Quem tem medo da arte contemporanea? Fernando Cocchiarale, 2006
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QUEM TEM MEDODAARTE
CONTEMPORNEA?
Fernando Cocchiarale
FU NDAO JOAQUIM NABUCO
E D IT O R A MASSANGANA
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ISBN 978-85-7019-446-6 2007 Fernando Cocchiarale
Reservados todos os direitos desta edio. Reproduo proibida. mesmo parcialmente, sem autorizao da Editora Massangana da Fundao Joaquim Nabuco.
Fundao Joaquim Nabuco. Editora Massangana. Av. Dezessete de Agosto, 2187. Casa Forte. Recife. Pernambuco. Brasil. CEP 52061-540. Linha direta (81) 30736321. Vendas (81) 30736323. Tele fax (81) 307.36.319. www.fundaj.gov.br
PRESIDENTE DA FUNDAO )OAOUIM NABUCO Fernando Lyra DJRETOIA DO INSTITUTO DE CULTURA Isabcla Cribari CooRDENADOR-GERAL DA EDITORA MASSANGANA Mrio Hlio Gomes de Lima CooRDENADOR DE EDITORAo Sidney Rocha PROJETO GRFICO/CAPA Editora Massangana
1 a. reimpresso
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco)
Quem tem medo da arte contempornea; Fernando Cocchiarale- Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2006. 80 p.: il: ISBN 978-85-7019-44(>.6 1. Arte contempornea- arte 2 .. I. Cocchiaralle, Fernando. CDU 347.78
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Quem tem medo da arte contempornea?
Muitos. A maioria diz no entend-la, por ach-la estranha quilo que consideram arte. Outros, ainda que com conhecimento de causa, seja por conservadorismo, seja por preferirem a arte clssica ou por sua fidelidade terica (paixo, na verdade) arte moderna.
Curioso que medida que nos aproximamos da atualidade a incompreenso parece crescente. A arte prmoderna parece ser entendida mais facilmente do que a moderna e esta ltima menos arbitrria que a produo contempornea. Duvido que um leigo diga que entende a Mona Lisa saiba o que sfumato, seo urea, claroescuro. O que anatomia? O que a perspectiva? No entanto, essas informaes no participam necessariamente de fruio esttica.
Uma das prticas mais generalizadas do mundo institucional das artes, compreendendo a o chamado grande pblico, a necessidade de mediao pela palavra, para a produo de sentido. No me refiro aqui s teorias
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da arte, tanto histricas quanto filosficas, cuja generalidade e universalidade s poderiam ser produzidas pelo discurso. O que est em questo a busca ansiosa pela explicao verbal de obras reais e concretas, como se sem a palavra fosse-nos impossvel entend-las. A explicao assassina a fruio esttica, j que ao reduzir a obra a uma explicao mata sua riqueza polissmica e ambgua, direcionando-a num sentido unvoco.
O problema que essas pessoas usam um nico verbo: entender. Entender significa reduzir uma obra esfera inteligvel. Eu nunca ouvi ningum dizer: eu no consegui sentir essa obra. Como as pessoas tm medo de sentir, elas entendem, reduzem sua relao ao ato inteligvel e, por isso, esperam pelo socorro do suposto farol da opinio daqueles que sabem: historiadores, filsofos, crticos, artistas, curadores ... Quando mal feita uma visita guiada pode estimular esse tipo de coisas, a no ser quando o educador tem uma perspectiva menos formal e estimula o pblico a estabelecer suas prprias relaes. O artista contemporneo nos convoca para um jogo onde as regras no so lineares, mas desdobradas em redes de relaes possveis ou no de serem estabelecidas.
Hoje em dia a formao de pblico tornou-se uma preocupao essencial. O pblico passou a ser visto como
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algo a ser permanentemente formado, sim. Mas quando se fala em formao significa que se vai transmitir alguma coisa. H casos e casos. No d pra se ter uma regra a priori. Ento, se algum est movido por esse tipo de idia, tem que pensar muito bem se vai tratar o aluno como um receptculo, ou o visitante como um receptculo, se vai despejar suas idias sobre a arte e as obras ali. No devemos confundir a formao de um terico de arte, historiador ou esteta com aquilo que devemos fazer com o pblico.
Todos os museus hoje ou tm headfone ou textos plotados nas paredes da sala expositiva. Mas, o monitor, o educador ou mediador deve ser menos a pessoa que transmit..a contedos acabados e mais algum que estimule o pblico a estabelecer algumas relaes de seu prprio modo.
A arte contempornea no um campo especializado como foi a arte moderna. Centradas na busca de uma arte autnoma em relao ao universo temtico, particularmente aquele do naturalismo acadmico, as primeiras safras de artistas modernos pretendiam proteger o campo da arte das infiltraes de elementos literrios ou narrativos (temas). A partir do Impressionismo, a arte moderna passou a refletir e a investigar de modo crescente
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No mundo contemporneo, as noes de sujeito, de indivduo, de identidade, de unidade esto visivelmente em crise e possvel mapear vrios pontos em pocas diversas o prenncio dessa crise que no comea agora, j que estava em gestao no sculo XIX e hoje tornou-se, em alguns casos, parte do senso comum.
Se ns quisermos entender um pouco da arte contempornea ns no podemos fazer isso do ponto de vista estrito do especialista (o terico de arte: crtico, historiador, esteta), discutindo as obras que outros especialistas produziram (os artistas como especialistas nas linguagens que utilizam). Ambos restritos ao universo exclusivo da produo artstica, um mundo de especialistas. No que especialistas tenham desaparecido, mas sua autoridade e seu poder de vida e morte numa avaliao perderam muito espao, j que eles esto subordinados atualmente multidisciplinaridade, ou interface.
As identidades no mundo contemporneo no podem mais ser pensadas como uma plantao (onde cada planta tem .a sua raiz) porque ele est em rede. E no estou falando s da internet. Uma rede em que a identidade migra de um canto para outro. Mas de todas as relaes que antes supunham identidades estveis em todos os nveis. Hoje termos n identidades, e no mais uma s.
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Todas as sociedades desenvolveram noes de pessoa diferentes umas das outras. A nossa desenvolveu a noo de pessoa ligada ao conceito de indivduo sem diviso e como uma unidade. Se ele um artista, tem um estilo s seu, inconfundvel. A idia de estilo individual, a coerncia como um valor do artista no natural, mas uma inveno possvel do incio do Renascimento.
no Renascimento que a arte e artesanato se separam, se no na escala dos valores e das idias, ao menos na conscincia e na prtica dos artistas. Quando Leonardo da Vinci escreveu que a "pintura coisa mental", ele afirmava em primeiro lugar que sua arte no era uma arte mecnica, isto , meramente manual, tal como era ento classificada. Para ele, o uso das mos no era suficiente para reduzi-la esfera mecnica, j que a pintura, por causa da perspectiva, do sombreado e demais aspectos, possua questes racionalmente inteligveis que justificavam uma mudana de patamar. Ela devia ser pensada como uma das chamadas artes liberais em que o intelecto possua um
peso decisivo.
A afirmao do carter mental da pintura teve outras conseqncias. Ela afastava-se do artesanato (estritamente manual) e de seus esquemas autorais coletivos. Alm disso, tambm importantssima porque
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pode indiretamente at esclarecer certos aspectos da produo contempornea, na qual o fazer (manual) deu lugar inveno e idia. O ready-made de Mareei Duchamp poderia ser visto dessa forma. Se coisa mental o fazer no mais integra necessariamente o trabalho do artista.
A idia que as pessoas seriam unitrias, sem fraturas ou divises internas, indivisveis qual indivduos, est em crise. O que aparece no mundo contemporneo a possibilidade de uma nova noo de pessoa, fragmentria. A gente pode falar disso de vrias maneiras, mas eu gostaria de voltar a essa investigao do indivduo que tem a ver com a noo de unidade que absolutamente familiar a todos ns at hoje. Tenho certeza de que at os mais jovens quando definem uma pessoa como ntegra querem dizer que ela inteira. Mas integridade em si no qualidade de ningum.
Tradicionalmente a unidade foi pensada qual algo que emana, no caso da nossa condio, de dentro para fora, e plasmada como personalidade ou como estilo de dentro para fora, alguma coisa que venha do interior para o exterior. Mas, no mundo das trs ltimas dcadas, tudo o que aparece como unitrio fruto de um processo exteriorizado de montagem ou de edio.
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Indissocivel da noo de identidade, a noo de unidade presidiu todos os processos cognitivos, dos mais intelectuais aos ticos e polticos desenvolvidos no Ocidente pelo menos nos ltimos 2500 anos. Na Grcia clssica o pensamento filosfico orientara-se para a busca das qualidades permanentes que especificavam um conjunto com o objetivo de defini-las. Imaginem o espanto de um homem daquele tempo ao olhar para um mundo onde tudo se movia e se transformava, no s as coisas em relao umas s outras, mas cada uma delas tomadas em si mesmas.
Algumas dessas transformaes so observveis com facilidade como, quando, por exemplo, uma semente germina em quinze dias; outras necessitam de uma longa espera, como aquela em que percebemos as transformaes de um beb at a fase adulta. Alm de todos sermos diferentes uns dos outros, tambm o somos em ns mesmos, se nos compararmos com o que j fomos em outros momentos de nossas vidas.
Como se pode afirmar que para alm do movimento, da mudana e da transformao de tudo percebida pelos sentidos existem traos permanentes? E essa unidade de ordem conceitual ou real? So perguntas que os gregos faziam e que responderam de diversas maneiras.
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X i I og ravu r a de Albert Drer.
Para Gilles Deleuze, por exemplo, um dos filsofos mais importantes do sculo XX, a filosofia - e eu, sem qualquer dvida, poderia acrescentar a cincia tambm - busca reduzir a pluralidade unidade; reduzir, por exemplo, essa pequena amostra que somos ns, to diferentes j uns dos outros, a um nico conceito que o conceito de homem.
O conceito de homem teria de abranger todos os homens que existiram e ainda vo existir, desde o incio at o fim da humanidade. um conceito que no leva em
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considerao quaisquer de nossas caractersticas pessoais especficas, sejam elas tnicas, de aparncia fsica, cultural, religiosa, social ou poltica. Ele universal porque concentra-se apenas num trao (ou em poucos traos) comum a toda a nossa espcie. Por exemplo, na conhecida definio de Aristteles, o homem um animal racional. Definio que se aplica a todos os homens porque no se detm em nenhum deles.
Insisto na idia de que o indivduo uma possibilidade histrica. Evidentemente, o mundo do indivduo no um mundo de liberdade (isto uma iluso infantil quase), mas, no mundo em que essa noo de indivduo se desenvolve, a partir da Renascena, surgem problemas em decorrncia da concepo de pessoa como indivduo, concepo que, passo a passo, ao longo de vrios sculos, valoriza na vida scio-cultural as tendncias, gostos e opinies individuais, fato indito na histria humana. Como num mundo de opinies (eu acho, eu no acho ... ) ficam os conhecimentos terico-cientficos?
O conhecimento no algo que um indivduo acha que uma coisa e outro acha que outra: o teorema de Pitgoras no um problema de opinio, mas algo comum a todos ns, como tambm o so as leis fsicas, ou uma tbua de elementos da qumica.
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Num mundo onde cada um acha uma coisa, como que ficaria a esfera universal e comum do conhecimento, sobretudo o da cincia? Esse problema vai se manifestar progressiva e agudamente a partir do Renascimento, quando, por exemplo, surge a funo autoral com muita clareza.
Hoje em dia fala-se muito da crise do sujeito. Com isto, a tendncia reduzirmos a nossa compreenso da crise do sujeito crise do indivduo. Mas o indivduo apenas uma das esferas do sujeito que est em crise.
A partir de Descartes e, sobretudo depois de Kant, surge uma outra noo de sujeito, que no , ao contrrio do que possa parecer, individual, mas comum a todos ns. Ao lado de nossas crenas e tendncias pessoais esta instncia ou funo de sujeito cognitivo permite-nos aprender fsica, qumica ou matemtica. Portanto, ao nvel filosfico, a noo de sujeito diferente da idia de indivduo. o nosso lado universal.
Para Descartes, as cincias tinham um grau de desenvolvimento muito desigual, encontravam-se em nveis muito diferentes. Seu projeto era o de fundar uma nica cincia - a Mathesis Universalis - que se ramificasse e se desdobrasse em todas as outras. Essa foi uma das principais tarefas de sua filosofia. Nas Meditaes ele se
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prope a impugnar pela dvida todos os tipos de conhecimento ento vigentes, para verificar se algum deles resiste sua impugnao. Inicialmente, pe em dvida os sentidos, em seguida as cincias da natureza, depois as matemticas, at que chega a uma primeira certeza. Se tudo est sendo posto em dvida, ele tem uma primeira certeza: no pode duvidar que algum duvida, e da passa para a famosssima afirmao cogito ergo sum - "penso logo existo".
O penso logo existo o primeiro passo que se d no restabelecimento de uma certeza comum humanidade porque o indivduo e os valores que emanam de sua existncia histrica (eu acho) j esto em curso. A esse penso cartesiano a gente chama de sujeito tambm e, no caso, no tem nada a ver com a esfera das vivncias pessoais; ao contrrio: o sujeito cartesiano funda-se na idia de uma substncia pensante, supra-individual, mas comum a todos os homens, que nos abre os caminhos para partilhar qualquer conhecimento objetivo.
Cerca de 140 anos mais tarde, Kant props uma noo de sujeito no mais fundada em razes metafsicas, mas como uma funo inerente prpria faculdade de conhecer, que se impe ao mundo, reconstruindo-o. O conhecimento seria, pois, antes construo do que a descoberta de algo
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j dado empiricamente. A noo de sujeito cognitivo (aquele que conhece) que predominou em grande parte das teorias do conhecimento posteriores de origem kantiana.
Assim poderamos explicar, por exemplo, porque a pesquisa de um cientista no morre com ele. Quando morre um fsico, seu pensamento e trabalho podem continuar a ser desenvolvidos por seus assistentes ou at mesmo por outros fsicos porque se trataria do trabalho cognitivo de um sujeito e no da expresso de vivncias e idiossincrasias pessoais. O sujeito uma instncia supraindividual, e que torna qualquer homem, individualmente falando, passvel de compreender qualquer coisa que seja da esfera de sua humana condio.
Ora, o mundo contemporneo no s nasce com o indivduo em crise, como sujeito cognitivo, tambm em crise. Foucault, sobretudo, trabalhou criticamente a idia de sujeito, tal como foi definida plenamente h 200 anos. O campo de trabalho de Foucault um campo hbrido, uma colagem. Sem a unidade de campo de um filsofo tradicional. Lembro-me que, quando eu estava na graduao em filosofia, vrios professores diziam que Foucault no era filsofo, mas um socilogo, porque seu objeto no era propriamente filosfico. Isso mostra que ele uma das expresses dessa crise do sujeito unitrio
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facilmente reconhecvel em sua especialidade.
Costumamos exigir de um crtico de arte imparcialidade para que ele seja justo. Crtica vem do grego, krsis (separar, distinguir, escolher, julgar), origem das palavras crise e critrio. Nisso est implcita a idia de que algum s pode criticar se no estiver envolvido com a situao a ser criticada ou se no tomar partido explcito.
Entretanto, ao contrrio disso, se observarmos o perodo ureo da crtica de arte, o ps-guerra (os americanos Clement Greeberg e Harold Rosenberg, o argentino Jorge Romero Brest e o brasileiro Mrio Pedrosa, apenas como exemplos), veremos que a melhor crtica foi justamente a que tomou partidos e defendeu posies e tendncias. Os melhores crticos foram todos parciais.
Mas isso contradiz a idia de alteridade, de separao que se manifestaria em todas as esferas de atuao do sujeito, separao que garantiria sua iseno. O sujeito tem que estar separado do objeto de seu conhecimento porque ele possui uma funo ativa diversa do campo de conhecimento para o qual ele se volta e que ele constitui como objeto de suas especulaes e construes.
A idia de coerncia estilstica emerge com muita fora quando o fazer (pr a mo na massa) desempenha na obra
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um papel muito importante. Por qu? Porque a se estabelece uma cadeia entre a coisa mental e o fazer e entre estes e os resultados (obras).
Por exemplo, no artesanato a autoria coletiva. Entendendo por autoria os esquemas e os repertrios que presidem certo tipo de tecelagem ou de cermica. Em Caruaru, por exemplo, embora depois de Vitalino muitos tivessem assumido a identidade autoral do artista plstico, os esquemas, os repertrios so mais ou menos comuns, coletivos.
Esse carter coletivo compensado por um processo onde o fazer quase individual, uma vez que diferentemente de um filme ou de uma fbrica de geladeiras, a diviso do trabalho pequena ou inexistente neste tipo de produo. Controlados em suas etapas essenciais por um nico arteso, os processos artesanais se definem a partir do exerccio e do adestramento da manualidade e no ao nvel da elaborao individual de esquemas de representao (Renascena) ou da inveno formal (Arte Moderna). Se por um lado a inveno limitada por princpios de inveno coletivos, por outro, essa limitao compensada por uma prtica na qual o corpo de um nico trabalhador controla todo o corpo do processo de produo artesanal.
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Num sentido oposto, os projetistas de um carro no precisam participar diretamente de sua produo para serem considerados autores do projeto. Do mesmo modo, um arquiteto ou designer tambm no precisa executar com as prprias mos aquilo que concebeu e desenhou. A autoria do projeto suficiente para torn-los autores, ainda que nem arquiteto ou designer faam, com suas prprias mos, tijolo por tijolo, pea por pea, o edifcio ou o produto por eles projetados.
Afastamo-nos da produo artesanal nos ltimos duzentos e poucos anos. Isso certamente teve mltiplas conseqncias. E eu no falo disso numa perspectiva apocalptica, ao contrrio, eu acho que tudo pode ser bom dependendo do uso que se possa fazer dessas coisas.
Quando o homem passou a produzir bens utilitrios no mais a partir da habilidade da manual, mas por meio de mquinas-ferramentas, houve uma expanso e multiplicao dos produtos sem precedentes, mas no devemos nos esquecer de que a essa multiplicao correspondeu outra, no menos importante, que foi a multiplicao da prpria espcie humana.
Se a gente pensar no perodo que vai do incio da Revoluo Industrial, no sculo XVIII, quando foi inventada a primeira mquina-ferramenta, o tear hidrulico,
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at agora, veremos que a populao da terra, que tinha ento algumas centenas de milhes de habitantes, aumentou para os seis bilhes atuais em duzentos anos.
A industrializao tambm condenou o artesanato. No que se refere produo de imagens, a fotografia veio substituir a mimesis ou a representao clssica como o primeiro meio no artesanal de produo de imagens, depois vieram o cinema e, mais recentemente, o vdeo. De qualquer maneira, nada do que est acontecendo, nos
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A Torre Eiffel! em construo e, na pgina seguinte,
a Torre Eiffel! construda.
ltimos quarenta anos, como um interruptor no qual, do escuro, passamos para o claro num toque.
Se a inveno ou a idia que qualifica a autoria (coisa mental) o artista no mais precisa, necessariamente, fazer sua obra com as mos. Essa uma possibilidade conquistada desde a apropriao duchampiana e do objet trouv surrealista. Sobre o abandono do fazer e sua defesa, Kandinsky, em carta escrita para Andr Dezarrois, em 1937, comentava: "os construtivistas vem geralmente sua origem
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- bo cubismo que empurraram at a excluso do sentimento ou da intuio e que tentam chegar arte exclusivamente pelo caminho da razo, do clculo (matemtico ... exemplo do ponto de vista: Malevitch tinha como ideal a possibilidade de ditar sua nona pintura por telefone ao pintor de paredes- medidas exat
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Ningum desmonta uma moringa, pois desmont-la equivaleria a destmi-la, j que no foi montada, mas moldada. Quando um jovem nerd desmonta um computador, ele retorna etapa imediatamente anterior existncia do mesmo, quela antes ela montagem dos componentes (fragmentos) que deram origem ao produto.
Imagens editadas, textos editados pela imprensa so anlogos a uma nova modalidade de registro e criao ele imagens que o vdeo: o vdeo o melhor paradigma ela edio. So processos ele totalizao exteriorizados. Se existe a questo da unidade no mundo contemporneo, uma coisa que se d na chegada e no na origem. Ao mesmo tempo, os nossos fragmentos internos adquiriram autonomia e abriram outras possibilidades de inveno e criao por conexes, como nunca a humanidade teve anteriormente: a possibilidade ele celebrar a complexidade ela superfcie.
Tudo hoje em dia articulado no mundo. Mas importante caracterizar a diferena entre a montagem, tpica da modernidade e a edio, caracterstica da contemporaneidacle. Eu estou falando, respectivamente, de tecnologias elo sculo XIX (tico-eletro-mecnicas) e de tecnologias das trs ltimas dcadas do sculo XX (eletrnico-digitais).
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Por exemplo, Alexandre Gustave Eiffel, um grande mestre ela engenharia do ferro, contribuiu para a modernizao da arquitetura e das artes. A torre Eiffel um volume sem massa (no mesmo sentido empregado pelos mssos Naum Gabo e Anton Pevsner, no Manifesto Realista, de 1920). Basta que comparemos a Torre Eiffel com a Torre de Pisa, na qual massa e volume esto integrados. Portanto, se a engenharia elo ferro pende de tecnologias siderrgicas e novos mtodos ele constmo do fim do sculo XIX, ela referenda tambm a separao de volume e massa que est na raiz da escultura moderna constmtivista levantada como uma ponte no prprio espao. Engenharia e escultura se contaminaram e se nutriram desses processos ele montagem ou ele constmo que tem a ver com a lgica do produto industrial.
Da mesma maneira, a expanso da internet, o mundo em rede est influenciando decisivamente a vida cultural de nossa poca. Ns temos que pensar essas caractersticas do nosso cotidiano porque um dos grandes obstculos para entender a arte contempornea o fato de ela ter-se tornado parecida demais com a vida. como se, num processo de integrao entre arte e viela, a arte tivesse doado tanto sangue para a estetizao da vida que ela se desestetzou.
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O crtico belga Thierry de Duve diz que a pergunta prcontempornea (pr-moderna) era "isto belo?", ou seja, quando algum estava diante de um quadro sabia que era arte, mas no se era belo. Ele diz que no mundo atual o "isto belo?" foi substitudo pelo "isto arte"? Mas, na verdade, essa no uma pergunta que se faa s para a arte.
Certa vez, eu estava num museu da Inglaterra com uma amiga. De repente, ela me disse: "h duas moas agarradas ali". Mas eram um rapaz e uma moa. O rapaz estava de batom e unha pintada. Isso significa o qu? Significa uma indefinio de papis. A pergunta "isso so duas mulheres?" ou "isto um homem e uma mulher?" A gente faz essas perguntas o tempo todo porque no mundo contemporneo no mais possvel estabelecer e fixar identidades. O verbo ser, que o verbo da raiz, foi substitudo pelo verbo estar, que o da rede.
A minha av materna tinha os cabelos brancos, azulados por uma tintura. Para manter o cabelo penteado, ela colocava sobre a cabea uma rede quase invisvel. Sendo excessivo na licena potica poderia supor (ou quase delirar) que a cabea da minha av pode servir como exemplo de dois regimes identitrios opostos: os cabelos, cada fio com uma raiz, pensa identidades que poderamos chamar de verticais, do ser filosfico ao especialista; ou
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seja, cada coisa somente o que ela (o princpio de identidade aristotlico: A igual a A e diferente de B) e sua identidade se fixa porque sua raiz a fixa num nico lugar da realidade. Mas aqueles cabelos, cada qual com sua raiz, no se despenteavam porque sobre eles havia uma rede, e isto fazia com que na superfcie todos os fios se comunicassem entre si. O mundo contemporneo permite pela primeira vez que o ocidente possa pensar a complexidade da superfcie (rede), em lugar da superao da opacidade do mundo real pelo aprofundamento do conhecimento de suas causas profundas (raiz).
O modelo da rede no , como talvez muitos possam pensar, uma possibilidade da internet. Ao contrrio, a internet que foi demandada por um mundo que j estava em rede, no qual as pessoas assumem diversas identidades dependendo da conexo que elas estejam estabelecendo naquele momento.
No que isso no acontecesse no passado, mas a idia de indivduo e de identidade tinha tal fora que juiz era juiz at no bordel. Como se classifica, por exemplo, um travesti, casado, pai de filhos, como o que foi noticiado na mdia h poucos meses? O que ele ? Difcil de definir, mas muito comum hoje em dia. No se responde a essa pergunta. Nem faz sentido respond-la.
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Ns ocidentais pensamos sempre a corda por suas extremidades. Nunca definimos a corda pelo meio dela, ou por 2/4 ... Mas, provavelmente, no caso da arte, talvez uma boa definio devesse passar longe dessas polarizaes tpicas de nosso pensamento.
No texto Leonardo e os filsofos, publicado em 1929, Paul V alry diz que a experincia esttica seria algo diferente da inteligncia e, simultaneamente, diferente de nossas sensaes comuns, isto , essa experincia estaria situada em algum ponto entre a razo e a sensibilidade.
Definir qualidades permanentes muito fcil quando se pensa a noite e o dia. E o que se faz com o crepsculo e com a aurora, que so to parecidos e to opostos? Como que se define isso? Ns vivemos num mundo crepuscular ou boreal? No sei. Os dois. Como que eu dou nome? Como eu rotulo isso? Como que eu chamo a isso tudo?
Para que a gente entenda arte contempornea, devemos entender dois momentos que a precederam. Primeiro: o momento em que a arte se torna arte, o que ns achamos arte, que o Renascimento. Segundo: o momento em que uma outra arte, a moderna, rompe com a tradio mimtica renascentista. E por ltimo, ainda que panoramicamente, a gente pode traar algumas diferenas essenciais entre a arte contempornea e a arte moderna.
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Na verdade, h uma questo que se discute pouco, na chamada histria da arte. Aquilo que ns entendemos por arte - e que est deixando de ser - comea no Renascimento. Na verdade, falamos de arte egpcia, arte assria, arte babilnica, arte indgena, mas, provavelmente as culturas que produziram esses objetos que ns chamamos de arte, no os chamariam assim.
No texto clssico A obra de arte na poca de sua reprodutblidade tcnica, Walter Benjamin fala da mudana ocorrida na funo da arte durante a Renascena. Da produo simblica de objetos de culto, voltada para a religio e para o mito (valor de culto), chegou-se contemplao esttica (valor de exibio).
De objetos de f para a contemplao mundana, suscitada por sua beleza intrnseca. Com que sentimentos olhamos para a Pet de Michelangelo? Mesmo um catlico fervoroso tender a ver uma obra de arte e no um objeto de f. A Pet antes uma obra de arte do que uma imagem, devocional.
Em realidade, mesmo quando a temtica religiosa permanece (segundo Walter Benjamim, l discutindo o problema da aura, etc.), o que vai ocorrer que a obra de arte passa a ser alguma coisa feita por um autor com o destino e nica funo de ser contemplada. Fora do
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mbito da contemplao esttica ela no possui qualquer outro sentido.
Mas, segundo Walter Benjamin, ela herda do passado a evocao ritual que vem de sua origem mgico-religiosa. Num museu ou num teatro, por exemplo, as pessoas falam baixo como falariam num templo. Porque o teatro tambm nasce de rituais mgico-religiosos. Na Grcia Clssica, quando se sacrificava o bode (tragos), entoavam-se cnticos, da veio a tragdia e as pessoas que cantavam deram origem ao coro.
Toda a arte tem origem na religio. As nicas manifestaes simblicas que possuem registros ancestrais so as artes plsticas. Eu no sei como um grego cantava, pois ainda no havia partituras, mas eu sei como um homo sapiens de 30 mil anos atrs via porque suas pinturas ainda esto l. Nas paredes das cavernas.
A origem da arte mistura-se com a origem da vida simblica e da vida mgica ou religiosa. Um autor no muito cotado no Brasil Ernst Hans Gombrich. No sei porqu. Ele excelente, mas, todo mundo prefere o Giulio Carla Argan. Como se gostar de um nos fosse impedir de gostar do outro.
Os metafsicos que me desculpem, mas arte no tem nenhuma essncia. Tudo o que cultural inventado, etc.
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A idia de que o homem precisa de se expressar, precisa de realizar-se individualmente uma idia histrica recente. Data da inveno do indivduo, na Renascena.
No Egito no h expresso individual. A arte egpcia foi praticamente a mesma durante dois mil anos. Para Gombrich se no existe arte em todas as culturas - no sentido que ns conhecemos-, pelo menos, podemos dizer que todas as culturas possuem artistas. Porque mesmo em objetos cuja funo no era simplesmente contemplativa, eles usaram a simetria, puseram questes simblicas, ento, ele concorda que podemos falar de artistas desde a origem do homem. O que no podemos falar de arte porque sua funo muda, de quando em quando, historicamente. Portanto, ao invs de recusarmos a produo contempornea em nome das teorias artsticas modernas, deveramos procurar entender quais as razes que esto por trs de seu surgimento.
O Gombrich um autor que tem uma produo muito sofisticada. Ele de uma genealogia terica muito diferente da do Argan, que marxista. O Gombrich tem origem no instituto Warburg.
Na Alemanha, em Hamburgo, no sculo XIX, um banqueiro muito rico deixou uma fortuna e dois herdeiros. Um deles, que eu no sei se o mais novo ou o mais velho, chegou
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uma mscara africana pode ser linda, mas ela usada, por exemplo, pra adquirir poderes sobrenaturais.
Ento, a primeira funo desta mscara no seria a contemplao. Um "Cristo morto" numa igreja, que s exposto na Semana Santa, por exemplo, no arte porque se arte contemplao e ele feito pra ficar coberto a maior parte do ano, ento ele no arte no mesmo sentido em que a entendemos e sentimos. O que se poder ento dizer das pinturas, das mmias e das coisas deslumbrantes do Egito, que eram feitas para no ser vistas por ningum? Se elas so vistas hoje por vandalismo, pela profanao de tumbas.
Digamos que daqui a mil anos a gente pudesse visitar um museu e ver arte brasileira. Veramos na sala expositiva uma pintura do Iber Camargo, por exemplo, outra da Lgia Clark, junto com uma jarra de uma loja de design qualquer ao lado e uma geladeira Brastemp. Estranho no? Em que esse museu hipottico diferiria do Louvre que freqentemente expe nforas gregas ao lado de esculturas clssicas?
Certamente, um grego no achava uma nfora uma obra de arte. Uma nfora tinha uma funo pra guardar vinho, azeite. Para Gombrich o que chamamos de arte tem 500 anos e, eu diria, est acabando, est virando outra coisa que chamamos de arte contempornea.
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O fato que, entre o trmino da Segunda Grande Guerra at os primeiros anos da dcada de sessenta, toda inteligentsia das artes pensava arte como forma. A partir dessa poca, quando surge a primeira safra de artistas contemporneos, comearam, ainda que imersos na perplexidade e na dvida, as primeiras crticas interpretao formal. Podemos dizer que a produo contempornea comea com a Pop Art? Alguns diriam que ela se inicia no expressionismo abstrato americano da dcada de 1950. Mas, digamos que seja na Pop o incio da arte contempornea.
Tericos modernistas como Greenberg tambm tinham medo da produo contempornea. Recusaram-na porque os esquemas de interpretao de que dispunham no decodificavam aquela coisa esquisita que estava acontecendo, porque eles pensavam formalmente.
Teorias no pairam sobre transformaes histricas, por todos os perodos. A interpretao da obra de arte como forma e como linguagem foi determinada pelo tipo de obra que os artistas modernos fizeram ao longo das primeiras seis dcadas do sculo XX. No entanto, a tendncia de qualquer teoria projetar os sentidos especficos por ela produzidos, tanto para o passado, quanto para o futuro.
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O formalismo serviu com perfeio a Greenberg para produzir sentido sobre a obra dos expressionistas abstratos americanos, quais sejam: Pollock, Barnett Newman, Rothko, De Kooning etc. Hoje ela no serve para produzir sentido para coisa nenhuma, talvez apenas para o modernismo. Mesmo algum que queira falar sobre expressionismo abstrato hoje vai enfatizar aspectos que Greenbcrg no havia enfatizado.
No entanto, a obra do Pollock est a c estar por muito tempo: porque ele um dos gnios do perodo final da arte moderna sua obra, ao contrrio, ter uma sobrevida muito maior do que s teorias de Greenberg a seu respeito. No acreditamos mais em deuses egpcios hoje em dia, mas isso no faz com que nosso apreo pela arte egpcia diminua, s porque ela era regulada, sua poca, por normas de origem religiosa.
Se assim , as teorias caducam e as teorias da arte caducam mais do que qualquer obra. Nenhuma obra de arte se torna obsoleta. No se pode dizer que a cabea da Nefertite ficou obsoleta, mas posso dizer que a roda da biga que foi encontrada l junto com a cabea absolutamente obsoleta.
Alis, isso que digo est no manifesto neoconcreto de 1959. Ele afirma que se um neoconcreto tivesse de
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escolher entre a teoria de Mondrian e a obra de Mondrian, ficaria com a obra, que est viva e fecunda porque a obra tem sobrevida maior do que a teoria.
Uma leitura, uma interpretao, quer fixar significados que essencialmente no podem ser fixados para sempre. Ao surgirem novos tericos e novas teorias, outros repertrios e outros olhares seus enfoques mudam e acrescentam s obras significados anteriormente impensveis. Para os marxistas, por exemplo, a teoria explicaria tudo. O mundo de hoje, no qual uma empreitada intelectual de ordem teleolgica praticamente impossvel, deve ser desesperador para um marxista.
Na entrevista Os intelectuais e o poder, feita no incio dos anos 70, Foucault e Deleuze dizem que a teoria sempre a mediao entre uma prtica e outra, e uma prtica sempre uma mediao entre uma teoria e outra. Eles acabam com a polarizao entre teoria e prtica to cara aos marxistas. A teoria passa a ser no uma cosmoviso, mas um veculo. Se eu quero falar do barroco, eu no teria o menor problema em citar Wolflin, mas eu tenho que esquec-lo se eu quiser falar de arte contempornea.
Portanto, eu no posso ser um sujeito no mesmo sentido que resultou do Iluminismo (Kant) j que eu no mais possuo um instrumento unitrio, um monobloco que me
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explique o sentido geral da vida. A crise do sujeito se manifesta a tambm, ele no constitui mais uma funo universal, uma metaviso, no mais o produtor de um telas ao qual uma pessoa deva ser fiel o tempo todo. Isso no existe mais em nenhuma esfera. Aquela idia de fragmentao e de colagem de um mundo editado se manifesta at a. Tambm a teoria adquiriu historicidade.
Ainda assim qualquer teoria pra ser tratada com a mesma seriedade com a qual ns tratamos uma obra de arte. Renascentista, Moderna ou Contempornea, no importa, porque elas so to relativas ao perodo em que surgiram quanto a obra de arte, que eu diria, tem at uma perenidade que a teoria no pode possuir.
Quando eu falo de teoria aqui, estou falando das teorias da arte, da filosofia da arte, da sociologia da arte, da antropologia da arte ou de psicanlise, desses campos que chamamos de cincias humanas e sociais dentro dos quais sempre coexistiram diversas interpretaes. Algumas contraditrias entre si, sem que nenhuma das faces pudesse dizer "a minha verdadeira", a no ser por paixo, f ou crena.
O campo de produo de sentido das coisas que nos afetam no nosso dia-a-dia, inclusive a arte, no um campo com resultados unvocos, mas um campo de
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batalha entre leituras ou interpretaes s vezes at contraditrias.
No se pode cobrar do sculo XIX mais do que ele podia. Como o sculo XX, sobretudo atualmente, mostra que a natureza do jogo terico nas cincias humanas e sociais se d antes pela leitura e pela interpretao do que pela imposio de uma verdade. No h problema nenhum em dizer que essas teorias todas tm sua histria, so passveis de ser substitudas por outras mais interessantes.
Curioso que Michel Foucault, percebendo esse impasse terico descobriu, em 1969, Panofsky. Foi quase uma revelao para ele. O conceito panofskiano de imagem podia servir, percebeu Foucault, poderia superar o impasse a que havia chegado a leitura formalista da obra de arte e produzir um sentido especfico para a arte contempornea.
Uma natureza morta no para a Iconografia (ramo tradicional da histria da arte voltado para o tema ou mensagem, em contraposio forma, segundo Panofsky), uma imagem. J um clice com uma cobra enrolada uma imagem, desde que saibamos que ele o smbolo da farmacologia. Mas, para que eu saiba que uma cobra enrolada num clice o smbolo da farmacologia, algum tem que ter me dito isto. Porque aquilo que me dado a ver reduz-se a um clice com uma cobra.
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iconografia. As imagens produzidas pela arte contempornea desde a Pop, passando pelas mdias tcnicas, no poderiam ser validadas como emblemas ou smbolos compsitos entre olhar e conceitos de trnsito cristalino no corpo social como as imagens de que falvamos.
As imagens contemporneas so entronizadas pela mdia, pela publicidade etc, como, por exemplo, a menina vietnamita nua correndo de braos abertos numa estrada aps ser atingida por napalm, ou o beijo entre o marinheiro e a enfermeira registrados no fim da guerra por Robert Doisneau, ou ainda o Pato Donald e a Lindonia de Gerchman.
Foucault compreendeu ainda nos anos sessenta que as teorias formalistas no estavam mais aptas para capturar o sentido do que os novos artistas estavam produzindo. E para ele a iconologia pareceu-lhe ento um feliz contraponto para a interpretao formalista.
Wlflin, que um grande historiador da arte formalista, e viveu entre o fim do sculo XIX e a primeira metade do sculo XX, jamais escreveu sobre a arte moderna. A grande questo do Wlflin a passagem daquilo que ns chamamos de Renascimento para o Barroco, e que ele chama de evoluo do estilo linear para o estilo pictrico.
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No entanto, embora ele no fale nada a respeito da arte moderna, ao analisar o Renascimento como forma e o Barroco como forma, ele est sendo moderno do ponto de vista de sua perspectiva terica. O que eu quero dizer que os ismos no s se manifestam ao nvel da produo, mas h os ismos tericos tambm. Da a perspectiva de interpretao formalista no ser mais pertinente para a compreenso da arte contempornea.
Alguns de ns talvez no tenhamos entendido sequer a diferena do espao moderno para espao renascentista. Por isso talvez tenhamos medo da arte contempornea.
O valor da pureza no mundo moderno engendrou maravilhas como os trabalhos de Theo van Doensburg ou de Mondrian e produziu monstros como Adolf Hitler que tambm a buscava, s que em nvel tnico. O valor pureza informa tanto o racismo de Hitler quanto a beleza criada por Mondrian, Theo van Doensburg etc.
Mas vamos seguir esse repertrio essencial ao modernismo. No primeiro nmero da revista Art Concret lanada em Paris, no ano de 1930, Van Doesburg escreveu algo como: Na busca da pureza os artistas foram obrigados a abstrair as formas naturais que escondiam os elementos plsticos, a destruir as formas natureza e substitu-las pelas formas arte. Anos antes, Czanne
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afirmara que a "natureza deve ser vista atravs do cilindro, da esfera e do cone". H em comum nessas afirmaes uma idia quase platnica que supe que a natureza um mundo de aparncias que oculta uma estrutura geometrizada. Atingi-la seria como atingir a prpria essncia da visualidade e, portanto, da prpria arte.
Quando Gertrude Stein, poeta do incio do sculo XX, diz: "uma rosa uma rosa uma rosa", ela nos quer dizer: "no h simbolismo". Uma coisa restringe-se ao que ela significa.
Theo van Doesburg, no texto j mencionado, lanou idias muito parecidas com as de Stein. Para ele um elemento pictural s significa a si prprio. Ele pretendia lanar a forma esprito, que vem direto da razo. Pintura Concreta, porque a concretizao do esprito criador, e no abstrata, porque no partia da natureza. Uma mulher, uma rvore, uma vaca seriam naturais em estado de pintura? No. Uma mulher, uma rvore, uma vaca so naturais no mundo natural, mas em estado de pintura so abstratas, vagas, ilusrias, ao passo que um plano um plano, uma linha uma linha, uma cor uma cor, nem mais nem menos.
A prpria idia do kitsch vem associada a excessos decorativos que no tm a ver com a funo daquele objeto. Portanto, ao se interessar apenas pelo mundo das
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formas, em detrimento das imagens, a arte moderna est nos mostrando que busca um certo tipo de racionalidade e de funcionalidade essenciais que os devaneios simblicos da arte do passado impediam que fossem alcanadas.
Chega a ser curioso, por exemplo, ler um texto de Wlflin sobre o Renascimento, porque ele reduz o Renascimento ao estilo linear, a uma questo perspectiva, formal, e suprime uma srie de questes de contedo ou simblicas que eram de alto interesse para aqueles que gostavam de arte no Renascimento. A forma era ento somente um problema do mtier do artista, que tinha de decidir se a composio era em tringulo ou em trapzio, mas a reduo do problema da interpretao artstica ao problema da forma altamente conveniente para o modernismo.
Na verdade, a arte tornou-se linguagem para fugir da idia de uma obra sem contedo e s formal proposta pela arte abstrata. Ento ela passou a ser pensada como uma linguagem estruturada num sistema de signos. Como ela voltou com muita fora na arte contempornea a ser imagem, eu suspeito de que ela esteja deixando de ser linguagem. Porque nem tudo o que comunica linguagem.
Enquanto os artistas plsticos, com um sentimento de grande orgulho, investigavam a forma pura, o
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desenvolvimento tecnolgico de reproduo de imagens fotossensveis difundido sobretudo pelo cinema (e antes, a fotografia) passou a preencher o mundo de imagens que a arte moderna recusava produzir.
claro que muitos artistas sempre foram independentes. Um Volpi foi independente, um Milton da Costa foi independente, embora fossem independentes fazendo geometria. Porque era, digamos, o escopo da poca ou a abstrao informal, mais livre, etc.
O modernismo do ps-guerra tornou-se uma espcie de frum da alta especulao a respeito da produo formal, por exemplo, a gente sabe que, no momento em que a arte volta figurao, com a Pop, entre a velha academia figurativa pr-moderna e as imagens tcnicas da fotografia, da publicidade e do cinema, os primeiros artistas contemporneos no tiveram dvidas. Apropriaram-se das conquistas icnicas das tecnologias da imagem que a cultura moderna havia desprezado.
H poucos anos, tive um encontro que foi fundamental para a minha compreenso de uma nova noo de identidade em formao no mundo contemporneo: eu tinha de escrever sobre um pintor que iria expor umas quarenta pinturas, todas do mesmo tamanho e expressionistas, mas diferentes do expressionismo histrico
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e do neoexpressionismo alemes. Ele usava turquesa com rosa-choque, com verde limo e roxo. As telas tinham um cromatismo luminoso prximo paleta sino-japonesa. Mas, eram quarenta e tantos rostos absolutamente, impactantes, se no me engano, todos masculinos, e todos se chamavam Doutores, Dr. Isso, Dr. Aquilo ... Eu perguntei ao jovem artista quem eram esses Doutores e ele, sem qualquer dvida, hesitao ou ironia, disse-me que eles eram seus alter-ego.
Eu pensei, ento, ele tem 40 alter-ego que podem aflorar e que coexistem, neste momento, na parede. Estava, de fato, diante de uma pessoa fragmentada, o que no problema se a fragmentao no tiver uma origem patolgica. No falo de um caso psiquitrico, eu estou falando de uma pessoa produtiva, capaz de lidar e negociar com a fragmentao prpria e com a dos outros.
Senti ento que deveria remeter essa afirmao do artista reflexo sobre a unidade e a diviso, tal como vinha sendo formulada por pensadores como Foucault e Deleuze e no evidentemente do ponto de vista das disciplinas especializadas nesse campo, a psicanlise, por exemplo. Eu lembrei-me de histrias, de romances visionrios para o sculo XIX, uma vez que eram metforas do futuro, quer dizer que sem pretender ser predies terminaram por
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antever o que est ocorrendo no mundo contemporneo das ltimas dcadas. Lembrei-me primeiramente de Frankenstein ...
Todos ns sabemos que, na interpretao antropolgica mais corrente das pinturas mpestres, os homens prhistricos acreditavam que, se eles tinham o poder de produzir em imagem os animais que caavam, teriam igual poder na caada. Se eles podiam pintar um antlope, eles acreditavam que tinham a possibilidade do domnio efetivo do animal.
A origem da imagem est ligada aos rituais religiosos, dentro dos quais nasceu a arte, tem duas pulses muito fortes e contraditrias. Se examinarmos, ainda que rapidamente, algumas religies, sobretudo as do Deus nico, veremos que estas probem certos tipos de imagem, porque so tomadas como um imperdovel ultraje ao criador, Deus, que nos fez sua imagem e semelhana. Mas em outras religies, em certos ritos africanos, se algum com raiva de uma pessoa quer feri-la, pega uma mecha de seu cabelo e faz um boneco de seu inimigo. Um vodu que lhe permitir atingi-lo, ainda que distncia, causando-lhe todo tipo de mal. Ora, tanto as religies que probem imagens, quanto as que dela lanam mo, partilham de um mesmo temor ou da mesma crena, s que
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uma probe por excesso de zelo e a outra por excesso de licena. H uma relao conflituosa com a capacidade de inveno e produo de imagens.
O Frankenstein, no entanto, muito mais do que eram as imagens para o homem pr-histrico. Ele o primeiro homem constmdo pelo prprio homem. Diferentemente do mito, ele uma possibilidade da cincia (de fico). A figura do cientista louco absolutamente paradoxal, porque se o cientista o homem da razo - do penso - ele teria de ocupar, numa escala do pensamento humano, uma extremidade oposta do louco, que o homem privado disso tudo. O Frankenstein foi o primeiro homem editado na histria da humanidade, montado a partir de pedaos de outros homens. Antes da linha de montagem fordista, temse um homem editado, que surge provavelmente por uma atitude absolutamente sacrlega do Dr. Victor Frankenstein. Por desrespeito ele "matou" Deus (entre aspas porque Deus no pode ser morto) e por isso v seus entes mais queridos serem assassinados por sua criatura, o monstro que ele cnou ....
Estaramos em vias de criar ticas, estticas e polticas fundadas na nossa diviso, ao ponto funcionarem como alternativas tica, esttica e poltica pactuadas no Iluminismo (sculo XVIII) e que nos regeram at crise
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que deu lugar contemporaneidade l pela passagem dos anos cinqenta para os sessenta? Isso uma coisa que talvez possamos j vislumbrar em nosso cotidiano, embora repertrios culturais do passado dificultem essa percepo.
Na verdade, o mundo contemporneo ainda no
propriamente um mundo de homens editados, mas isso est sendo prenunciado com todas as letras, primeiro com os transplantes, depois com certas prteses, agora com a clonagem, no a clonagem de corpos, mas de rgos, as pesquisas sobre as clulas-tronco. Por outro lado, a idia de que possumos uma unidade psquica, individual, esfacela-se nos inmeros papis (afetivos, familiares, profissionais, sexuais, polticos, ticos e estticos etc.) que podemos nos encaixar.
O que est em questo agora no simplesmente o fim da unidade - o mundo contemporneo no prope o fim da unidade - mas uma outra noo na qual a unidade resultaria no de um ncleo interior profundo, mas da montagem, colagem ou edio de partes e fragmentos, anloga unidade montada de um produto industrial, de um filme ou de uma ponte de ferro, ou edio de um vdeo ou de um texto.
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Por razes que desconheo, a literatura do sculo XIX pde antever os sonhos do futuro em alguns romances. O curioso que, para o sculo XIX, todos esses livros causavam medo. Alguns dos mais acalentados desejos do mundo atual tm por origens esses pesadelos literrios dos ltimos 200 anos.
Antes mesmo da publicao de Frankenstein, escrito por Mary Shelley, e lanado em 1818, temos o Fausto, de Goethe, publicado em 1808. Sua interpretao costumeira soa maniquesta. Fausto trocou sua alma, vendida ao diabo, pela glria mundana, ou seja, pela leitura habitual, era o homem que podia ser bom, mas escolheu o mal histrico. Mas podemos ver Fausto de uma outra maneira. Como, por exemplo, uma tensa possibilidade de relacionamento entre nossas partes, uma barganha entre elas talvez. Seria um outro exemplo de anteviso da contemporaneidade mais de um sculo e meio antes de sua emergncia.
O mdico e o monstro (O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde) de Robert Louis Stevenson, lanado em 1886, trata da dualidade, da ciso de um indivduo, como uma idia inaceitvel para o mundo moderno da poca (uma idia aterrorizante). O tema da diviso do indivduo tambm tem um desfecho trgico, porque um dos lados deve prevalecer e outro destrudo para a unidade perdida
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ser restaurada. Novamente, h a uma proximidade perigosa entre cincia e loucura.
Aquele que tudo faz em nome da cincia e, por isto, ultrapassa limites ticos, flutua num ponto indeterminado entre sanidade e loucura: o prprio ttulo em ingls de O mdico e o monstro revelador: Dr. fekyll and Mr. Hyde. Se tirarmos as duas primeiras letras do nome de Dr. Jekyll, e lermos o que sobra, o veredicto claro: Kll the Hide, ou seja "mate o escondido". O outro deve ser eliminado porque eu sou um s (eu no posso ter um outro, um estranho, em mim).
Finalmente, dentre essas narrativas a mais difundida provavelmente Drcula, de Bram Stocker, lanada em 1897. Drcula est contaminado, e contaminar muitos mais, porque o vampirismo passa por contgio. uma coisa que se propaga como uma epidemia em rede, de uma forma rizomtica.
Portanto, a contaminao em rede (Drcula), a diviso da alma (O mdico e o monstro) e o homem editado (Frankenstein) so possibilidades absolutamente cotidianas e at desejveis, para ns contemporneos, mas, no entanto, no sculo XIX, s podiam encaradas sob a rubrica do horror.
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A contemporaneidade de uma obra estaria nos meios e nos suportes utilizados por um artista? Sim e no. Voc tem obras contemporneas realizadas com meios convencionais como a pintura e desastres registrados em mdias como o vdeo, inventado apenas h uns 43 anos. Porque uma pessoa que faa um vdeo de uma mulher na praia com um vestido de gaze branco e do outro lado um homem com uma cala arregaada de linho branco e camisa branca, correndo em cmera lenta um em direo ao outro, um dej vu descarado.
A arte contempornea pode estar em vrios lugares simultaneamente desempenhando funes diferentes. Mas, o principal de tudo isso so novos tipos de relao que ela nos faz estabelecer. O novo sujeito no ser epistemolgico como foi o intentado por Kant, mas esttico, um hbrido de contradies, porque o homem contemporneo precisa de um modelo positivo da vivncia da contradio.
Habituamo-nos a pensar que a arte uma coisa muito diferente da vida, dela separada pela moldura e pelo pedestal. Alis, a arte foi mesmo isso durante a maior parte de sua histria, pelo menos desde a Renascena. A idia de uma arte que se confunda com a vida muito difcil de assimilar porque os nossos repertrios ainda so
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informados por muitos traos conservadores, alguns deles pr-modernos.
Eu acho que a gente precisa ter um outro modelo onde a contradio seja positiva e o nico modelo desse tipo no Ocidente o do artista. O artista junta um rabo de peixe com um corpo de mulher e cria uma situao absolutamente verdadeira: a sereia. Junta um banco com uma roda de bicicleta e cria uma situao verdadeira, como fez Duchamp.
O nico lugar em que o Ocidente conseguiu tornar positiva uma situao que no lgica e que no plausvel foi no campo da arte e o mundo contemporneo busca o transbordamento desse modelo do artista para outras esferas como a teoria, os valores tico-polticos e morais, a legislao etc. O novo sujeito tem maiores condies de ser artstico do que epistemolgico (Kant). Da certos artistas trabalharem quase como cientistas. Quando um Barrio, por exemplo, registra experincias que no tm nenhuma importncia do ponto de vista terico-cientfico, como quando imprime o corpo de um peixe numa feira em Lisboa, para ver o que as pessoas acham, e registra isso.
Talvez o mundo contemporneo seja mais constelar, menos estrutural. Portanto, a produo de sentido se d atravs de processos de interpretao, e uma mesma
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realidade pode suportar vrias interpretaes, sem que isso gere contradio.
Diferentemente da arte moderna, a arte contempornea no possui um campo especfico especializado que nos facilitaria a empresa de design-la e domin-la por meio do conhecimento e da informao. Nenhuma diviso mais do conhecimento humano tem esse poder, isto no um problema exclusivo da arte.
Czanne se defrontou com certas questes que se abrem para todos os campos da arte moderna; Duchamp faz a mesma coisa com a arte contempornea, embora ele seja um moderno. S podemos reconhecer a arte contempornea se tivermos conhecimento de algumas coisas dos processos nela investidos.
Na verdade, quando eu escrevo sobre a arte contempornea eu procuro pensar no que uma obra tem, at porque da natureza das coisas no mundo contemporneo fugirem classificao em modelos fixos. Se eu no tenho um padro fixo para dizer arte contempornea, eu tenho dezenas de critrios, alguns contraditrios entre si, que so combinados e que tecem uma malha esgarada que caracteriza os textos atualmente.
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Embora antiqssima a hermenutica parece estar, outra vez, na ordem do dia. Claro est que esse retorno muito diferente daquilo que era praticado na leitura das escrituras sagradas durante a Idade Mdia inteira, quando havia uma interpretao analgica e vrias formas de interpretao previamente descritas e que orientavam algum no momento em que se ia interpretar um texto.
A expectativa de uma exatido, de uma preciso, de uma aplicabilidade que as cincias da natureza nos trazem, colocou a interpretao num patamar menos aceitvel do jogo terico, pois perdeu as foras que tinha para uma noo diferente, a noo de anlise, uma prtica ligada ao laboratrio. A interpretao permite a coexistncia com outras interpretaes. Claro, a interpretao nunca algo que se d na esfera do arbitrrio, do "eu acho", para se legitimar. Mas diferente, por exemplo, da lei de Newton, ou da fotossntese, que no se restrigem interpretao.
O fato que a crise das grandes teorias, a crise desses verdadeiros faris teleolgicos que tudo iluminavam vai culminar com uma redescoberta e uma revalorizao, uma retomada em novas bases (bastante subjetivas, posto que baseadas na subjetividade e na erudio de quem est interpretando) da questo da hermenutica, da arte de interpretar. Ela hoje parte do mtier crtico-curatorial.
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Eu no diria mais que existe crtico de arte, a funo crtico de arte foi substituda por uma funo contempornea, curador, que diferente da do crtico, porque o crtico era aquele que pegava um produto recm-lanado, e s vezes de uma maneira arbitrria ou no, ele tinha um poder, pelo menos naquele momento, de dar o veredicto de vida e morte, se aquilo era bom, ou se no era bom, se era arte, ou no era arte.
O curador no mais atua nessa esfera, num tipo de tribunal. Porque o crtico, sobretudo na dcada de 1950, poca do grande perodo da crtica de arte com Mrio Pedrosa e Ferreira Gullar, por exemplo, no Brasil; Clement Greenberg e Harold Rosemberg, nos Estados Unidos; Pierre Restany na Frana etc .. tinha esse poder judicante a respeito do que bom e do que mal, pois dispunham de teorias gerais que lhes emprestavam uma objetividade que de fato no tinham.
Ningum precisava de um curador no perodo modernista. A primeira exposio neoconcreta, realizada no Museu de Arte moderna do Rio de Janeiro, em 1969, no teve curador (alis, nehuma exposio da poca o tinha): todos os neoconcretos sabiam que o eram, por isso no preciavam de um curador para conceituar o evento e escolh-los, pois a tarefa era de sua prpria alada. Fayga Ostrower, por exemplo, no era neoconcreta e, por isso,
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no participou. No somente isso. Tenho certeza de que ela sequer ficou chateada ou sentiu-se excluda, pois, por sua prpria deciso no aderira ao movimento neoconcreto.
O mundo contemporneo no mais valoriza a pureza, inclusive estilstica, buscada obcessivamente pelos artistas modernos em nome da interface, da multidisciplinaridade e logo a contaminao, a hibridizao e o ecletismo. O mundo contemporneo absolutamente impuro e isto para ele um valor. Porque se impureza conviver com a diversidade -seja ela tnica, poltica, sexual etc. -ela tornou-se um valor positivo da contemporaneidade. Prefiro mil vezes a impureza que me pe convivendo com o diferente, pureza que o exclui. O mundo contemporneo cheio dessas possibilidades. Mas a falta de um objetivo ou utopia comuns como foram o marxismo e a psicanlise levam a um contraponto terrvel dessa disponibilidade para com o outro.
Fundamentalistas de todos os teores, neonazistas, pit boys que saem dando cacetadas por a querem a pureza, eles certamente no suportam a diferena. A Klu Klux Klan tambm no gosta.
Considerando nossa realidade social e histrica atuais o que haveria de estranho quando um artista contemporneo
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faz uma instalao com materiais retirados da prpria vida como jornais, objetos apropriados do circuito industrial (e mesmo artesanal) de produo de utilitrios, coloca s vezes at produtos orgnicos, ele est dialogando com coisas muito mais importantes da vida do que cometendo a picaretagem de querer ser diferente a qualquer preo.
Os ismos eram o ponto onde o indivduo fazia mediao com a histria. Se Lygia Clark diferente de Hlio Oiticica, este de Lygia Pape ou de Franz Weissman e Amlcar de Castro, eles se inscrevem todos na histria como neoconcretos, e a escolha de ser neoconcreto dependeu de sua prpria escolha.
Atualmente, a maioria dos jovens artistas supe que sua obra decorre apenas de suas vivncias e experincias pessoais. Desse ponto de vista ficaramos aqum da histria, j que, se ficamos na esfera individual, subjetiva, estaramos autorizados a fazer, no mximo, uma psicologia da arte. Para que se faa histria da arte, necessria a insero desse indivduo numa coletividade mais ampla, na qual ele no quer ou no sabe se inserir. Eu diria que no quer e no sabe porque num mundo no qual o sujeito, sua obra e especializao esto em crise no mais possvel a existncia de ismos tal como ocorria no mundo moderno. A produo contempornea no pode mais ser agrupada
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em torno da adeso a princpios plstico-formais, uma vez que, ao transbordar para a vida, afastou-se do campo plstico-formal que a especializava.
Se a gente conversa com um artista jovem contemporneo de um desses grupos veremos que no so as afinidades formais, plstico-formais ou estticas (esttica aqui como qualidade do sensvel, daquilo que eu vejo, daquilo que eu possa tocar) que os renem e aglutinam. No! Formam-se em torno de atitudes, de certas crenas, de certas convergncias subjetivas. A arte contempornea no produz ismos como os do modernismo, pois transbordou o mbito dos meios plsticos convencionais e contaminou-se com todas as outras regies da ao humana e da cultura.
Essa disperso manifesta-se hoje, de modo inequvoco, no cotidiano das artes, porque os artistas perderam parte de seu antigo poder de criar eventos de grupo a partir de critrios claros e exclusivos como ocorria na era dos ismos modernos. Essa tarefa migrou para a subjetividade de um outro agente, o curador, cuja funo a de criar temas, selecionar os artistas e as obras num circuito de exposies independentes ou institucionais. Esse novo agente chega em alguns casos a disputar a autoria de exposio onde os outros artistas so apenas protagonistas, porque sua obra o conjunto da exposio.
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Ns estamos diante dessa questo hoje em dia. No uma questo de vontade ou de inteno malfica por parte dos curadores. Sua relao migra da esfera profissional para a afetiva, j que tanto ele quanto o curador trabalham num mundo onde a diferena entre o que pblico e o que privado viu-se abalada com a subjetivao das relaes sociais em escala universal (talvez uma manifestao da crise do indivduo).
Um artista contemporneo que trabalhe com tecido e bordado que tenha sido esquecido por um curador, seja porque no goste dele, seja porque no o conhece, numa exposio que tenha esse tema, entra num circuito, como tpicamente subjetivo.
claro que num pas como o nosso, onde as coisas so muito arbitrrias e autoritrias, por enquanto, alguns grupos de artistas esto propondo como antdoto o mesmo remdio que se recusam a tomar. Propem assim eventos sem qualquer seleo nos quais entra quem quiser (ser que isso possvel?) Todos esses grupos so uma rejeio subjetividade do curador. Subjetividade que eu acho abusiva, delirante at e, muitas vezes, comprometida com jogadas do mercado de arte.
Se o curador est numa instituio existem limites ticos que no emanam de nenhuma regra, mas de decises de
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cada um de ns. Esse um mundo muito mais difcil, onde cada um responsvel por tudo, mas o mundo no qual a gente vive. Da precisarmos editar nossa fragmentada existncia: da interioridade (psicanalista), ao corpo (personal trainer), nossas casas e cidades, nossa f (gurus) at nossas relaes (internet) e textos (Word).
Nesse ponto sou historicista at raiz. Acho que isso fruto de circunstncias histricas que no foram criadas por nenhum de ns. Da concluses salvacionistas como restaurar a janela renascentista ainda que venha de um grupo de pessoas esto fadadas ao insucesso. Nem adianta reclamar de eventuais discriminaes porque as coisas no aparecem ou se consagram por voluntarismo, mas por demandas histrico-sociais efetivas.
Eu trabalho num museu tambm, sei que esse dilema um dilema no s do curador, como dos muselogos, dos marchands, da legislao de direito autoral, porque a crise do sujeito, a noo de autoria uma noo colada com a noo do indivduo.
A gente sabe que na msica eletrnica, por exemplo, um DJ como o Dolores, de Pernambuco, o que que ele faz? Ele se apropria de fragmentos de outros e faz seu trabalho. No entanto, pelos padres autorais vigentes, isso pode gerar problemas de legislao, alis, toda vez que a
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arte se renova isso pode ocorrer.
O sampler j um sintoma de que a noo de arte mudou radicalmente O que um autor? O Foucault tem um texto lindo com esse nome. O autor um indivduo? Se um autor autor porque publica textos, ento, digamos, se encontrarem um bilhete escrito por ele para a empregada ir ao supermercado, esse bilhete uma obra, de sua autoria? Claro que no. Ento o autor no se delineia com os mesmos contornos de um indivduo, ou da pessoa que o contm.
Um artista artista s num sentido figurado, ou de seus sentimentos. Mas um artista seria artista 24 horas por dia, quando namora, quando d uma chinelada no filho ou sei l o qu? Claro que no! A no ser que seja aquele ente que vive pensando que tudo arte, tudo maravilhoso, viso que no combina mais com a experincia que o nosso mundo fraturado nos proporciona, que um mundo avesso contemplao.
Contemplao , alis, uma palavra que est fora do nosso roteiro. Ento, importante que tudo isso que a gente esteja vendo seja percebido como parte de um campo de tenses superficiais e complexas, e em rede.
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