Que África Escrevemos?

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QUE ÁFRICÁ ESCREVEMOS? JOÃO PEDRO GARCEZ [ii]

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Artigo sobre o uso da litteratura de Mia Couto para o ensino de História da África

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  • QUE FRIC ESCREVEMOS? JOO PEDRO GARCEZ [ii]

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    Que frica escrevemos?[i]

    JOO PEDRO GARCEZ [ii]

    I.

    Emanaremos desde uma constante indagao: como

    estudar a histria da frica da maneira mais adequada?

    A disciplina histrica, constituda no Ocidente, estaria

    apta a tratar das especificidades da experincia

    africana no que diz respeito ao trauma causado pela

    experincia do colonialismo e aps?

    Com ele, o continente africano teria sofrido um longo e

    doloroso efeito traumtico. Este efeito no me parece

    estar evidente nas narrativas histricas as quais

    tradicionalmente trabalhamos. Por vezes, a histria da

    frica nos chega atravs de autores que sequer l

    estiveram; poderiam ento escrever sobre como esses

    eventos foram (ou esto sendo) experenciados? E,

    mais importante, ser que a abordagem que damos a

    tais trabalhos contemplam os sentimentos africanos?

    Este texto no deseja apenas questionar a capacidade

    da historiografia trabalhar com tal trauma, mas tambm

    trabalhar uma possvel perspectiva alternativa para tal

    dificuldade: a literatura. Por meio da obra do

    moambicano Mia Couto, nos aproximamos de uma

    experimentao da condio africana. Atravs dela,

    [i] Artigo escrito para a

    disciplina de Histria da

    frica, no inverno de

    2015.

    [ii] Graduando do curso

    de Licenciatura em

    Histria, na Universidade

    Federal da Fronteira Sul

    (UFFS), campus Erechim.

    E-mail:

    [email protected]

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    tentarei refletir acerca dos questionamentos abertos, obviamente sem a

    pretenso de encerr-los.

    II.

    O romance coutiano escolhido para matutarmos tais indagaes Terra

    Sonmbula. Foi o primeiro romance que Mia Couto publicou, em 1992, no

    final dos dezesseis anos em que o Moambique esteve em guerra civil,

    deflagrada logo aps a Independncia, contexto que retornaremos. Na

    narrativa, dois jovens so protagonistas, Muidinga e Kindzu. Histrias que

    se cruzam, mas que so trabalhadas criativamente de maneira distinta, a de

    Muidinga em terceira pessoa e a de Kindzu em primeira, atravs da leitura

    de seus cadernos pelo primeiro, que os encontrara em uma mala

    abandonada. Os dois personagens so jovens que esto em deslocamento,

    buscando um novo rumo, aps a guerra t-los afastado de suas terras de

    origem. Muidinga no recorda seu passado, Tuahir o encontrara

    extremamente doente num campo de deslocados, e ento o adotara como

    sobrinho. J Kindzu, aps presenciar sua aldeia e famlia ruirem, resolve

    partir para juntar-se aos guerreiros naparamas, na luta contra a guerra. Esta,

    aqui age das mais diversas formas nos personagens: lhes condiciona as

    aes, lhes cerra as esperanas, lhes tira o prazer de viver.

    O tempo passeava com mansas lentides quando chegou a guerra. Meu pai dizia que era confuso vinda de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilgios. No princpio, s escutvamos as vagas novidades, acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue foi enchendo nossos medos. A guerra uma cobra que usa os nossos prprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia j no samos, de noite no sonhvamos. O sonho o olho da vida. Ns estvamos cegos.

    [Kindzu. Terra Sonmbula, Mia Couto, p.17]

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    Tambm vivera a guerra o prprio Mia, tendo o livro sido terminado um ms

    aps o fim dela. Cabe pensarmos o carter testemunhal do seu relato, que

    fora destacado por Paiani (2013a). O escritor teria ido contra uma poltica

    oficial do esquecimento, atravs de uma outra narrativa onde quem est em

    cena face a guerra so suas vtimas, em contraponto as figuras mais

    lembradas, como os ento presidentes do Moambique e da RENAMO. 1

    Mia descreve a dimenso humana dos personagens, criando ao leitor

    empatia por estes diferentes, isto , nos solidarizando como humanidade.

    Seus personagens vm do povo. D voz queles que teriam sido duramente

    atingidos pela guerra. (PAIANI, idem) Ainda segundo a autora, Mia teria

    percorrido os interiores moambicanos em sua atuao como jornalista,

    ouvindo e identificando-se com as vozes feridas pela guerra, as quais

    procurou memorar no Terra e tambm em outras de suas obras.

    Os escritores moambicanos cumprem hoje um compromisso de ordem tica: pensar esse Moambique e sonhar um outro Moambique. Correm o risco, como todos os outros criadores de outros pases, de serem devorados por essa mesma ptria que eles ajudaram a libertar.

    [Mia Couto, Que frica escreve o escritor africano?, p.63]

    Mia Couto recupera a guerra em suas pginas. Como esclarece neste texto,

    da coletnea Pensatempos, quer escrever uma frica que aceite suas

    mestiagens, que iniciaram-se nela e deram-se tambm durante o

    colonialismo, junto ao qual foram reinventados seu passado e suas

    tradies. Logo, no Terra Sonmbula, ele vislumbra a possibilidade do

    Moambique livrar-se do fardo colonial, rememorando, e, a partir da,

    recuperando a expectativa de um futuro, ou seja, retomando as esperanas.

    No sonho de Kindzu, quando lhe reaparece o feiticeiro de sua aldeia,

    1 De nomes aqui, somente em nota de rodap: Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama.

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    permeado de misticismo, noto, talvez erroneamente, algo como Mia

    assumindo a voz em um personagem, retratando seu compromisso social

    com a frica e com o Moambique. Lemos:

    - Chorai pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que viro sero ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperana. [...] Vs vos convertsteis em bichos, sem famlia, sem nao. Porque esta guerra no foi feita para vos tirar do pas mas para tirar o pas de dentro de vs. Agora, a arma a vossa nica alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos so vossos, nada de vossa terra vos pertence, e at o cu e o mar sero propriedades de estranhos. [...] No final, porm, restar uma manh como esta, cheia de luz nova e se escutar uma voz longnqua como se fosse uma memria de antes de sermos gente. E surgiro os doces acordes de uma cano, o terno embalo da primeira me. Esse canto, sim, ser nosso, a lembrana de uma raiz profunda que no foram capazes de nos arrancar. Essa voz nos dar a fora e um novo princpio e, ao escut-la, os cadveres sossegaro nas covas e os sobreviventes abraaro a vida com o ingnuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se far se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que j no somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu.

    [Feiticeiro, Terra Sonmbula, Mia Couto, p.202]

    III.

    Agora cabe retornarmos ao contexto, tal como prometido. J parece

    palatvel pensarmos que a guerra vivenciada por Mia Couto teria sido

    influente na escrita do Terra, o romance como uma narrativa alternativa ao

    seu esquecimento, como memria daquela. O que estava acontecendo no

    Moambique ento? Como o colonialismo, do qual falamos, est atrelado a

    guerra? E, em que medida, Mia a experimentou?

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    Conforme Paiani, a guerra civil moambicana, a qual abarca o espao

    temporal tanto da narrativa do romance como do processo de escrita de Mia

    Couto, deflagrou-se logo aps a independncia de 1975. Nela, se opunham

    a FRELIMO, ligada Frente de Libertao de Moambique, e a RENAMO,

    ligada a Resistncia Nacional Moambicana. A historiadora caracteriza a

    FRELIMO como responsvel pela guerrilha da libertao nacional entre

    1964 e 1974 e pela presidncia do pas aps a independncia, e a

    RENAMO movimento armado de vis conservador que visava a destruio

    da FRELIMO do poder face ao [seu] carter socialista do governo. (2013a,

    p. 205)

    A FRELIMO, durante a luta anticolonial, teria tido a aproximao de

    intelectuais simpatizantes da causa, como Mia Couto, ento jornalista,

    encarregados de relatar a verso dos fatos diversa daqueles que

    comungavam com a ideologia do agonizante Terceiro Imprio Portugus.

    (PAIANI, 2013a, p.206). Aps a libertao do Moambique, institui-se o

    governo da FRELIMO, de vis socialista, o que causou a guerra com a

    RENAMO. Porm, com outro trabalho de Paiani (2013b), notamos uma

    abordagem crtica de Mia Couto ao governo, ps-independncia, da

    FRELIMO. H um abismo entre a maioria pobre, como os personagens

    principais, e a minoria rica, mostrada atravs dos polticos: o administrador

    de Matimati, Estvo Jonas e o portugus Romo Pinto (trazidos nos

    cadernos de Kinzu). Estvo, onde podemos ver mais incisivamente uma

    crtica a FRELIMO, seria um dos novos ocupantes de cargos pblicos, com

    atuao desastrada e corrupta na nova funo, como quando deixa a

    populao do campo de deslocados faminta enquanto h recursos

    disponveis, por isso chamado de administraidor, no livro.

    Por outro lado, no a oposio poltica entre FRELIMO e RENAMO que

    ganha destaque no Terra. A histria nos conta as consequncias da guerra

    no povo, como j destacado, e tambm as lutas de resistncia, como a inicial

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    busca de Kindzu, de lutar contra a guerra. A escrita do romance e a ausncia

    de um heri nacional, consoante com o exposto por Paiani (2013b), pode

    ser sintomtica de uma poca que requeria o deslocamento do olhar do

    indviduo para o coletivo do heri morto para o povo que vinha lutando para

    sobreviver. (p.57)

    IV.

    Entretanto, no me parece adequado pensar o Terra Sonmbula como uma

    verso diferente da histria do Moambique somente pela perspectiva da

    guerra e do colonialismo. No estaramos assim caindo no que Chimamanda

    Adichie (2009) chamou de perigo da histria nica? Para a escritora

    nigeriana, o Ocidente carregaria uma nica histria da frica, a de

    catstrofes. Assim, a posio padro em relao ao continente africano seria

    de piedade, no de seres humanos iguais. Decerto no reproduzimos esta

    piedade em alguma medida ao focar nos males que o Ocidente provocara a

    frica, como o colonialismo e a escravido negra? No que estes sejam

    assuntos descartveis, mas para superarmos tal perigo, precisamos dar

    ouvidos a outras histrias sobre frica. Como diz Adichie:

    Todas essas histrias fazem-me quem eu sou. Mas insistir somente nessas histrias negativas superficializar minha experincia e negligenciar as muitas outras histrias que formaram-me. A nica histria cria esteretipos. [...] Claro, frica um continente repleto de catstrofes. H as enormes, como as terrveis violaes no Congo. E h as depressivas, como o fato de 5.000 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigria. Mas h outras histrias que no so sobre catstrofes. E muito importante, igualmente importante, falar sobre elas. Eu sempre achei que era impossvel relacionar-me adequadamente com um lugar ou uma pessoa sem relacionar-me com todas as histrias daquele lugar ou pessoa. A consequncia de uma nica histria essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o

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    reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difcil. Enfatiza como ns somos diferentes ao invs de como somos semelhantes.

    [Chimamanda Adichie, The danger of a single story, 2009]

    E como a narrativa de Mia insere-se nesse debate de Adichie? Vou c propor

    um dissenso ao invs de uma resposta. Por um lado, Mia Couto trata do

    contexto de guerra de maneira trgica, como evidenciam alguns trechos de

    falas dos personagens: Muidinga querendo limpar o machimbombo antes

    dele e Tuahir ocuparem-o, - Lhe peo, tio Tuahir. que estou farto de viver

    entre mortos."; ou Kindzu, diante das desventuras acontecidas em sua

    aldeia, eu tinha de sair dali, aquele mundo j me estava matando.2 Essa

    perspectiva poderia estar ligada ao que o mercado editorial espera ouvir

    acerca da frica e, talvez, poderia explicar o sucesso de Mia? So

    questionamentos, sem respostas, que tambm Paiani fizera em seu texto.

    Se isto pode explicar o sucesso de Mia, ainda me parece injusto pensar sua

    narrativa s desta forma. Ento, doutro lado, pensaremos o texto coutiano

    como resistncia nica histria. De que maneira? Mesmo com a guerra

    tendo papel importante no Terra, o tom artstico do romance, a condio pela

    qual adentramos este outro universo, isto , a literatura, permite um

    identificar-se com os personagens e suas inquietaes, uma empatia com

    estes. No s uma histria de guerra, so expostas tambm sensibilidades

    humanas. Muidinga encantador, perpassado de esperana na sua busca

    de reencontrar seu passado. Kindzu o escritor que eu gostaria de ser.

    Quo belo o incio de seus cadernos3? Ou quando descreve o fascnio do

    encontro com Farida:

    2 No Terra, pginas 11 e 29. 3 "Quero pr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrncias. Mas as lembranas desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a

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    Suas roupas molhadas ofegavam de encontro pele. A beleza daquela mulher era de fazer fugir o nome das coisas. Olhando o seu corpo se acreditava que nunca nele a velhice haveria de morar. Corpo sedento, olhos sedentrios. Sua voz saa sem vestes, nua como se dispensasse palavras.

    - Me chamo Farida, disse.

    [Kindzu, Terra Sonmbula, Mia Couto, p.62]

    Nestes momentos, seja Kinzu, seja o leitor, esquecem-se da guerra. O Terra,

    neste prisma, no uma nica histria de catstrofes, ele no desperta

    somente piedade, os medos de Adichie, sendo ento uma possvel histria

    plural do Moambique e da frica, que representaria complexamente suas

    especificidades, ainda que dentro do contexto de guerra dentro do qual Mia

    Couto escreveu e quis memorar.

    V.

    Diante do problema inicialmente exposto, a dificuldade de verbalizao da

    experincia traumtica (MATOS, 2015) do colonialismo africano, espero ter

    conseguido, com a argumentao aqui elaborada, indicar a literatura, neste

    caso especfico o Terra Sonmbula de Mia Couto, como uma escrita da

    histria alternativa a historiografia tradicional. Procurei, ao longo dessas

    pginas, discorrer sobre em que medida o texto literrio de Mia teria o poder

    de aproximarmo-nos de como fora experimentado o colonialismo, sob o

    cenrio da guerra civil moambicana. Ademais, perceber de que forma ele

    tambm contribui para evitarmos (ou no) a histria nica da frica.

    estria, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz." [Kindzu, Terra Sonmbula, Mia Couto, p.15]

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    Ainda que o debate carea de algumas fundamentaes tericas - como as

    relaes entre histria e memria, histria e literatura, o conceito de trauma,

    entre outras -, e tambm maior aprofundamento sobre as mais diversas

    formas que a historiografia trabalhou com tal perodo no Moambique, a

    contribuio que o texto de Mia traz, atravs de uma revalorizao da

    experincia, da imaginao e da dimenso humana da histria , a meu ver,

    grandiosa.

    Destaco, por fim, que a inteno no fora considerar o romance de Mia

    Couto como a histria do Moambique, e sim aproximar de como a relao

    do autor com o seu pas constri um tipo particular de narrativa e em que

    grau pode a historiografia apropriar-se destas nuances de seu romance.

    Referncias

    ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The danger of a single story. TED Ideas

    Worth Spreading, 2009. Disponvel em: http://www.ted.com/talks/lang/pt/

    chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html. Acesso em

    19/07/2015.

    COUTO, Mia. Terra sonmbula. 5 reimpresso. So Paulo: Companhia

    das Letras, 2007.

    ______. Pensatempos: textos de opinio. [S.l.] Editorial Ndjira, 2006.

    MATOS, Srgio Campos. Histria, memria e fico: que fronteiras?

    Histria da historiografia, n.17, p.414-426. Ouro Preto: 2015.

    RABELLO, Mariana Clark Peres. A construo da identidade em Terra

    sonmbula, de Mia Couto. Cadernos Cespuc. Belo Horizonte n.21.

    2010/2011. Disponvel em: periodicos.pucminas.brindex.php/cadernos

    cespuc/article/view/7911. Acesso em: 19/7/2015.

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    PAIANI, Flavia Renata Machado. A escrita da histria em Terra Sonmbula

    de Mia Couto. Histria da historiografia, n.13, p.204-218. Ouro Preto:

    2013a.

    ______. A escrita da histria de Moambique no romance Terra

    Sonmbula, de Mia Couto. 2013b. 108f. Dissertao (Mestrado em

    Histria) Programa de Ps-Graduao em Histria Social. Universidade de

    So Paulo, So Paulo.