como afirma o psicobilogo Victor S. Johnston (2000), da
Universidade do Novo Mxico, nos Estados Unidos, acrescentando que a nossa conscincia uma
espcie de realidade virtual, ou seja, o mundo da nossa conscincia uma grande iluso.
Concretamente falando, segundo o autor, o que existem so ondas eletromagnticas de determinadas
freqncias que so captadas pelos nossos sentidos e interpretadas pelo crebro. Por exemplo, a
percepo de um alimento podre se nos apresenta com um visual esquisito e um cheiro fedorento.
Com isso, o evitamos mesmo sem conhecer as bactrias que o contaminam.
Da mesma forma, a tristeza pela perda de algum, a gostosura do chocolate, o prazer sexual,
tudo traduzido em ondas eletromagnticas que percebemos como cores, cheiros, gostos ou emoes
atravs de nosso crebro consciente. Assim, MATRIX pode ser real, ou seja, possvel que dia
inventemos essas conscincias simuladas e universos virtuais inteiros. Alis, j estamos a caminho
de faz-lo atravs da Realidade Virtual (RV)7. Dessa forma, h chances de algum j ter feito isso
antes de nossa civilizao. Talvez fssemos uma dessas simulaes. Quem o garante o filsofo
Nick Bostrom8 (apud Super Interessante, 2003), da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que
trabalhou com a possibilidade de um dia criarmos programas de computador que tenham conscincia.
Afinal, neste mundo tudo um grande computador, no sentido lato do termo. Qualquer
processo pode ser reduzido a operaes binrias mnimas e traduzido sob a forma de sim ou no,
zero ou um, existir ou no existir, isto , igual ao tipo mnimo de informao utilizada pelos
computadores, os bits. Tudo o que existe no Universo segue essa lgica de processamento. Assim, o
que chamamos de realidade surge, em ltima anlise, de questes binrias como as que o computador
processa. O universo , na verdade, um enorme computador, segundo o fsico John Archibald
Wheeler (apud Super Interessante,2003). Essa teoria, inclusive, deu origem cincia da fsica
digital, que descreve todos os fenmenos fsicos moda dos bits (sim/ no; zero/ um; existe/
no existe). Se tudo for mesmo feito de bits, o Universo poder ser uma enorme simulao,
infinitamente mais potente que MATRIX.
7 A partir do conceito de que o virtual no se ope ao real, Pierre Lvy acrescentou uma nova dimenso realidade
antropolgica vigente, propondo o real-virtual. Para o autor, o virtual no se ope ao real, mas sim ao atual:
virtualidade e atualidade so apenas dois modos diferentes da realidade: ainda que no possamos fix-lo em nenhuma
coordenada espao-temporal, o virtual real. (...) O virtual existe sem estar presente (LVY, 2003, p. 47).
8 de Bostrom o palpite de que as chances habitarmos um mundo virtual estejam em torno de 25%.
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Entretanto, mesmo que o nosso mundo seja apenas uma realidade simulada, possvel que
nossa vida no mude tanto. A simulao da existncia seguiria o mesmo fluxo normal,
continuaramos bombardeados pelos acontecimentos globais, trabalhando, comendo, dormindo,
guerreando, destruindo, construindo, preocupando-nos, emocionando-nos, amando, odiando ...
vivendo, enfim. Essa uma das teorias do filsofo francs Jean Baudrillard (1991), o nico citado
em MATRIX, autor do livro Simulacros e Simulao, onde Neo esconde os disquetes no incio do
filme. Dessa forma, depois de tantas lutas e reviravoltas, com o passar do tempo, Morpheus, Neo e
os demais rebeldes provavelmente perceberiam que a realidade que tanto lutaram para conquistar no
muito mais real do que a que viviam em MATRIX. Por ironia, talvez Morpheus (cujo nome o
mesmo do mitolgico deus grego que patrocinava o sono) fosse o nico adormecido (iludido) com
a realidade dita real.
CONSIDERAES FINAIS
Quando Lewis Carrol nos conduziu (a Alice e a ns, leitores) ao Pas das Maravilhas,
percebemos que essas maravilhas tambm tinham o seu lado amedrontador. O bosque onde as
coisas no tm nome de Carrol (apud RIBEIRO, 2005, p. 93) faz a pequena Alice se perder, ou
melhor, perder a sua identidade. Da mesma forma, o computador e suas tecnologias tm-nos roubado
tambm a identidade subjetiva: ali, somos apenas um login e uma senha. Ali, podemos trocar de
nome, de perfil, podemos nos inventar da forma que quisermos. Ali podemos, ainda, criar a nossa
prpria verdade, qualquer que ela seja. Atravs dos Wikis, podemos, inclusive, desconstruir os
enunciados dos outros, colocando e retirando o que quisermos. Inclusive, podemos destruir tudo,
deletando a voz do outro. Isso nos amedronta, porque pe abaixo o nosso velho mundo, porque
pode arrasar a autoridade e as certezas cientficas, alm de, aparentemente, nos deixar merc de
uma mquina que parece muito mais inteligente do que ns.
Alice hesitou em entrar nesse bosque, como ns o fazemos hoje diante das novas tecnologias
digitais, por medo do desconhecido, do novo, de no poder voltar mais (RIBEIRO, 2005, p. 93).
Entretanto, a nova gerao (a gerao Net) nem fez como Alice: no hesitou um instante sequer.
Mergulhou fundo, de corpo e alma no mundo digital. Para o bem ou para o mal, no h como retornar,
sem regredir Idade da Pedra. s vezes bem, s vezes mal utilizadas, as novas tecnologias tornaram-
se uma imposio do avano cultural. No temos alternativa, nossa humana misso adentrar o
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bosque das novas tecnologias. Nesse bosque, quem sabe, possa acontecer o resgate da identidade e
da auto-estima do homem(RIBEIRO, 2005, p. 93), convertendo-o num instrumento de libertao.
Que no nos falhe a coragem e a conscincia!
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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JOHNSTON, Victor. Why We Feel . EUA: Perseus, 2000.
LVY, Pierre. Cibercultura . 2 ed. So Paulo: Editora 24, 2003.
RIBEIRO, O.J. Educao e novas tecnologias: um olhar para alm das tcnicas. In: COSCARELLI,
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