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1 Quem forma quem, afinal? Rosaura Soligo Guilherme do Val Toledo Prado É impossível e imoral pretender mudar o Homem, mas pode-se ajudá-lo a mudar a si próprio 1 . Michel Crozier Resumo: Tematizar a formação como um processo de aprendizagem pessoal, que, entretanto, só se torna possível social e culturalmente um processo que é fruto das oportunidades a que tivemos acesso, do efeito que elas exerceram sobre nós e da forma como interagimos com elas. É este um dos propósitos principais deste artigo 2 . A formação, dessa perspectiva, coincide com o conjunto de experiências que produziram aprendizagens ao longo da vida, isto é, que contribuíram para o desenvolvimento pessoal e profissional. É nesse contexto que são tratadas algumas modalidades de formação outro motivo deste texto aqui entendidas como os diferentes tipos de propostas de ampliação do conhecimento profissional: grupo de formação contínua, grupo de estudos, curso, supervisão, assessoria pontual ou contínua, acompanhamento pedagógico, estágio, grandes eventos (congressos, seminários, palestras), dispositivos de autoformação, dentre outros. Essas modalidades são abordadas a partir de pequenos fragmentos de histórias de educadores que narram acontecimentos relacionados à sua formação. Por fim na verdade, o tempo todo é também outra razão deste texto defender a potencialidade da narrativa autobiográfica como espaço privilegiado de reflexão e aprendizagem sobre si e sobre a própria formação e, portanto, como exercício meta- reflexivo de grande importância, como se poderá verificar pela leitura dos depoimentos dos educadores que compartilham suas (meta)reflexões. Essas muitas vozes, que afirmam a autoria de uma prática profissional conseqüente, foram agrupadas em quatro tempos: Processos de autoformação, Processos de formação apoiados na observação de um profissional-referência, Processos de formação em grupos ou pares e Processos de formação centrados na escola. Palavras-chave: formação, formação centrada na escola, modalidades de formação, escrita autobiográfica. Professora e formadora de professores, Mestre em Educação pela Unicamp, Coordenadora de Projetos do Instituto Abaporu de Educação e Cultura e membro do GEPEC Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada. E-mail: [email protected] Professor-doutor da Faculdade de Educação da Unicamp e Coordenador do GEPEC Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, na mesma Universidade. E-mail: [email protected] 1 Epígrafe usada por Rui Canário no livro Formação e situações de trabalho, por ele organizado. Porto: Porto Ed. 2003. 2 Capítulo do livro Professor formador: histórias contadas e cotidianos vividos, a ser publicado pelo GEPEC em 2008.

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Quem forma quem, afinal?

Rosaura Soligo

Guilherme do Val Toledo Prado

É impossível e imoral pretender mudar o Homem,

mas pode-se ajudá-lo a mudar a si próprio1. Michel Crozier

Resumo: Tematizar a formação como um processo de aprendizagem pessoal, que, entretanto, só se

torna possível social e culturalmente – um processo que é fruto das oportunidades a que tivemos

acesso, do efeito que elas exerceram sobre nós e da forma como interagimos com elas. É este um

dos propósitos principais deste artigo2. A formação, dessa perspectiva, coincide com o conjunto de

experiências que produziram aprendizagens ao longo da vida, isto é, que contribuíram para o

desenvolvimento pessoal e profissional. É nesse contexto que são tratadas algumas modalidades de

formação – outro motivo deste texto – aqui entendidas como os diferentes tipos de propostas de

ampliação do conhecimento profissional: grupo de formação contínua, grupo de estudos, curso,

supervisão, assessoria pontual ou contínua, acompanhamento pedagógico, estágio, grandes eventos

(congressos, seminários, palestras), dispositivos de autoformação, dentre outros. Essas modalidades

são abordadas a partir de pequenos fragmentos de histórias de educadores que narram

acontecimentos relacionados à sua formação. Por fim – na verdade, o tempo todo – é também outra

razão deste texto defender a potencialidade da narrativa autobiográfica como espaço privilegiado de reflexão e aprendizagem sobre si e sobre a própria formação e, portanto, como exercício meta-

reflexivo de grande importância, como se poderá verificar pela leitura dos depoimentos dos

educadores que compartilham suas (meta)reflexões. Essas muitas vozes, que afirmam a autoria de

uma prática profissional conseqüente, foram agrupadas em quatro tempos: Processos de

autoformação, Processos de formação apoiados na observação de um profissional-referência,

Processos de formação em grupos ou pares e Processos de formação centrados na escola.

Palavras-chave: formação, formação centrada na escola, modalidades de formação, escrita

autobiográfica.

Professora e formadora de professores, Mestre em Educação pela Unicamp, Coordenadora de Projetos do Instituto Abaporu de Educação e Cultura e membro do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada. E-mail: [email protected] Professor-doutor da Faculdade de Educação da Unicamp e Coordenador do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, na mesma Universidade. E-mail: [email protected] 1 Epígrafe usada por Rui Canário no livro Formação e situações de trabalho, por ele organizado. Porto: Porto Ed. 2003. 2 Capítulo do livro Professor formador: histórias contadas e cotidianos vividos, a ser publicado pelo GEPEC em 2008.

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Como tudo começou

Este texto começou com uma idéia compartilhada e um e-mail enviado para vários educadores. A

idéia era, a duas mãos, escrever um artigo sobre formação e, a muitas experiências, compor uma

narrativa pedagógica sobre como a formação acontece. O e-mail é o que transcrevemos a seguir:

Caros,

A idéia deste texto é aprofundar a reflexão sobre as modalidades de formação que

efetivamente favorecem o desenvolvimento pessoal e profissional dos educadores.

Nas recomendações contidas na dissertação de mestrado ‘Quem forma quem? – Instituição

dos sujeitos’3, está dito:

É recomendável que se leve em conta as diferentes modalidades de formação, que atendem

a diferentes objetivos e/ou necessidades dos profissionais: grupo de formação contínua,

curso, grupo de estudos, supervisão pedagógica (planejada principalmente em função das

demandas do grupo a que se destina), assessoria pontual ou contínua, acompanhamento

da escola e da sala de aula, estágio (observação de um parceiro mais experiente atuando,

presencialmente ou em vídeo), autoformação, palestra, conferência, seminário...

Agora, escreveremos um artigo para um livro, onde vamos tratar do assunto com mais

vagar.

Pensamos então em fazê-lo à semelhança de outros textos que já escrevemos, onde o

principal são os depoimentos de profissionais que narram reflexivamente suas experiências,

e, para tanto, gostaríamos que escrevessem sobre a experiência de formação de vocês (...)4.

Um abraço

Rosaura e Guilherme

Nasceu então este texto, com uma fisionomia um pouco diferente da que se costuma encontrar nos

livros convencionais, reunindo muitas vozes agrupadas em quatro tempos: Processos de

autoformação, Processos de formação apoiados na observação de um profissional-referência,

Processos de formação em grupos ou pares e Processos de formação centrados na escola.

Em todos os casos o que consideramos formação é sempre um aprendizado que acontece a partir da

perspectiva do sujeito, como resposta à necessidade de ampliar o seu conhecimento, o seu saber, a

sua sabedoria.

Para fazer essa afirmação, primeiro nos perguntamos, como também o fizeram Rodrigues e Esteves

(1993): Mas, afinal, o que é uma necessidade? E assim como as autoras, concluímos que:

A palavra necessidade é uma palavra polissêmica, marcada pela ambigüidade. Na

linguagem corrente, usamo-la para designar fenômenos diferentes, como um desejo, uma

vontade, uma aspiração, um precisar de alguma coisa ou uma exigência. Por um lado,

remete-nos para a idéia do que tem de ser, daquilo que é imprescindível ou inevitável. Por

outro lado, a palavra surge com um registro mais subjetivo (...) e neste caso, a necessidade

não tem existência senão no sujeito que a sente (RODRIGUES E ESTEVES, 1993, p. 27)

3 Pesquisa de mestrado realizada por Rosaura Soligo, orientada por Guilherme do Val Toledo Prado, e defendida em 31/08/2007 no

GEPEC, na Faculdade de Educação da Unicamp. 4 E então, para cada destinatário, foi sugerida uma possibilidade a partir do que já sabíamos sobre o seu percurso de formação, mas

nem todos acataram – alguns escreveram um depoimento sobre outra dimensão de seu processo de aprendizagem, diferente da que

havia sido sugerida.

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Depois nos inspiramos em nossos fundamentos:

Tomada de um ponto de vista mais amplo, a formação coincide com o conjunto de

experiências formativas ao longo da vida, ou seja, todas as experiências que produziram

aprendizagens: o convívio com familiares e/ou pessoas significativas desde a infância, a

escolaridade/a vida acadêmica, o estudo, as leituras, o acesso às mídias, a pesquisa, a

produção escrita, as amizades, as viagens, as situações-problema vividas, a reflexão

pessoal e compartilhada, a interlocução com pessoas tomadas como referência, a discussão

das idéias, a psicoterapia, a militância em grupos ou movimentos, a participação nas

instituições, a atuação profissional, o contato com a espiritualidade, a possibilidade de fruir

das artes, das manifestações culturais, da literatura e de todo tipo de conhecimento...

(...) E tal como aqui é abordada, a formação profissional é o conjunto de experiências

formativas relacionadas direta ou indiretamente ao exercício da profissão: aquelas cuja

finalidade explícita é subsidiar a atuação no trabalho – o curso de habilitação e as demais

oportunidades de desenvolvimento profissional – e as que contribuem de modo indireto –

portanto, coincidentes com boa parte das experiências de formação geral acima

relacionadas. (SOLIGO, 2007, p.33)

Desse ponto de vista foram olhadas as diferentes modalidades de formação, aqui entendidas como

propostas de ampliação do conhecimento pessoal e profissional que, entretanto, só cumprem os

propósitos que as justificam quando de fato se convertem em experiência formativa para os sujeitos

a que se destinam, isto é, quando respondem de algum modo a necessidades e inquietações que eles

têm.

É o que passamos a detalhar.

Processos de autoformação

Tornar-se sujeito implica três processos. Um, o de empoderamento

(...) ou o tornar-se sujeito de todos os processos relacionados com o

seu desenvolvimento pessoal (portanto, unificador) e coletivo

(portanto, diversificador). O segundo é a cooperação, acima e para

além da competição (...). O terceiro é a educação contínua e

ininterrupta, prática e teórica, para o exercício dessa subjetividade.

(...) Conhecer tem, por conseguinte, um sentido de experimentar,

vivenciar e, a partir daí, conceituar, ganhar consciência. (...) É

evidente que se trata de uma educação de vida inteira.

Marcos Arruda e Leonardo Boff

Quando olhamos para a formação pela perspectiva do sujeito, poderíamos dizer que, a rigor, trata-se

sempre de autoformação. Entretanto, optamos por assim considerar principalmente as modalidades

que geralmente se constituem por iniciativa pessoal e que são administradas pelo próprio sujeito que

as protagoniza. Selecionamos a seguir algumas das situações consideradas mais significativas nesse

sentido.

A primeira é a história de uma professora alfabetizadora iniciante que conta o quanto o estudo e a

pesquisa para responder às demandas reais da prática pedagógica têm sido constitutivos de seu

processo de desenvolvimento pessoal e profissional.

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Ao longo do meu curso de Pedagogia tive duas experiências que foram fundamentais ao

ingressar na profissão: o estágio na escola pública, uma vez que ainda não exercia o

magistério, e a aprendizagem da pesquisa, ao realizar dois estudos de iniciação científica.

Discutir e refletir a formação docente – a minha formação – e as práticas educativas,

apoiada no diálogo/confronto constante de determinados referenciais teóricos com

elementos reais, originários de situações concretas, me permitiram novos olhares acerca

dos significados e sentidos desta formação, dos elementos que a permeiam e ainda, de sua

relação com as práticas e experiências cotidianas nos espaços educativos.

Muito marcada por essas experiências na graduação, ingressei no desafio do magistério, de

me tornar professora-alfabetizadora na escola pública, cheia de inseguranças, dúvidas e

incertezas, mas também com a crença de que o sentido da docência se dá na tessitura da

tríade ensinar-aprender-pesquisar.

Assim, é na busca pelo diálogo das experiências de formação com os acontecimentos da

profissão, com leituras e referenciais teóricos que me ajudem a compreender o que estou

vivenciando, na partilha e troca com outras colegas de profissão, na observação de

professoras mais experientes (mas que comungam dos mesmos princípios educativos), e

principalmente, na observação atenta, no questionamento e registro permanente dos

acontecimentos e vivências da minha própria sala de aula – tomando-a como um lugar

privilegiado para ensinar, aprender e pesquisar – que tenho alcançado resultados

significativos como professora. Um exemplo desses resultados foi que, no meu primeiro ano

de docência, consegui alfabetizar 28 alunos de uma turma de 30, e os outros dois, no ano

seguinte novamente meus alunos, logo aprenderam a ler. Com certeza, para mim, essa foi

uma grande conquista!

Refletindo sobre todo esse processo, acredito que assumir o estudo e a pesquisa docente

como ações constitutivas do trabalho pedagógico desenvolvido na escola e na sala de aula

é, de fato, imprescindível para a melhoria dos processos de ensino e de aprendizagem, para

fazer da escola um lugar onde todos aprendem, ensinam e se formam!

Tamara Abrão Pina Lopretti5

Como se vê, os desafios colocados pelo exercício profissional são ‘as questões de pesquisa’ que

mobilizam os sujeitos – comprometidos com o trabalho que realizam e com o investimento na

própria formação – a estudar, a procurar respostas, a produzir saberes e conhecimentos.

O mesmo se infere a partir da história de um professor já experiente, que – mais explicitamente –

destaca o importante papel formativo que desempenham os alunos em seu percurso de

aprendizagem:

Comecei a lecionar regularmente em 1990, lá se vão dezessete anos na sala de aula, mas é

surpreendente como este tempo de relógio e de calendário não mede, por si só, o que tenho

sido. Não os sinto como experiência acumulada – ao menos no sentido da

instrumentalização – , não me tornei um ‘expert’ em educação e nem tenho isso como

objetivo. Objetivos? Já os tive, claro, seguidos de ‘estratégias’ apropriadas, como se aluno

fosse uma fortaleza inimiga a ser conquistada, com planejamentos que buscavam o ângulo

certo para a investida final. Hoje lido com as perspectivas, com a sedução dos horizontes

onde não há um ponto de chegada, mas postos elevados de onde se enxerga além, sempre um outro horizonte.

5 Professora alfabetizadora da Rede Estadual em Campinas, Mestre em Educação e membro do GEPEC.

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As paisagens e os horizontes não se dão às conquistas porque nunca estão lá, é a morada

do caminhante, só existem para o olhar. E isso é radical. Na sala de aula, os alunos são

meus parceiros de viagem, geralmente eles me seguem, confiam em mim porque sou mais

experiente e conheço o caminho, mas nem sempre é assim que abrimos a nossa trilha. Para

se caminhar junto, com honestidade, é preciso confiar um no outro, por isso, muitas vezes

eu paro e escuto as sinalizações que eles me oferecem – ou que outras vezes me pedem.

Não existe caminhante solitário. Mesmo um viajante antigo, guiado pelas estrelas, levava

com ele a confiança nos sentidos dados às constelações.

Quem forma quem, afinal?

Marcemino Bernardo Pereira6

O que é instigante nesta narrativa é que o aluno protagoniza o papel de formador do professor!

Raramente este lugar de revelador de caminhos para o mestre é reconhecido e legitimado, a não ser

pelos verdadeiros mestres.

Rangel (2000) nos presenteou recentemente com uma dessas explicações às vezes necessárias para

pôr as coisas nos devidos lugares – uma arrumação das idéias sobre o sentido da palavra ‘aluno’ e

sobre essa condição, nem sempre bem-entendida, em que crianças, jovens e adultos são colocados

na escola. O autor nos faz saber que, embora tenha circulado por muito tempo, entre os educadores,

uma versão fantasiosa da etimologia de aluno – que atribuía a essa palavra de origem latina a

composição a-lumnus7, que significaria ‘sem-luzes’ – alumnus origina-se de um antigo particípio

de alere (alimentar), e significava ‘criança de peito’, ‘criança que se dá para criar’8.

Desse ponto de vista, não só se recupera a história – e um sentido mais justo – de uma palavra que

nos é tão cara, tantas vezes por nós pronunciada e repetida, como se abre a perspectiva de

reconhecer a verdadeira autoria do aluno como ‘ensinante’ do mestre, tal como acontece com a

criança de peito que efetivamente forma os adultos que a tomam para criar, desde que estejam

alertas, curiosos, sensíveis, aprendizes.

Quando o compromisso do professor é organizar o seu trabalho para alimentar seus alunos,

respondendo de algum modo às suas necessidades de aprendizagem, não só rompe-se a dicotomia

entre ‘educar-cuidar’ – porque alimentar pedagogicamente as crianças e os jovens que freqüentam a

escola é justamente ‘cuidar’ deles – mas toma-se os alunos como também formadores no processo

de aprendizagem dos professores.

Em outra dimensão, a história a seguir é parecida. Embora os alunos não sejam os personagens

visíveis na cena, são a razão de ser de uma trama em que a autora aprende pela necessidade de

cuidar de quem cuida dos alunos.

Em 2001, inaugurei um momento especialmente marcante no meu processo de formação

continuada, que inclui minha efetiva ‘pós-graduação’ como pedagoga dedicada às questões

do ensino da leitura e da escrita. Estou me referindo ao período em que integrei a Equipe

Base, no Estado do Rio de Janeiro, do PROFA – Programa de Formação de Professores

Alfabetizadores.

6 Professor de História da Rede Municipal de Campinas, Mestre em Educação e membro do GEPEC. 7 O primeiro componente, a-, seria um prefixo com significado de ‘privação’; e o segundo seria uma das formas da palavra

lumen/luminis (luz). 8 Como pesquisaram e nos informam as professoras Maria Emília Barcellos da Silva e Maria Carlota Rosa, da UFRJ. In RANGEL,

Egon de O.. Para não Esquecer: de que se lembrar, na hora de escolher um livro do Guia? – Livro didático e sala de aula: cômodos

de usar. Brasília: MEC/SEF, 2000.

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A complexidade do Programa não se comparava a qualquer de minhas experiências

anteriores. Éramos responsáveis pela formação dos professores que atuavam, em seus

municípios, como formadores de alfabetizadores; ou seja, tornei-me formadora de

formadores – algo em que jamais havia pensado.

Logo depois, no Município de Duque de Caxias, iniciei nova experiência com o PROFA, na

coordenação de grupos de professores. Nessa altura, eu conhecia muito bem todo o

material do Programa, estava mais entusiasmada do que nunca com as ‘demonstrações

explícitas de aprendizagem’ por parte de cursistas de toda parte do país e seus alunos,

sabia da competência da minha parceira, tínhamos sido extremamente bem recebidas na

Secretaria de Educação... Enfim, o desafio me parecia pequeno.

Ledo engano... Mais uma vez não faltaram situações-problema essenciais para o meu

desenvolvimento profissional.

O ano de 2004 valeu por cinco, no mínimo, para mim em termos de aprendizagens. Cerca

de duzentos professores do 1º ano do Ciclo de Alfabetização da Rede Municipal aderiram

ao Projeto “De professor para professor: um convite ao trabalho cooperativo”!

A relação de autonomia estabelecida pela equipe com o trabalho foi muito... formativa é

mesmo o melhor adjetivo, uma vez que concebíamos, encaminhávamos, registrávamos e

avaliávamos nossa ação, cientes da responsabilidade primordial de fazer o máximo para

que não fossem frustradas as expectativas de aprendizagem de tantos professores.

Depois, em 2005, decidimos concretizar a SOPPA - Sociedade de Professores

Pesquisadores em Alfabetização, uma saída animadora para a aflitiva situação de – em

virtude da mudança de gestores após as eleições municipais – não termos aprovadas as

nossas propostas de continuidade do trabalho com os alfabetizadores.

Na SOPPA, tenho confirmado minhas convicções a respeito da necessidade de irmos na

contramão do isolamento, para enfrentarmos de modo mais proveitoso a típica inquietação

de quem persegue o contínuo desenvolvimento pessoal-profissional e, dessa forma,

promovermos melhores condições para o alcance de propósitos comuns.

Além disso, integrar esse grupo me faz aprender sempre mais sobre possibilidades de

produção de conhecimento pelo professor com base na própria experiência profissional. Ao

contrário do que em geral acontece quando se trata da pesquisa acadêmica, na SOPPA,

somos nós que formulamos as perguntas provocadas por nosso cotidiano de trabalho,

buscamos embasamento para nossas reflexões, organizamos nossos registros, promovemos

a socialização do que, na nossa práxis, julgamos mais relevante para outros professores.

Em grupo, definimos paulatinamente temas prioritários, de acordo com as necessidades de

aprimoramento da nossa atuação, constatadas na prática. Somos autoras e protagonistas

do nosso projeto de formação permanente.

A SOPPA me encoraja a não fugir do desafio de trabalhar em favor de uma escola onde os

“encontros” aconteçam de verdade. Sempre considerei possível que o coletivo de cada

escola provoque nos educadores um efeito comparável ao que a convivência com inúmeras

pessoas instigantes provocou em mim nesses tantos anos de vida profissional.

Cada uma dessas pessoas me ajudou/ajuda a compreender gradualmente a abrangência do

modelo pedagógico que escolhi como orientador da minha prática profissional. Elas me

ensinaram/ensinam a buscar soluções para situações-problema por meio do permanente

exercício de refletir sobre a ação – para articular teoria e prática, visando intervenções

cada vez mais adequadas; de formular metas em parceria; de ampliar relações de

solidariedade; de aprender em colaboração. Mais do que um ‘modelo metodológico de

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formação de professores’, um caminho para responder com maior confiança às

‘provocações’ da vida.

Tereza Cristina Barreiros9

O compromisso de sujeitos formadores com o planejamento de uma ação ‘ajustada’ aos sujeitos que

participam dos grupos de formação é algo que, da perspectiva aqui colocada, gera inevitavelmente

conhecimento. Porque planejar o trabalho com o propósito e o desejo de responder a necessidades

que se sabe ou se supõe dos grupos de profissionais é, ao mesmo tempo, um exercício necessário e

conseqüente de antecipar possibilidades e uma invenção do profissional, que constrói um caminho

de elaboração teórica, de produção de teoria, da sua própria teoria sobre o trabalho que realiza.

Assim, o planejamento é recriado continuamente a partir de um processo de avaliação que revela até

que ponto as propostas e intervenções estão fazendo chegar onde se pretende. Ainda que se apóie de

algum modo no que já aconteceu, ‘planejar é refletir antes de agir’, como muito bem formulou

Carlos Matus (1997, p.40). Se refletir é um exercício intelectual que acontece no durante e depois

da ação10

, havemos de aí incluir uma dimensão a mais: esta reflexão que acontece a priori, que é

anterior à ação.

Como diz a autora dessa narrativa, o movimento produzido por um grupo que pensa junto o

trabalho que realiza gera conhecimento sobre a prática profissional, sobre como tratar as perguntas

provocadas pelo cotidiano, sobre como buscar embasamento para as reflexões, sobre como

organizar os registros do trabalho e das reflexões, sobre como viabilizar a socialização do que se

julga mais relevante para outros profissionais, sobre como ser autores e protagonistas do próprio

projeto de formação permanente. E gera conhecimento sobre a própria produção de conhecimento.

Esse ‘movimento’ se constitui numa modalidade formativa das mais importantes!

Mas se até agora temos tratado do efeito produzido pelo compromisso com os sujeitos a quem os

grupos de formação se destinam, a reflexão a seguir trata de um outro aspecto tão importante quanto

– o efeito produzido pelo compromisso com os sujeitos-leitores a quem os ‘textos de formação’ se

destinam.

Escrever um texto é, de fato, uma atividade complexa. O texto é uma espécie de obra de

arte. Parafraseando Noam Chomsky, quando pontuou a absoluta originalidade de cada

evento de fala, chegando a dizer que o que alguém diz num determinado momento de sua

vida nunca foi dito antes e não será jamais dito depois, poderíamos – quem sabe – afirmar

que o texto é uma obra de arte: traz em si as marcas distintivas de seu autor. E como obra

de arte, é único.

Na difícil arte de escrever, motivações e objetivos comunicativos vão descrevendo rotas.

Uma delas é a rota acadêmica. Na pós-graduação, a chamada é para a formalidade da

escrita. Nada mais natural. A tese ou dissertação exigida no final do curso pressupõe uma

linguagem objetiva e livre de personalismos ou arroubos emocionais. E no afã de atender às

exigências da academia, estudantes pós-graduados vão, mal ou bem, absorvendo a

linguagem hermética de suas ciências. O perigo é a sujeição do escriba a um jargão

monolítico que acaba comprometendo a comunicabilidade. Fica parecendo que a

linguagem acadêmica é invariável e só para iniciados. No caso dos educadores que formam

professores – todos eles oriundos da Universidade – sofre o diálogo formador x formando.

É possível levantar-se a hipótese de que os programas de formação de professores não têm

9 Professora, Fonoaudióloga e formadora de professores. 10 A reflexão se dá na ação, sobre a ação e sobre a própria reflexão, tal nos lembra como Donald Shön (2000) e outros autores.

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repercutido na qualidade da escola, apesar de todo o investimento que recebem, também

porque o diálogo escrito não está funcionando.

No Projeto Formar11

, desenvolvido a partir de 1997 em nove municípios do norte do

Espírito Santo, uma equipe de formadores mestres e doutores, dentre eles especialistas em

linguagem, descobriu-se em crise de escrita. Definimos como eixo do projeto a prática da

leitura e escrita e como dinâmica, o que chamamos de ‘diálogo permanente em rede’. Essa

interlocução à distância, mediada pela língua escrita, concretizou-se em relatórios e

devolutivas que tinham como objeto as práticas de sala de aula e o estudo em grupos de

formação. Os textos que circulavam eram, portanto, relatos de aulas ou discussões em

grupo e sínteses de textos estudados.

No início do projeto, escrevemos textos longos, densos, pesados. Um deles ficou na história

do Formar (“Onde estão os ditongos?”). Tinha 27 páginas e tratava de um assunto bastante

insípido, embora a tentativa fosse de inovar. Foi nossa primeira descoberta: os professores

não conseguiram dialogar com o texto, ou seja, os autores não se fizeram compreender

pelos seus interlocutores.

Daí por diante a escrita da equipe de formadores passou por um constante processo de

construção, contracenando com a escrita dos formandos. O texto dos formadores começou

a respirar e a sintaxe se abriu ao entendimento do leitor, fazendo o pensamento

desabrochar. Pensamento tantas vezes encoberto pela argamassa de estruturas sintáticas

desnecessariamente montadas umas sobre as outras, em subordinações sem fim, ou de uma

organização textual pouco explícita.

E, como era de se esperar, as respostas começaram a aparecer e o diálogo por escrito foi se

estabelecendo de modo mais vivo e mais produtivo.

Euzi Moraes12

Essa breve narrativa revela que vale a pena cultivar a esperança: quando se tem como princípio

utilizar a linguagem em favor do diálogo e, para tanto, considerar verdadeiramente o interlocutor a

quem os textos se destinam, mudam-se os gêneros, mudam-se os modos de dizer, muda-se o estilo,

muda-se a si mesmo como autor. Se a qualidade da comunicação reside na máxima aproximação

possível entre o que se pretende dizer, o que efetivamente se diz e o que pode ser compreendido, ao

escrever, é preciso ter como leitor virtual os sujeitos concretos a quem o texto se destina – ou, pelo

menos, o que se pode imaginar sobre quem são eles de fato.

Por paradoxal que possa parecer, desse ponto de vista, a sujeição do autor ao interlocutor é uma

invenção criativa, uma transgressão, uma subversão dos esquemas hegemônicos de poder

estabelecidos por quem ‘manda’ nas formas da linguagem, uma verdadeira revolução...

A clareza de que no território dos textos, a rigor, não existe uma oposição entre forma e conteúdo,

que no território dos textos forma também é conteúdo, só faz aumentar a importância desse

fenômeno: se o autor quiser comunicar adequadamente seus conteúdos, terá de ajustar a forma

considerando os leitores a quem seus textos se destinam e, assim, estará produzindo uma dupla

criação.

Talvez só assim possamos superar a discriminação que representa a produção de uma escrita

hermética e inalcançável nos sentidos, encoberta de argamassa, especialmente quando se trata de

textos cujo propósito é formativo, especialmente quando são destinados aos educadores. Talvez só

11 Formação em Rede nos Municípios de Atuação da Aracruz Celulose S.A., projeto patrocinado pela empresa. 12 Professora universitária, Doutora em Lingüística, Ex-Secretária de Estado da Educação no Espírito Santo, formadora de

professores e assessora de projetos na área da educação.

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assim possamos superar esse tipo de violência já completamente naturalizada pela cultura

predominante no mundo da educação.

Esse movimento dos autores tem vários desdobramentos importantíssimos: contribui para a

democratização do acesso ao conhecimento, interfere (mesmo que timidamente) na cultura

predominante, requalifica os textos de propósito formativo (que só o serão se puderem ser

compreendidos) e amplia as possibilidades de desenvolvimento pessoal-profissional não só dos

leitores mas deles próprios – os autores.

Em projetos de interlocução a distância, mediados pela escrita, é preciso intensificar ainda mais os

cuidado com os textos e com as formas de comunicação não-presenciais.

O depoimento abaixo mostra o quanto situações de formação bem planejadas do ponto de vista

metodológico, devolutivas que fazem sentido para os cursistas e um tutor que funciona como

parceiro experiente podem fazer toda a diferença e re-significar uma modalidade de formação nem

sempre muito valorizada na comunidade educacional.

A experiência vivenciada por mim em um curso a distância para Orientadores Pedagógicos

Educacionais, oferecido pela Fundação Bradesco (via web), favoreceu aprendizagem

significativa, já que, nesse processo, pudemos trocar informações, angústias, desejos,

relatos de experiências e aprofundar aspectos teóricos e práticos, buscando a contribuição

de outros profissionais e fazendo uso de tecnologias e mídias interativas como suporte para

o debate e análise de questões educativas. Foi um período de invasão de idéias virtuais e

reais que explicitavam intenções e ações, fundamentando a prática docente.

Apesar da distância física, sempre me senti muito próxima da tutora e das colegas de

trabalho da turma – principalmente da tutora, que sempre me deu devolutivas consistentes e

desafiadoras para as atividades realizadas no curso. Nessas reflexões construí, desconstruí

e reconstruí constantemente, em um movimento de ‘ir e vir’ à teoria, refletindo a partir da

prática e exercitando o processo de metacognição. Cada atividade proposta no curso era

como se fosse um ‘mergulho’ no diálogo constante e aberto às novas aprendizagens.

Cláudia Cristina de Oliveira Tejo13

A possibilidade de um programa de Educação a Distância funcionar a favor da aprendizagem de

seus participantes tem a ver com a qualidade das propostas e da interlocução, sem dúvida, mas não

só. O perfil do profissional em formação também conta muito. É preciso que tenha autonomia

intelectual para acessar e potencializar os recursos disponíveis e demandar a parceria do

tutor/formador e dos colegas de curso. Nesse sentido, há uma semelhança com o que é de se esperar

de um pesquisador: que lance mão, no tempo de que dispõe, de tudo o que pode contribuir para o

seu trabalho e o seu processo formativo, inclusive de ajudas externas, não previstas oficialmente.

Eis o relato de uma pesquisadora que fala a esse respeito:

Entrei no Mestrado em Educação e, como aprendiz de pesquisadora acadêmica, estudei

temas estabelecidos a priori, mas que nem sempre eram indispensáveis nesse momento de

tempo mínimo. Aprendi, tive muita orientação importante. Mas certas necessidades da

pesquisa foram determinadas pela interlocução fora dos espaços do Programa de Pós-

graduação.

No exame de qualificação, por exemplo, houve uma sugestão para que eu não usasse

determinado conceito. Fui mesmo incentivada a evitá-lo. Na época, não compreendi os

13 Orientadora pedagógica e educacional da Fundação Bradesco de Marília-SP, participante do projeto de EAD de Formação de

Orientadores Pedagógico Educacionais em 2004 e 2005.

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motivos, porque me faltavam conhecimentos. Continuei estudando, refletindo, levantando

minhas hipóteses. Para não usar o tal conceito, tinha que compreender o porquê. Perguntei

então a opinião de uma amiga que não é da mesma área, mas conhece bem um assunto

semelhante ao que eu pesquisava. Quem sabe ela poderia me ajudar nas necessidades da

pesquisa? Ensinar-me um atalho para descobrir se o investimento no tempo de um novo

estudo naquela altura dos acontecimentos seria ou não inútil. Nossa conversa me mostrou

que, se eu tivesse seguido minha hipótese inicial, teria ido por um caminho muito mais

demorado para depois 'dar com a cara na porta'.

Poderia contar pelo menos mais três experiências semelhantes e de igual importância para

a condução da pesquisa. Não são caminhos estabelecidos pela Academia. São caminhos

narrativos, dialógicos, humanos, que vamos estabelecendo com nossos amigos,

companheiros de jornada.

Liana Arrais Seródio14

O desenvolvimento pessoal-profissional é tanto maior quanto maior for essa capacidade de fazer

boas perguntas e de saber em que portas bater para encontrar respostas, algumas que sejam. E mais:

depende de saber que as respostas às vezes virão de onde não se imagina. Na verdade, quando a

pessoa em formação toma para si a condição de aprendiz – curiosa, ‘antenada’ e perspicaz –

qualquer fragmento de informação, aparentemente insignificante, pode ser um indício, um sinal,

uma resposta. Ou uma nova pergunta, uma nova plataforma de lançamento a outras aprendizagens.

Na trilha desse lugar de aprendiz, passamos a tematizar a seguir as modalidades de formação

ancoradas na observação do outro.

Processos de formação apoiados na observação de um profissional-referência

Se por um lado a necessidade é o mote da aprendizagem, por outro é preciso saber onde satisfazê-la,

isto é, onde aprender. E talvez não seja demais afirmar que é observando alguém mais experiente

naquilo que queremos fazer que podemos aprender mais rapidamente a fazer também. Se esse

alguém, além de se deixar observar em ação, faz o papel de parceiro experiente, então as

possibilidades se ampliam ainda mais. Neste tópico abordamos duas das modalidades de formação

desse tipo: primeiro o estágio – que é quando os profissionais vão ver in loco as experiências de

qualidade que querem conhecer – e depois a análise de práticas exemplares gravadas em dvd/vídeo

– que é quando as experiências de qualidade ‘vêm’ se dar a conhecer aos profissionais.

Quando decidi aprofundar conhecimentos sobre a didática da alfabetização escolhendo o

PROFA (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores) como o caminho para

suportes teóricos e metodológicos, já exercitava o ofício de coordenadora pedagógica de

uma escola particular em São Paulo, na Educação Infantil. A primeira expectativa era a

consolidação de uma concepção construtivista de ensino e de aprendizagem que, por sua

vez, se desdobrava no desejo de sistematização de práticas de alfabetização. Ampliar

repertório, compreender o que se passava nas salas de aula e desenvolver práticas de

formação que contribuíssem, não somente para o planejamento das situações didáticas, mas

para que os professores se reconhecessem como usuários da língua, compartilhando o

significado desse reconhecimento com seus alunos, estavam entre as minhas perspectivas.

14 Professora, educadora musical, Mestre em Educação pela PUC Campinas e membro do GEPEC como pesquisadora convidada.

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No entanto, as bases metodológicas do curso, valorizando a experiência da intervenção

didática como recurso de formação, impuseram a mim uma outra expectativa de

aprendizagem – a necessidade de interlocução com um professor experiente. Assim,

estagiar numa sala de 1ª série, com a Professora Rosa Maria Antunes de Barros, foi uma

das maiores oportunidades de formação que o meu percurso de coordenadora pode

constelar, e o que se desdobrou desse processo, como aprendizagem, superou todas as

expectativas que eu havia formulado para o meu aproveitamento dos estudos. Para além

das instâncias de um campo hipotético ou da observação passiva, fui convidada a interagir

com a vida pulsante das crianças e da professora em situações de aprendizagem para todos.

Em meus registros enfatizo: a gestão super democrática na sala de aula, levada com a maior

responsabilidade e compromisso pela Professora Rosa, não é jargão político, nem discurso

pedagógico. É uma realidade documentada de modo sistemático e apaixonante, tanto pela

professora quanto pelas crianças, nas suas diferentes possibilidades de fazê-lo. A história

que ali se constrói está registrada em cada caderno, diário ou painel, na estante de livros, nas

imagens fotográficas, nos desenhos e nas perguntas das crianças, nas produções coletivas e

na poesia concreta da coreografia das carteiras que se movem na intenção de ajustar o

espaço, às diferentes possibilidades de produtivas relações interpessoais. Nas cartas e mais

cartas comunicando e incluindo os pais nessa história.

Ter vivido essa experiência, propondo-me a conhecer e interagir, nas dobras do cotidiano

da sala de aula, com os processos de ensino e de aprendizagem da língua, tendo como fonte

o diálogo, a comunicação, a fruição de suas potencialidades e o reconhecimento da sua

função social, nas intervenções e interações propostas e mediadas pela professora, tornou-

se uma referência fundamental. Sem sombra de dúvida, a vida que pulsava nessas

interações, potencializou minha formação como coordenadora pedagógica, conduzindo-me

a novas posturas para as entradas em sala de aula e para a interlocução com outros

professores.

Ester Broner15

Certamente nada supera a riqueza da experiência de conviver assim com um profissional talentoso e

aberto ao diálogo sobre o seu próprio trabalho. Mas quando essa não é uma possibilidade concreta,

os recursos tecnológicos de documentação – que pouca utilidade possuem se não tiverem bom uso –

funcionam como a via de acesso às práticas desses profissionais.

Adentrar a sala de aula do outro ainda é constrangedor em nosso meio, pois muitas vezes

nos sentimos como invasores ou mesmo espiões da prática alheia, chegando a ser

desconfortável tanto para o professor da sala como para o colega que ali se insere.

Ao assistir os programas vídeos do PROFA, onde professores alfabetizadores abrem as suas

salas de aula para a observação e a filmagem, muitas questões me foram esclarecidas,

inclusive o constrangimento foi vencido e hoje é com muito prazer que aceito a inserção de

outros profissionais em minha sala de aula.

O PROFA oferece um consistente referencial teórico para nós, professores alfabetizadores,

entretanto, sempre surgem dúvidas de como colocá-lo em prática em nosso cotidiano. E a

partir das situações didáticas observadas nos vídeos – com as professoras compartilhando

como são planejadas e realizadas as propostas, quais seus objetivos, quais as intervenções e

os resultados obtidos – vamos tomando ciência de como transformar o conhecimento

15 Professora, coordenadora pedagógica, Mestranda em Educação na Faculdade de Educação da Unicamp.

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teórico em favor do trabalho com as crianças e vamos também constatando o quanto já

fazemos isso e às vezes nem nos damos conta...

Ítala N. Tomei Rizzo16

Sabemos, já não é de hoje, que a aprendizagem não se dá por imitação fiel de um modelo

‘supostamente’ correto. As aprendizagens – e, portanto, as experiências formativas – são fruto de

uma construção pessoal. A competência profissional não decorre naturalmente da observação de

parceiros mais experientes, talentosos, capazes. Mas a observação ativa de práticas exemplares é um

dispositivo poderoso de formação em qualquer área de atuação. Esse é um direito de todo aprendiz:

se, por um lado, a imitação não garante a aprendizagem, por outro não se pode prescindir de

modelos de referência para aprender. Para fazer igual? Não. Nem seria possível. Para os modelos

serem recriados, transformados, superados.

A tematização da prática pedagógica é hoje uma estratégia metodológica reconhecida como

fundamental para a formação docente e, pela dificuldade dos professores estagiarem em salas de

aula com trabalhos exemplares, a gravação permite ‘trazê-las’ até eles. Acaba sendo, se não a

situação ideal, uma boa alternativa: quando os professores não podem ir até às práticas de

qualidade, elas vêm, filmadas, até eles.

Nos modelos tradicionais de formação, geralmente esse tipo de registro da prática é tão somente

uma ilustração do que está em pauta, um recurso a mais para informar ou para sistematizar o que é

trabalhado – e, em alguns casos, ‘ocupa o lugar’ do coordenador do grupo, que usa o dvd ou o vídeo

como aula, e não como complemento. Há uma tendência muito acentuada de valorizar os chamados

recursos audiovisuais como complementos necessários pelo seu suposto valor em si mesmos – um

bom trabalho, uma boa apresentação teria de contar com alguma parafernália multimídia... Na

verdade, o recurso por si mesmo pouco contribui: o que conta é o uso que dele se faz para

potencializar o tratamento dos conteúdos que se pretende abordar.

Entretanto, quando a proposta de formação se orienta por metodologias que privilegiam a

discussão/resolução de situações-problema, esse tipo de documentação tem outras funções além de

simplesmente comunicar informações: a principal delas é desencadear a reflexão sobre a prática

pedagógica.

A documentação de propostas de sala de aula pode ainda favorecer atividades de simulação, que são

imprescindíveis no trabalho de formação docente. As simulações são situações que pressupõem o

difícil exercício de, tanto quanto possível, se colocar ‘no lugar do outro’, experimentar ‘o papel do

outro’. Em um grupo de educadores, o ‘outro’ pode ser o aluno, o professor, o formador... Estas são

atividades privilegiadas de formação, porque acionam o conhecimento e as representações que os

profissionais de fato possuem, ao ter de realizar uma dada tarefa ou resolver uma determinada

situação-problema. Nesse momento, o que conta não é a capacidade de verbalizar o que se sabe

sobre os objetivos, as concepções de base e os princípios teóricos gerais: as simulações exigem a

explicitação do conhecimento real que se tem, e não o uso de habilidades verbais para organizar o

discurso teórico.

Evidentemente, uma situação de simulação não é uma atividade de ‘dinâmica de grupo’, nem de

dramatização no sentido mais convencional: a simulação é uma situação-problema que, conforme

sugere Ana Teberosky (1997), constitui ao mesmo tempo uma possibilidade de pôr à prova os

conhecimentos disponíveis e aprender sobre o que pensa e faz aquele a quem se procura imitar para

cumprir a tarefa proposta.

16 Professora alfabetizadora na Rede Municipal de Campinas, Mestranda em Educação na Faculdade de Educação da UNICAMP e

membro do GEPEC.

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Comentando especialmente o exercício de ‘tentar se colocar no lugar de aluno’, quando é essa a

proposta, Ana Teberosky defende que:

Além de estimular a observação, esse tipo de exercício ajuda a reconstruir o trabalho

efetuado pelo outro, o que constitui uma prova de adequação de nossa representação ou

teoria sobre os conhecimentos dos alunos. A representação dos professores sobre os

conhecimentos que os alunos possuem, ou não, exerce poderosa influência sobre sua

prática pedagógica. (…) Quando dizemos ‘representação’, estamos utilizando o sentido (…)

que equivale à representação mental. Para imitar o comportamento do outro, é preciso ter

uma representação mental desse comportamento, isto é, um conjunto de idéias mais ou

menos confirmáveis, e com um grau variável de generalidade e precisão. Significa ter uma

espécie de teoria atribuível ao outro. (1997, p. 22)

Essas modalidades de formação que permitem aos educadores se adentrarem pela prática do outro,

seja para pensar sobre ela, seja – pela prerrogativa do ‘E se...’ – para simular papéis, são

fundamentais no processo de desenvolvimento profissional e na produção de conhecimento sobre a

docência.

Processos de formação em grupos ou pares

Pertencer a um grupo, a um projeto, a uma instituição de que se gosta de verdade é imprescindível

para qualquer profissional e as pessoas que se constituem em referência para as outras têm uma

importância formativa muito grande. Um grupo representa um contexto favorável para a

aprendizagem e pode contribuir para o desenvolvimento pessoal e profissional de seus membros

quando há interesses compartilhados, respeito real pelo outro, aceitação das diferenças,

solidariedade em atos, acolhimento, escuta, crença na possibilidade da construção coletiva de

conhecimento, convicção de que ali se encontrarão respostas ainda que parciais para as

necessidades, dúvidas e questões que inquietam – e, se possível, é ainda melhor quando há afeto

real, manifesto em atitudes e gestos. E um grupo contribui pouco para o crescimento e a autonomia

de seus membros quando tenta ‘pasteurizar’ as singularidades, as individualidades, e sugerir uma

unidade de pensamento, um consenso, um posicionamento coletivo que não é real.

As quatro histórias que se seguem são testemunhos ‘do quanto pode’ um contexto favorável. A

primeira delas sobre um grupo de estudos ‘independente’ e as três seguintes sobre experiências

vividas em nosso grupo de pesquisa na Faculdade de Educação da Unicamp, o GEPEC.

Ao assumir a função de coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental, iniciei um

grupo de estudos com a professora Cleide Terzi, que havia sido minha professora na PUC

de São Paulo, tornando-se, a partir de então, uma grande referência profissional para mim.

Participavam desse grupo profissionais que atuavam em escolas e em outras instituições

educacionais.

Os temas de estudo eram eleitos, estudados e discutidos pelos integrantes do grupo, de

acordo com as necessidades e/ou premências do nosso cotidiano de trabalho ou de acordo

com os incômodos/provocações que se faziam presentes nos momentos de reflexão.

Os diferentes olhares, leituras e interpretações (algumas dúvidas e angústias também!) para

as questões de nossa prática ampliavam significativamente as possibilidades de

compreensão dos nossos contextos de trabalho. As análises realizadas com um olhar mais

distanciado das situações, complementadas pelas experiências de outros, confrontadas com

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as leituras e estudos sobre as questões em pauta, contribuíam para a reflexão sobre nossas

concepções/ações, sobre a cultura da escola, sobre o contexto mais amplo de nossas

práticas.

Mônica Matie Fujikawa17

O que vemos nessa narrativa e nas que se seguem é a afirmação de que, a depender de como

funciona, um grupo de estudo-pesquisa é um espaço de constituição de relações interpessoais

produtivas, solidárias e de parceria; de construção e/ou fortalecimento de uma cultura de

colaboração, amizade, trabalho coletivo e compromisso com resultados; de legitimação de ações

instituintes, que possam contribuir para o desenvolvimento da autonomia intelectual de todos...

O GEPEC é constituído por um grupo de pesquisadores que tem um olhar diferenciado e

sensível para as questões ligadas à formação de professores. Como participante desse

grupo, na condição de doutoranda, passei a refletir radicalmente sobre minha constituição

profissional. Deixei de agir quase que só para atender às demandas e passei a extrair muito

mais sentido das experiências vividas e das que estavam ainda por vir. Talvez influenciada

pelo pensamento de filósofos dos quais me aproximei, como Bakthin, Larrosa e Nietzsche,

que me estimularam a realizar vôos livres, menos preocupada com a possibilidade de cair

no precipício. Talvez pelos questionamentos que foram surgindo, que tomaram forma na

figura dos colegas que funcionam como leitores críticos e parceiros no trabalho da

investigação. Talvez pela ação do orientador, curiosamente desconfiado de nossas

verdades, desestabilizando nossas convicções com indagações que por vezes eu não

compreendia muito bem, mas que eram formuladas justamente para me fazer pensar. Talvez

pelo exercício de um tipo de questionamento bem diferente do que protagonizamos aos

quinze, dezoito ou vinte e poucos anos – questionamentos agora feitos num momento onde

se colecionam verdades menos absolutas e mais relativas, verdades ‘prenhes de sentidos’.

Certamente por tudo isso...

Nunca um processo de formação foi tão desestabilizador como o que vivi no GEPEC, pois

havia desacostumado de tentar me ‘descobrir’, de retirar de mim os véus que escondem as

fragilidades, incertezas, equívocos... Houve momentos que me senti desnuda (ou quase) e,

apesar de me encontrar entre pessoas acolhedoras, essa condição é complexamente

desafiadora, mesmo quando a aceitamos como necessária, pelo menos por um tempo!

Hoje estou certa de que grupos de pesquisa como o GEPEC, vêm se ampliando na

comunidade acadêmica. Também em outros lugares há pesquisadores que desenvolvem

processos formativos e investigativos, defendendo a narrativa como gênero discursivo

privilegiado para os educadores escreverem suas histórias e comunicarem os seus saberes e

conhecimentos. Também em outros lugares há pesquisadores que se posicionam a favor de

abordagens metodológicas que pressupõem um sujeito protagonista de seu percurso de

formação e dos diálogos que estabelece sobre sua atuação profissional. Também em outros

lugares há pesquisadores que começam a olhar de verdade para os professores, começam a

enxergá-los não sob a ótica por vezes predominante no mundo acadêmico – que divide,

separa e classifica, na tentativa de explicar os objetos de pesquisa – mas com olhos capazes

de se aproximar daquilo que não é o previsto, o esperado, portanto, que não se traduz de

uma forma reducionista, mas, ao contrário, chama à complexidade para dar conta da

grandeza e diversidade do que é ser professor.

Eliane Greice Davanço Nogueira18

17 Professora, coordenadora pedagógica, formadora de professores, Mestre em Educação pela Unimep de São Paulo. 18 Professora da UEMS, Doutora em Educação pela Unicamp, membro do GEPEC e assessora educacional.

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Em um ambiente árido e revestido de argamassa, como por vezes é a Universidade, esses oásis de

convívio solidário certamente são um alento não só para os que deles desfrutam, mas também para

os que desejam para si uma experiência assim e para os que se interessam em compreender a

potencialidade dos grupos. No caso do ‘Grupo de Terça’, explicado no relato abaixo, há ainda a

vantagem de ser um espaço aberto.

Diferentemente de muitos grupos de pesquisa institucionalizados, o GEPEC abriga em seu

interior, além dos pesquisadores vinculados ao Programa de Pós-Graduação, uma outra

modalidade de membros que também se reúne com os professores e pesquisadores

acadêmicos. É carinhosamente chamado de ‘Grupo de Terça’. Esse coletivo compõe-se de

educadores e educadoras da rede pública e privada de Campinas e de outras cidades da

região que exercem funções variadas no âmbito das redes de ensino. Promove reuniões às

terças-feiras, com periodicidade quinzenal. A sua característica principal é a abertura

democrática à participação de qualquer educador ou educadora que sinta o desejo de dele

se tornar membro e responsabilizar-se pela produção e gestão do próprio grupo. Assim, não

há vínculo institucional e sim de solidário compromisso de manutenção de um espaço intra-

universitário de debate e de produção do conhecimento.

Os temas e questões estudados são escolhidos consensualmente, em geral nos primeiros

encontros do ano, após um período durante o qual são apresentadas as principais

dificuldades, angústias, questionamentos vivenciados pelos educadores nos seus locais de

trabalho. As experiências exitosas também são compartilhadas. Após essa investigação

preliminar do ‘universo’ vivido pelos membros do grupo são feitas as primeiras sugestões

de leituras e trocas de experiências. Um intenso debate virtual se pereniza através da lista

de ‘e-mail’ e nos encontros quinzenais são apresentadas as reflexões trazidas após as

leituras, estudos e conversas com colegas de trabalho, assim como as propostas de

superações, as novas abordagens experimentadas ou apenas ensaiadas e, nesse contexto, as

possíveis elaborações teóricas coletivas começam a ser produzidas pelo grupo.

Ana Maria de Campos19

Como se vê, as modalidades de formação se fazem de fato formativas quando engrandecem de

algum modo os sujeitos a quem se destinam, quando acrescentam em conhecimento, em saberes,

em sabedoria; quando trazem respostas para suas inquietações; quando remetem a inquietações

outras. Em qualquer situação o que está em jogo é sempre a possibilidade de responder ou mobilizar

uma necessidade.

A última história desse breve tempo não é de um grupo, como as anteriores, mas sim de uma

parceria em dupla: professora-orientadora e aluna-pesquisadora.

Ao buscar representar a relação orientanda/pesquisa/orientadora20

construída,

desconstruída e reconstruída durante todo o percurso do mestrado, a imagem que me vem

mais fortemente é a de ‘crianças aprendendo a brincar’. É evidente que esta se constitui

numa afirmação pra lá de esquisita e entendo, inclusive, que corro o grave risco de ser

equivocadamente interpretada por alguns que, entre expressões de susto e contrariedade,

bradariam: ‘Orientadora é para orientar, para dizer o que deve ser feito e como deve ser

feito! Orientar não é brincadeira!’. Antes que me julguem como alguém que,

ensandecidamente estaria desqualificando importante instância do meio

acadêmico/científico, coloco-me em inteira concordância com os que partilham da

19 Professora, Mestranda em Educação pela PUC de Campinas, membro do GEPEC e do Grupo de Terça. 20 Professora Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla.

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seriedade e da responsabilidade que esse processo demanda, obrigando-me, entretanto, a

defender que ‘brincadeira é coisa séria’.

É esta a imagem mais legítima que construo ao rememorar as inúmeras conversas

entabuladas nas reuniões de orientação quando eu, orientanda desorientada, não sabia por

onde ir, quando eu não conseguia sair de onde estava e quando, não raras vezes, eu

pensava em desistir... (não quero brincar mais disso!!!!). Nestas ocasiões, ela, a

orientadora, não me dizia o que fazer: tomava emprestadas todas as minhas dúvidas e

angústias, e, como se fossem dela, com elas brincava e assim ia me convencendo de que a

universidade não é somente para alguns, de que construir conhecimento é possível quando

se acredita na capacidade de diálogo e que a escrita é instrumento poderoso que

impulsiona e sustenta o movimento conjunto de aprender/ensinar/aprender.

Discorrer sobre a orientação ‘recebida’ durante o mestrado seguramente me remete na

contramão da idéia de prescrição como foco central da formação. Formar/se formar,

orientar/se orientar/construir orientação exige muito mais que prescrição: pressupõe ética

para respeitar o ritmo, demanda esforço para acertar o passo, requer determinação para

buscar o compasso. Do outro e de si próprio. Carece do desejo de que o outro aprenda para

poder brincar junto.

Adriana Stella Pierini21

Para produzir conhecimento, para inventar inéditos viáveis na educação, como tanto desejava Paulo

Freire, é essencial a liberdade de ousar e essa ajuda efetiva dos companheiros de percurso. Quando

isso ocorre, quando a proposta é aprender e produzir junto, a fronteira entre o que é individual e o

que é coletivo torna-se muito tênue. O que de fato é fruto da interlocução com o outro ou de uma

reflexão própria, pessoal? No final das contas, não importa...

Processos de formação centrados na escola

Neste bloco, trataremos de algumas modalidades formativas que têm lugar na unidade escolar:

orientação e acompanhamento pedagógico da equipe de professores e parceria Universidade-Escola.

Estar em sala de aula muitas vezes causa a sensação de isolamento, parece que estamos

ilhados, vêm à impressão que as exigências são tantas e os programas são tão pesados que

não dá tempo de se dedicar a outra coisa. Em contrapartida os questionamentos sobre a

prática pedagógica são uma constante. Nossas decisões na sala de aula são influenciadas

por crenças, valores, ideologias, rotinas, estilo pedagógico, reações pessoais...

Por isso, o papel da coordenadora pedagógica da escola onde trabalho tem sido

fundamental para a nossa equipe, auxiliando-nos na superação de resistências ao trabalho

coletivo, explorando nossas singularidades, incentivando a cooperação profissional, as

parcerias, o diálogo, o debate, a reflexão, o estudo. Além disso, há o apoio ao registro do

trabalho e a valorização dos saberes provenientes de nossa prática, o que tem sido

essencial para todos nós.

Márcia Alexandra Leardine22

21 Professora universitária, Orientadora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação de Campinas, Mestre em Educação pela Unicamp e membro do GEPEC. 22 Pedagoga, pós-graduada em Psicopedagogia, Professora das séries iniciais no Colégio Pio XII, em Campinas/SP e membro do

GEPEC.

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Se este primeiro relato é feito por uma professora que destaca a importância do trabalho de

formação e orientação pedagógica, realizado pela coordenadora de sua escola, o segundo é feito por

uma profissional que inicialmente foi professora e depois passou a coordenadora na mesma

instituição. A importância desse tipo de interlocução e o privilégio de poder se inspirar em um

modelo de referência, quando é preciso assumir pela primeira vez um novo papel profissional, são

os temas principais de sua narrativa.

Minhas primeiras experiências como professora na Educação Infantil foram como auxiliar

e as colegas com as quais convivi constituíram-se como presenças significativas no meu

processo de formação. Como professora auxiliar, não tinha tanta ‘responsabilidade’ em

relação à preparação da rotina e funcionava como uma coadjuvante no encaminhamento

das propostas e cuidado com as crianças.

Depois de um ano e meio como auxiliar, assumi minha primeira classe de Maternal.

Embora já tivesse a experiência anterior, a mistura de alegria, expectativa e apreensão

derivava na pergunta inevitável: O que é que eu faço agora? No ano seguinte outra classe –

Jardim I – e a mesma pergunta: O que é que eu faço agora? Depois a 3ª e 4ª séries: O que é

que eu faço agora? Na 1ª série: O que é que eu faço agora? Assumi a coordenação

pedagógica: O que é que eu faço agora?

‘O que é que eu faço agora?’ foi sempre a pergunta instigadora diante do enfrentamento do

novo e que me mobilizava a buscar e construir jeitos de fazer e pensar sobre o meu

trabalho. As dúvidas maiores sempre eram as relacionadas aos conteúdos, isto é, ao como

ensinar. Pude sempre contar com as parceiras mais experientes da escola e com as reuniões

pedagógicas, mas o que mais me ajudou na construção de significados, na superação das

dificuldades e aprendizagem de coisas que eu não sabia foram os encontros de orientação

individual com as coordenadoras.

A relação com as duas coordenadoras que tive nessa época, além de respeitosas e

afetuosas, foram pontuadas pela escuta e pela confiança antecipada. Não tinha problema

não saber e perguntar: O que é que eu faço agora? Não saber era absolutamente possível e

humano. Eu não precisava esconder nada e podia perguntar. Elas me ajudavam na

compreensão dos conceitos, no encadeamento das propostas, na seleção de atividades mais

relevantes. Esse modelo de coordenação eu incorporei, inclusive, na minha própria prática

como coordenadora: rascunhar os conceitos e atividades com as professoras (estudar

junto); registrar num caderno específico as dúvidas, combinados, coisas a providenciar,

contatos a fazer com/para cada professora; organizar as informações sobre cada criança.

O que eu aprendi de mais significativo sobre Alfabetização também foi no contexto das

supervisões com as coordenadoras e assessoras externas, que obedeciam a essa mesma

postura de escuta e consideração positiva. Idem para atendimento e orientação familiar. O

mesmo para a aprendizagem da Língua Inglesa e para o ensino da Geografia. Aprendi com

as minhas coordenadoras e com esses assessores ‘fazendo junto’: perguntando, registrando,

estudando, criando roteiros, desenvolvendo problemas, produzindo material didático.

Aprendi a ser coordenadora assim: não espero, necessariamente, que os professores saibam

o que fazer diante de uma série com a qual eles nunca trabalharam. Eu compartilho o que

sei e o que não sei eu vou perguntar para quem sabe: O que é que eu faço agora? Tem sido

sempre assim. Renata Barrichelo Cunha

23

23 Professora da Unesp de Rio Claro, pedagoga, Doutora em Educação pela Unicamp e membro do GEPEC.

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A capacidade de inspirar confiança e de exercer uma liderança construtiva, de parceiro mais

experiente em certos domínios (características das pessoas que tomamos como referência na vida),

aliada ao empenho efetivo na construção do coletivo, como se vê, é o que pode favorecer a

constituição de grupos realmente formativos e de uma cultura de aprendizagem em colaboração.

Profissionais com esse perfil são potencialmente bons modelos de referência.

Às vezes, os processos de formação são intencionalmente apoiados na observação de profissionais

com características desse tipo, como nos casos relatados no tópico anterior – seja na situação de

estágio ou de análise de práticas documentadas em dvd/vídeo. Mas às vezes só é possível nos

darmos conta do quanto alguns colegas de trabalho marcaram nossa identidade profissional quando,

mais adiante, temos que assumir uma função semelhante à deles.

O texto abaixo conta a experiência de uma profissional que conseguiu se fazer referência e

contribuir para a constituição de uma cultura de aprendizagem coletiva na escola, a partir de uma

medida pouco simpática e que tende a causar fortes resistências: o cumprimento de um horário de

trabalho coletivo que não se fazia...

Quando, ao final de 2005, assumi a Coordenação de Ensino na escola, o trabalho de

formação não estava acontecendo como deveria. Juntamente com a pessoa da Equipe de

Acompanhamento da Secretaria de Educação, responsável por nossa escola, conversarmos

com os professores sobre a necessidade de efetivar os grupos de estudos. Houve uma

grande resistência por parte de alguns colegas, pois permanecer após o horário de trabalho

para estudar parecia algo impossível. Esse foi apenas o inicio da batalha. Os professores se

chatearam muito com a ‘cobrança’ talvez por acreditar que estávamos querendo mudar a

ordem das coisas ou, em outras palavras, a rotina deles.

Foi difícil! A meta era efetivar os grupos de estudos semanais. Embora tivesse ficado claro

que era necessário participar das reuniões, pois haveria lista de presença e relatórios de

participação, achei importante ‘seduzi-los’. Passei a fazer isso de várias formas: deixava

propositalmente material da formação sobre minha mesa para que desejassem ler;

comentava o quanto havia sido interessante o trabalho de formação do qual eu tinha

participado na Secretaria da Educação; apresentava algumas sugestões de atividades e

dizia que o restante eles estariam vendo nas reuniões; durante a semana, entregava

bilhetinhos do tipo ‘Amanhã nosso encontro vai ser muito interessante. Vamos estudar tudo

sobre HQ. Não perca’; passei fazer as reuniões no mesmo dia em dois horários diferentes,

deixando que os professores escolhessem o horário mais conveniente, independente do

turno de trabalho, uma vez que a pauta era a mesma.

Resultado: Deu certo! A freqüência dos professores era sempre superior a 90%. Eles

perceberam que o que se discutia era interessante, prático e possível de realizar. Fazíamos

não só análise de atividades didáticas, mas também simulações, o que favorecia a

compreensão das propostas. Eles passaram a se divertir nos encontros. Com o tempo,

conseguimos até mesmo realizar encontrões nos feriados, onde passávamos o dia todo

juntos, e até mesmo almoçávamos na própria escola. Ainda há muito a avançar, mas essas

conquistas foram bem significativas, principalmente porque a aprendizagem das crianças

melhorou muito nos últimos anos. O fato é que não fazíamos mais para melhorar a

qualidade do nosso ensino por falta de conhecimento de como agir em cada situação.

Agora integro a equipe de ensino da Secretaria de Educação e, pessoalmente, não poderei

dar continuidades a esse trabalho, mas sei que, com certeza outros darão.

Gleicicleia Gonçalves de Souza Dias24

24 Professora da Rede Municipal de Rio Branco-AC, pedagoga, coordenadora pedagógica, pós-graduada em Psicopedagogia.

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Sem dúvida a persistência e a firmeza de propósitos são ingredientes fundamentais para produzir as

transformações que se considera necessárias em ambientes pouco favoráveis à aprendizagem. Não

há como mudar uma cultura estabelecida, que regula o funcionamento institucional e as relações

profissionais com o discurso do ‘assim devemos ser’. É preciso criar dispositivos, mobilizar a

necessidade e o desejo, reconfigurar o jogo. Não tem como ser diferente...

E agora uma última história, mas nem por isso menos instigante. Muito pelo contrário. Até porque

trata de uma questão que nos é muito cara: a relação Universidade-Escola. Aqui, um relacionamento

que deu certo. Uma experiência singular. Uma esperança de que as coisas podem ser de outro

modo. Melhor para todos.

Cheguei à EMEF Padre Francisco, em 2003, com uma proposta de parceria entre a

universidade e a escola. Meu objetivo era contribuir com as discussões, conversando a

partir dos problemas e dilemas apontados pelo corpo docente e pela equipe de gestão,

buscando soluções conjuntas, refletidas coletivamente.

Ao longo destes anos, temos percebido que o investimento que os professores vêm fazendo

no seu processo pessoal de aprendizagem, como aprendizes e estudantes nos diversos

grupos de trabalho da escola, teve uma implicação direta no processo de aprendizagem de

seus alunos. Isto também aconteceu comigo: uma psicóloga, formada há mais de vinte anos,

mas que poderia ter meu processo de desenvolvimento profissional e pessoal promovido

na/com a escola, provocando mudanças na minha prática também como docente da

universidade. Estou e sou profundamente implicada nas transformações que foram lá

acontecendo. Não só o processo de reflexividade dos professores mas também o meu foi se

ampliando, porque me sinto parte integrante da escola, do seu grupo de pessoas, que se

emociona, se sensibiliza, se angustia, se desespera, mas, principalmente, se orgulha de

perceber o movimento de transformação pelo qual todos fomos passando.

Assim, a parceria inicialmente sonhada foi sendo (co)instituída: universidade e escola

buscando soluções conjuntas. Não precisava ter (de antemão) as respostas aos dilemas dos

professores, bastava que refletíssemos acerca deles. Penso que é fundamental que possamos

ouvir o que a escola e a experiência dos docentes nos revelam. Sem dúvida, é muito mais

fácil (ou menos difícil) começar um trabalho compartilhado quando é isso o que todos

esperam e desejam. Mas isso também não é garantia de que as condições institucionais

serão favoráveis. De início, não sabíamos que chegaríamos ao ponto de transformação a

que chegamos: sem possibilidades de retrocesso. O que nos fundamentava era a certeza de

que, se não houver a tão propalada parceria nos processos de planejamento e tomadas de

decisão, nada será efetivamente consolidado. Atualmente, percebemos que o discurso e as

ações dos professores foram radicalmente alterados. Os meus também. Hoje, nos diferentes

espaços de discussão, mais ou menos formais, há uma grande preocupação com ações

prospectivas, na direção dos objetivos que se deseja alcançar.

A princípio – agora compreendo – eu tentava sempre ensinar algo aos professores, como se

estivesse lecionando, dando um curso, uma aula. Aos poucos isso foi mudando: tanto os

debates quanto o meu parceiro da universidade no projeto foram me mostrando que, mais

do que a narrativa e o discurso, deveria haver uma ação compromissada com o

desenvolvimento profissional e pessoal dos professores. Isso fez toda a diferença!

Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla25

25 Psicóloga com mestrado, doutorado e pós-doutorado em Educação, Professora do Departamento de Psicologia Educacional da

Faculdade de Educação da Unicamp, pesquisadora na EMEF Padre Francisco Silva e membro do GEPEC.

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Como já defendemos anteriormente (SOLIGO, 2007), é recomendável não esquecer que a natureza

do trabalho dos profissionais da educação pressupõe necessariamente o desenvolvimento de

atitudes, valores e procedimentos adequados ao desempenho de suas funções e essas não são

conquistas que se obtém apenas estudando. Procedimentos se aprendem pela experiência e (melhor

que seja) com ajuda. Atitudes e valores se aprendem participando de situações, contextos e

ambientes em que estes são imperativos consensuais, naturalizados pela importância que têm – ou

seja, predominam e regulam as ações e relações estabelecidas, ainda que nem sempre tenham sido

discutidos explicitamente. Estudar, pesquisar, discutir questões teóricas devem estar, acima de tudo,

a serviço de uma prática de melhor qualidade. Também por isso é recomendável que as propostas

de formação tomem de fato os profissionais da educação como sujeitos e protagonistas de seu

processo formativo e se pautem principalmente na tematização da prática, na reflexão sobre

situações-problema reais e/ou simuladas, em propostas que possibilitem a constituição de contextos

favoráveis para o desenvolvimento pessoal-profissional. E por isso tudo é recomendável que se

considere a formação centrada na escola como uma modalidade privilegiada para os educadores,

por razões que estas histórias (bem-sucedidas) evidenciam.

CUNHA (2006) nos brinda com uma bonita formulação teórica que justifica essa escolha:

A formação centrada na escola, como estratégia formativa, é, basicamente, composta por

três elementos principais: por fazer coincidir o trabalho/formação no

espaço/tempo/pessoas, ou seja, fazer com que o exercício do trabalho permita aprender a

aprender com a experiência, instituindo um processo de aprendizagem permanente; por

organizar a formação sob a forma de projetos de ação para responder aos problemas

identificados em contexto; e por abandonar a idéia de transferência da formação segundo

uma lógica de aplicação, instrumentalização, escolarizada.

A escola, nessa perspectiva, se transforma numa comunidade profissional de aprendizagem,

marcada por uma cultura colaborativa. A ênfase da formação deixa de ser o professor

individualmente e passa a ser a formação de equipes (p.223-224).

Sem dúvida, as modalidades de formação que têm lugar em outros espaços que não a escola – no

âmbito da Secretaria de Educação, das Universidades e demais instituições, inclusive no âmbito

privado, das escolhas pessoais relacionadas às modalidades de autoformação – são importantes e

necessárias. Mas não há como negar que, em se tratando dos educadores, os processos de formação

centrada na escola, quando de fato acontecem como tal, tem uma potencialidade ímpar – inclusive

para os profissionais que se integram à comunidade escolar em projetos de parceria como este

tratado no último relato.

Concordamos inteiramente com CANÁRIO (2000) que os contextos de trabalho têm uma potência

formativa que não pode ser desconsiderada; que para fazê-la realidade é preciso que os educadores

tomem a prática que tem lugar na escola (a sua própria, inclusive) como objeto de reflexão e

pesquisa; que para tanto há que se criar condições favoráveis para que os profissionais transformem

as experiências em aprendizagens; que a dimensão coletiva e interacional é o que amplia a

possibilidade de formação dos sujeitos na escola; que, para todos nós, a aprendizagem coincide com

o processo de autoconstrução como pessoa ao longo da vida.

Essa concepção pressupõe como formativas as situações em que se articulam o conhecimento

profissional e a reflexão sobre a prática para, com os pares, responder a desafios e problemas

colocados no contexto do trabalho – o que demanda, evidentemente, criar as condições para que

esse processo aconteça.

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Porque escrever é fazer história.

Pretendíamos, desde o início, defender a narrativa autobiográfica como espaço privilegiado de

reflexão e aprendizagem sobre si e sobre a própria formação e, portanto, como exercício meta-

reflexivo de grande importância. Por essa razão, optamos por um formato pouco convencional para

o texto: uma narrativa pedagógica tecida a partir de outras tantas narrativas, onde estas não são

meras ilustrações decorativas do cenário, mas, ao contrário, constituem a ‘alma’ da história, se é

que podemos falar assim. Nesse sentido, assumimos o desafio de tecer o texto à moda de um

patchwork – não uma colcha de retalhos costurados ao acaso, mas sim um trabalho de composição

cuidadosa, a partir de composições outras.

Marília Amorim (2002) afirma que é impossível restituir, em nossos textos, o sentido originário das

citações que utilizamos, porque o texto se constitui sempre como um novo contexto... Lembra-nos

que, do ponto de vista bakhtiniano – tomado por ela (e por nós) como referência – o sentido original

não existe, pois tudo que é dito é dito a alguém e deste alguém dependem a forma e o conteúdo do

que é dito. E acrescenta ainda que a voz do autor pode ser ouvida no ponto crucial de encontro entre

a forma e o conteúdo do texto e que, quando se analisa um texto e se consegue identificar a relação

necessária entre o que é dito e o como se diz, é possível acreditar que se encontrou a instância do

autor.

Nosso desejo é que este texto dê a ver (e um pouco a saber) a instância dos autores de todas as

histórias, que afirmam, em palavras solidárias, o quanto são importantes as iniciativas (aqui

chamadas ‘modalidades de formação’) para, tal como o formulou Crozier, ajudar o Homem a

mudar a si próprio.

Nosso desejo é também que este texto dê a ver (e muito a saber) o quanto a afirmação das narrativas

pedagógicas como textos legítimos para os educadores registrarem os seus dizeres é uma forma de

resistência à hegemonia de certos gêneros discursivos de mais prestígio. O que são essas narrativas?

Textos escritos por profissionais que compartilham lições aprendidas a partir da experiência, da

reflexão sobre a própria experiência, da observação da prática dos pares, da discussão coletiva, da

leitura, do estudo, da pesquisa. São memoriais, novelas de formação, cartas pedagógicas, crônicas

do cotidiano, depoimentos, diários, relatos de experiência e de pesquisa... textos como os que dão

alma a este texto.

Podemos considerar narrativa pedagógica todo relato que se deixa ler enquanto que inclui a

possibilidade de que se derive um ensinamento de sua leitura. É claro que existem narrativas

cujas marcas pedagógicas são mais enfáticas. E também existem narrativas que ninguém

diria que são narrativas pedagógicas, mas que admitem uma leitura em termos de algum

ensinamento de que são portadoras (...). No entanto, se considerarmos ‘ensinamento’

qualquer afirmação geral sobre a existência humana, à qual a obra possa dar lugar, ou

qualquer influência que a obra possa exercer sobre o leitor, toda narrativa poderia ser

pedagógica, sem prejuízo de suas outras dimensões. E, seguindo essa via, poderíamos

chegar à conclusão de que o caráter pedagógico de uma narrativa é um efeito de leitura,

dado que todo relato, toda ficção pode-se ler a partir do pressuposto de que contém um

ensinamento. (LARROSA, 2000:129)

Tomamos a liberdade de adaptar esse texto de Larrosa, fazendo uma única substituição de palavra26

,

pois ele diz, melhor do que poderíamos, o que é a dimensão pedagógica a que nos referimos.

Também nessas pequenas contravenções se pode encontrar a instância dos autores...

26

A palavra ‘novela’ foi aqui substituída por ‘narrativa’, uma vez que o sentido não se altera significativamente e a

abordagem do autor coincide com a que defendemos.

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