Quem tem medo da arte contemporanea? Fernando Cocchiarale, 2006
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QUEM TEM MEDODAARTE
CONTEMPORÂNEA?
Fernando
Cocchiarale
�� FU NDAÇÃO JOAQUIM NABUCO
E D IT O R A MASSANGANA

ISBN 978-85-7019-446-6
©2007 Fernando Cocchiarale
Reservados todos os direitos desta edição.
Reprodução proibida. mesmo parcialmente, sem autorização da
Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco.
Fundação Joaquim Nabuco. Editora Massangana.
Av. Dezessete de Agosto, 2187. Casa Forte. Recife. Pernambuco. Brasil.
CEP 52061-540.
Linha direta (81) 30736321. Vendas (81) 30736323.
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www.fundaj.gov.br
PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO
)OAOUIM NABUCO Fernando Lyra
DJRETOI�A DO INSTITUTO DE CULTURA
Isabcla Cribari
CooRDENADOR-GERAL DA EDITORA MASSANGANA Mário Hélio Gomes de Lima CooRDENADOR DE EDITORAÇÃo
Sidney Rocha
PROJETO GRÁFICO/CAPA
Editora Massangana
1 a. reimpressão
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco)
Quem tem medo da arte contemporânea; Fernando Cocchiarale- Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2006.
80 p.: il:
ISBN 978-85-7019-44(>.6
1. Arte contemporânea- arte 2 .. I. Cocchiaralle, Fernando.
CDU 347.78


Quem tem medo da arte contemporânea?
Muitos. A maioria diz não entendê-la, por achá-la estranha
àquilo que consideram arte. Outros, ainda que com
conhecimento de causa, seja por conservadorismo, seja
por preferirem a arte clássica ou por sua fidelidade teórica
(paixão, na verdade) à arte moderna.
Curioso é que à medida que nos aproximamos da
atualidade a incompreensão parece crescente. A arte pré
moderna parece ser entendida mais facilmente do que a
moderna e esta última menos arbitrária que a produção
contemporânea. Duvido que um leigo diga que entende a
Mona Lisa saiba o que é sfumato, seção áurea, claro
escuro. O que é anatomia? O que é a perspectiva? No
entanto, essas informações não participam
necessariamente de fruição estética.
Uma das práticas mais generalizadas do mundo
institucional das artes, compreendendo aí o chamado
grande público, é a necessidade de mediação pela palavra,
para a produção de sentido. Não me refiro aqui às teorias
11


da arte, tanto históricas quanto filosóficas, cuja
generalidade e universalidade só poderiam ser produzidas
pelo discurso. O que está em questão é a busca ansiosa
pela explicação verbal de obras reais e concretas, como se
sem a palavra fosse-nos impossível entendê-las. A
explicação assassina a fruição estética, já que ao reduzir a
obra a uma explicação mata sua riqueza polissêmica e
ambígua, direcionando-a num sentido unívoco.
O problema é que essas pessoas usam um único verbo:
entender. Entender significa reduzir uma obra à esfera
inteligível. Eu nunca ouvi ninguém dizer: eu não consegui
sentir essa obra. Como as pessoas têm medo de sentir, elas
entendem, reduzem sua relação ao ato inteligível e, por
isso, esperam pelo socorro do suposto farol da opinião
daqueles que sabem: historiadores, filósofos, críticos,
artistas, curadores ... Quando mal feita uma visita guiada
pode estimular esse tipo de coisas, a não ser quando o
educador tem uma perspectiva menos formal e estimula o
público a estabelecer suas próprias relações. O artista
contemporâneo nos convoca para um jogo onde as regras
não são lineares, mas desdobradas em redes de relações
possíveis ou não de serem estabelecidas.
Hoje em dia a formação de público tornou-se uma
preocupação essencial. O público passou a ser visto como
14
algo a ser permanentemente formado, sim. Mas quando se
fala em formação significa que se vai transmitir alguma
coisa. Há casos e casos. Não dá pra se ter uma regra a
priori. Então, se alguém está movido por esse tipo de idéia,
tem que pensar muito bem se vai tratar o aluno como um
receptáculo, ou o visitante como um receptáculo, se vai
despejar suas idéias sobre a arte e as obras ali. Não
devemos confundir a formação de um teórico de arte,
historiador ou esteta com aquilo que devemos fazer com o
público.
Todos os museus hoje ou têm headfone ou textos plotados
nas paredes da sala expositiva. Mas, o monitor, o
educador ou mediador deve ser menos a pessoa que
transmit..a conteúdos acabados e mais alguém que estimule
o público a estabelecer algumas relações de seu próprio
modo.
A arte contemporânea não é um campo especializado
como foi a arte moderna. Centradas na busca de uma arte
autônoma em relação ao universo temático,
particularmente aquele do naturalismo acadêmico, as
primeiras safras de artistas modernos pretendiam proteger
o campo da arte das infiltrações de elementos literários ou
narrativos (temas). A partir do Impressionismo, a arte
moderna passou a refletir e a investigar de modo crescente
15


No mundo contemporâneo, as noções de sujeito, de
indivíduo, de identidade, de unidade estão visivelmente em
crise e é possível mapear vários pontos em épocas
diversas o prenúncio dessa crise que não começa agora, já
que estava em gestação no século XIX e hoje tornou-se,
em alguns casos, parte do senso comum.
Se nós quisermos entender um pouco da arte
contemporânea nós não podemos fazer isso do ponto de
vista estrito do especialista (o teórico de arte: crítico,
historiador, esteta), discutindo as obras que outros
especialistas produziram (os artistas como especialistas nas
linguagens que utilizam). Ambos restritos ao universo
exclusivo da produção artística, um mundo de especialistas.
Não que especialistas tenham desaparecido, mas sua
autoridade e seu poder de vida e morte numa avaliação
perderam muito espaço, já que eles estão subordinados
atualmente à multidisciplinaridade, ou à interface.
As identidades no mundo contemporâneo não podem mais
ser pensadas como uma plantação (onde cada planta tem .a
sua raiz) porque ele está em rede. E não estou falando só
da internet. Uma rede em que a identidade migra de um
canto para outro. Mas de todas as relações que antes
supunham identidades estáveis em todos os níveis. Hoje
termos n identidades, e não mais uma só.
18
Todas as sociedades desenvolveram noções de pessoa
diferentes umas das outras. A nossa desenvolveu a noção
de pessoa ligada ao conceito de indivíduo sem divisão e
como uma unidade. Se ele é um artista, tem um estilo só
seu, inconfundível. A idéia de estilo individual, a coerência
como um valor do artista não é natural, mas uma invenção
possível do início do Renascimento.
É no Renascimento que a arte e artesanato se separam, se
não na escala dos valores e das idéias, ao menos na
consciência e na prática dos artistas. Quando Leonardo da
Vinci escreveu que a "pintura é coisa mental", ele afirmava
em primeiro lugar que sua arte não era uma arte mecânica,
isto é, meramente manual, tal como era então classificada.
Para ele, o uso das mãos não era suficiente para reduzi-la
à esfera mecânica, já que a pintura, por causa da
perspectiva, do sombreado e demais aspectos, possuía
questões racionalmente inteligíveis que justificavam uma
mudança de patamar. Ela devia ser pensada como uma das
chamadas artes liberais em que o intelecto possuía um
peso decisivo.
A afirmação do caráter mental da pintura teve outras
conseqüências. Ela afastava-se do artesanato
(estritamente manual) e de seus esquemas autorais
coletivos. Além disso, é também importantíssima porque
19

pode indiretamente até esclarecer certos aspectos da
produção contemporânea, na qual o fazer (manual) deu
lugar à invenção e à idéia. O ready-made de Mareei
Duchamp poderia ser visto dessa forma. Se é coisa mental
o fazer não mais integra necessariamente o trabalho do
artista.
A idéia que as pessoas seriam unitárias, sem fraturas ou
divisões internas, indivisíveis qual indivíduos, está em
crise. O que aparece no mundo contemporâneo é a
possibilidade de uma nova noção de pessoa,
fragmentária. A gente pode falar disso de várias
maneiras, mas eu gostaria de voltar a essa investigação
do indivíduo que tem a ver com a noção de unidade que
é absolutamente familiar a todos nós até hoje. Tenho
certeza de que até os mais jovens quando definem uma
pessoa como íntegra querem dizer que ela é inteira. Mas
integridade em si não é qualidade de ninguém.
Tradicionalmente a unidade foi pensada qual algo que
emana, no caso da nossa condição, de dentro para fora, e
é plasmada como personalidade ou como estilo de dentro
para fora, alguma coisa que venha do interior para o
exterior. Mas, no mundo das três últimas décadas, tudo o
que aparece como unitário é fruto de um processo
exteriorizado de montagem ou de edição.
20
Indissociável da noção de identidade, a noção de unidade
presidiu todos os processos cognitivos, dos mais
intelectuais aos éticos e políticos desenvolvidos no
Ocidente pelo menos nos últimos 2500 anos. Na Grécia
clássica o pensamento filosófico orientara-se para a busca
das qualidades permanentes que especificavam um
conjunto com o objetivo de defini-las. Imaginem o espanto
de um homem daquele tempo ao olhar para um mundo
onde tudo se movia e se transformava, não só as coisas
em relação umas às outras, mas cada uma delas tomadas
em si mesmas.
Algumas dessas transformações são observáveis com
facilidade como, quando, por exemplo, uma semente
germina em quinze dias; outras necessitam de uma longa
espera, como aquela em que percebemos as
transformações de um bebê até a fase adulta. Além de
todos sermos diferentes uns dos outros, também o somos
em nós mesmos, se nos compararmos com o que já fomos
em outros momentos de nossas vidas.
Como se pode afirmar que para além do movimento, da
mudança e da transformação de tudo percebida pelos
sentidos existem traços permanentes? E essa unidade é de
ordem conceitual ou real? São perguntas que os gregos
faziam e que responderam de diversas maneiras.
21


X i I og ravu r a
de Albert Dürer.
Para Gilles Deleuze, por exemplo, um dos filósofos mais
importantes do século XX, a filosofia - e eu, sem qualquer
dúvida, poderia acrescentar a ciência também - busca
reduzir a pluralidade à unidade; reduzir, por exemplo, essa
pequena amostra que somos nós, tão diferentes já uns dos
outros, a um único conceito que é o conceito de homem.
O conceito de homem teria de abranger todos os homens
que existiram e ainda vão existir, desde o início até o fim
da humanidade. É um conceito que não leva em
24
consideração quaisquer de nossas características pessoais
específicas, sejam elas étnicas, de aparência física, cultural,
religiosa, social ou política. Ele é universal porque
concentra-se apenas num traço (ou em poucos traços)
comum a toda a nossa espécie. Por exemplo, na conhecida
definição de Aristóteles, o homem é um animal racional.
Definição que se aplica a todos os homens porque não se
detém em nenhum deles.
Insisto na idéia de que o indivíduo é uma possibilidade
histórica. Evidentemente, o mundo do indivíduo não é um
mundo de liberdade (isto é uma ilusão infantil quase), mas,
no mundo em que essa noção de indivíduo se desenvolve,
a partir da Renascença, surgem problemas em decorrência
da concepção de pessoa como indivíduo, concepção que,
passo a passo, ao longo de vários séculos, valoriza na vida
sócio-cultural as tendências, gostos e opiniões individuais,
fato inédito na história humana. Como num mundo de
opiniões (eu acho, eu não acho ... ) ficam os conhecimentos
teórico-científicos?
O conhecimento não é algo que um indivíduo acha que é
uma coisa e outro acha que é outra: o teorema de
Pitágoras não é um problema de opinião, mas algo comum
a todos nós, como também o são as leis físicas, ou uma
tábua de elementos da química.
25

Num mundo onde cada um acha uma coisa, como é que
ficaria a esfera universal e comum do conhecimento,
sobretudo o da ciência? Esse problema vai se manifestar
progressiva e agudamente a partir do Renascimento,
quando, por exemplo, surge a função autoral com muita
clareza.
Hoje em dia fala-se muito da crise do sujeito. Com isto, a
tendência é reduzirmos a nossa compreensão da crise do
sujeito à crise do indivíduo. Mas o indivíduo é apenas uma
das esferas do sujeito que está em crise.
A partir de Descartes e, sobretudo depois de Kant, surge
uma outra noção de sujeito, que não é, ao contrário do
que possa parecer, individual, mas comum a todos nós. Ao
lado de nossas crenças e tendências pessoais esta instância
ou função de sujeito cognitivo permite-nos aprender física,
química ou matemática. Portanto, ao nível filosófico, a
noção de sujeito é diferente da idéia de indivíduo. É o
nosso lado universal.
Para Descartes, as ciências tinham um grau de
desenvolvimento muito desigual, encontravam-se em níveis
muito diferentes. Seu projeto era o de fundar uma única
ciência - a Mathesis Universalis - que se ramificasse e se
desdobrasse em todas as outras. Essa foi uma das
principais tarefas de sua filosofia. Nas Meditações ele se
26
propõe a impugnar pela dúvida todos os tipos de
conhecimento então vigentes, para verificar se algum deles
resiste à sua impugnação. Inicialmente, põe em dúvida os
sentidos, em seguida as ciências da natureza, depois as
matemáticas, até que chega a uma primeira certeza. Se
tudo está sendo posto em dúvida, ele tem uma primeira
certeza: não pode duvidar que alguém duvida, e daí passa
para a famosíssima afirmação cogito ergo sum - "penso
logo existo".
O penso logo existo é o primeiro passo que se dá no
restabelecimento de uma certeza comum à humanidade
porque o indivíduo e os valores que emanam de sua
existência histórica (eu acho) já estão em curso. A esse
penso cartesiano a gente chama de sujeito também e, no
caso, não tem nada a ver com a esfera das vivências
pessoais; ao contrário: o sujeito cartesiano funda-se na
idéia de uma substância pensante, supra-individual, mas
comum a todos os homens, que nos abre os caminhos para
partilhar qualquer conhecimento objetivo.
Cerca de 140 anos mais tarde, Kant propôs uma noção de
sujeito não mais fundada em razões metafísicas, mas como
uma função inerente à própria faculdade de conhecer, que
se impõe ao mundo, reconstruindo-o. O conhecimento
seria, pois, antes construção do que a descoberta de algo
27

já dado empiricamente. A noção de sujeito cognitivo
(aquele que conhece) que predominou em grande parte das
teorias do conhecimento posteriores é de origem kantiana.
Assim poderíamos explicar, por exemplo, porque a
pesquisa de um cientista não morre com ele. Quando morre
um físico, seu pensamento e trabalho podem continuar a
ser desenvolvidos por seus assistentes ou até mesmo por
outros físicos porque se trataria do trabalho cognitivo de
um sujeito e não da expressão de vivências e
idiossincrasias pessoais. O sujeito é uma instância supra
individual, e que torna qualquer homem, individualmente
falando, passível de compreender qualquer coisa que seja
da esfera de sua humana condição.
Ora, o mundo contemporâneo não só nasce com o
indivíduo em crise, como sujeito cognitivo, também em
crise. Foucault, sobretudo, trabalhou criticamente a idéia
de sujeito, tal como foi definida plenamente há 200 anos.
O campo de trabalho de Foucault é um campo híbrido,
uma colagem. Sem a unidade de campo de um filósofo
tradicional. Lembro-me que, quando eu estava na
graduação em filosofia, vários professores diziam que
Foucault não era filósofo, mas um sociólogo, porque seu
objeto não era propriamente filosófico. Isso mostra que
ele é uma das expressões dessa crise do sujeito unitário
28
facilmente reconhecível em sua especialidade.
Costumamos exigir de um crítico de arte imparcialidade
para que ele seja justo. Crítica vem do grego, krísis
(separar, distinguir, escolher, julgar), origem das palavras
crise e critério. Nisso está implícita a idéia de que alguém
só pode criticar se não estiver envolvido com a situação a
ser criticada ou se não tomar partido explícito.
Entretanto, ao contrário disso, se observarmos o período
áureo da crítica de arte, o pós-guerra (os americanos
Clement Greeberg e Harold Rosenberg, o argentino Jorge
Romero Brest e o brasileiro Mário Pedrosa, apenas como
exemplos), veremos que a melhor crítica foi justamente a
que tomou partidos e defendeu posições e tendências. Os
melhores críticos foram todos parciais.
Mas isso contradiz a idéia de alteridade, de separação que
se manifestaria em todas as esferas de atuação do sujeito,
separação que garantiria sua isenção. O sujeito tem que
estar separado do objeto de seu conhecimento porque ele
possui uma função ativa diversa do campo de
conhecimento para o qual ele se volta e que ele constitui
como objeto de suas especulações e construções.
A idéia de coerência estilística emerge com muita força
quando o fazer (pôr a mão na massa) desempenha na obra
29

um papel muito importante. Por quê? Porque aí se
estabelece uma cadeia entre a coisa mental e o fazer e
entre estes e os resultados (obras).
Por exemplo, no artesanato a autoria é coletiva.
Entendendo por autoria os esquemas e os repertórios que
presidem certo tipo de tecelagem ou de cerâmica. Em
Caruaru, por exemplo, embora depois de Vitalino muitos
tivessem assumido a identidade autoral do artista plástico,
os esquemas, os repertórios são mais ou menos comuns,
coletivos.
Esse caráter coletivo é compensado por um processo onde
o fazer é quase individual, uma vez que diferentemente de
um filme ou de uma fábrica de geladeiras, a divisão do
trabalho é pequena ou inexistente neste tipo de produção.
Controlados em suas etapas essenciais por um único
artesão, os processos artesanais se definem a partir do
exercício e do adestramento da manualidade e não ao nível
da elaboração individual de esquemas de representação
(Renascença) ou da invenção formal (Arte Moderna). Se
por um lado a invenção é limitada por princípios de
invenção coletivos, por outro, essa limitação é
compensada por uma prática na qual o corpo de um único
trabalhador controla todo o corpo do processo de
produção artesanal.
30
Num sentido oposto, os projetistas de um carro não
precisam participar diretamente de sua produção para
serem considerados autores do projeto. Do mesmo modo,
um arquiteto ou designer também não precisa executar
com as próprias mãos aquilo que concebeu e desenhou. A
autoria do projeto é suficiente para torná-los autores,
ainda que nem arquiteto ou designer façam, com suas
próprias mãos, tijolo por tijolo, peça por peça, o edifício
ou o produto por eles projetados.
Afastamo-nos da produção artesanal nos últimos duzentos
e poucos anos. Isso certamente teve múltiplas
conseqüências. E eu não falo disso numa perspectiva
apocalíptica, ao contrário, eu acho que tudo pode ser bom
dependendo do uso que se possa fazer dessas coisas.
Quando o homem passou a produzir bens utilitários não
mais a partir da habilidade da manual, mas por meio de
máquinas-ferramentas, houve uma expansão e
multiplicação dos produtos sem precedentes, mas não
devemos nos esquecer de que a essa multiplicação
correspondeu outra, não menos importante, que foi a
multiplicação da própria espécie humana.
Se a gente pensar no período que vai do início da
Revolução Industrial, no século XVIII, quando foi
inventada a primeira máquina-ferramenta, o tear hidráulico,
31

até agora, veremos que a população da terra, que tinha
então algumas centenas de milhões de habitantes,
aumentou para os seis bilhões atuais em duzentos anos.
A industrialização também condenou o artesanato. No que
se refere à produção de imagens, a fotografia veio
substituir a mimesis ou a representação clássica como o
primeiro meio não artesanal de produção de imagens,
depois vieram o cinema e, mais recentemente, o vídeo. De
qualquer maneira, nada do que está acontecendo, nos
32
A Torre Eiffel! em construção e, na página seguinte,
a Torre Eiffel! construída.
últimos quarenta anos, é como um interruptor no qual, do
escuro, passamos para o claro num toque.
Se é a invenção ou a idéia que qualifica a autoria (coisa
mental) o artista não mais precisa, necessariamente, fazer sua
obra com as mãos. Essa é uma possibilidade conquistada
desde a apropriação duchampiana e do objet trouvé
surrealista. Sobre o abandono do fazer e sua defesa,
Kandinsky, em carta escrita para André Dezarrois, em 1937,
comentava: "os construtivistas vêem geralmente sua origem
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bo cubismo que empurraram até a exclusão do sentimento
ou da intuição e que tentam chegar à arte exclusivamente
pelo caminho da razão, do cálculo (matemático ... exemplo
do ponto de vista: Malevitch tinha como ideal a
possibilidade de ditar sua nona pintura por telefone ao
pintor de paredes- medidas exat<Js, cores numeradas)"
( Oeuvres de Vassi1y Kandinsky -1866-1944 -, p. 36).
Não se tr<Jta de defender que a delegação do fazer a
terceiros pelo artista seja a única possibilidade de fazer arte
contemporânea (ainda que seja atualmente uma prática
consagrada e muito difundida). Ambas são possibilidades
legítimas e plausíveis. Não se trata de substituir uma pela
outra. No fazer, na prática artesanal, há uma espécie de
contigüidade quase física entre aquele que faz e sua obra.
De todas essas conquistas a que mais interessa é a idéia da
linha de montagem, na qual o produto é fruto, sem dúvida
nenhuma, de um projeto concebido por um alguém que não
participa da produção em nenhuma de suas etapas.
Certamente, numa feira de uma comunidade de artesãos,
eles sabem quais são os seus trabalhos, apesar de
parecerem iguais aos olhos de um leigo. Entretanto, no
pátio de uma fábrica, eu aposto que nenhum operário
reconhece qual o carro de que ele participou da execução.
36
A indústria, ou seja, a produção dos objetos dos quais nós
nos servimos na vida cotidiana, passa a ser fruto de uma
relação anônima, coletiva de montagem. O produto ( sua
unidade) resulta de um processo exteriorizado e não de algo
que emana de uma expressão aliada a um fazer pessoais.
Essa modalidade de produzir é oposta ao artesanato, Os
produtos industriais podem ser fruto de projetos individuais
(no artesanato são coletivos), mas sua produção é coletiva
e fragmentada (no artesanato a produção é individual). A
radicalidade das transformações sócio-econômicas
introduzidas pelos processos de produção industriais se
fizeram sentir muito fortemente na esfera da produção de
imagens. Antes restritas à feitura manual, passaram também
a serem produzidas a partir de tecnologias como a
fotografia, o cinema e, décadas adiante, o vídeo. O que vai
inventar a linguagem do cinema, isso é elementar, vai ser a
invenção da montagem (análoga, por exemplo aos métodos
de construção de Eiffel, à linha de montagem industrial e à
escultura construtivista). Em sintonia com as tecnologias
mais avançadas da informação, o vídeo é editado.
Mas o que realmente importa é que o produto final tanto
do filme quanto do vídeo resultam de processos
exteriorizados (em relação ao artesanato) de montagem ou
de edição.
37

Ninguém desmonta uma moringa, pois desmontá-la
equivaleria a destmi-la, já que não foi montada, mas
moldada. Quando um jovem nerd desmonta um
computador, ele retorna à etapa imediatamente anterior à
existência do mesmo, àquela antes ela montagem dos
componentes (fragmentos) que deram origem ao produto.
Imagens editadas, textos editados pela imprensa são
análogos a uma nova modalidade de registro e criação ele
imagens que é o vídeo: o vídeo é o melhor paradigma ela
edição. São processos ele totalização exteriorizados. Se
existe a questão da unidade no mundo contemporâneo, é
uma coisa que se dá na chegada e não na origem. Ao mesmo
tempo, os nossos fragmentos internos adquiriram autonomia
e abriram outras possibilidades de invenção e criação por
conexões, como nunca a humanidade teve anteriormente: a
possibilidade ele celebrar a complexidade ela superfície.
Tudo hoje em dia é articulado no mundo. Mas é importante
caracterizar a diferença entre a montagem, típica da
modernidade e a edição, característica da
contemporaneidacle. Eu estou falando, respectivamente,
de tecnologias elo século XIX (ótico-eletro-mecânicas) e
de tecnologias das três últimas décadas do século XX
(eletrônico-digitais).
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Por exemplo, Alexandre Gustave Eiffel, um grande mestre
ela engenharia do ferro, contribuiu para a modernização da
arquitetura e das artes. A torre Eiffel é um volume sem
massa (no mesmo sentido empregado pelos mssos Naum
Gabo e Anton Pevsner, no Manifesto Realista, de 1920).
Basta que comparemos a Torre Eiffel com a Torre de Pisa,
na qual massa e volume estão integrados. Portanto, se a
engenharia elo ferro pende de tecnologias siderúrgicas e
novos métodos ele constmção do fim do século XIX, ela
referenda também a separação de volume e massa que
está na raiz da escultura moderna constmtivista levantada
como uma ponte no próprio espaço. Engenharia e escultura
se contaminaram e se nutriram desses processos ele
montagem ou ele constmção que tem a ver com a lógica do
produto industrial.
Da mesma maneira, a expansão da internet, o mundo em
rede está influenciando decisivamente a vida cultural de
nossa época. Nós temos que pensar essas características
do nosso cotidiano porque um dos grandes obstáculos
para entender a arte contemporânea é o fato de ela ter-se
tornado parecida demais com a vida. É como se, num
processo de integração entre arte e viela, a arte tivesse
doado tanto sangue para a estetização da vida que ela se
desestetízou.
39

O crítico belga Thierry de Duve diz que a pergunta pré
contemporânea (pré-moderna) era "isto é belo?", ou seja,
quando alguém estava diante de um quadro sabia que era
arte, mas não se era belo. Ele diz que no mundo atual o "isto
é belo?" foi substituído pelo "isto é arte"? Mas, na verdade,
essa não é uma pergunta que se faça só para a arte.
Certa vez, eu estava num museu da Inglaterra com uma
amiga. De repente, ela me disse: "há duas moças agarradas
ali". Mas eram um rapaz e uma moça. O rapaz estava de
batom e unha pintada. Isso significa o quê? Significa uma
indefinição de papéis. A pergunta é "isso são duas
mulheres?" ou "isto é um homem e uma mulher?" A gente
faz essas perguntas o tempo todo porque no mundo
contemporâneo não é mais possível estabelecer e fixar
identidades. O verbo ser, que é o verbo da raiz, foi
substituído pelo verbo estar, que é o da rede.
A minha avó materna tinha os cabelos brancos, azulados
por uma tintura. Para manter o cabelo penteado, ela
colocava sobre a cabeça uma rede quase invisível. Sendo
excessivo na licença poética poderia supor (ou quase
delirar) que a cabeça da minha avó pode servir como
exemplo de dois regimes identitários opostos: os cabelos,
cada fio com uma raiz, pensa identidades que poderíamos
chamar de verticais, do ser filosófico ao especialista; ou
40
seja, cada coisa é somente o que ela é (o princípio de
identidade aristotélico: A é igual a A e diferente de B) e
sua identidade se fixa porque sua raiz a fixa num único
lugar da realidade. Mas aqueles cabelos, cada qual com
sua raiz, não se despenteavam porque sobre eles havia
uma rede, e isto fazia com que na superfície todos os fios
se comunicassem entre si. O mundo contemporâneo
permite pela primeira vez que o ocidente possa pensar a
complexidade da superfície (rede), em lugar da superação
da opacidade do mundo real pelo aprofundamento do
conhecimento de suas causas profundas (raiz).
O modelo da rede não é, como talvez muitos possam
pensar, uma possibilidade da internet. Ao contrário, a
internet é que foi demandada por um mundo que já estava
em rede, no qual as pessoas assumem diversas identidades
dependendo da conexão que elas estejam estabelecendo
naquele momento.
Não que isso não acontecesse no passado, mas a idéia de
indivíduo e de identidade tinha tal força que juiz era juiz
até no bordel. Como se classifica, por exemplo, um
travesti, casado, pai de filhos, como o que foi noticiado na
mídia há poucos meses? O que ele é? Difícil de definir, mas
muito comum hoje em dia. Não se responde a essa
pergunta. Nem faz sentido respondê-la.
41

Nós ocidentais pensamos sempre a corda por suas
extremidades. Nunca definimos a corda pelo meio dela, ou
por 2/4 ... Mas, provavelmente, no caso da arte, talvez
uma boa definição devesse passar longe dessas
polarizações típicas de nosso pensamento.
No texto Leonardo e os filósofos, publicado em 1929,
Paul V aléry diz que a experiência estética seria algo
diferente da inteligência e, simultaneamente, diferente de
nossas sensações comuns, isto é, essa experiência estaria
situada em algum ponto entre a razão e a sensibilidade.
Definir qualidades permanentes é muito fácil quando se
pensa a noite e o dia. E o que se faz com o crepúsculo e
com a aurora, que são tão parecidos e tão opostos? Como
é que se define isso? Nós vivemos num mundo crepuscular
ou boreal? Não sei. Os dois. Como é que eu dou nome?
Como eu rotulo isso? Como é que eu chamo a isso tudo?
Para que a gente entenda arte contemporânea, devemos
entender dois momentos que a precederam. Primeiro: o
momento em que a arte se torna arte, o que nós achamos
arte, que é o Renascimento. Segundo: o momento em que
uma outra arte, a moderna, rompe com a tradição
mimética renascentista. E por último, ainda que
panoramicamente, a gente pode traçar algumas diferenças
essenciais entre a arte contemporânea e a arte moderna.
42
Na verdade, há uma questão que se discute pouco, na
chamada história da arte. Aquilo que nós entendemos por
arte - e que está deixando de ser - começa no
Renascimento. Na verdade, falamos de arte egípcia, arte
assíria, arte babilônica, arte indígena, mas, provavelmente
as culturas que produziram esses objetos que nós
chamamos de arte, não os chamariam assim.
No texto clássico A obra de arte na época de sua
reprodutíbílidade técnica, Walter Benjamin fala da
mudança ocorrida na função da arte durante a Renascença.
Da produção simbólica de objetos de culto, voltada para a
religião e para o mito (valor de culto), chegou-se à
contemplação estética (valor de exibição).
De objetos de fé para a contemplação mundana, suscitada
por sua beleza intrínseca. Com que sentimentos olhamos
para a Píetá de Michelangelo? Mesmo um católico
fervoroso tenderá a ver uma obra de arte e não um objeto
de fé. A Píetá é antes uma obra de arte do que uma
imagem, devocional.
Em realidade, mesmo quando a temática religiosa
permanece (segundo Walter Benjamim, lá discutindo o
problema da aura, etc.), o que vai ocorrer é que a obra de
arte passa a ser alguma coisa feita por um autor com o
destino e única função de ser contemplada. Fora do
43

âmbito da contemplação estética ela não possui qualquer
outro sentido.
Mas, segundo Walter Benjamin, ela herda do passado a
evocação ritual que vem de sua origem mágico-religiosa.
Num museu ou num teatro, por exemplo, as pessoas falam
baixo como falariam num templo. Porque o teatro também
nasce de rituais mágico-religiosos. Na Grécia Clássica,
quando se sacrificava o bode (tragos), entoavam-se
cânticos, daí veio a tragédia e as pessoas que cantavam
deram origem ao coro.
Toda a arte tem origem na religião. As únicas
manifestações simbólicas que possuem registros ancestrais
são as artes plásticas. Eu não sei como um grego cantava,
pois ainda não havia partituras, mas eu sei como um homo
sapiens de 30 mil anos atrás via porque suas pinturas ainda
estão lá. Nas paredes das cavernas.
A origem da arte mistura-se com a origem da vida simbólica e
da vida mágica ou religiosa. Um autor não muito cotado no
Brasil é Ernst Hans Gombrich. Não sei porquê. Ele é
excelente, mas, todo mundo prefere o Giulio Carla Argan.
Como se gostar de um nos fosse impedir de gostar do outro.
Os metafísicos que me desculpem, mas arte não tem
nenhuma essência. Tudo o que é cultural é inventado, etc.
44
A idéia de que o homem precisa de se expressar, precisa
de realizar-se individualmente é uma idéia histórica
recente. Data da invenção do indivíduo, na Renascença.
No Egito não há expressão individual. A arte egípcia foi
praticamente a mesma durante dois mil anos. Para
Gombrich se não existe arte em todas as culturas - no
sentido que nós conhecemos-, pelo menos, podemos
dizer que todas as culturas possuem artistas. Porque
mesmo em objetos cuja função não era simplesmente
contemplativa, eles usaram a simetria, puseram questões
simbólicas, então, ele concorda que podemos falar de
artistas desde a origem do homem. O que não podemos é
falar de arte porque sua função muda, de quando em
quando, historicamente. Portanto, ao invés de recusarmos
a produção contemporânea em nome das teorias artísticas
modernas, deveríamos procurar entender quais as razões
que estão por trás de seu surgimento.
O Gombrich é um autor que tem uma produção muito
sofisticada. Ele é de uma genealogia teórica muito
diferente da do Argan, que é marxista. O Gombrich tem
origem no instituto Warburg.
Na Alemanha, em Hamburgo, no século XIX, um banqueiro
muito rico deixou uma fortuna e dois herdeiros. Um deles,
que eu não sei se o mais novo ou o mais velho, chegou
45


uma máscara africana pode ser linda, mas ela é usada, por
exemplo, pra adquirir poderes sobrenaturais.
Então, a primeira função desta máscara não seria a
contemplação. Um "Cristo morto" numa igreja, que só é
exposto na Semana Santa, por exemplo, não é arte porque se
arte é contemplação e ele é feito pra ficar coberto a maior
parte do ano, então ele não é arte no mesmo sentido em que
a entendemos e sentimos. O que se poderá então dizer das
pinturas, das múmias e das coisas deslumbrantes do Egito,
que eram feitas para não ser vistas por ninguém? Se elas são
vistas hoje é por vandalismo, pela profanação de tumbas.
Digamos que daqui a mil anos a gente pudesse visitar um
museu e ver arte brasileira. Veríamos na sala expositiva
uma pintura do Iberê Camargo, por exemplo, outra da
Lígia Clark, junto com uma jarra de uma loja de design
qualquer ao lado e uma geladeira Brastemp. Estranho não?
Em que esse museu hipotético diferiria do Louvre que
freqüentemente expõe ânforas gregas ao lado de
esculturas clássicas?
Certamente, um grego não achava uma ânfora uma obra de
arte. Uma ânfora tinha uma função pra guardar vinho,
azeite. Para Gombrich o que chamamos de arte tem 500
anos e, eu diria,· está acabando, está virando outra coisa
que chamamos de arte contemporânea.
48
O fato é que, entre o término da Segunda Grande Guerra
até os primeiros anos da década de sessenta, toda
inteligentsia das artes pensava arte como forma. A partir
dessa época, quando surge a primeira safra de artistas
contemporâneos, começaram, ainda que imersos na
perplexidade e na dúvida, as primeiras críticas à
interpretação formal. Podemos dizer que a produção
contemporânea começa com a Pop Art? Alguns diriam que
ela se inicia no expressionismo abstrato americano da
década de 1950. Mas, digamos que seja na Pop o início da
arte contemporânea.
Teóricos modernistas como Greenberg também tinham
medo da produção contemporânea. Recusaram-na porque
os esquemas de interpretação de que dispunham não
decodificavam aquela coisa esquisita que estava
acontecendo, porque eles pensavam formalmente.
Teorias não pairam sobre transformações históricas, por
todos os períodos. A interpretação da obra de arte como
forma e como linguagem foi determinada pelo tipo de
obra que os artistas modernos fizeram ao longo das
primeiras seis décadas do século XX. No entanto, a
tendência de qualquer teoria é projetar os sentidos
específicos por ela produzidos, tanto para o passado,
quanto para o futuro.
49

O formalismo serviu com perfeição a Greenberg para
produzir sentido sobre a obra dos expressionistas
abstratos americanos, quais sejam: Pollock, Barnett
Newman, Rothko, De Kooning etc. Hoje ela não serve
para produzir sentido para coisa nenhuma, talvez apenas
para o modernismo. Mesmo alguém que queira falar sobre
expressionismo abstrato hoje vai enfatizar aspectos que
Greenbcrg não havia enfatizado.
No entanto, a obra do Pollock está aí c estará por muito
tempo: porque ele é um dos gênios do período final da arte
moderna sua obra, ao contrário, terá uma sobrevida muito
maior do que às teorias de Greenberg a seu respeito. Não
acreditamos mais em deuses egípcios hoje em dia, mas isso
não faz com que nosso apreço pela arte egípcia diminua,
só porque ela era regulada, à sua época, por normas de
origem religiosa.
Se assim é, as teorias caducam e as teorias da arte
caducam mais do que qualquer obra. Nenhuma obra de
arte se torna obsoleta. Não se pode dizer que a cabeça da
Nefertite ficou obsoleta, mas posso dizer que a roda da
biga que foi encontrada lá junto com a cabeça é
absolutamente obsoleta.
Aliás, isso que digo está no manifesto neoconcreto de
1959. Ele afirma que se um neoconcreto tivesse de
50
escolher entre a teoria de Mondrian e a obra de Mondrian,
ficaria com a obra, que está viva e fecunda porque a obra
tem sobrevida maior do que a teoria.
Uma leitura, uma interpretação, quer fixar significados que
essencialmente não podem ser fixados para sempre. Ao
surgirem novos teóricos e novas teorias, outros repertórios
e outros olhares seus enfoques mudam e acrescentam às
obras significados anteriormente impensáveis. Para os
marxistas, por exemplo, a teoria explicaria tudo. O mundo
de hoje, no qual uma empreitada intelectual de ordem
teleológica é praticamente impossível, deve ser
desesperador para um marxista.
Na entrevista Os intelectuais e o poder, feita no início dos
anos 70, Foucault e Deleuze dizem que a teoria é sempre a
mediação entre uma prática e outra, e uma prática é
sempre uma mediação entre uma teoria e outra. Eles
acabam com a polarização entre teoria e prática tão cara
aos marxistas. A teoria passa a ser não uma cosmovisão,
mas um veículo. Se eu quero falar do barroco, eu não teria
o menor problema em citar Wolflin, mas eu tenho que
esquecê-lo se eu quiser falar de arte contemporânea.
Portanto, eu não posso ser um sujeito no mesmo sentido
que resultou do Iluminismo (Kant) já que eu não mais
possuo um instrumento unitário, um monobloco que me
51

explique o sentido geral da vida. A crise do sujeito se
manifesta aí também, ele não constitui mais uma função
universal, uma metavisão, não é mais o produtor de um
telas ao qual uma pessoa deva ser fiel o tempo todo. Isso
não existe mais em nenhuma esfera. Aquela idéia de
fragmentação e de colagem de um mundo editado se
manifesta até aí. Também a teoria adquiriu historicidade.
Ainda assim qualquer teoria é pra ser tratada com a
mesma seriedade com a qual nós tratamos uma obra de
arte. Renascentista, Moderna ou Contemporânea, não
importa, porque elas são tão relativas ao período em que
surgiram quanto a obra de arte, que eu diria, tem até uma
perenidade que a teoria não pode possuir.
Quando eu falo de teoria aqui, estou falando das teorias da
arte, da filosofia da arte, da sociologia da arte, da
antropologia da arte ou de psicanálise, desses campos que
chamamos de ciências humanas e sociais dentro dos quais
sempre coexistiram diversas interpretações. Algumas
contraditórias entre si, sem que nenhuma das facções
pudesse dizer "a minha é verdadeira", a não ser por
paixão, fé ou crença.
O campo de produção de sentido das coisas que nos
afetam no nosso dia-a-dia, inclusive a arte, não é um
campo com resultados unívocos, mas é um campo de
52
batalha entre leituras ou interpretações às vezes até
contraditórias.
Não se pode cobrar do século XIX mais do que ele podia.
Como o século XX, sobretudo atualmente, mostra que a
natureza do jogo teórico nas ciências humanas e sociais se
dá antes pela leitura e pela interpretação do que pela
imposição de uma verdade. Não há problema nenhum em
dizer que essas teorias todas têm sua história, são
passíveis de ser substituídas por outras mais interessantes.
Curioso é que Michel Foucault, percebendo esse impasse
teórico descobriu, em 1969, Panofsky. Foi quase uma
revelação para ele. O conceito panofskiano de imagem
podia servir, percebeu Foucault, poderia superar o impasse
a que havia chegado a leitura formalista da obra de arte e
produzir um sentido específico para a arte contemporânea.
Uma natureza morta não é para a Iconografia (ramo
tradicional da história da arte voltado para o tema ou
mensagem, em contraposição à forma, segundo Panofsky),
uma imagem. Já um cálice com uma cobra enrolada é uma
imagem, desde que saibamos que ele é o símbolo da
farmacologia. Mas, para que eu saiba que uma cobra
enrolada num cálice é o símbolo da farmacologia, alguém
tem que ter me dito isto. Porque aquilo que me é dado a
ver reduz-se a um cálice com uma cobra.
53


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iconografia. As imagens produzidas pela arte
contemporânea desde a Pop, passando pelas mídias
técnicas, não poderiam ser validadas como emblemas ou
símbolos compósitos entre olhar e conceitos de trânsito
cristalino no corpo social como as imagens de que
falávamos.
As imagens contemporâneas são entronizadas pela mídia,
pela publicidade etc, como, por exemplo, a menina
vietnamita nua correndo de braços abertos numa estrada
após ser atingida por napalm, ou o beijo entre o marinheiro
e a enfermeira registrados no fim da guerra por Robert
Doisneau, ou ainda o Pato Donald e a Lindonéia de
Gerchman.
Foucault compreendeu ainda nos anos sessenta que as
teorias formalistas não estavam mais aptas para capturar o
sentido do que os novos artistas estavam produzindo. E
para ele a iconologia pareceu-lhe então um feliz
contraponto para a interpretação formalista.
Wõlflin, que é um grande historiador da arte formalista, e
viveu entre o fim do século XIX e a primeira metade do
século XX, jamais escreveu sobre a arte moderna. A
grande questão do Wõlflin é a passagem daquilo que nós
chamamos de Renascimento para o Barroco, e que ele
chama de evolução do estilo linear para o estilo pictórico.
56
No entanto, embora ele não fale nada a respeito da arte
moderna, ao analisar o Renascimento como forma e o
Barroco como forma, ele está sendo moderno do ponto de
vista de sua perspectiva teórica. O que eu quero dizer é
que os ismos não só se manifestam ao nível da produção,
mas há os ismos teóricos também. Daí a perspectiva de
interpretação formalista não ser mais pertinente para a
compreensão da arte contemporânea.
Alguns de nós talvez não tenhamos entendido sequer a
diferença do espaço moderno para espaço renascentista.
Por isso talvez tenhamos medo da arte contemporânea.
O valor da pureza no mundo moderno engendrou
maravilhas como os trabalhos de Theo van Doensburg ou
de Mondrian e produziu monstros como Adolf Hitler que
também a buscava, só que em nível étnico. O valor pureza
informa tanto o racismo de Hitler quanto a beleza criada
por Mondrian, Theo van Doensburg etc.
Mas vamos seguir esse repertório essencial ao
modernismo. No primeiro número da revista Art Concret
lançada em Paris, no ano de 1930, Van Doesburg escreveu
algo como: Na busca da pureza os artistas foram
obrigados a abstrair as formas naturais que escondiam os
elementos plásticos, a destruir as formas natureza e
substituí-las pelas formas arte. Anos antes, Cézanne
57

afirmara que a "natureza deve ser vista através do cilindro,
da esfera e do cone". Há em comum nessas afirmações
uma idéia quase platônica que supõe que a natureza é um
mundo de aparências que oculta uma estrutura
geometrizada. Atingi-la seria como atingir a própria
essência da visualidade e, portanto, da própria arte.
Quando Gertrude Stein, poeta do início do século XX, diz:
"uma rosa é uma rosa é uma rosa", ela nos quer dizer: "não
há simbolismo". Uma coisa restringe-se ao que ela
significa.
Theo van Doesburg, no texto já mencionado, lançou idéias
muito parecidas com as de Stein. Para ele um elemento
pictural só significa a si próprio. Ele pretendia lançar a
forma espírito, que vem direto da razão. Pintura Concreta,
porque é a concretização do espírito criador, e não
abstrata, porque não partia da natureza. Uma mulher, uma
árvore, uma vaca seriam naturais em estado de pintura?
Não. Uma mulher, uma árvore, uma vaca são naturais no
mundo natural, mas em estado de pintura são abstratas,
vagas, ilusórias, ao passo que um plano é um plano, uma
linha é uma linha, uma cor é uma cor, nem mais nem menos.
A própria idéia do kitsch vem associada a excessos
decorativos que não têm a ver com a função daquele
objeto. Portanto, ao se interessar apenas pelo mundo das
58
formas, em detrimento das imagens, a arte moderna está
nos mostrando que busca um certo tipo de racionalidade e
de funcionalidade essenciais que os devaneios simbólicos
da arte do passado impediam que fossem alcançadas.
Chega a ser curioso, por exemplo, ler um texto de Wõlflin
sobre o Renascimento, porque ele reduz o Renascimento
ao estilo linear, a uma questão perspectiva, formal, e
suprime uma série de questões de conteúdo ou simbólicas
que eram de alto interesse para aqueles que gostavam de
arte no Renascimento. A forma era então somente um
problema do métier do artista, que tinha de decidir se a
composição era em triângulo ou em trapézio, mas a
redução do problema da interpretação artística ao
problema da forma é altamente conveniente para o
modernismo.
Na verdade, a arte tornou-se linguagem para fugir da idéia
de uma obra sem conteúdo e só formal proposta pela arte
abstrata. Então ela passou a ser pensada como uma
linguagem estruturada num sistema de signos. Como ela
voltou com muita força na arte contemporânea a ser
imagem, eu suspeito de que ela esteja deixando de ser
linguagem. Porque nem tudo o que comunica é linguagem.
Enquanto os artistas plásticos, com um sentimento de
grande orgulho, investigavam a forma pura, o
59

desenvolvimento tecnológico de reprodução de imagens
fotossensíveis difundido sobretudo pelo cinema (e antes, a
fotografia) passou a preencher o mundo de imagens que a
arte moderna recusava produzir.
É claro que muitos artistas sempre foram independentes.
Um Volpi foi independente, um Milton da Costa foi
independente, embora fossem independentes fazendo
geometria. Porque era, digamos, o escopo da época ou a
abstração informal, mais livre, etc.
O modernismo do pós-guerra tornou-se uma espécie de
fórum da alta especulação a respeito da produção formal,
por exemplo, a gente sabe que, no momento em que a arte
volta à figuração, com a Pop, entre a velha academia
figurativa pré-moderna e as imagens técnicas da
fotografia, da publicidade e do cinema, os primeiros
artistas contemporâneos não tiveram dúvidas.
Apropriaram-se das conquistas icônicas das tecnologias da
imagem que a cultura moderna havia desprezado.
Há poucos anos, tive um encontro que foi fundamental
para a minha compreensão de uma nova noção de
identidade em formação no mundo contemporâneo: eu
tinha de escrever sobre um pintor que iria expor umas
quarenta pinturas, todas do mesmo tamanho e
expressionistas, mas diferentes do expressionismo histórico
60
e do neoexpressionismo alemães. Ele usava turquesa com
rosa-choque, com verde limão e roxo. As telas tinham um
cromatismo luminoso próximo à paleta sino-japonesa. Mas,
eram quarenta e tantos rostos absolutamente, impactantes,
se não me engano, todos masculinos, e todos se chamavam
Doutores, Dr. Isso, Dr. Aquilo ... Eu perguntei ao jovem
artista quem eram esses Doutores e ele, sem qualquer
dúvida, hesitação ou ironia, disse-me que eles eram seus
alter-ego.
Eu pensei, então, ele tem 40 alter-ego que podem aflorar e
que coexistem, neste momento, na parede. Estava, de
fato, diante de uma pessoa fragmentada, o que não é
problema se a fragmentação não tiver uma origem
patológica. Não falo de um caso psiquiátrico, eu estou
falando de uma pessoa produtiva, capaz de lidar e
negociar com a fragmentação própria e com a dos outros.
Senti então que deveria remeter essa afirmação do artista
à reflexão sobre a unidade e a divisão, tal como vinha
sendo formulada por pensadores como Foucault e Deleuze
e não evidentemente do ponto de vista das disciplinas
especializadas nesse campo, a psicanálise, por exemplo. Eu
lembrei-me de histórias, de romances visionários para o
século XIX, uma vez que eram metáforas do futuro, quer
dizer que sem pretender ser predições terminaram por
61

antever o que está ocorrendo no mundo contemporâneo
das últimas décadas. Lembrei-me primeiramente de
Frankenstein ...
Todos nós sabemos que, na interpretação antropológica
mais corrente das pinturas mpestres, os homens pré
históricos acreditavam que, se eles tinham o poder de
produzir em imagem os animais que caçavam, teriam igual
poder na caçada. Se eles podiam pintar um antílope, eles
acreditavam que tinham a possibilidade do domínio efetivo
do animal.
A origem da imagem está ligada aos rituais religiosos,
dentro dos quais nasceu a arte, tem duas pulsões muito
fortes e contraditórias. Se examinarmos, ainda que
rapidamente, algumas religiões, sobretudo as do Deus
único, veremos que estas proíbem certos tipos de imagem,
porque são tomadas como um imperdoável ultraje ao
criador, Deus, que nos fez à sua imagem e semelhança.
Mas em outras religiões, em certos ritos africanos, se
alguém com raiva de uma pessoa quer feri-la, pega uma
mecha de seu cabelo e faz um boneco de seu inimigo. Um
vodu que lhe permitirá atingi-lo, ainda que à distância,
causando-lhe todo tipo de mal. Ora, tanto as religiões que
proíbem imagens, quanto as que dela lançam mão,
partilham de um mesmo temor ou da mesma crença, só que
62
uma proíbe por excesso de zelo e a outra por excesso de
licença. Há uma relação conflituosa com a capacidade de
invenção e produção de imagens.
O Frankenstein, no entanto, é muito mais do que eram as
imagens para o homem pré-histórico. Ele é o primeiro
homem constmído pelo próprio homem. Diferentemente do
mito, ele é uma possibilidade da ciência (de ficção). A figura
do cientista louco é absolutamente paradoxal, porque se o
cientista é o homem da razão - do penso - ele teria de
ocupar, numa escala do pensamento humano, uma
extremidade oposta à do louco, que é o homem privado
disso tudo. O Frankenstein foi o primeiro homem editado na
história da humanidade, montado a partir de pedaços de
outros homens. Antes da linha de montagem fordista, tem
se um homem editado, que surge provavelmente por uma
atitude absolutamente sacrílega do Dr. Victor Frankenstein.
Por desrespeito ele "matou" Deus (entre aspas porque Deus
não pode ser morto) e por isso vê seus entes mais queridos
serem assassinados por sua criatura, o monstro que ele
cnou ....
Estaríamos em vias de criar éticas, estéticas e políticas
fundadas na nossa divisão, ao ponto funcionarem como
alternativas à ética, à estética e à política pactuadas no
Iluminismo (século XVIII) e que nos regeram até à crise
63

que deu lugar à contemporaneidade lá pela passagem dos
anos cinqüenta para os sessenta? Isso é uma coisa que
talvez possamos já vislumbrar em nosso cotidiano, embora
repertórios culturais do passado dificultem essa
percepção.
Na verdade, o mundo contemporâneo ainda não é
propriamente um mundo de homens editados, mas isso
está sendo prenunciado com todas as letras, primeiro com
os transplantes, depois com certas próteses, agora com a
clonagem, não a clonagem de corpos, mas de órgãos, as
pesquisas sobre as células-tronco. Por outro lado, a idéia
de que possuímos uma unidade psíquica, individual,
esfacela-se nos inúmeros papéis (afetivos, familiares,
profissionais, sexuais, políticos, éticos e estéticos etc.) que
podemos nos encaixar.
O que está em questão agora não é simplesmente o fim da
unidade - o mundo contemporâneo não propõe o fim da
unidade - mas uma outra noção na qual a unidade
resultaria não de um núcleo interior profundo, mas da
montagem, colagem ou edição de partes e fragmentos,
análoga à unidade montada de um produto industrial, de
um filme ou de uma ponte de ferro, ou à edição de um
vídeo ou de um texto.
64
Por razões que desconheço, a literatura do século XIX
pôde antever os sonhos do futuro em alguns romances. O
curioso é que, para o século XIX, todos esses livros
causavam medo. Alguns dos mais acalentados desejos do
mundo atual têm por origens esses pesadelos literários dos
últimos 200 anos.
Antes mesmo da publicação de Frankenstein, escrito por
Mary Shelley, e lançado em 1818, temos o Fausto, de
Goethe, publicado em 1808. Sua interpretação costumeira
soa maniqueísta. Fausto trocou sua alma, vendida ao diabo,
pela glória mundana, ou seja, pela leitura habitual, era o
homem que podia ser bom, mas escolheu o mal histórico.
Mas podemos ver Fausto de uma outra maneira. Como, por
exemplo, uma tensa possibilidade de relacionamento entre
nossas partes, uma barganha entre elas talvez. Seria um
outro exemplo de antevisão da contemporaneidade mais de
um século e meio antes de sua emergência.
O médico e o monstro (O estranho caso do Dr. Jekyll e do
Sr. Hyde) de Robert Louis Stevenson, lançado em 1886,
trata da dualidade, da cisão de um indivíduo, como uma
idéia inaceitável para o mundo moderno da época (uma
idéia aterrorizante). O tema da divisão do indivíduo
também tem um desfecho trágico, porque um dos lados
deve prevalecer e outro destruído para a unidade perdida
65

ser restaurada. Novamente, há aí uma proximidade perigosa entre ciência e loucura.
Aquele que tudo faz em nome da ciência e, por isto, ultrapassa limites éticos, flutua num ponto indeterminado entre sanidade e loucura: o próprio título em inglês de O
médico e o monstro é revelador: Dr. fekyll and Mr. Hyde.
Se tirarmos as duas primeiras letras do nome de Dr. Jekyll, e lermos o que sobra, o veredicto é claro: Kíll the Hide, ou seja "mate o escondido". O outro deve ser eliminado porque eu sou um só (eu não posso ter um outro, um
estranho, em mim).
Finalmente, dentre essas narrativas a mais difundida é provavelmente Drácula, de Bram Stocker, lançada em 1897. Drácula está contaminado, e contaminará muitos mais, porque o vampirismo passa por contágio. É uma coisa que se propaga como uma epidemia em rede, de uma forma rizomática.
Portanto, a contaminação em rede (Drácula), a divisão da alma (O médico e o monstro) e o homem editado (Frankenstein) são possibilidades absolutamente cotidianas e até desejáveis, para nós contemporâneos, mas, no entanto, no século XIX, só podiam encaradas sob a rubrica do horror.
66
A contemporaneidade de uma obra estaria nos meios e nos suportes utilizados por um artista? Sim e não. Você tem obras contemporâneas realizadas com meios convencionais como a pintura e desastres registrados em mídias como o vídeo, inventado apenas há uns 43 anos. Porque uma pessoa que faça um vídeo de uma mulher na praia com um vestido de gaze branco e do outro lado um homem com uma calça arregaçada de linho branco e camisa branca, correndo em câmera lenta um em direção ao outro, é um dejà vu descarado.
A arte contemporânea pode estar em vários lugares simultaneamente desempenhando funções diferentes. Mas, o principal de tudo isso são novos tipos de relação que ela nos faz estabelecer. O novo sujeito não será epistemológico como foi o intentado por Kant, mas estético, um híbrido de contradições, porque o homem contemporâneo precisa de um modelo positivo da vivência da contradição.
Habituamo-nos a pensar que a arte é uma coisa muito diferente da vida, dela separada pela moldura e pelo pedestal. Aliás, a arte foi mesmo isso durante a maior parte de sua história, pelo menos desde a Renascença. A idéia de uma arte que se confunda com a vida é muito difícil de assimilar porque os nossos repertórios ainda são
67

informados por muitos traços conservadores, alguns deles
pré-modernos.
Eu acho que a gente precisa ter um outro modelo onde a
contradição seja positiva e o único modelo desse tipo no
Ocidente é o do artista. O artista junta um rabo de peixe
com um corpo de mulher e cria uma situação
absolutamente verdadeira: a sereia. Junta um banco com
uma roda de bicicleta e cria uma situação verdadeira,
como fez Duchamp.
O único lugar em que o Ocidente conseguiu tornar positiva
uma situação que não é lógica e que não é plausível foi no
campo da arte e o mundo contemporâneo busca o
transbordamento desse modelo do artista para outras
esferas como a teoria, os valores ético-políticos e morais,
a legislação etc. O novo sujeito tem maiores condições de
ser artístico do que epistemológico (Kant). Daí certos
artistas trabalharem quase como cientistas. Quando um
Barrio, por exemplo, registra experiências que não têm
nenhuma importância do ponto de vista teórico-científico,
como quando imprime o corpo de um peixe numa feira em
Lisboa, para ver o que as pessoas acham, e registra isso.
Talvez o mundo contemporâneo seja mais constelar,
menos estrutural. Portanto, a produção de sentido se dá
através de processos de interpretação, e uma mesma
68
realidade pode suportar várias interpretações, sem que
isso gere contradição.
Diferentemente da arte moderna, a arte contemporânea
não possui um campo específico especializado que nos
facilitaria a empresa de designá-la e dominá-la por meio do
conhecimento e da informação. Nenhuma divisão mais do
conhecimento humano tem esse poder, isto não é um
problema exclusivo da arte.
Cézanne se defrontou com certas questões que se abrem
para todos os campos da arte moderna; Duchamp faz a
mesma coisa com a arte contemporânea, embora ele seja
um moderno. Só podemos reconhecer a arte
contemporânea se tivermos conhecimento de algumas
coisas dos processos nela investidos.
Na verdade, quando eu escrevo sobre a arte
contemporânea eu procuro pensar no que uma obra tem,
até porque é da natureza das coisas no mundo
contemporâneo fugirem à classificação em modelos fixos.
Se eu não tenho um padrão fixo para dizer arte
contemporânea, eu tenho dezenas de critérios, alguns
contraditórios entre si, que são combinados e que tecem
uma malha esgarçada que caracteriza os textos
atualmente.
69

Embora antiqüíssima a hermenêutica parece estar, outra
vez, na ordem do dia. Claro está que esse retorno é muito
diferente daquilo que era praticado na leitura das escrituras
sagradas durante a Idade Média inteira, quando havia uma
interpretação analógica e várias formas de interpretação
previamente descritas e que orientavam alguém no
momento em que se ia interpretar um texto.
A expectativa de uma exatidão, de uma precisão, de uma
aplicabilidade que as ciências da natureza nos trazem,
colocou a interpretação num patamar menos aceitável do
jogo teórico, pois perdeu as forças que tinha para uma
noção diferente, a noção de análise, uma prática ligada ao
laboratório. A interpretação permite a coexistência com
outras interpretações. Claro, a interpretação nunca é algo
que se dê na esfera do arbitrário, do "eu acho", para se
legitimar. Mas é diferente, por exemplo, da lei de Newton,
ou da fotossíntese, que não se restrigem à interpretação.
O fato é que a crise das grandes teorias, a crise desses
verdadeiros faróis teleológicos que tudo iluminavam vai
culminar com uma redescoberta e uma revalorização, uma
retomada em novas bases (bastante subjetivas, posto que
baseadas na subjetividade e na erudição de quem está
interpretando) da questão da hermenêutica, da arte de
interpretar. Ela hoje é parte do métier crítico-curatorial.
70
Eu não diria mais que existe crítico de arte, a função crítico
de arte foi substituída por uma função contemporânea,
curador, que é diferente da do crítico, porque o crítico era
aquele que pegava um produto recém-lançado, e às vezes
de uma maneira arbitrária ou não, ele tinha um poder, pelo
menos naquele momento, de dar o veredicto de vida e
morte, se aquilo era bom, ou se não era bom, se era arte,
ou não era arte.
O curador não mais atua nessa esfera, num tipo de tribunal.
Porque o crítico, sobretudo na década de 1950, época do
grande período da crítica de arte com Mário Pedrosa e
Ferreira Gullar, por exemplo, no Brasil; Clement Greenberg e
Harold Rosemberg, nos Estados Unidos; Pierre Restany na
França etc .. tinha esse poder judicante a respeito do que é
bom e do que é mal, pois dispunham de teorias gerais que
lhes emprestavam uma objetividade que de fato não tinham.
Ninguém precisava de um curador no período modernista.
A primeira exposição neoconcreta, realizada no Museu de
Arte moderna do Rio de Janeiro, em 1969, não teve
curador (aliás, nehuma exposição da época o tinha): todos
os neoconcretos sabiam que o eram, por isso não
preciavam de um curador para conceituar o evento e
escolhê-los, pois a tarefa era de sua própria alçada. Fayga
Ostrower, por exemplo, não era neoconcreta e, por isso,
71

não participou. Não somente isso. Tenho certeza de que
ela sequer ficou chateada ou sentiu-se excluída, pois, por
sua própria decisão não aderira ao movimento
neoconcreto.
O mundo contemporâneo não mais valoriza a pureza,
inclusive estilística, buscada obcessivamente pelos artistas
modernos em nome da interface, da multidisciplinaridade e
logo a contaminação, a hibridização e o ecletismo. O
mundo contemporâneo é absolutamente impuro e isto é
para ele um valor. Porque se impureza é conviver com a
diversidade -seja ela étnica, política, sexual etc. -ela
tornou-se um valor positivo da contemporaneidade.
Prefiro mil vezes a impureza que me põe convivendo com
o diferente, à pureza que o exclui. O mundo
contemporâneo é cheio dessas possibilidades. Mas a falta
de um objetivo ou utopia comuns como foram o marxismo
e a psicanálise levam a um contraponto terrível dessa
disponibilidade para com o outro.
Fundamentalistas de todos os teores, neonazistas, pit boys
que saem dando cacetadas por aí querem a pureza, eles
certamente não suportam a diferença. A Klu Klux Klan
também não gosta.
Considerando nossa realidade social e histórica atuais o
que haveria de estranho quando um artista contemporâneo
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faz uma instalação com materiais retirados da própria vida
como jornais, objetos apropriados do circuito industrial (e
mesmo artesanal) de produção de utilitários, coloca às
vezes até produtos orgânicos, ele está dialogando com
coisas muito mais importantes da vida do que cometendo a
picaretagem de querer ser diferente a qualquer preço.
Os ismos eram o ponto onde o indivíduo fazia mediação
com a história. Se Lygia Clark é diferente de Hélio Oiticica,
este de Lygia Pape ou de Franz Weissman e Amílcar de
Castro, eles se inscrevem todos na história como
neoconcretos, e a escolha de ser neoconcreto dependeu de
sua própria escolha.
Atualmente, a maioria dos jovens artistas supõe que sua
obra decorre apenas de suas vivências e experiências
pessoais. Desse ponto de vista ficaríamos aquém da
história, já que, se ficamos na esfera individual, subjetiva,
estaríamos autorizados a fazer, no máximo, uma psicologia
da arte. Para que se faça história da arte, é necessária a
inserção desse indivíduo numa coletividade mais ampla, na
qual ele não quer ou não sabe se inserir. Eu diria que não
quer e não sabe porque num mundo no qual o sujeito, sua
obra e especialização estão em crise não é mais possível a
existência de ismos tal como ocorria no mundo moderno.
A produção contemporânea não pode mais ser agrupada
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em torno da adesão a princípios plástico-formais, uma vez
que, ao transbordar para a vida, afastou-se do campo
plástico-formal que a especializava.
Se a gente conversa com um artista jovem contemporâneo
de um desses grupos veremos que não são as afinidades
formais, plástico-formais ou estéticas (estética aqui como
qualidade do sensível, daquilo que eu vejo, daquilo que eu
possa tocar) que os reúnem e aglutinam. Não! Formam-se
em torno de atitudes, de certas crenças, de certas
convergências subjetivas. A arte contemporânea não
produz ismos como os do modernismo, pois transbordou o
âmbito dos meios plásticos convencionais e contaminou-se
com todas as outras regiões da ação humana e da cultura.
Essa dispersão manifesta-se hoje, de modo inequívoco, no
cotidiano das artes, porque os artistas perderam parte de
seu antigo poder de criar eventos de grupo a partir de
critérios claros e exclusivos como ocorria na era dos ismos
modernos. Essa tarefa migrou para a subjetividade de um
outro agente, o curador, cuja função é a de criar temas,
selecionar os artistas e as obras num circuito de
exposições independentes ou institucionais. Esse novo
agente chega em alguns casos a disputar a autoria de
exposição onde os outros artistas são apenas
protagonistas, porque sua obra é o conjunto da exposição.
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Nós estamos diante dessa questão hoje em dia. Não é uma
questão de vontade ou de intenção maléfica por parte dos
curadores. Sua relação migra da esfera profissional para a
afetiva, já que tanto ele quanto o curador trabalham num
mundo onde a diferença entre o que é público e o que é
privado viu-se abalada com a subjetivação das relações
sociais em escala universal (talvez uma manifestação da
crise do indivíduo).
Um artista contemporâneo que trabalhe com tecido e
bordado que tenha sido esquecido por um curador, seja
porque não goste dele, seja porque não o conhece, numa
exposição que tenha esse tema, entra num circuito, como é
típicamente subjetivo.
É claro que num país como o nosso, onde as coisas são
muito arbitrárias e autoritárias, por enquanto, alguns
grupos de artistas estão propondo como antídoto o
mesmo remédio que se recusam a tomar. Propõem assim
eventos sem qualquer seleção nos quais entra quem quiser
(será que isso é possível?) Todos esses grupos são uma
rejeição à subjetividade do curador. Subjetividade que eu
acho abusiva, delirante até e, muitas vezes, comprometida
com jogadas do mercado de arte.
Se o curador está numa instituição existem limites éticos
que não emanam de nenhuma regra, mas de decisões de
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cada um de nós. Esse é um mundo muito mais difícil, onde
cada um é responsável por tudo, mas é o mundo no qual a
gente vive. Daí precisarmos editar nossa fragmentada
existência: da interioridade (psicanalista), ao corpo
(personal trainer), nossas casas e cidades, nossa fé (gurus)
até nossas relações (internet) e textos (Word).
Nesse ponto sou historicista até à raiz. Acho que isso é
fruto de circunstâncias históricas que não foram criadas
por nenhum de nós. Daí conclusões salvacionistas como
restaurar a janela renascentista ainda que venha de um
grupo de pessoas estão fadadas ao insucesso. Nem adianta
reclamar de eventuais discriminações porque as coisas não
aparecem ou se consagram por voluntarismo, mas por
demandas histórico-sociais efetivas.
Eu trabalho num museu também, sei que esse dilema é um
dilema não só do curador, como dos museólogos, dos
marchands, da legislação de direito autoral, porque a crise
do sujeito, a noção de autoria é uma noção colada com a
noção do indivíduo.
A gente sabe que na música eletrônica, por exemplo, um
DJ como o Dolores, de Pernambuco, o que é que ele faz?
Ele se apropria de fragmentos de outros e faz seu
trabalho. No entanto, pelos padrões autorais vigentes, isso
pode gerar problemas de legislação, aliás, toda vez que a
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arte se renova isso pode ocorrer.
O sampler já é um sintoma de que a noção de arte mudou
radicalmente O que é um autor? O Foucault tem um texto
lindo com esse nome. O autor é um indivíduo? Se um autor
é autor porque publica textos, então, digamos, se
encontrarem um bilhete escrito por ele para a empregada ir
ao supermercado, esse bilhete é uma obra, é de sua
autoria? Claro que não. Então o autor não se delineia com
os mesmos contornos de um indivíduo, ou da pessoa que o
contém.
Um artista é artista só num sentido figurado, ou de seus
sentimentos. Mas um artista seria artista 24 horas por dia,
quando namora, quando dá uma chinelada no filho ou sei lá
o quê? Claro que não! A não ser que seja aquele ente que
vive pensando que tudo é arte, tudo é maravilhoso, visão
que não combina mais com a experiência que o nosso
mundo fraturado nos proporciona, que é um mundo avesso
à contemplação.
Contemplação é, aliás, uma palavra que está fora do nosso
roteiro. Então, é importante que tudo isso que a gente
esteja vendo seja percebido como parte de um campo de
tensões superficiais e complexas, e em rede.
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