Quase imperceptível: arte participativa e ficção · 2020. 3. 12. · RESUMO JUNQUEIRA, Franciane...

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Franciane Dama Junqueira Quase imperceptível: arte participativa e ficção Rio de Janeiro 2015

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Artes

Franciane Dama Junqueira

Quase imperceptível:

arte participativa e ficção

Rio de Janeiro

2015

Franciane Dama Junqueira

Quase imperceptível: arte participativa e ficção

Dissertação apresentada como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Processos Artísticos Contemporâneos

Orientadora: Prof.ª Dra. Maria Luiza Fatorelli

Rio de Janeiro

2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial

desta dissertação, desde que citada a fonte.

______________________________________ __________________ Assinatura Data

J95 Junqueira, Franciane Dama. Quase imperceptível: arte participativa e ficção / Franciane Dama Junqueira. – 2015. 92 f. Orientadora: Maria Luiza Fatorelli. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Instituto de Artes. 1. Arte e sociedade – Teses. 2. Arte (Percepção) – Teses. 3.

Arte urbana - Teses. 4. Espaço (Arte) – Teses. 5. Espaço urbano – Teses. 6. Arte interativa – Teses. 7. Participação social – Teses. I. Fatorelli, Malu, 1956-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.

CDU 7:301

Franciane Dama Junqueira

Quase imperceptível: arte participativa e ficção

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Processos Artísticos Contemporâneos

Aprovada em 26 de março de 2015.

Banca Examinadora:

_______________________________________

Prof.ª Dra. Maria Luiza Fatorelli (Orientadora)

Instituto de Artes - UERJ

_______________________________________

Prof. Dr. Aldo Victorio Filho

Instituto de Artes - UERJ

_______________________________________

Prof. Dr. Aristóteles de Paula Berino

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

2015

AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-graduação em Artes, pela oportunidade acadêmica.

À minha orientadora Prof.ª Dra. Maria Luiza Fatorelli por participar com

generosidade desta aventura de pesquisa e amadurecimento.

Ao Prof. Dr. Aldo Victorio Filho pela valiosa presença na minha formação

desde a graduação.

À minha família por sempre apoiar e estimular o cumprimento de minhas

metas.

Ao Fabiano pelo amor, parceria, compreensão e paciência.

À CAPES pela bolsa de pesquisa.

se eu, tal qual um planeta, deixasse de existir.

deixasse de ser. d-e-s aparecer. desaparecesse.

seria um incêndio silencioso com o qual meu corpo em festa se apagaria?

ou um mar de fumaça que me reconheceria como irmã?

o sumir seria uma constante surpresa.

e o ar: eu: fogo antigo e novo.

Fran Junqueira

RESUMO

JUNQUEIRA, Franciane Dama. Quase imperceptível: arte participativa e ficção. 2015. 92f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2015.

Esta dissertação levantou um conjunto de questões relacionadas à reflexão do meu processo artístico, tendo como ponto de partida as imagens poéticas da casa, do dormir, do desabrigo, da invisibilidade e da visibilidade que culminaram em trabalhos acerca dos moradores de rua, da acessibilidade e do uso da cidade. Para analisar as experiências artísticas participativas realizadas em âmbito urbano, foi apresentado um estudo da produção de artistas como Flávio de Carvalho, Lygia Clark e Hélio Oiticica, assim como os conceitos de site specific e site oriented (KWON 1998). Acerca dos trabalhos que envolvem relações e propostas de convivência, foi acessado o livro Estética Relacional (BOURRIAUD 2009) e o texto Antagonismos e Estética Relacional (BISHOP 2004). O ato de ouvir e as histórias narradas durante as propostas participativas aproximaram o estudo da ideia de autoficção (DOUBROVSKY 1977) e da escrita de si (FOULCAULT 2002). A relação com o desenho foi observada como produção de sentido, assim como foi problematizado o papel do artista a partir da observação do papel do mediador, revelando possibilidades outras de definição com base nos conceitos de participação total (OITICICA 1967), e artista-etc. (BASBAUM 2013).

Palavras-chave: Arte Participativa. Intervenção Urbana. Arte Colaborativa. Arte

Relacional. Casa. Desenho. Ficção.

ABSTRACT

JUNQUEIRA, Franciane Dama. Almost imperceptible: participatory art and fiction. 2015. 92f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2015.

This dissertation raised a number of issues related to the reflection of my artistic process, taking as its starting point the poetic pictures of the house, sleeping, homelessness, invisibility and visibility that culminated in works about the homeless, accessibility and the use of the city. To analyze the participatory artistic experiences in urban context, a study of the production of artists like Flávio de Carvalho, Lygia Clark and Hélio Oiticica was presented, as well as the concepts of site specific and site oriented (KWON 1998). About the work involving relations and coexistence proposals, the book Estética Relacional (BOURRIAUD 2009) and the text Antagonismo e Estética Relacional was accessed (BISHOP 2004). The act of listening and the stories told during the participatory proposals approached the study of the idea of self-fiction (DOUBROVSKY 1977) and self-writing (FOULCAULT 2002). The relationship with the drawing was observed as production of meaning, as well was questioned the role of the artist from the observation of the mediator’s role, revealing other setting possibilities on the basis of participação total concept (OITICICA 1967), and artista-etc. (BASBAUM 2013). Keywords: Participatory Art. Urban Intervention. Collaborative art. Relational art.

Home. Drawing. Fiction.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Anotação visual Nº1.......................................................................... 10

Figura 2 – Desenhos das obras antigas, 2014................................................... 11

Figura 3 – Anotação visual Nº2.......................................................................... 13

Figura 4 – Invisíveis, 2009-2010......................................................................... 17

Figura 5 – Estrelas, 2011.................................................................................... 18

Figura 6 – Splitting, Gordon Matta-Clark, 1974.................................................. 19

Figura 7 – Estrelas, 2011.................................................................................... 20

Figura 8 – Série Os Meninos, Paula Trope, 1994.............................................. 22

Figura 9 – Paisagem Segunda, 2011................................................................. 23

Figura 10 – Paisagem Segunda, 2011 (Montagem)............................................. 24

Figura 11 – Para não esquecer, 2011.................................................................. 25

Figura 12 – Sono dos Justos, 2010...................................................................... 26

Figura 13 – Sono dos Justos, 2010...................................................................... 28

Figura 14 – Meio-fio, 2012.................................................................................... 29

Figura 15 – The Murder of Crows, Janet Cardiff e George B. Miller, 2008……… 30

Figura 16 – Som Branco, 2013............................................................................. 33

Figura 17 – Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, M.Gondry, 2004.... 34

Figura 18 – Anotação visual Nº3.......................................................................... 36

Figura 19 – Anotação visual Nº4.......................................................................... 38

Figura 20 – Anotação visual Nº5.......................................................................... 39

Figura 21 – Anotação visual Nº6.......................................................................... 41

Figura 22 – Objetos Relacionais, Lygia Clark, década de 70............................... 42

Figura 23 – Anotação visual Nº7.......................................................................... 43

Figura 24 – Parangolés, Hélio Oiticica, 1964....................................................... 44

Figura 25 – Anotação visual Nº8.......................................................................... 46

Figura 26 – Situação T/T 1, Artur Barrio, 1970..................................................... 47

Figura 27 – Anotação visual Nº9.......................................................................... 49

Figura 28 – Y Jesús dijo a Làzarus, Carlos Garaicoa, 2003................................ 51

Figura 29 – A casa desaparecida, Christian Boltansky, 1990.............................. 52

Figura 30 – House, Rachel Whiteread, 1993........................................................ 53

Figura 31 – Time Divisa, Antonio Vega Macotela, 2006-2010............................. 56

Figura 32 – Cidade Dormitório, Guga Ferraz, 2007............................................. 57

Figura 33 – Uso Indevido, 2011............................................................................ 58

Figura 34 – Projeto Eloísa Cartonera, J. Barilaro e W.Cucurto, 2003-hoje.......... 60

Figura 35 – Anotação visual Nº10........................................................................ 60

Figura 36 – I only have eyes for you, Marcos Chaves, 2013................................ 64

Figura 37 – Flanco, 2014...................................................................................... 65

Figura 38 – Voz Temporária, 2015....................................................................... 67

Figura 39 – Rio Invisível (Deusa e Gutierrez)....................................................... 68

Figura 40 – Histórias Reais (fac-símile), Sophie Calle, 2002............................... 70

Figura 41 – Divórcio (fac-símile), Ricardo Lísias, 2013………………………….. 72

Figura 42 – Voz Temporária, 2015....................................................................... 74

Figura 43 – Voz Temporária, 2015....................................................................... 77

Figura 44 – Anotação visual Nº11........................................................................ 78

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 10

1 A PARTIR DO QUE É PROFUNDO, E, AO MESMO TEMPO, SOBRE

A PELE ................................................................................................... 14

1.1 Efêmero e quase imperceptível: desaparecimento/ invisibilidade .. 31

2 PARTICIPAÇÃO, CONTEXTO E IDENTIDADE .................................... 36

2.1 Proponente + Participante ................................................................... 36

2.2 Impuro e cegante .................................................................................. 50

2.3 Eu e a ilha movediça ............................................................................. 60

3 VOZ TEMPORÁRIA: ESCUTA E FICÇÃO ............................................ 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 79

REFERÊNCIAS ...................................................................................... 82

ANEXO ................................................................................................... 88

10

INTRODUÇÃO

Figura 1 - Anotação visual Nº1

Fonte: A autora, 2015.

A ocupação, ou exercício, do artista mestrando é de fato um trabalho

estranho: de intervenção no tempo, de suspensão e imersão simultâneas, de

paragem e continuação. Pois somos convocados a saber do que ainda está em

processo, como se fosse claro diante dos olhos, e não atualidade e sensação. Como

em uma fábula, você entra em uma lógica específica, na qual cães falam e você

entende. O artista mestrando fala e entende todas as línguas – do passado, do

presente e do futuro – para elaborar questões e propostas durante seu percurso

acadêmico. E, no tempo humano de dois anos, refina tudo em um só escrito,

chamado dissertação.

Dessa forma, manuseando os tempos, apresento no primeiro capítulo desta

dissertação os trabalhos que executei entre 2009 e 2013: experiências relacionais

de forte interesse político, baseadas, sobretudo, no diálogo e na troca de

experiências com outras pessoas. Nessa produção, do tema casa, núcleo e

elemento constitutivo do indivíduo e de sua subjetividade, emergiu a rua como

11

contraponto. E ao sair da casa, em contato com os outros, com a afluência de

conversas e falas, me aproximei da imaginação, da expectativa e da ficção. Tendo a

observar que o meu gesto, movimento comum a todas as minhas ações como

artista, é a troca. Para pensar minha produção, busquei referências teóricas na obra

Estética Relacional (2009), de Nicolas Bourriaud, entre outros. E, sobretudo, trouxe

à pesquisa textos literários e obras que foram importantes para pensar e visualizar

meu processo.

Penso o segundo capítulo a partir da minha motivação para produzir arte, que

é a possibilidade de mediar encontros e, segundo essa percepção, abordo a ideia da

mediação como forma de proposição artística. No decorrer do texto, discorro sobre

minha produção, intercalando minhas vivências, com questões conceituais

pertinentes a essa investigação.

O terceiro capítulo fala sobre o trabalho Voz Temporária (2015), que foi

desenvolvido em colaboração com o projeto Rio Invisível, durante o período de

conclusão do mestrado, trabalho que reúne desenho, olhar, rua e histórias. Também

me ocupo da escuta e da ficção, a partir do impacto gerado pelas histórias e

conversas que ouvi através dos trabalhos participativos.

Figura 2 - Desenhos das obras antigas.

Fonte: A autora, 2014.

O primeiro ano de mestrado foi intenso em leituras e reflexões acerca de

diversos temas e situações, entre eles a própria ideia do artista-mestrando, o que

gerou conflitos com meus trabalhos antigos, iniciando um processo de apagamento

12

e negação dos mesmos, que chegaram a ser apresentados durante a qualificação

em forma de desenhos e não com seus registros originais.

Nesta versão final, apresento os registros fotográficos dos trabalhos, porém,

admito a importância do desenho e do esquema na minha produção de sentido, e,

por isso, ao longo do texto são mostradas variadas “anotações visuais”. Outro

entrave foi a busca por uma escrita que dê conta de transmitir informações e

apontamentos relevantes e, ao mesmo tempo, seja pessoal, o lugar da escrita de

artista. Para conseguir alcançar essa escrita, ou me aproximar dela, foi preciso

desconstruir, garimpar, para conhecer novamente o que já é antigo, com olho novo;

foi preciso negar para retornar a ele, foi necessário abrir mão para criar espaço e

fazer legível o fluxo de ideias e atrações pelas quais fui tragada durante dois anos,

e, finalmente, produzir algo em consonância com o hoje.

13

Figura 3: Anotação visual Nº2

Fonte: A autora, 2015.

14

1. A PARTIR DO QUE É PROFUNDO, E, AO MESMO TEMPO, SOBRE A PELE.

E o pior era o temor ancestral gravado na carne: estou sem

abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mundo, e eu que

só caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse

vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca

secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois

já selecionaram o melhor casal de minha espécie 1

Clarice Lispector.

Foi preciso escolher um ponto de partida, algo que desse a sensação de

progressão à minha escrita, mesmo que o funcionamento dos fazeres seja orbital.

Tragada por diversos interesses, ouço o pedido “aprofunde-se”, que me faz sentir a

melhor sereia de mim, puxando a mim mesma para o chão do mar. Nos trabalhos

que elaborei nos últimos cinco anos, propus encontros e diálogos, trocas de

experiências e informações com outras pessoas. Obras relacionais, participativas.

Interessava-me a ideia da casa, assim como o sair dela, o que está além da porta. E

a partir da afluência de conversas e falas, aproximei-me da expectativa e da ficção.

A Casa como imagem poética sempre exerceu sobre mim uma grande

atração, desde sua grafia, combinação de letras que expressa tão bem em língua

portuguesa a robustez, o vigor e a circularidade da casa, até suas representações

imagéticas também simples, quase sempre fictícias, preguiçosas e tão conhecidas.

Casa é o local primordial de edificação das noções de indivíduo e de subjetividade,

caracterizado geralmente pela presença do núcleo familiar, bem como berço da

memória e do esquecimento, do sonho e do sono. "Casa" é o nome genérico do

conjunto de símbolos que constroem o lar e que podem estar aglutinados ou não em

uma arquitetura palpável. Ela nos protege contra as forças da natureza e estabelece

um limite vital entre o público e o privado, gerando a sensação de abrigo. Desta

maneira, a casa é considerada um símbolo universal de proteção e segurança, o

"não-eu que protege o eu” 2.

1LISPECTOR, Clarice. Clarice na Cabeceira. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. p 73 2BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p 24

15

Por serem espaços assim relevantes, aglutinadores de significados, suas

representações habitam o imaginário e desenhos da maioria das pessoas, desde as

primeiras incursões gráficas da infância. E, no meu caso, perpassam minha

pesquisa artística, mantendo-se presentes na grande maioria dos trabalhos que

realizo e também em muitos que admiro e vêm me influenciando.

Em minha trajetória, porém, a ideia de casa é suscitada e construída,

sobretudo a partir de relações de oposição e/ou fragmentação tais quais um saco de

dormir que é cama e roupa móvel, desenhos de mobiliários debaixo de um viaduto,

camisas pedindo olhares para marquiseiros do centro da cidade ou desenhos da

imaginação de lugares onde ainda não fomos.

A relevância simbólica da casa pode ser notada quando ela é usada como

demonstração de status social, sendo um instrumento de afirmação da identidade

pessoal, bem como é o lugar de acolher, nutrir e educar os membros da família; a

casa é o sustentáculo do "eu", lócus essencial da construção da identidade 3, sendo

que "a importância simbólica do abrigo como invólucro da identidade é muito

superior à efetiva proteção que esse abrigo pode oferecer contra as agressões

externas” 4. Ou seja, é o valor simbólico que difere o abrigo da casa. O telhado para

o homem primitivo servia como interposição entre ele e um poder sobre-humano

incompreensível.

Sendo assim, os espaços reais da casa convivem com os espaços

imaginários daqueles que a habitam, a casa real é sobreposta pela casa simbólica,

mostrando-se como um lugar propício às articulações da memória e suas camadas.

Segundo Gaston Bachelard em A Poética do Espaço (2008), sem a casa o homem

seria um ser disperso e:

[...] se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos um novo devaneio. 5

3SANTOS, A. L. V. ; DUARTE, C. R. . Casas Invisíveis: um estudo dos espaços da população de rua do Rio de Janeiro. In: Vicente Del Rio; Cristiane Rose Duarte; Paulo Affonso Rheingantz. (Org.). Rio de Janeiro: Contracapa/Proarq, 2002. p. 275 4DURAND apud SANTOS, A. L. V. ; DUARTE, C. R (2002) Op. cit. p 274 5BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p 26

16

Esses devaneios circunscrevem nossos gestos, gostos e conhecimentos até o

momento em que tomamos consciência de que para existir o doméstico e o íntimo é

preciso haver seu antônimo, a rua. A pessoa que sai da casa e atravessa a porta,

não deixa sua casa simbólica atrelada à arquitetura da casa física, ela a carrega

consigo, e seu peso atua em suas ações sobre o mundo. Quando penso em ações

que se inserem no âmbito urbano, noto o quanto são marcadas pela presença da

casa e por sua ausência, e é através do embate entre essas duas sensações

(presença/ausência) que sugiro reflexões acerca da moradia e das políticas

públicas.

No exato momento em que a porta foi criada, também foi criada a opção de

proteger-se do mundo exterior, foi criado o íntimo, o privado e a possibilidade de

sair. Bruno Contardi, no prefácio de História da Arte como História da Cidade (2005),

traz a rica imagem da porta, fronteira que distingue a casa do mundo, emprestada

de G. Simmel, para ilustrar a relação entre o homem e a natureza, o público e o

privado:

A Porta representa de maneira decisiva como o separar e o ligar são apenas dois aspectos de um mesmo e único ato. O homem que primeiro erigiu uma porta ampliou, como o primeiro que construiu uma estrada, o poder especificamente humano ante a natureza, recortando da continuidade e infinitude do espaço uma parte e con-formando-a numa determinada unidade segundo um sentido [...] 6.

O desenho serve-me como ferramenta para representar ideias de trabalhos

que ainda estão por vir, como esboço, plano: a forma mais imediata de tonar visível

o que as palavras não dão conta, trazer aos olhos o que está explícito somente no

pensamento, serve como auxiliar na tentativa de criar experiências eloquentes que

contam histórias, que falam por mim coisas que não conheço como dizer.

Paralelamente, as atividades no espaço – conversa, ação – dariam conta de

inscrever minhas propostas no dia a dia das outras pessoas.

O trabalho inaugural da pesquisa que apresento no presente texto foi

Invisíveis (2009/2010), no qual distribuí camisas com frases – me ame, me olhe etc.

6CONTARDI in ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Prefácio.

17

– em tinta fosforescente, tendo como objetivo dar visibilidade às necessidades e

desejos de determinado grupo de pessoas.7

Esta ação, realizada em parceria com Hamilton Ferreira, também foi a

primeira que envolveu pessoas em situação de rua. Nós investimos na metáfora da

luz e da escuridão, da visibilidade e da invisibilidade. Esta dualidade era enfatizada

pelo fato de as frases das camisas não serem bem discerníveis à luz do dia, e, com

o tempo, percebemos que também existia a possibilidade de os marquiseiros8 serem

vistos, ou não, usando as camisas na noite do Rio de Janeiro.

Percebo essa experiência como sendo resultado da observação diária da vida

na cidade em meus trajetos, somada ao desejo de inscrição de mim mesma nesses

locais. Procurei observar minha referência primeira, a casa, e no percurso dos meus

olhos esbarrei nas pessoas que não dispõem deste norte, talvez seres humanos

dispersos, como sugere Bachelard, ou mesmo o avesso de mim mesma. Indivíduos

que habitam os lugares onde a maioria está em trânsito.

Figura 4 –Invisíveis.

Fonte: A autora, 2009-2010.

Nosso trabalho previa uma relação com o desejo do outro, a partir da crença

de que o desejo é uma constante em todo o ser humano, força motriz, que assegura

7Realizado durante a mostra paralela de intervenções urbanas do seminário “Marginais-Heróis: 50

anos do Manifesto Neoconcreto” no CCBB-RJ. Mais em http://www.canalcontemporaneo.art.br/cursoseseminarios/archives/002635.html. Acessado em 03/03/2015 8Encontrei esta definição no livro Romance Negro e Outras Histórias, de Rubem Fonseca (São Paulo: Companhia das Letras, 1992.). É um termo que o autor usa para definir os moradores de rua que trabalham durante o dia e se reúnem para dormir debaixo das marquises das grandes cidades á noite, mas geralmente voltam para suas casas durante o fim de semana.

18

a manutenção de nossa humanidade. Uma tentativa, portanto, de rememorar esses

desejos, trazê-los à tona.

É desconfortável detectar o desejo do outro, principalmente de outro

aparentemente tão distante de nós, e ao mesmo tempo é perturbador saber que

nunca retornaremos ao que éramos antes, depois de notarmos a presença de um

desejo em comum. É através da comunhão entre desejos que percebemos

realmente a existência do outro, e esta partilha está muito além da flácida

consciência de que todo ser humano sente fome, sede, frio, cansaço, sono ou

excitação. Levantamos barreiras entre nós e todas as pessoas, criamos camadas de

identificações, aproximações ou distanciamentos e, por vezes, é esse momento —

essa filigrana — de saber o desejo em comum que provoca um atravessamento em

direção ao outro.

Uma definição, simplificada, para quem compõe a população que vive nas

ruas é "a população de rua pode ser definida como o conjunto de pessoas que vivem

literalmente nas ruas, sob pontes, viadutos e marquises, ou que dependem de

atividade constante que implique ao menos um pernoite semanal na rua” 9. Essa

definição destaca uma perigosa proximidade desta realidade do nosso círculo de

conforto.

Figura 5 – Estrelas, 2011

Fonte: A autora, 2011.

9SANTOS, A. L. V. ; DUARTE, C. R (2002) Op. cit. p 273

19

Em Estrelas (2011) 10, sugeri a construção de um espaço improvável da casa:

uma sala de estar debaixo de uma ponte da cidade de Recife-PE. Tracei duas

cadeiras, uma mesa com flores e um lustre em uma das vigas que sustenta o

viaduto, com a mesma tinta que brilha no escuro, à semelhança dos adesivos de

estrelas que colamos no teto dos quartos das crianças. Sendo a cidade de Recife

toda entrecortada por rios, neste trabalho escolhi o viaduto como símbolo da falta de

moradia.

Eu quis inverter a brincadeira de dormir sob as estrelas, criando uma casa de

fantasia sob uma ponte, influenciada pelas intervenções metafóricas11 de Gordon

Matta-Clark e pelo lirismo político de Carlos Garaicoa: o objetivo era provocar

reações sociais a partir das obras de arte e suas inserções na cidade, buscando,

porém, dar a tais experiências feitios lúdicos.

Figura 6 - Splitting, Gordon Matta-Clark.

Fonte Site MAM.ORG.BR,1974.

A imagem da casa cortada de Gordon Matta Clark, na obra Splitting (1974),

perseguia-me e impelia a agir sobre as coisas do mundo; a simplicidade das ações

10 Projeto selecionado para o SPA das Artes (PE). Mais sobre o evento em http://www.old.pernambuco.com/ultimas/nota.asp?materia=20110909143542. Acessado em 03/03/2015. 11O termo foi retirado do texto da exposição Gordon Matta-Clark: desfazer o espaço (Curadoria: Tatiana Cuevas e Gabriela Rangel), realizada no ano de 2010 em http://mam.org.br/exposicao/gordon-matta-clark-desfazer-o-espaco/. Acessado em 15/07/2014.

20

de corte me atraía pela capacidade de contar uma história, abrir um parêntese no

cotidiano.

Em Recife, eu era uma pessoa de fora, e o fazer desse trabalho me permitiu

conhecer um pouco o ritmo de quem mora na cidade. Os traslados entre a loja de

materiais, o Museu Murillo La Greca, as conversas com os estudantes monitores do

museu e com os moradores da comunidade Vila do Vintém, que eu não esperava

acontecerem, deram-me um pequeno panorama da relação daquela cidade e seus

moradores, entre os espaços de arte e os espaços de lazer.

Figura 7 – Estrelas.

Fonte: A autora, 2011.

Sob o viaduto, ao lado do mangue, com as marcas das cheias do rio nas

vigas, os funcionários do shopping de luxo almoçam, a despeito do cheiro de água

parada, de cavalo, de lixo, e as crianças jogam bola, deixando marcadas esferas de

lama sobre o desenho brilhante. Debaixo da ponte acontece também festa e

confraternização, tudo isso vizinho ao museu da prefeitura, que, conforme

comentaram os transeuntes, não era muito visitado pelos moradores das

redondezas. Acredito que a minha vivência do local e as conversas que

21

aconteceram acabaram surtindo mais efeito em mim e nos trabalhos posteriores, do

que a intervenção artística em si.

Remontando às incisões de Matta-Clark, meu trabalho também busca revelar

aspectos pouco vistos, como a fragilidade do projeto urbano e social da cidade, não

removendo — irônica coincidência do termo com as ações de remoção de

moradores de rua12 — como o norte-americano, mas inserindo elementos mínimos,

camisas com frases iluminadas e uma pintura no cotidiano da cidade. Estas camisas

quando vestidas atuarão como intervenções metafóricas e também políticas.

O termo ‘arte política’ pode parecer uma definição perigosa, um

engessamento do trabalho de arte em uma categoria fechada ou pode ser visto de

forma mais espontânea, uma vez que a política já faz parte do objeto de arte

enquanto objeto cultural e produto de seu tempo.

Miguel Chaia afirma que o artista alcança a capacidade de expressar

poeticamente a sua sociedade, de maneira que a obra passa a conter — de forma

mais ou menos explícita — o conjunto de fatores sociais circundantes a ela. Sendo

assim, a produção artística ajuda a elucidar a política como construção de espaço

público. A arte e a política mantêm uma relação multidirecional, visto que a arte pode

estar a serviço da política explícita ou conter uma política implícita, podendo gerar

resultados de resistência ou de propaganda. Para ele, a política e a arte suprem

necessidades de atuação do ser humano, esta inscrição no agora, e são

impulsionadas pela invenção do novo, gerando zonas limítrofes e espaços

fronteiriços: É possível pensar que não há política sem estética, uma vez que o seu funcionamento para ser produtivo e eficiente diante de indivíduos ou no tratamento das massas exige recursos, instrumentos, rituais e diferentes fontes de energia. Pode-se, ainda, constatar que toda arte verdadeira porta a possibilidade de agitação social13

O contato e o envolvimento com pessoas em situação de rua abriu um leque

de preocupações e reflexões no que diz respeito à ética na atividade artística. Note-

se, porém, que tais ''cuidados'' não parecem ser reclamados pelos moradores de

12Para saber mais sobre remoções de moradores de rua: no blog do Coletivo Pela Moradia, que, segundo consta em seu texto de apresentação, “surgiu para denunciar violações e prestar apoio e solidariedade à luta popular pelo direito à moradia” e mantém informações atualizadas sobre tais ações em diversas cidades do Brasil. Disponível em http://pelamoradia.wordpress.com/. Acessado em 03/03/2015. 13CHAIA, Miguel in Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. p 14

22

rua. Um exemplo de empreitada bem-sucedida e que abriu meus olhos para o que

seria uma maior troca com o colaborador e, portanto um trabalho mais consciente

eticamente, foi o de Paula Trope14, onde a artista mescla lirismo, crítica e

integridade:

Na série de trabalhos denominada Os Meninos, Paula faz aparecer o que ela chamou de um sujeito da linguagem resultante da contaminação entre o discurso artístico e o que seria seu objeto. Mais do que isso, a série, desenvolvida na década de 1990 e que se constituía de fotografias de meninos de rua do Rio de Janeiro que, ao se deixarem fotografar, poderiam fotografar o que desejassem imediatamente depois, acaba por abrir a discussão sobre o artista como coprodutor de significados em um mundo de subjetividades que, muitas vezes espetacularizadas, são frequentemente recolhidas ou encurtadas pela violência da cidade. Abre também, em arte, o debate sobre a ação dos excluídos, da mão do outro, do não artista. As fotos, assinadas em colaboração com os meninos-fotografadosfotografantes, acabam constituindo um trânsito entre a fotografia e as circunstâncias do mundo contemporâneo, sobretudo o brasileiro.15

Figura 8 - Série Os Meninos, Paula Trope.

Fonte, Site MAM.ORG.BR, 1994.

As noções de participação e de autonomia ressoavam em mim, após

conhecer a obra Os Meninos, quando desenvolvi o projeto Paisagem Segunda

14 Em http://mam.org.br/acervo/1995-003-000-trope-paula/ Acessado em 11/05/2014 15GERALDO, Sheila Cabo. “Qual política: microagências artístico-historiográficas” in Concinnitas: arte, cultura e pensamento. Ano 8 vol.1 nº10 julho 2007. Rio de Janeiro: UERJ, DEART. p 100

23

(2011) 16. Nessa proposta, o desenho era a forma de marcar no papel nossa

expectativa e depois confrontá-la com o registro do lugar real. A pergunta era: a

quais lugares da cidade não podemos ir e por quê? De maneira coletiva propus

pensar o acesso aos espaços físicos e simbólicos da universidade e da favela. Eu

via o morro da Mangueira a partir da UERJ, e nunca havia ido lá.

Os participantes do Projeto Paisagem Segunda eram estudantes da UERJ e

da UFRJ, de diversas áreas de conhecimento, e jovens da comunidade da

Mangueira e de Belford Roxo, sendo que todos os participantes desconheciam os

espaços (universidades e comunidades) uns dos outros. Fizemos desenhos que

chamei de desenhos de expectativa, ou seja, o resultado de como imaginávamos

esses espaços, que, depois, tivemos oportunidade de conhecer17.

Nos locais imaginados desenvolvemos desenhos de observação como

registro pessoal do que conhecemos, e o resultado a ser exposto foi uma obra de

arte coletiva, construída com desenhos (de expectativa e observação) e registros em

áudio. Satisfez-me ver um trabalho que era meu e coletivo, bem como ver a parede

da galeria repleta de desenhos. Percebi que ali eu dava um passo adiante em

direção ao meu desejo de acentuar as trocas.

Figura 9 – Paisagem Segunda.

Fonte: A autora, 2011.

16 Trabalho realizado para a conclusão do curso de Bacharelado em Artes Visuais (UERJ), com o auxílio do Edital de Microprojetos Culturais da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. 17Na época era muito importante para mim que os próprios participantes escolhessem os lugares que julgavam importantes nos seus espaços, a fim de criar um trajeto afetivo.

24

Outra influência forte foi a do trabalho do artista JR, que também atua na área

da fotografia, e cujas obras são uma espécie de versão extrema da obra de Trope,

pois fotografa grupos marginalizados e estimula a reprodução e a aplicação dessas

fotos em escala gigante em locais da cidade, pelos próprios fotografados. Como, por

exemplo, no seu projeto 28 mm: Mulheres são Heroínas, que, em parte, foi feito no

Rio de Janeiro (2008).18

Figura 10- Paisagem Segunda (montagem)

Fonte: A autora, 2011.

O desdobramento do trabalho Paisagem Segunda foi a obra Para não

esquecer (2011), onde convidava as pessoas a imaginarem um lugar onde nunca

haviam ido, desenharem esse lugar em um cartão feito de plástico transparente e

papel (no formato de uma foto polaroide), escreverem o nome do local e guardarem

consigo o desenho. Quando chegassem lá, no lugar imaginado, deveriam confrontar

desenho e paisagem.

Recebi três anos depois o registro de um dos sonhos realizados, da Cristina,

uma pessoa que foi à exposição, preencheu seu cartão com a palavra “Troia” e

desenhos de pedras, e quando chegou às ruínas da lendária cidade grega justapôs

imaginação e observação. Vejo nesse trabalho, além do desenho e das palavras,

uma matéria especial que é a fé; a possibilidade ou não de aquilo acontecer é parte 18Mais, no site do artista no endereço http://jr-art.net/. Acessado em 28/02/2015.

25

constitutiva da obra. Talvez em todas as minhas experiências haja um tanto desse

componente furtivo.

Figura 11- Para não esquecer.

Fonte: A autora, 2011.

Sono dos Justos (2010) 19 é uma obra de ação urbana que foi desenvolvida

com moradoras de rua no centro da cidade de Belo Horizonte, em MG, em setembro

de 2010. Na capital mineira, andei pelas ruas próximas ao mercado municipal, com o

saco de dormir e uma câmera, tendo conhecido e conversado com mulheres que

moram na rua ou se ocupam de trabalhos temporários. O saco de dormir foi

manufaturado de maneira que se iguale aos sacos de dormir comuns, vendidos em

lojas, e tem representada a imagem de uma mulher vestida de tailleur e levando

uma pasta de trabalho. Este jogo com a imagem dá a impressão, quando se deita

dentro dele, de que a pessoa que está deitada está vestida dessa maneira.

Trago a associação do sono e do cansaço por considerá-los relacionados a

essa mesma casa, por ser ela um local principalmente destinado ao abrigo do

descanso. Quando associado ao universo das construções oníricas, o sono é

imbuído de um potencial fabuloso, e meu interesse está, sobretudo, na possibilidade

de o dormir trazer consigo a aproximação dos pensamentos acerca do público e

privado, por ser tido como uma atividade predominantemente íntima, indesejável

quando feita em locais não apropriados. E mais: fora do espaço do quarto, a letargia

19Feito na ocasião da exposição estudantil Bienal Zero em MG (2010). Mais sobre o evento em https://www.ufmg.br/online/arquivos/016739.shtml Acessado em 03/03/2015.

26

pode ser vista como fuga da realidade ou do trabalho. Dormir demais é um

comportamento antiproducente, ou seja, em desalinho com os ideais de otimização

do tempo.

Figura 12 – Sono dos Justos

Fonte: A autora, 2010.

O local onde a pessoa dorme a categoriza como pertencente ao grupo dos

com casa ou dos sem casa. É notável o fato de que, ao se encontrar em trânsito, o

morador de rua não deflagre de maneira imperativa sua fragilidade, sua condição de

ausência de fixidez e estrutura, como acontece ao estar deitado no chão, em bancos

de praça, em cantos quaisquer.

O ato de dormir é abordado na arte de diversas formas, tais quais nas obras

dos surrealistas e dos dadaístas20, por ser o espaço do inconsciente. Na arte

contemporânea, ele pode se aproximar aos contos de fadas, como no trabalho

performático e instalativo de Cornelia Parker, intitulado The Maybe (1995) 21, no qual

a atriz Tilda Swinton dormia em uma cúpula de vidro, tal qual a Branca de Neve das

histórias infantis, por oito horas por dia durante sete dias. Nesse trabalho, estava em

jogo a questão do culto às celebridades e a exposição da intimidade. Laurie

Anderson, por sua vez, fez uma obra que pesquisa a influência do ambiente nos

sonhos. Em suas palavras:

Na série Sonho Institucional, eu decidi dormir em vários lugares públicos para ver se o lugar influenciava meus sonhos. Escolhi lugares como banheiros públicos, um banco de parque, uma biblioteca pública. Tentava

20Veja mais sobre a relação dos sonhos e o surrealismo em http://www.revistas.usp.br/ls/ article/view/23616/25652. Acessado em 03/03/2015. 21Mais sobre esta obra em Serpentine Gallery, disponível em http://www.serpentinegallery.org/. Acessado em 13/01/2015.

27

ficar o mais cansada possível, e então dormia. Originalmente, eu quis fazer isso porque estava interessada em tabus. Dormir em lugares públicos não é aconselhável, embora não seja ilegal; parece violar um contrato social tácito que requer consciência. Pessoas que estão inconscientes evidentemente estão muito vulneráveis. Também achei que esses lugares públicos seriam muito desconfortáveis e que havia uma grande possibilidade de esse desconforto influenciar meus sonhos.22

Durante essa experiência, a artista foi questionada por aqueles que a viam

dormindo, acabando por mostrar como as outras pessoas se relacionam com o

indivíduo que dorme e com sua segurança, assim como com a manutenção da

ordem nos espaços públicos. Pessoas dormindo em locais de uso coletivo por falta

de moradia são uma denúncia da falência das políticas públicas, uma prova de

desordem, de desigualdade social, e isso gera incômodo aos transeuntes, causa

espanto ver seus corpos espalhados pelas calçadas, durante a noite e,

principalmente, durante o dia. eu estava deitado aqui debaixo da marquise, tentando dormir, quando vi pessoas me olhando e apontando, gritei em inglês: — o que vocês estão olhando? eu não sou um animal! Aquelas pessoas não esperavam que eu fosse dizer aquilo, não daquela maneira, e nunca se esquecerão disso. 23

O dormir na rua deflagra a falta de moradia, enquanto o sono e o cansaço

podem ser vistos como características humanas e irrefreáveis, um tipo de entrega do

homem racional e produtivo à sua humanidade. Em Sono dos Justos, a mobilidade

do saco de dormir aliada à necessidade da rua e à visualidade provisória da roupa

social, impressos no saco de dormir, criam uma espécie de disfarce para essas

pessoas que destoam da paisagem urbana ideal sob o aspecto de um trabalhador

padrão. É um jogo de maquiagem e provocação inserido na imagem e vida das

cidades24. O termo ''sono dos justos'' sempre esteve de alguma maneira presente no

meu imaginário e popularmente se refere ao sono merecido de descanso, ao sono

de quem trabalha e é íntegro.

22 Trecho retirado do catálogo da exposição “I in U/ Eu em TU” montada no CCBB RJ em 2011. Disponível em http://www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/CatalogoLA2.pdf, p 19 23 Este relato colhido por mim durante uma conversa com um morador de rua, parte integrante do trabalho Cadê você, Firmino? (transcrição de áudio 2011), pode ser ouvido no blog www.cinzaas falto.tumblr.com 24A presença de policiamento nas ruas é muito grande, e, em conversa com alguns moradores e estudantes de artes da cidade, me foi relatado que a prefeitura, assim como no estado do RJ, preza por práticas de “maquiagem”, retirando as pessoas que destoam da paisagem urbana.

28

Diferentemente de Invisíveis, Sono dos Justos foi feito em uma cidade a qual,

até então, eu não conhecia, mas imaginava que, como qualquer outra cidade de

grande porte do Brasil, teria um grande montante de moradores e moradoras de rua.

À noite, no centro de BH, foi quando comecei a encontrar algumas pessoas debaixo

de marquises, enroladas em jornais. Ao me apresentar àquelas mulheres, percebi

que não estava munida de perguntas elaboradas ou estratégias de aproximação, e

isso permitiu a conversa fluir espontaneamente.

Quando optei pela versão feminina para a imagem do trabalhador que seria

impresso no saco de dormir, diversas particularidades atrelaram-se à experiência da

obra, visto que a realidade da mulher indigente é muito distinta da do homem.

Fotografei três mulheres: a primeira uma adolescente que estava próxima de onde

eu me hospedara, as duas outras, mulheres na faixa dos trinta anos, no centro de

Belo Horizonte, próximo ao Mercado Municipal. Somente as fotografias das duas

mulheres adultas são levadas a público.

Figura 13 –Sono dos Justos.

Fonte: A autora, 2010.

A primeira colaboradora foi a única que teve interesse espontâneo por

participar, teve curiosidade pelo objeto e quis experimentá-lo por diversão — não

29

deixando de constatar que sua pele negra ''não combina'' com a da empresária

retratada — resultando em uma imagem mais descontraída, já que ela estava com

''chifres'' brilhantes de carnaval no momento da foto. As duas mais velhas, porém,

quiseram conversar e se mostraram bem dispostas a contar experiências de suas

vidas.

Denise, que reencontrei outro dia estendendo roupas em um monumento —

como se a praça fosse o quintal de sua casa, relatou seus problemas com as

drogas, o nascimento e criação de sua filha Francine, seu relacionamento com o

homem que a acompanhava desde os 11 anos de idade. Sua fala era bem articulada

e consciente, e tanto eles quanto o segundo casal auxiliaram na composição das

fotos, dando palpites sobre o posicionamento e a maneira como elas deveriam se

portar. A segunda mulher, com um diálogo bem mais confuso, relatou estar há

pouco tempo na rua, e ter vindo também do Rio de Janeiro, mas, não se lembrava

do nome do bairro, e hora dizia pretender sair da rua, hora dizia que não.

Figura 14 – Meio-fio

Fonte: A autora, 2012.

Dois anos depois da experiência em Belo Horizonte, retomei os escritos feitos

na época e muito me atraíram as alterações que minha memória causou na

experiência vivida. Interessei-me pela possibilidade da inverdade ou a fricção entre a

verdade e a flacidez da lembrança. Em Meio-fio (2012) 25, livro resultante destas

anotações, o desenho e o texto ficcional começaram a aparecer com mais

25Trabalho exposto durante a coletiva Abre Alas, da galeria A Gentil Carioca.

30

autonomia, mesmo que com timidez, interferindo nas fotos-registro da ação e na

memória dos acontecimentos.

Somadas às alterações de minha lembrança, vivenciar experiências artísticas

nas quais conversei com pessoas, muitas vezes em situações de limite social e

psicológico, me fez começar a considerar a polifonia gerada por suas histórias como

constituintes das obras, assim como a escolha por registros mais subjetivos desses

encontros começou a trazer cada vez mais à tona a possibilidade da ficção.

No ano de 2010, na mesma ocasião em que fiz Sono dos Justos, visitei o

Instituto Inhotim e voltei impressionada com uma obra chamada The Murder of

Crows (2008) 26, de Janet Cardiff e George Bures Miller. Essa obra, absolutamente

imersiva em som e espaço, cria uma narrativa através do texto falado, dos sons, das

músicas e dos poucos objetos no galpão todo coberto de flocos brancos. O

aterrorizante sonho me convocava intimamente — poder que só a literatura detém: a

de criação de realidades paralelas à medida do leitor. O pesadelo era endereçado a

mim. Comecei a pensar a ficção e a inverdade como espaços de criação, de

liberdade e de jogo com o público.

Figura 15: The Murder of Crows, Janet Cardiff e George B. Miller

Fonte: Site Instituto Inhotim, 2008. Na gravação de uma conversa com um morador de rua intitulada Cadê você,

Firmino? (2010) 27, o limite entre verdade e mentira surge, já que o homem que nos

26 Sobre esse trabalho acessar http://inhotim.org.br/en/inhotim/contemporary-art/works/the-murder-of-crows/. 27 Pode ser ouvida no site cinzaasfalto.tumblr.com.

31

fala na gravação quebra algumas expectativas que temos do discurso de um

desabrigado: sua voz é forte e nítida, sua fala é correta gramaticalmente, sua

história é assustadoramente próxima à de qualquer pessoa comum.

[...] quando você simplesmente passa andando indo para sua casa ou para o seu trabalho e você olha essas pessoas deitadas, você nunca vai imaginar que tipo de histórias está passando quem está naquela situação. E quem tá aqui que começa a conviver com as pessoas e fazer pequenas amizades, conversar, você passa a descobrir. Aí você fica perplexo porque não é a realidade que é divulgada na televisão, pelos rádios, pelos jornais. Quem tá aqui sabe, só quem tá aqui que sabe. Então é necessário que as pessoas venham a eles. [...] Então tem essa defasagem de, como eu posso dizer a vocês, de ideias, porque as ideias são muitas: ah ele tá ali porque quer, ele tá ali porque é drogado, ele tá ali porque tá fugindo da família. Tem outras questões por trás disso e isso tem que ser divulgado. (até aprox. 6min25)

Observar essas vivências me fez perceber alguns vetores de interesse:

desenho, escrita, ficção, colaboração, desaparecimento. Percebi a fragilidade como

potência, a potência do quase não ver, do desaparecer, cada ação como uma nódoa

na malha da cidade.

1.1 Efêmero e quase imperceptível: desaparecimento/ invisibilidade

As experiências que reuni nesta dissertação são, em sua maioria, trabalhos

efêmeros e quase imperceptíveis em sua materialidade e duração, e, além disso,

têm como temas a invisibilidade e a visibilidade, instituindo uma dupla camada de

significados, um jogo de mostrar e esconder. Ou seja, discutem as formas de

apagamento, desaparecimento e invisibilidade através de ações pouco visíveis ou

que tendem à dissolução/camuflagem.

Em Invisíveis – os desabrigados parecem amalgamados à rua, anexados à

paisagem e destituídos do olhar – a ação foi absorvida no cinza, com algumas horas

de distribuição e conversa durante três dias, cem camisas. Minha expectativa era

encontrar alguém vestindo uma camisa alguma noite ou, até quem sabe, ver uma

camisa sendo vendida no chão do centro. Em Sono dos justos, das conversas e da

ação de duas noites, ficaram as fotografias e minha memória; não gravei sons. Em

Cadê você, Firmino? não se vê o rosto do homem que fala. Em Estrelas, mais um

desenho mora entre os grafites, pichações da cidade e marcas das cheias dos rios.

32

Já em Paisagem Segunda, o que retorna para o espaço museológico são pequenos

desenhos reproduzidos em papel vegetal e a gravação da voz dos participantes

comentando o projeto.

Criar trabalhos para o ambiente urbano é deparar-se com o paradoxo da

exposição e do acesso, já que somos impelidos a executar trabalhos em espaços

públicos muitas vezes sob o pretexto de aumentar o número de pessoas que têm

contato com as obras e também aumentar a variedade do público, atingir um público

não especializado. A cidade acaba, porém, absorvendo os trabalhos devido à

quantidade de informação visual/sonora concorrente, bem como a ausência do

espaço institucional acaba colocando em questão o próprio estatuto de arte dos

trabalhos.

Estas obras-manifestações não possuem seu valor estético aderente à forma, mas sim à sua condição de acontecimento-efêmero, em que a participação do público faz-se, muitas vezes, relevante e, simultaneamente, imperceptível. A arte urbana interage de tal modo com a realidade da cidade e os seus fluxos que não é percebida como tal. A desmaterialização da arte é fruto das reflexões contemporâneas sobre o seu papel e lugar. A cidade, como lugar da vida cotidiana, do coletivo, do fluxo de ações, dos acontecimentos e temporalidades e da acumulação histórica, oferece reflexão estética ao converter-se em parte das obras-manifestações de arte pública 28

Inicialmente, minha sensação de impotência devido à efemeridade de

algumas intervenções sobrepujava a crença de que aquelas ações eram válidas,

não pela sua duração ou visibilidade, mas por sua própria existência. Eu ainda não

percebia com clareza que as obras continuam através dos registros que retornam

para o espaço expositivo, em cada texto que escrevo e também na impressão de

cada pessoa que teve acesso a elas.

Então, procurei conhecer obras de arte que acontecem somente através da

oralidade e da confiança, e tomei conhecimento da experiência de Artur Barrio

chamada 4 Dias e 4 Noites (1970), ação que não tem registo algum, que pode ter

acontecido ou não na realidade, e que se dá na imaginação do público. No blog de

Barrio29 encontro escrito:

28CARTAXO, Z. Pintura em distensão. Rio de Janeiro: Oi Futuro/Secretaria do Estado de Cultura do Rio de Janeiro, 2006. p.92 29Endereço do blog do artista Artur Barrio: http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com.br/. Acessado em 15/03/2015.

33

4 DIAS.......4 NOITES............(1970) Realiza o trabalho 4 Dias 4 Noites, caminhando à deriva, pela cidade do Rio de Janeiro, sem alimentar-se, até o total esgotamento.

Com o tempo, comecei a encontrar beleza no quase não ver, na linha tão

tênue que o olho completa, ou seja, no desaparecimento como tema, na ficção como

tensão e na própria efemeridade como forma.

No vídeo Som branco, produzido em 2013 e exibido somente uma vez, uma

criança corre em direção ao expectador. Ela corre e atravessa uma porta. E dessa

porta também sai luz. Seu corpo tem as formas alteradas, a visualidade é

transformada no lusco-fusco do corredor. As velocidades do vídeo e do som estão

estendidas, enquanto se ouve um texto narrado em off: Uma ficção sobre crianças

que desaparecem.

Figura 16 – Som Branco

Fonte: A autora, 2013.

Lembrei-me da luz forte que irradia da janela da sala da casa de meus pais,

luz branca, invasiva e desintegrante. Movi-me da janela para a porta, o limite entre a

casa e a rua. Limite que, transgredido, abre espaço para o desconhecido. Diante do

desaparecimento de alguém, o que restaria na memória deixada pelo tempo?

Enquanto o tempo daqueles que ficaram continua passando e solapando

lembranças, calcando fantasias, deslocando valores, o tempo de quem desapareceu

fica em suspenso: nascimento-desaparecimento. É instalada a ausência da morte.

Aos que ficaram sobram os índices daquela existência: roupas, fotografias, objetos.

34

E, na minha fantasia, o que poderia ser mais frágil para a memória é o som da voz.

Nomeei livremente o som da voz esquecida como som branco, relacionando-o com

apagamento, como se as “cores” da voz, que é pessoal e única, fossem substituídas

por um ruído. Um defeito na memória, uma mensagem de erro. O branco que não

“esclarece” e sim confunde e gera contradição.

Em Invisíveis e Estrelas também proponho a metáfora da luz e da escuridão.

Na primeira obra, com a distribuição de camisas para moradores de rua com dizeres

escritos em tinta fosforescente, a luz emitida pelas frases retiraria da obscuridade os

desejos e as pessoas, enquanto, no segundo trabalho, com o mesmo tipo de tinta

pintei móveis domésticos debaixo de um viaduto escuro. Não deixo de notar o

paradoxo: tanto o retirar da escuridão é tentativa de ascensão, quanto a perda da

memória é deflagrada por seu embranquecimento, visão e a cegueira causadas pelo

mesmo branco.

Figura 17 - Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, M.Gondry

Fonte: Site Oficial do filme, 2004.

Em Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças (2004), filme do diretor

Michel Gondry, o personagem Joel, que mantinha um relacionamento afetivo com

Clementine, descobre que depois de uma briga ela recorreu a um procedimento de

apagamento das memórias relacionadas a ele, e quando este apagamento ocorre,

as cenas guardadas na memória vão embranquecendo e desintegrando-se, os livros

da livraria perdem a cor e a identificação.

A pessoa em situação de rua, o sujeito invisível, não é sem cor, pelo

contrário, sua corporeidade é radicalmente presente. O que faz dele invisível é sua

condição de marginalidade. O que o levou a esse lugar pode ser sabido através de

35

histórias diversas, mas o que deflagra sua condição é a visualidade. O morador de

rua dá a ver no corpo sua condição, e ela afasta o olhar do transeunte, porque nos

lembra de diversas falências e fragilidades. Mas entre o branco e o negro está o

cinzento. E não poderia ser diferente: se nós, mulheres e homem urbanos, fôssemos

animais providos da capacidade de nos mimetizarmos com o meio, qual cor

adotaríamos que não a cinza do pelo do rato e da pena do pombo? O papel do jornal

é cinza e nele se deita o homem sem casa, de roupas cinza da sujidade do chão. A

metrópole veste-se do cinza do asfalto ao do cimento. A cor cinza surge como

agente do caos, como elemento que retira a demarcação, e por vezes é a

experiência artística que extrai o indivíduo desta zona indefinida e devolve a ele

suas particularidades.

36

2 PARTICIPAÇÃO, CONTEXTO E IDENTIDADE.

Percebo a importância, em minha pesquisa, de como acontecem os trabalhos,

ou seja, a dimensão participativa contida neles e onde essas ações acontecem,

levando-me a reflexões sobre a obra de arte fora do espaço museológico e, no meu

caso, na maior parte das vezes, na rua. Tais reflexões levam-me a pensar minha

identidade como artista e quais seriam minhas possíveis autonomeações.

2.1 Proponente + Participante

Figura 18 – Anotação Visual Nº3.

Fonte: A autora, 2015.

Neste capítulo apresento uma pequena investigação acerca de algumas

obras, artistas e procedimentos que, de certa forma, desenharam o mapa sobre o

qual caminho, minha ancestralidade, sobretudo no que diz respeito à arte

participativa, cujo espírito acredito estar muito ligado tanto a alguns importantes

artistas brasileiros, quanto a certa noção de identidade cultural. E também sobre o

37

território fundante das práticas artísticas no âmbito urbano ou extragaleria, levando-

me a textos críticos que tratam do tema.

Para isso, foi preciso tentar encontrar uma forma de estudar o que faz parte

da história e da crítica, sem abrir mão da ótica da subjetividade artística. E foi

através do auxílio do desenho/esboço/esquema que realizei essa tarefa. Pergunto-

me se a atmosfera brasileira convida para o trabalho participativo, e percebo como

alguns artistas ou obras abriram caminho para esta produção. Começo pelo texto

Manifesto Antropófago (1928) escrito por Oswald de Andrade, no qual já está

iniciada a luta por definição da identidade nacional com humor, escárnio e vontade

de erotismo.

Acerca de nossa identidade, em constante conflito entre colonizado e

colonizador, sublinho a fala de Luis Guilherme Vergara:

A unidade ou identidade cultural brasileira é tripartida – primeiramente, entre Europa, África e os nativos deste paraíso. Assim expressaram as primeiras gerações modernistas pela metáfora canibalista da utopia antropofágica de Oswald de Andrade, na busca de rompimentos de fronteiras ou convergências entre ‘escola e floresta’(caosmose criativa). Outras vozes se seguiram escavando os conflitos nas raízes do Brasil. Sergio Buarque de Holanda desenha o eterno desconforto de ser brasileiro na genealogia das instituições civilizantes europeias, que se transplantam da velha civilização para este Éden do novo mundo.30

Diante desse panorama intranquilo, de múltiplas ancestralidades e vontades

de retomada da carne, o espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo31.

Algumas pistas trazem-me a relação da obra com o expectador: as experiências in

loco feitas por Flávio de Carvalho (que, apesar de contemporâneo aos modernistas,

não participou da Semana de 1922), a primeira intitulada Experiência nº2, de 1931,

na qual caminha com boné na cabeça, de forma desafiadora, em sentido contrário

ao de uma procissão de Corpus Christi durante a qual é hostilizado:

A primeira das séries relaciona-se à Experiência nº 2. A insistência do artista

em permanecer de boné diante de uma procissão de Corpus Christi, no centro de São Paulo, leva fiéis enfurecidos e uma tentativa de linchamento. Concebido como um estudo de psicologia das multidões, o evento é descrito e analisado. Em seu relato, Flávio de Carvalho recorda-se de ter imaginado a própria morte enquanto se escondia, e a representa em seu

30

VERGARA, Luis Guilherme. “Utopia antropofágica das raízes do Brasil”. Revista Poiesis nº11 in http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis11/Poiesis_11_utopiaantropofagica.pdf, p 136. Acessado em 03/03/2015. 31ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago (1928) em Http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf Acessado em 03/03/2015. p 4

38

livro por uma ilustração identificada pela legenda assistia emocionado ao meu desmanchar (nanquim, col. particular, São Paulo). 32

Em 1956, o artista apresenta-se em passeata pelo centro da cidade de São

Paulo com o New Look: um traje tropical masculino composto de saia e blusa de

mangas curtas e folgadas. Desta forma, abre espaço para novos procedimentos em

arte, que serão desenvolvidos nos anos seguintes no Brasil

Figura 19 – Anotação Visual Nº4

Fonte: A autora, 2015.

Como já sugeriu Rui Moreira Leite, um dos maiores conhecedores da obra do artista e pioneiro no seu estudo, Carvalho opera uma transposição do âmbito do artístico para a fronteira entre a “experiência” (pessoal, subjetiva, entendida como vivência) e a “experimentação” (de matriz cientificista, embora disparatadamente especulativa e imaginativa, que supõe certos procedimentos estabelecidos para a produção, e a observação de fenômenos). Considerando tal fronteira, pode-se dizer que tanto Carvalho e sua obra quanto o espectador realmente imerso nela seriam, ao mesmo tempo, a cobaia, o laboratório e o cientista maluco tomado por uma “animosidade pesquisadora".

33

32LEITE, Rui Moreira. Modernismo e Vanguarda: o caso Flávio de Carvalho. Estud. av. [online]. 1998, vol.12, n.33, pp 235-244. ISSN 0103-4014. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141998000200018. 33LEITE, Rui (1998) Op. Cit.

39

Noto que as experiências de Flávio de Carvalho com o público pretendem

envolvê-lo através do embate e da hostilidade e não da participação positiva e

dialógica. Carvalho costumava declarar que via frequentadores de exposições e de

museus como uma “vaca que contempla a paisagem” ou mesmo declarar “O público

não me interessa. Pinto, faço escultura e arquitetura exclusivamente para mim. As

massas estão completamente alheias ao meu mundo [...]” 34 Desta maneira

idiossincrática, considero Flávio como peça importante para abrir espaço às

investidas relacionais/participativas do que foi posteriormente o neoconcretismo.

Figura 20 – Anotação Visual Nº 5

Fonte: A autora, 2015.

Os artistas concretos brasileiros desenvolviam suas pesquisas a partir dos

ideais da arte concreta surgida no início do século XX na Europa, na qual a

produção era geométrica, isenta de subjetividade e com grande aproximação com a

34LEITE, Rui (1998). ibid.

40

ciência, a obra não procurando representar nada além de de si própria, e sim ser

uma obra independente, portanto, concreta35.

Enquanto a vanguarda da Semana de 1922 e Flávio de Carvalho tinham

apreço pelo tropical, caótico e erotizado comportamento brasileiro, segundo Brito

(1999) os concretos pareciam querer fugir desta imagem, pareciam querer superar o

subdesenvolvimento importando ideias e emulando seu fetiche tecnológico.36

Os artistas neoconcretos criavam obras nas quais, segundo Brito (1999), as

experiências não seriam puramente retinianas, substituindo o olho-máquina pelo

olho-corpo, ampliando o relacionamento do observador com a obra para, mais tarde,

inaugurar a ideia do observador como participante. O tempo era duração e

virtualidade deixando em suspenso o tempo de produção, de modo a permitir a

intervenção do expectador quase no sentido de completar os trabalhos, recriá-los.37

Dois artistas pioneiros na arte participativa e que ocupam lugar de destaque e afeto

nesta empreitada escrita são Lygia Clark e Hélio Oiticica,. Foram, ambos, concretos

e neoconcretos, que desbravaram o campo da relação público-obra-artista. Segundo

Lygia, em 1986: Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo exterior. Eu,

era a parte de dentro. Nós dois existíamos a partir do momento em que há uma mão que

calce a luva38.

Meu contato com esses artistas deu-se com o ingresso na graduação, e, no

ano de 2007, tive a oportunidade de visitar a exposição Tropicália - Uma revolução

na cultura brasileira (1967-1972), curadoria de Carlos Basualdo no MAM-RJ.39 Na

época, meu interesse estava muito voltado para as mulheres artistas, o que me fez

ter a atenção imediatamente atraída pela figura de Lygia Clark. Lá estavam expostas

réplicas da sua série Bichos, de 1960, que podiam ser manipuladas com o uso de

luvas brancas. Lembro-me dos vídeos de Caminhando (1964) ,no qual ela corta e

manipula uma fita de Moebius, e de Baba Antropofágica (1973), onde os

participantes levam à boca carretéis de linha, e depois os desenrolam para cobrir o

corpo de uma pessoa que está deitada no chão.

35Sobre o concretismo http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo370/concretismo. Acessado em 15/01/2015. 36BRITO, Ronaldo, Neoconretismo. São Paulo: Cosac Naify, 1999.p. 47 37BRITO, (1999) Ibid. p.70 38CLARK, Lygia in http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/00287 5.html. Acessado em 10/12/2014. 39Ver mais sobre a exposição em BOSUALDO,Carlos.Tropicália - Uma revolução na cultura brasileira (1967-1972).São Paulo: Cosac Naify, 2007.

41

Figura 21- Anotação Visual Nº6

Fonte: A autora, 2015.

Na exposição podíamos interagir com os Objetos Relacionais, e o que me

causou mais surpresa, talvez por ter conseguido esquecer por alguns momentos que

estava em um museu, foi a instalação A Casa É o Corpo: Labirinto (1968), na qual é

criada uma vivência sensorial e simbólica, atravessando ambientes denominados

"penetração", "ovulação", "germinação" e "expulsão". Talvez naquela época eu já

houvesse naturalizado o manuseio de obras dentro do museu, mas entrar em uma

instalação onde as sensações são imersivas e estranhas — dentro da qual eu

inclusive caí e dei risada — possivelmente gerou alguma quebra no meu

entendimento do que é arte, no meu conhecimento do que seria o comportamento

do meu corpo em relação à arte e do que é ser artista.

42

Figura 22 – Objetos Relacionais,

Lygia Clark.

Fonte: Fonte Revista Viso

(online)nº13 , década de 80.

É um desafio colocar em palavras a grandeza da obra de Lygia Clark,

mensurar o quanto suas proposições são revolucionárias no campo da relação entre

artista e espectador. A experiência de Flávio de Carvalho com o New Look data de

1956, enquanto a série Bichos data de 1960, com muito pouco tempo de distância e

nenhuma relação entre si. Intuo algumas diferenças entre a relação com o

espectador de Flávio e Lygia: Flávio, tal qual um cientista em laboratório, provoca o

público e estuda sua reação para sua experiência pessoal, como estudo da

sociedade, enquanto Lygia propõe uma relação positiva com o participante, na qual

ambos os lados recebem influência. Outra diferença é que nas obras de Lygia o

corpo da artista está ausente, ela é uma propositora, enquanto nas de Flávio o corpo

está presente e atuante. Enquanto os estudos de Flávio parecem desejar traçar o

comportamento coletivo e não individualizado, o trabalho de Lygia busca a

individualização, a descoberta de si (do público) através das ações

poético/terapêuticas40.

40Segundo Felipe Escovino em entrevista sobre Lygia Clark in HTTPS://www.youtube.com/ watch?v=67kzuv1xzfm. Acessado em 04/03/2015.

43

Figura 23 – Anotação Visual Nº7

Fonte: A autora, 2015.

Na exposição, a obra de Lygia mostrou-me, ao incluir minha participação, que

eu, quando artista, não precisaria estar sozinha no ato de feitura da obra, que existia

uma soma ali. Já com a obra de Hélio, não me relacionei intensamente de imediato.

Minha afinidade com sua pesquisa e seus ideais acabou se dando a partir da leitura

de textos e aproximações acadêmicas, alguns anos depois. Na época em que pisei

na palha da instalação Tropicália (1967), não sabia o quanto mais tarde fariam

sentido para mim as aproximações de Hélio com as questões sociais e vivências

com pessoas marginalizadas, tendo foco não só na participação do público e na

pesquisa sensorial, mas também nas experiências de vida em comunidade

Sua experiência com a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira,

assim como com os moradores do morro, que culminou nos Parangolés (1964) —

obras para serem vestidas e ativadas através do uso, da dança — também

44

aconteceram a partir de uma troca multilateral entre artista e público. O que Hélio

aponta como determinante para o surgimento desta arte coletiva total foi justamente

a descoberta de manifestações populares organizadas (Escolas de Samba,

Ranchos, Frevos, Festas de toda ordem, Futebol, Feiras), e as espontâneas ou os

“acasos” (“arte das ruas” ou antiarte surgida do acaso) 41.

Figura 24 – Parangolés, Hélio Oiticica.

Fonte: Site projeto Hélio oiticica, 1964.

Fora as questões jurídicas ou de segurança, o que define aonde podemos ir é

este sentimento de pertencimento presente em relação a lugares dos quais

“fazemos parte”, e ausente daqueles dos quais “não fazemos”, e é construído a

partir do convívio e da ação. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o

falamos, ele é nosso42, e, tal qual o poema, o caminhante torna sua a cidade, na

41OITICICA, Hélio. Esquema Geral da Nova objetividade,1967 in http://tropicalia.com.br /leituras-complementares/esquema-geral-da-nova-objetividade#sthash.HL42MtBm.dpuf 42BACHELARD (2008) Op. Cit. p 7

45

repercussão de sua vista. Minha relação com o Morro da Mangueira, que com

certeza já não era o mesmo de Hélio, acontece quando:

observo o exterior a partir da sacada da universidade e me pergunto onde posso acessar na paisagem circundante. Do décimo primeiro andar, com um lance de vista. Se salga a ponta do olhar. Perto da ponte. Corre com velocidade de trilho, vem? E vai descansar nas casas, uma por uma depois da outra. E sobre. Mas não entra no morro de nome de árvore. Porque atrás do olho vem o corpo, todo cheio de seu tempo próprio, seu peso todo. E ainda por cima com esse cinza tal que é quase seu. A universidade e o morro são tão próximos, e, mesmo assim, fronteiras invisíveis cerceiam o ir e vir entre elas. E para alcançar lá, troquei minha curiosidade pela curiosidade de Mariana, levando ela à UERJ.43

Segundo Ronaldo Brito44, as questões que envolvem a relação entre o artista

e o público, agora entendido como propositor e participador, entre arte e espaço

real, experimentação e produção artísticas, foram exploradas por Oiticica sob o título

de problema da antiarte. Era importante para o artista discutir o pensamento

desenvolvido pela vanguarda e as mudanças culturais que estavam em processo,

enquanto sua crítica era voltada para as obras que são feitas segundo a lógica

mercadológica e a alienação política e social dos artistas.

Para Oiticica, o papel do antiartista ou artista experimental é de

proposicionista, empresário ou educador,45 pois estaria aberto ao acaso ou a

condições experimentais e pluralidades no que se refere ao espaço, ao público, aos

materiais e às práticas. No escrito Esquema Geral da Nova Objetividade, aponta

duas maneiras definidas para a participação: a que envolve a “manipulação” ou

“participação sensorial-corporal’’ e a participação “semântica”, sendo que ambas

buscam diferir-se da pura contemplação e pretendem criar novos significados.

Em a Teoria do Não-Objeto (1959), Ferreira Gullar expõe suas investigações

acerca da arte que explora situações sensoriais e mentais que, segundo ele,

ocorrem através do emprego do “não-objeto” que, além explorar e criticar os limites

impostos pelo plano e sua função contemplativa, buscaria interagir com o ambiente

e seus agentes participantes. E que, segundo Hélio Oiticica, vai em direção a uma

atuação global do artista enquanto agente cultural de seu tempo, uma “participação

total”:

43Anotação pessoal sobre a ação antecedeu o trabalho Paisagem Segunda. 44BRITO (1999). 45OITICICA (1967).

46

O que Gullar chama de participação é, no fundo essa necessidade de uma participação total do poeta, do artista, do intelectual em geral, nos acontecimentos e nos problemas do mundo, consequentemente influindo e modificando-os; um não virar as costas para o mundo para restringir-se a problemas estáticos, mas a necessidade de abandonar esse mundo com uma vontade e um pensamento realmente transformadores, nos planos ético-politico-social.46

Figura 25 – Anotação Visual Nº8

Fonte: A autora, 2015.

Parece que essa noção de poder de influência do artista na cultura e na

sociedade, o artista como participador total, estava em efervescência principalmente

nos anos 60/70 no Brasil, o que nos legou uma série de obras de forte cunho político

e reflexivo, tanto nas artes visuais, quanto na música e no teatro, inclusive

demonstrando um intenso intercâmbio entre essas áreas47.

46

Idem. 47Sobre este assunto, ver o livro Tropicália. Apresentação Fred d´Orey; organização Frederico Coelho e Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

47

Uma série de obras que sempre estiveram presentes no meu ‘vocabulário

imagético’ são as Trouxas Ensanguentadas, de Arthur Barrio. Eu poderia citar aqui

uma lista extensa de artistas que produziram obras relevantes durante o período da

ditadura militar brasileira, mas escolho Barrio por admirar nele um espírito

desregrado e difícil de definir, que mesmo com o auxílio de textos sobre sua

produção, para mim se manteve como uma incógnita latente somada a uma espécie

de inquietação e fascínio pela imagem poderosa das “trouxas”. Sobre essas obras,

iniciadas em 1969 e chamadas Situações:

trabalhos de grande impacto, realizados com materiais orgânicos como lixo, papel higiênico, detritos humanos e carne putrefata (como as Trouxas Ensanguentadas), com os quais realiza intervenções no espaço urbano. No mesmo ano, escreve um manifesto no qual contesta as categorias tradicionais da arte e sua relação com o mercado, e a situação social e política na América Latina. Em 1970, na mostra Do Corpo à Terra, espalha as Trouxas Ensanguentadas em um rio em Belo Horizonte.48

Figura 26 – Situação T/T 1, Artur Barrio.

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural, 1970.

Barrio, apesar de produzir obras de intervenção urbana e de se mostrar

extremamente ativo nos debates político-culturais, não mostra interesse na relação

com o público, exemplificado no texto Barrio: a morte da arte como totalidade (2001),

de Sheila Cabo, na qual ela discorre sobre o trabalho Blooshulss (1970): 48 Sobre Arthur Barrio in http://www.itaucultural.org.br. Acessado em 01/12/2014.

48

(...) trabalho que se realiza em qualquer local da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho utiliza materiais do mundo subjetivo do artista, que reinventa relações para eles. Um lápis, uma cadeira, dois quilos de sardinha mantêm entre si as relações que instituem a arte/vida. Existem, no entanto, sem a experiência do outro, sem a vivência do expectador ou do participador. O fato de existir independe de qualquer outra coisa, instituição, material ou pessoa, pode torná-lo experimental-marginal por excelência. Isolado, como o próprio Barrio se sentia.49

Percebo na obra de Barrio uma influência sobre minha pesquisa no que se

refere à busca por imagens potentes, que possam contar uma história e ter algum

impacto no cotidiano fora do espaço museológico, e também uma vontade de força

política e de reflexão social. Mesmo seu trabalho não envolvendo nenhum

participante direto, vejo uma camada participativa no que se refere aos discursos e

histórias que permeiam suas ações, visto que muitas vezes elas continuam

acontecendo através da transmissão oral e espontânea.

49Geraldo, Sheila Cabo in Barrio: a morte da arte como totalidade (2001) in Arte Contemporânea Brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Ricardo Basbaum (org.) Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p 104

49

Figura 27 – Anotação Visual Nº9

Fonte: A autora, 2015.

50

2.2 Impuro e cegante.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopeia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues, todos os lugares-comuns. (...) João do Rio

50

Meu interesse em produzir trabalhos fora do espaço museológico (ruas,

escolas, universidades, praças, viadutos) é por esperar que, através dessa

estratégia, o encontro com pessoas variadas seja facilitado, já que o espaço

institucional da arte geralmente é pouco visitado por pessoas que não sejam do

meio artístico.

Ao considerar o espaço urbano como o principal local para instauração da

minha produção artística, porém, é preciso em primeiro lugar compreender que o

espaço urbano ao qual me refiro é, na maioria das vezes, o das grandes cidades

brasileiras, e, sobretudo, da metrópole que habito, o Rio de Janeiro, e isso

pressupõe atributos específicos para as experiências. Para mim, essa cidade

conjuga sensações controversas – beleza, violência prazer, descaso – configurando-

se num espaço polissêmico e desafiador, que exige do corpo e do olhar um tipo de

resistência específica para reter informações:

A metrópole é o paradigma da saturação. Contemplá-la leva à cegueira. Um olhar que não pode mais ver, colado contra o muro, deslocando-se pela sua superfície, submerso em seus despojos. Visão sem olhar, tátil, ocupada com seus materiais, debatendo-se com o peso e a inércia das coisas. Olhos que não veem. 51

O escritor Rubem Fonseca, em um conto chamado A arte de andar pelas ruas

do Rio de Janeiro52, cria uma personagem de nome Augusto que, após ganhar

dinheiro através de jogos de azar, abandonou seu emprego e dedica-se a ser

50RIO, João do. A rua (1908) In Catálogo da 29ª Bienal de São Paulo: Há sempre um copo de mar para um homem navegar/curadores Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2010. p 168 51 PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1996. p 175 52FONSECA, Rubem. Romance Negro e Outras Histórias. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1992.

51

andarilho, escritor, a ensinar as prostitutas a ler e a relacionar-se com os moradores

de rua do Rio de Janeiro: Como anda a pé, vê coisas diferentes de quem anda de carro, ônibus, trem, lancha, helicóptero ou qualquer outro veículo. Ele pretende evitar que seu livro seja uma espécie de guia de turismo para viajantes em busca do exótico, do prazer, do místico, do horror, do crime e da miséria, como é do interesse de muitos cidadãos de recursos, estrangeiros principalmente; [...] Nem será um guia arquitetônico do Rio antigo ou compêndio de arquitetura urbana; Augusto quer encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade. Solvitur ambulando. 53

Esta personagem escolhe produzir seu livro a partir da vivência específica

das ruas, de suas caminhadas e relações, e ao mesmo tempo acredita que o livro

possa auxiliá-la na tarefa de existir na cidade. Acredito que esse movimento de

Augusto, de doação completa de si mesmo à vivência do Rio de Janeiro, seria uma

versão intensa da motivação dos artistas urbanos, que, conforme pontua Brissac

(1996), estão acometidos pela cegueira imposta pela metrópole.

Figura 28 - Y Jesús dijo a Làzarus, Carlos Garaicoa

Fonte: Site oficial do artista, 2003.

As obras de arte públicas permanentes que observo pelas ruas do Rio de

Janeiro sugerem ainda uma forte relação com a ideia das esculturas modernistas,

que embelezam a cidade e a tornam mais palatável. São esculturas em sua maioria

53 FONSECA, Rubem. 1992. Op. cit. p 600

52

realistas, com temas amenos ou mesmo bustos de personalidades eminentes da

história. Ao contrário disso, os artistas contemporâneos criam obras que não trazem

alento visual ao morador da cidade, que questionam e problematizam esses

espaços. O artista cubano Carlos Garaicoa, por exemplo, em seu projeto para

espaço público chamado Y Jesús dijo a Lázaro…/ And Jesus said to Lazarus (2003)

brinca com a decadência dessas representações, mostrando uma escultura equestre

sem cabeça e, anexa a ela, uma esteira com alguns tipos de cabeças masculinas,

todas com um pombo, também esculpido, pousado.

Nos anos 60, houve o início dessa quebra de paradigma na arte pública, em

contexto internacional, a partir da crítica às instituições, espaços de arte, assim

como o mercado: “Os espaços institucionais (galerias, museus etc.) passaram a ser

vistos como modelos ideais que expressavam a si mesmos, colaborando no

distanciamento entre o espaço da arte e do mundo exterior.” 54 Dessa forma, os

artistas começaram a fugir do espaço asséptico das galerias (cubo branco) para

buscar lugares impuros e contaminados pela vida real, tais como hospitais, ruas,

mercados, prédios abandonados etc. Com isso nasceram as obras site-specific, as

intervenções, as apropriações, a body art e a performance.

Figura 29 – A casa Desaparecida,

Christian Boltansky.

Fonte: Site University of

Minnesota, 1990.

54CARTAXO, Z. Pintura em Distensão. Rio de Janeiro: Oi Futuro/Secretaria do Estado de Cultura do Rio de Janeiro, 2006. p 85

53

As obras site-specific são aquelas atreladas ao local (site) e suas

características físicas. Essa especificidade em relação às características ambientais

ou arquitetônicas é o avesso da ideia de autorreferência das esculturas modernas,

que contêm um significado autônomo e podem ser transportadas para quaisquer

lugares. Os artistas da site-specific ajudaram a abrir a discussão do espaço da arte

como o espaço real e impuro do cotidiano, em oposição ao espaço ideal do

museu/galeria.

Figura 30- House, Rachel Whiteread.

Fonte: ARCHER, Michael. Arte contemporânea:

Uma história concisa, 1993.

A tensão da ausência da casa, do desaparecimento, do vazio e da morte não

poderia ter sido mais bem sublinhada do que através da obra A casa desaparecida

(1990), de Christian Boltansky. Este prédio de apartamentos no centro de Berlim, na

Alemanha, foi destruído em 1945 por um bombardeio aéreo nazista, e 45 anos

depois o artista desenvolveu esta intervenção que consistiu em colocar placas com

os nomes dos moradores, em sua maioria judeus, datas de nascimento e morte e

suas ocupações, no lugar aproximado onde eles moravam.55 A manutenção do vazio

deixado pelo prédio tem esse vazio ressaltado pelos prédios vizinhos, que

continuaram sendo habitados e ressignificados. O prédio destruído restou guardado

no tempo. Outra obra que exerce paralelismo neste sentido é House (1993), de

55Sobre a obra http://www.chgs.umn.edu/museum/memorials/berlin/.Acessado em 07/03/2015.

54

Rachel Whiteread, que é um molde de todo o espaço interior de uma casa em

Londres, que depois de removida deixou à mostra seu negativo:

A Casa de Whiteread foi uma modelagem do espaço interno de uma casa na zona leste de Londres. Última de um conjunto de casas que foram demolidas para dar lugar a um parque, a solitária presença do edifício erguia-se como um breve monumento, um forte lembrete do problema dos sem-teto londrinos e um desencadeador de lembranças de outras residências há muito esquecidas.56

Ambos os trabalhos foram criados a partir de informações do mundo real, com

os acontecimentos da vida comum que não concernem diretamente os problemas

específicos da arte, que lidam com a paisagem cotidiana e, consequentemente,

afetam a vida das pessoas que vivem ou transitam no seu entorno.

Segundo Bourriaud, no livro Estética Relacional (2009) 57, os artistas dos

anos 90 observaram que o crescimento das cidades e dos meios de comunicação

permitiram fluxos maiores e mais velozes de pessoas e informações, enquanto que

a busca pelos temas intimistas e meditativos da mente e do espírito ou as obras

sobre linguagem e mídia começaram a dar espaço a obras sobre as formas e

possibilidades de viver na cidade. A exigente relação com o trabalho e o tempo, da

mesma maneira que permitia o aumento do poder aquisitivo, deixava as pessoas

sem referências de convívio, ávidas por retomar as rédeas das vivências e vínculos

sociais. Acentuando esta cena, os espaços físicos de convivência tornaram-se mais

normatizados e escassos.

Nas palavras do autor ''o projeto emancipador moderno foi substituído por

inúmeras formas de melancolia''58, por isso alguns artistas daquele momento se

ocuparam em desenvolver maneiras de ''aprender a habitar melhor o mundo “59. Por

conseguinte, delineia-se como obra relacional aquela que problematiza as relações,

estimulando encontros e diálogos.

Minha formação universitária, em licenciatura e bacharelado em artes visuais

na UERJ, foi norteada por alguns professores-artistas que começaram a atuar nos

anos 80/90, em coletivos artísticos que propunham intervenções urbanas, ações de

forte cunho social e/ou pesquisadores de temas relacionados às formas de existir e 56ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes (2001). p 208 57 BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. 58BOURRIAUD, 2009. Op. cit. p16 59BOURRIAUD, 2009. Op. cit. p18

55

se construir contemporaneamente. Dessa forma, fui especialmente estimulada a

conhecer os coletivos de arte iniciados nos anos 90, a arte ativista, a mídia tática e

também iniciativas curatoriais que organizam e incitam produções contestadoras

como, por exemplo, a Bienal de São Paulo de 2006 — Como viver Junto, e a de

2010 — Há sempre um copo de mar para um homem navegar. A experiência de ter

visitado as bienais de São Paulo, dos anos 2006 e 2010, foi especialmente

formadora da minha pesquisa, já que ambas abordam os temas da arte política e da

convivência.

O trabalho Time Divisa (2006-2010), de Antônio Vega Macotela, exposto na

Bienal de 2010, exerceu uma transformação radical na minha percepção da ideia da

participação, da qualidade da relação e da influência do contexto.

Macotela defende que só o tempo pode equivaler ao tempo. É a partir dessa relação aparentemente óbvia que observa e critica a mercantilização do tempo e o modo como o sistema econômico se apropria do individual e aliena as relações humanas. Para Macotela, caberia à arte provocar reflexões e aspirar a sistemas de troca orientados não pela objetividade monetária, mas por variáveis subjetivas como o desejo, o afeto e a liberdade. A prisão, lugar exemplar de tempo “apropriado”, foi o espaço escolhido para realização do trabalho Time Divisa. Durante três anos e meio, o artista visitou semanalmente os detentos da Unidade Carcerária de Santa Marta Acotila, em Cidade do México, com os quais vivenciou uma rotina de aproximações e intercâmbios. No total, são 365 trocas, uma para cada dia do ano, simbolicamente entendidas como um ciclo de vida. O artista realizava, do lado de fora, um pedido de um detento, e este, em contrapartida, fazia um projeto artístico encomendado, usando o seu próprio corpo e registrando as experiências em desenhos e objetos. O conjunto desses projetos testemunha uma outra forma possível de intercambiar tempos de vida.60

O artista utiliza sua liberdade de ir e vir, seu tempo, para realizar pedidos para

os detentos e recebe em troca obras de arte feitas com cabelos, unhas, guimbas de

cigarro, frotagens do corpo ou um livro esburacado pelo movimento repetido de

“coçar”. Nesta obra, a troca é instaurada na medida em que o contexto permite, e a

partir da impureza desse contexto que os valores da permuta foram impostos.

60Texto do Catálogo da 29ª Bienal de São Paulo: Há sempre um copo de mar para um homem navegar/curadores Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2010. p 170

56

Figura 31 - Time Divisa, Antonio Vega Macotela

Fonte: Catálogo 29ª Bienal de São Paulo, 2006-2010 Segundo a perspectiva de Miwon Kwon Um lugar após o outro (1997) 61, com

o tempo, as obras site-specific passaram a priorizar mais os temas e situações do

que os espaços em si, configurando o que foi chamado de site-oriented. Como a

obra de Macotela, cada vez mais surgiram obras pensadas para o espaço extra-

galeria ligadas a motivos políticos, tendo como impulso dominante a busca de maior

engajamento com o mundo externo e a vida cotidiana.

Miwon Kwon define três subdivisões no conceito de site: o fenomenológico, o

institucional e o discursivo ou site oriented, que considera questões específicas

como debates culturais e/ou problemas políticos como ''sites''. Ou seja, nos últimos

30 anos ''[...] a definição operante de site foi transformada de localidade fixa —

enraizada, fixa, real — em vetor discursivo -— desenraizado, fluido, virtual''.62

No texto, Kwon discute tais mudanças ocorridas na arte pública no contexto

norte-americano nos últimos 40 anos, pontuando os três paradigmas que

engendram a noção de arte pública: o primeiro é a ''arte em espaços públicos'', que

diz respeito às esculturas modernistas, abstratas localizadas nos espaços urbanos a

fim de decorá-los, de dar status aos prédios, públicos e privados; o segundo é ''arte

como espaço público'', que teria uma orientação maior para o local (site) integrando

arte, arquitetura e paisagem em um movimento de (re)desenvolvimento urbano; e o

terceiro, a ''arte em interesse público'' ou ''novo gênero em arte pública'', que envolve

61KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. Disponível em http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/ae17_Miwon_Kwon.pdf 62

KWON (1997) Op. cit. p 173

57

questões sociais e trabalhos colaborativos, da mesma maneira que uma maior

consciência comunitária, o que inclui o conceito de site oriented.

Noto como minha pesquisa aproxima-se dessa tendência, e sob essa mesma

ótica me vem a lembrança da intervenção Cidade Dormitório (2007) de Guga

Ferraz63, instalada na parte exterior da galeria A Gentil Carioca, no Rio de Janeiro.

Nela, o artista empilhou oito camas nesta área fortemente povoada por moradores

de rua, sendo rapidamente utilizadas pelos mesmos.

Figura 32 – Cidade Dormitório,

Guga Ferraz

Fonte: Site a Gentil Carioca, 2007.

No trabalho que desenvolvi em 2011, chamado Uso Indevido, que também

explora meu fascínio pelo dormir nas ruas da cidade, o ponto de partida foi a

observação das estruturas metálicas instaladas pela prefeitura do Rio de Janeiro em

bancos de praça — encontrados nos bairros do Flamengo e Laranjeiras, por

exemplo — para evitar que estes sejam usados para dormir. Os adesivos mostram

desenhos de pessoas dormindo em posições incômodas, que desafiam seus corpos

e também as restrições impostas pelo poder público para o uso do mobiliário urbano,

funcionando como uma espécie de pequeno manual para contravenção.

63Um texto sobre o trabalho pode ser lido em http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcir culacao/archives/001257.html. Acessado em 08/03/2015.

58

Esse tipo de construção urbana é chamado de arquitetura da exclusão64, e

outros exemplos podem ser facilmente encontrados pela cidade, como: muros contra

o avanço de comunidades populares, sistemas de vigilância, pedras pontudas

colocadas debaixo de viadutos, separadores de bancos de praça, entre muitas

outras instalações. A artista Graziela Kunsch discute uma dessas intervenções, as

rampas antimendigo65 construídas a partir de 2005 na cidade de São Paulo, como

site specific. Visto que tais rampas não pretendem solucionar os problemas da falta

de moradia e sim expulsar os moradores e moradoras de rua para as regiões

periféricas da cidade, atuando como interrupção, a rampa antimendigo ''nos lembra

de que o espaço público urbano não é um espaço comum a todos, mas um espaço a

todo momento moldado por interesses econômicos das classes dominantes, estas

representadas pelo Estado''. 66

Figura 33- Uso Indevido

Fonte: A autora, 2011.

A cidade convive com diversas energias de construção arquitetônica, e sobre

isso existe uma análise que tange o relacionamento da população de rua com o

espaço público urbano e sua apropriação simbólica, intitulada Casas Invisíveis: um

estudo dos espaços da população de rua do Rio de Janeiro67, na qual são

identificados padrões de ocupação do espaço e são observadas as relações entre 64

Um pouco sobre a ideia de “arquitetura da exclusão’’ em http://oinstituto.org.br/?p=1098. Acessado em 10/12/2014. 65KUNSCH, Graziela. A Rampa antimendigo e a noção de site specificity ou Andrea Matarazzo no Soho.in KUNSCH, Graziela (org.). Revista Urbânia 3. São Paulo: Editora Pressa, 2008. 66KUNSH (2008) Op. Cit. p 137 67SANTOS, A. L. V. ; DUARTE, C. R (2002) Op. cit.

59

essas pessoas e os elementos que compõem o entorno imediato. E, a partir dessas

arquiteturas construídas, que desempenham importante papel na noção de indivíduo

como tal, as autoras pensam a noção de casa.

O enfoque da pesquisa são as modificações que as pessoas promovem

quando se encontram em situação de exclusão espacial, e não a questão social e

econômica da lógica urbana. Quando o chamado morador de rua vê-se destituído do

suporte espacial da casa, ele arquiteta estruturas de proteção e simbologia a partir

de seu desejo, em uma ação humana expressiva: Ao considerarmos que o morador de rua constrói ''arquiteturas'' visíveis e invisíveis no espaço urbano, estamos utilizando o sentido amplo do termo, [...] entendemos por Arquitetura qualquer atividade humana que transforma intencionalmente o ambiente físico, segundo um esquema diretor, organizando o espaço, tempo, significado e comunicação; e tornando essa organização explícita e visível [...] 68

Outro exemplo de obra site oriented, e que se aproxima do tipo de trabalho

que procuro desenvolver, é o projeto Eloisa Cartonera69 (2003- hoje) fundado por

Javier Barilaro e Washington Cucurto, baseado em Buenos Aires, Argentina, que

envolve os catadores de papelão locais, em decorrência da crise econômica no país,

para a criação de um coletivo editorial. Até hoje, o projeto existe e é desenvolvido

em lugares diversos. Na 27ª Bienal de São Paulo o trabalho foi feito em parceria

com os catadores de papelão locais, publicando autores brasileiros e tendo as capas

dos livros pintadas pelos participantes.

Ou seja, a arte pública voltou-se para o indivíduo e para a problematização de

características e representações de parcelas da população mundial. A questão da

arte pública deixou de estar em um espaço comum a “todos” e passou a se dirigir ao

indivíduo. Agrupando esses indivíduos através de critérios como localização, raça,

credo, gênero e/ou opção sexual, orientação política — entre tantos outros possíveis

— esta ''arte em interesse público trabalha no limite entre uma arte interativa, algum

tipo de pesquisa antropológica e o site specificity''.70

68SANTOS, A. L. V. ; DUARTE, C. R (2002) Op. cit. p 274. 69 Mais sobre o projeto em http://www.eloisacartonera.com.ar/home.html. Acessado em 08/03/2015. 70SARNAGLIA, Melina Almada. Agenciamentos e Aproximações: Santiago Sierra e a estetização política do outro. SPA III Semana de Pesquisa em Artes UERJ. Disponível em http://www. ppgartes.uerj.br/spa/spa3/anais/ melina_sarnaglia _374_38 6.pdf, p 376. Acessado em 01/05/2014.

60

Figura 34 - Projeto Eloísa Cartonera, J. Barilaro e W.Cucurto

Fonte: Site Oficial do Projeto. 2003 - hoje

2.3 Eu e a ilha movediça

Figura 35 – Anotação Visual Nº10

Fonte: A autora, 2015.

61

Observar atentamente as ações desses artistas e grupos me auxilia no

entendimento da minha própria identidade artística, me faz perceber a importância

da participação, da relação com o contexto, da criação de imagens relevantes e

potentes e da preocupação com qualidade da participação, como ela ocorre.

Mas, quem é o artista que propõe estas ações? Como se autonomeia? Como

se caracteriza minha presença? É física e imprescindível? Não consigo me

categorizar como artista relacional ou site oriented, sinto que é necessária uma

busca mais aprofundada dessa definição.

Concomitante a minha formação acadêmica, pude vivenciar estágios em

diversos locais de educação informal, como museu MAC Niterói e os centros

culturais SESC e CCBB-RJ. Neste período de trabalho em museus, tive contato com

o conceito de mediação que muito se aplica a minha prática artística. A proposta da

mediação em museus e centros culturais diz respeito à desconstrução da prática da

visita guiada na qual o público é visto como receptor passivo de informações sobre

as obras de arte apresentadas nas exposições. A mediação é uma forma de criar

uma experiência ativa, plural e dialógica entre o mediador, a obra e o público, na

qual não existem respostas pré-definidas sobre as obras.

O “guia” orienta os visitantes com informações padronizadas, numa relação onde um guia e outro é guiado. A palavra “monitor” parece um desdobramento da mesma função, e nos remete a uma experiência relacionada à segurança, vigilância, alguém que está ali para “que o visitante não toque na obra”. No pensamento sobre a educação em museus, a palavra que, atualmente, mais se identifica com a nossa ação no acolhimento ao visitante é a “mediação”. Mediadores focam sua atuação no diálogo e na troca com o público, exercitando a escuta e flexibilizando sua ação, seu roteiro, adequando-o a seus interlocutores e buscando uma experiência compartilhada. Mediação no sentido de estar atento à obra e ao visitante e às relações entre eles. A intenção é colocar mediador e visitante lado a lado, construindo uma visita partilhada de experiências e pontos de vista.71

A experiência nesses espaços ensinou-me sobre o fazer do artista; a ação

artística que procuro é algo que se mantenha sempre em construção, pois me

coloco em três momentos distintos: ideia inicial da obra/ação, a vivência/fazer

daquela ação/obra e a observação dos resultados quando retornam para o espaço

71 GAMA, Rita. Programa Educativo Oi Futuro: compartilhando experiências em mediação. In Reflexões e Experiências. Adriana Fontes; Rita Gama (Org.) 2013.Edição virtual disponível em: http://www.oifuturo.org.br/wp-content/uploads/2013/04/69.-09out-miolo-oi-LIVRO-MEDIA%C3%87% C3%83O-EM-MUSEUS.pdf, p 18

62

expositivo, geralmente com resultados inesperados agregados a minha ideia inicial,

sendo esta a riqueza da obra participativa. Procuro desenvolver uma maneira atenta

de ouvir o outro, uma experiência lado a lado:

A busca pela construção de um espaço dialógico na mediação “autoriza”, legitima a fala do visitante, instigando o debate e consolidando a reflexão crítica a partir da descoberta de si (que ocorre tanto com o visitante quanto com o educador) e do estado de reencantamento com o mundo. Nesse estado atento e alerta, semelhante ao do artista, desenvolve-se a opinião crítica e perceptiva com relação à sociedade72

O livro O Mundo É Mais do Que Isso (EAV/2014) 73 ofereceu-me um

importante panorama sobre a prática da mediação artística para exposições em

museus e centros culturais no Rio de Janeiro, a partir da experiência da EAV Parque

Lage iniciada em 2009.

Quando penso a experiência do público com o museu, não é incomum ser

relatada a dificuldade de “entendimento” do que está sendo exposto, certo

constrangimento. Os artistas buscam incluir o público nas obras tornando-as

interativas e colaborativas, e, assim como os mediadores, relativizam o lugar do

artista como detentor de toda a sabedoria e do público como elemento passivo. A

arte contemporânea, ao agir no nível das rupturas e aproximações com a vida real e

o cotidiano, tem sua própria identificação como arte colocada em dúvida. Para o

público, as obras muitas vezes usam materiais e/ou abordam temas tão corriqueiros

que distanciam o expectador; o universo da obra “está tão próximo que parece

distante”.74

Desta forma, a busca por uma referência dentro do espaço expositivo cai na

figura do antigo guia de exposições — ensaiado e endurecido — aquele que sabe

“de cor” todos os detalhes das obras expostas, mas este papel está sendo

substituído pelo do mediador. O mediador é o indivíduo que trabalha em parceria

com o público, ao lado dele, percebendo suas características e saberes, estimulando

a construção da relação entre expectador-obra.

Minha experiência artística é enovelada a minha vivência como mediadora

durante a graduação e como educadora em escolas — atividade à qual me dediquei

durante dois anos em uma escola municipal — quando fui me construindo como 72GAMA, Rita. (2013) Op. cit. p 19 73 Tania Queiroz; Maria Tornaghi; Cristina de Pádula. (Org.). O mundo é mais do que isso. 1ª ed. Rio de Janeiro: EAV, 2014. 74QUEIROZ, Tania (2014) in Tania Queiroz; Maria Tornaghi; Cristina de Pádula. (Org.). Op. cit. p 21

63

aquela que apresenta, inicia, conversa, discute e gera discussão. Tive a

oportunidade de trabalhar em alguns dos principais locais de arte do Rio de Janeiro

exatamente neste período de efervescência da criação dos núcleos educativos. O

desejo latente era o do trazer vida ao museu, de umedecer suas juntas...

Devemos equilibrar o que é apreendido pela racionalidade com aquilo que o faro apenas retém, a fim de desenvolver uma espreita sofisticada, rica, inundada de tantos odores a ponto de torná-la incerta novamente. Aceitando nossa condição de espreitadores reconhecemos que não estamos sozinhos, que partilhamos, que coabitamos ao lado de outros animais com quem devemos gerar zonas de intersecções. Nossa vigia é para proporcionar encontros, aproximar o pensamento do não pensamento, constituir e abandonar territórios, não somente predar 75

Observando o papel exercido pelo mediador, podemos ver como ele se

entrelaça muitas vezes com o do artista, pois inclui performance e sensação,

informação e individualidade. O mediador não é o dono das respostas certas, e sim

aquele que instiga o público a fazer suas próprias perguntas. O trabalho individual

do mediador de exposições começa com o estudo das obras; o trabalho relacional

deste mesmo mediador começa na escuta, na conversa atenta e generosa.

A ambiguidade inerente ao artista contemporâneo também o aproxima deste

papel de mediador, como do papel de curador, de crítico, de educador, de arquiteto,

designer, político, ativista. Todos os aspectos da vida cotidiana, em sua riqueza, não

permitem que o artista seja “somente artista”. Ricardo Basbaum em Manual do

Artista-etc. (Beco do Azougue / 2013) apresenta-nos este termo interessante para

definir o artista contemporâneo, múltiplo e polivalente, que é o artista-etc.:

Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de “artista-artista”; Quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos “artista-etc.”. (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico etc.) 76

Penso no Projeto Respiração77, que acontece na Fundação Eva Klabin desde

2004, sob a curadoria de Márcio Doctors, como uma situação na qual diversos

artistas atuam como artistas-mediadores, porque têm por objetivo criar intervenções

de arte contemporânea no acervo de arte clássica desta casa museu. Desta forma,

75CADU (2014) in Tania Queiroz; Maria Tornaghi; Cristina de Pádula. (Org.). Op. cit. p 54 76 BASBAUM, Ricardo Roclaw. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013. p 168 77Mais sobre o projeto Respiração em http://www.evaklabin.org.br/respiracao.aspx?sec=5.

64

entre o acervo e o público, atuam fortemente na percepção daquela realidade, criam

espaços novos de reflexão, aproximação e distanciamento.

Figura 36 - I only have eyes for you, Marcos Chaves.

Fonte: Site Fundação Eva Klabin, 2013.

Pontuando meu trajeto como artista-mediadora, lembro-me do Projeto

Timestriems, feito em parceria com a artista Silvia Leal e o coletivo inglês Active

Ingredient78·, que propunha uma pesquisa acerca da percepção das crianças sobre

o clima e a energia. Eu e uma turma de terceiro ano primário da Escola Mário da

Veiga Cabral, situada no bairro da Tijuca, na qual trabalhei durante dois anos,

trocamos desenhos, vídeos, impressões culturais, e experiências com duas

professoras primárias da Newstead Primary School, UK e uma turma da mesma

faixa etária.

Este projeto de intercâmbio de informações e percepções entre países foi

mais uma ocasião onde pude atuar como mediadora entre pessoas que

normalmente não se relacionariam e também nas áreas de conhecimento das artes

e das ciências. Perceber as diferenças climáticas, da fauna, da flora e da paisagem

foi uma maneira de as crianças terem acesso a uma cultura diferente e às formas de

viver e costumes através de relatos de crianças da mesma faixa etária, e por meio

disso perceber as distâncias e proximidades simbólicas e afetivas através do ponto

de partida geográfico. 78Sobre o Active Ingredient http://www.i-am-ai.net/work/relate-working-title/.

65

Propus uma oficina chamada Flanco79 já em 2014, a fim de pensar uma forma

nova de me colocar como artista-mediadora-participante. A palavra que deu nome a

esta experiência coletiva significa, entre outras coisas: Ponto ou lado acessível ou

vulnerável; ventre, seio80. E demonstra também o momento de transição e conflito

no qual eu estava imersa, lidando com a ideia de me tornar também uma artista-

mediadora-desenhista-etc.

Na oficina, os três artistas participantes foram provocados, através de um

roteiro definido, a interagir com materiais diversos e buscar experiências de

redelimitação. Ou seja, praticar ações naquele momento com objetos da realidade,

mas de maneira diversa e temporalidade incomum. Os textos utilizados foram Banho

de Mar e Morte de uma Baleia, ambos de Clarice Lispector81. Após esta oficina,

reuni o material e editei segundo meu olhar e memória, criando um livro virtual. 82

Figura 37 – Flanco, 2014

Fonte: A autora, 2014.

Vejo, portanto, minha atuação como artista em um movimento crescente de

valorização da escuta e do outro, de construção, colaboração e troca, percebendo

no meu trabalho como a troca se dá a partir da mediação. Esta multiplicidade de

79No encontro VULNERAVEL UERJ http://encontrovulneravel.wordpress.com/. 80O verbete "flanco", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/flanco [consultado em 06-04-2014]. 81LISPECTOR, Clarice. Clarice na Cabeceira: crônicas. Org. Teresa Montero – Rio de Janeiro: Rocco, 2010. 82O livro pode ser acessado em http://www.bookemon.com/book_read_ flip.php?book_i d=404 199&size=1.4&style=simple.

66

atuações do artista contemporâneo lembra-me da fala de Hélio Oiticica83 no que se

refere à participação total do artista na sociedade, que seria um envolvimento

intenso com as questões culturais e sociais de seu tempo. E também de Lygia Clark,

que, ao envolver-se com as pesquisas voltadas para a psicologia, passou a nomear-

se terapeuta e não mais artista, mostrando como se autodefinir parece afinal uma

busca que tem finalidade em si mesma.

Chegados nunca chegamos

Eu e a ilha movediça.

Móvel terra, céu incerto,

Mundo jamais descoberto.84

83OITICICA (1967). Op. cit. 84LIMA, Jorge de. A invenção de Orfeu in Catálogo da 29ª Bienal de São Paulo: Há sempre um copo de mar para um homem navegar /curadores Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2010. p 10

67

Figura 38 – Voz Temporária.

Fonte: A autora, 2015.

68

3. VOZ TEMPORÁRIA: ESCUTA E FICÇÃO

Você acredita em magia? Vamos supor, por exemplo, que eu tenha nascido do tempo, do vento. Meu nome é Deusa, tenho 26 anos. Mas, realiza, eu tô na rua vai fazer dois anos. Antes eu morava com uma amiga. Saí de lá quando perdi minha família. Deusa

85

O trabalho de intervenção urbana chamado Voz Temporária (2015) surgiu a

partir do espanto e comoção aos quais fui acometida ao conhecer através das redes

sociais o projeto Rio Invisível86. Foi uma situação na qual me senti em concordância

completa com o que via, deslumbrada pela forma simples, ética e acessível que a

dupla Nelson e Yzadora conseguiu para divulgar as histórias de moradores de rua

do Rio de Janeiro.

Figura 39 - Rio Invisível (Deusa e Gutierrez)

Fonte: Página Rio Invisível, 2015.

Na página, são divulgadas as fotografias e os relatos das pessoas e, a partir

dessas histórias, pensei em desenvolver um trabalho que retornasse as informações

para a rua na forma de lambe-lambe. Minha ideia inicial era escolher trechos das

histórias para acompanhar os retratos que faria de cada pessoa e devolver para o

ambiente não virtual e urbano.

Em encontros com a dupla, apresentei meu projeto e começamos a pensar

como seria a convivência dessas pessoas com suas representações e narrativas na 85 Relato retirado da página Rio Invisível. 86Sobre o projeto Rio Invisível ver https://www.facebook.com/rio.invisivel?fref=ts. Acessado em 13/03/2015.

69

rua, pensamos quais participantes poderiam autorizar este trabalho e chegamos a

selecionar seis retratados iniciais. Voltei para casa com os nomes anotados em um

caderno e logo fui procurá-los entre as várias histórias compiladas na página virtual,

mas depois disso percebi que retratar um deles poderia especificamente ser

perigoso para sua integridade psicológica. Os organizadores concordaram, restando

cinco pessoas.

A partir disso, comecei a me perguntar acerca da segurança pessoal e do

incômodo gerado por estas informações afixadas justamente nos locais onde eles

circulam, a possibilidade de gerar algum mal-estar aos retratados começou a me

preocupar. Afinal, o lambe-lambe, mesmo mostrando uma versão ilustrada da

pessoa, teria ali sua história e seria reconhecível, como um cartaz de “procurados

pela polícia”. A partir da entrevista que realizei com os criadores87 da página, entendi

que os moradores de rua estão vulneráveis aos leitores virtuais, de maneira positiva,

na maior parte das vezes, mas também negativa, e essa vulnerabilidade poderia ser

acentuada com a inserção de suas histórias nas ruas. Outro choque entre o projeto

e a realidade foi perceber que as cinco histórias que eu tinha em mãos, as

autorizadas, não necessariamente eram as que mais me comoveram ou convidaram

a criar.

Diante destas inquietações comecei a ponderar outras estratégias para o

trabalho se realizar, e cheguei à conclusão de que a melhor maneira de proceder

seria propor um trabalho urbano baseado na sensibilização que vivi através do

projeto e criar possibilidades de ficção.

É significativo perceber a mudança da minha relação com o desenho, que

agora não se apresenta como ferramenta e sim como meio, bem como a criação das

histórias que são escritas a partir do que foi filtrado por mim, pelo que me convida,

uma relação mais desenvolvida com a ficção do que nos trabalhos anteriores. Este

trabalho pretende acrescentar uma camada de informação nova na cidade, entre o

virtual e o real, entre o real e o ficcional, e entre os retratados pelo Rio Invisível e as

personagens criadas por mim.

Na maioria das ações artísticas que propus, tive acesso a histórias e

conversas e, sobretudo naquelas com pessoas em situação de rua, o ato de contar

sua própria história para eu ouvir, acabou sendo muito importante. A pessoa em 87 Entrevista em anexo.

70

situação limite, de abandono ou maus- tratos demonstra frequentemente o desejo de

partilhar sua história de vida, e nesses relatos muitas vezes o limite entre o

acontecido e o imaginado não existe.

Com o tempo, escutar era também meu trabalho, e toda história que me foi

contada, foi se acumulando e se transformando na minha memória, desta forma,

acessar o que me foi narrado e transmitir para outras pessoas começou a parecer

também uma forma de criação. Como eu poderia transmitir o que somente meus

olhos e ouvidos tiveram acesso?

Figura 40 - Histórias Reais (fac-símile), Sophie Calle.

Fonte: CALLE, Sophie. Histórias Reais; p 16- 17, 2002.

Atraíram-me as obras Histórias Reais (2002) 88, da artista Sophie Calle, e

Divórcio (2013) 89, do escritor Ricardo Lísias, por serem textos que mesclam ficção e

realidade. Todo sujeito que narra a si mesmo busca, mais ou menos

conscientemente, dar sentido à própria existência, fazer-se visto, permanecer. O

indivíduo que escreve/narra busca destacar-se do tempo. O que me interessa na

produção literária de autoficção90 é pensar a dimensão da incerteza que minha

88 CALLE, Sophie. Histórias Reais; tradução Hortência Santos Lencastre – Rio de Janeiro: Agir, 2009. 89 LÍSIAS, Ricardo. Divórcio - 1ª. Ed – Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. 90FIGUEIREDO, Eurídice. Autoficção feminina: a mulher nua diante do espelho (in Revista Criação&Crítican. nº 4 abr. 2010) in http://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/art icle/viewFile/ 4679 0/50551. Acessado em 13/03/2015.

71

atividade de ouvinte me coloca e que eu possa colocar o público que terá acesso ao

meu trabalho.

Autoficção, segundo Euridice Figueiredo no texto Autoficção feminina: a

mulher nua diante do espelho (Revista Criação&Crítica nº4, abr. 2010):

A autoficção é um gênero criado por Serge Doubrovsky (1977). Sentindo-se desafiado por Philipe Lejeune que, no livro Le pacte autobiographique (1975. p 31), indagava se seria possível haver um romance com o nome próprio do autor, já que nenhum lhe vinha ao espírito, Doubrovsky decidiu escrever um romance sobre si próprio. Assim ele criou o neologismo autofiction para qualificar seu livro Fils, assim definido na quarta capa (nas edições mais recentes, o texto tornou-se parte de um prefácio): "Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, no crepúsculo de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: autofricção, pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer". (DOUBROVSKY, 1977. p 10) 91

Sophie Calle92 desenvolve seu trabalho poético utilizando fotografias, ações,

textos escritos e instalações. Sua obra é relevante para mim por engajar-se

pessoalmente com sua própria vida, criando situações e experiências, utilizando

fatos acontecidos consigo. No belíssimo livro Histórias Reais, a artista conta

momentos de sua história em textos curtos acompanhados de uma imagem

fotográfica.

Já o autor de Divórcio, Ricardo Lísias é um escritor que, tanto no livro citado

como em O Céu dos Suicidas (2012), tem como personagem principal e narrador um

escritor chamado Ricardo Lísias. No livro Divórcio, o narrador descobre um diário de

sua esposa, uma jornalista ambiciosa com a qual é casado por apenas quatro

meses, e na leitura desse diário descobre que sua esposa foi infiel e, sobretudo, que

o despreza profundamente. Sabendo disso, Ricardo deixa o casamento, levando

uma cópia do diário, e inicia sua trajetória de declínio e reconstrução pessoal.

A escrita de si 93 ou autoficção está configurada no exercício cumprido por

ambos os artistas: Sophie e Ricardo escrevem em primeira pessoa, mas,

diferentemente da autobiografia, não se comprometem com a verdade, ou seja,

91 FIGUEIREDO (2010) Op. Cit. p 92 92 Sobre a artista http://www.tate.org.uk/art/artists/sophie-calle-2692. Acessado em 10/03/2015. 93 Termo utilizado pelo autor em FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Portugal: Veja/Passagens, 2002.

72

criam personagens chamadas Sophie Calle e Ricardo Lísias. Nela o eu apresentado

não delineia o indivíduo fora do papel, pelo contrário, cria um movimento de

imantação (atração-repulsão-atração) com a identidade/realidade.

Esse jogo, especialmente estimulado pela inclusão de fotografias, brinca com a

curiosidade e a capacidade de comoção e endereçamento do leitor, colocando em

xeque o pacto94 que a autobiografia funda através do uso do nome próprio. A

fotografia é a princípio a imagem do real: diante da câmera existiu algo

materialmente em algum momento do tempo passado que foi capturado pela lente.

Figura 41 - Divórcio (fac-símile), Ricardo Lísias.

Fonte: LÍSIAS, Ricardo. Divórcio p 150-151, 2013.

Histórias Reais é um livro de imagem e palavras no qual cada pequeno texto

que conta uma passagem da vida de Sophie Calle tem uma imagem; nesse livro, as

fotografias retratam algo ou reconstroem algo que foi imaginado. O livro, por vezes,

denuncia a construção artística texto-imagem e, em outros, quase confunde-me

como simples diário de acontecimentos curiosos. Já Divórcio, surpreendeu-me com

imagens de arquivo familiar inseridas entre o texto. Encontrá-las, reforça o incômodo

da possibilidade de aquela história ser mais real do que fictícia. Nessas fotografias

não parece haver construção (cenário recriado), e elas geram a dúvida do ovo-texto

94 Para Philippe Lejeune “o que define a autobiografia para quem a lê é, antes de tudo, um contrato de identidade que é selado pelo nome próprio” in LEJEUNE, Philipe. O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.p 53

73

e da galinha-foto. A foto em preto e branco, de certa forma, separa o tempo da foto

do tempo atual. Para Roland Barthes (1984):

A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, e partiram radiações que vêm atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga meu olhar ao corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado.95

Quando uma história mescla realidade e ficção, a fotografia exerce o papel de

aproximar a literatura da realidade, de elevar o jogo a outro nível. O leitor sente-se

excitado pela aproximação, confuso e traído, imantado. Como se todo o metal de

seu sangue se atraísse pela dúvida. O entendimento e a memória são uma nuvem

cinza de partículas mínimas. A memória é evanescente e inquieta, sobretudo

ficcional.

A história do morador de rua é um relato de um exilado. O exílio é o estado

daquele que está distante de sua cidade ou nação. Exilado por desejo próprio ou de

outrem, o desterro pressupõe estar em noutro lugar que não sua casa. Todas as

capacidades do exílio, porém, dizem respeito a pertencer ou não a algum lugar.

No relato de Sérgio, por exemplo, podemos perceber como a perda da

referência segurança (casa, família, amigos), o exílio, o encaminham para uma

relação quase mística com o meio ambiente, da Natureza, do qual ele diz ser

pertencente. Meu nome é Sérgio e sou da Natureza. Vim do Amazonas e, antes da década de 60, passei por Brasília, quando estava em construção. Depois, vim descendo. Em São Paulo, uma família me adotou e registrou. Nunca estive sozinho, mas as pessoas foram ficando pelo caminho. Estou aqui desde 2000, já lavei carro e agora vendo linha. Quando tenho dinheiro, durmo em abrigo. Às vezes a pessoa vai dormir hoje e quando acorda não é o dia seguinte. Lava o rosto, vai na banca de jornal e não se dá conta. Tem gente que não sabe de nada e, de repente, desperta! Fica muitos anos dormindo e nunca chega o dia seguinte.96

O narrar a si mesmo oralmente, não permite elaborar o texto da mesma

maneira que a narração escrita, pois é mais espontânea e imediata. Porém,

podemos traçar um paralelo com a escrita de si. Para Foucault (2002) a escrita de si

constitui o próprio sujeito e a noção de indivíduo. Em seus estudos, porém, ele leva

95 BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro. Nova Fronteira 1984. p 121 96 História de Sérgio, divulgada na página Rio Invisível.

74

em consideração o homem da antiguidade clássica, que escreve para moldar suas

vivências e pensamentos ao etos de seu tempo, constituí-lo como cidadão; para

isso, o compromisso com a realidade era dispensado, pois o mais importante era

transformar a verdade em valores.

Quando se diluem as fronteiras entre o real e a ficção, quando são admitidas

como contaminadas entre si, a poesia mostra ao narrador que a representação

plena da realidade é impossível. Que a realidade não é passível de ser suportada

por si só. A memória age sobre o tempo denunciando que possivelmente o labor

mais humano seja o eterno atiçar de fogueiras. Os desaparecidos, exilados e em

busca do retorno comunicam-se das ilhas ermas, desenhando com sinais de

fumaça, para que socorram sua memória, que é a própria existência.

O título do trabalho Voz Temporária diz respeito à possibilidade de dar “voz”

a uma pessoa emudecida por sua situação de marginalidade, mesmo que por um

momento fugaz. A efemeridade desta voz, deste momento de narração, dá-se pela

estrutura do trabalho, um lambe-lambe que geralmente resiste pouco tempo afixado

na parede, e ao olhar do transeunte que é veloz e passageiro.

Figura 42 - Voz Temporária

Fonte: A autora, 2015.

As personagens foram baseadas tanto visualmente quanto nas histórias dos

moradores de rua reais, são criadas através da combinação de alguns elementos

das pessoas de Rio Invisível e das histórias que ouvi pessoalmente, das pessoas

que conheci. Ao mesmo tempo em que pode parecer cruel abrir mão de reproduzir

75

histórias de pessoas reais, que são extremamente comoventes, a ficção traz uma

camada de dúvida, esta tensão que é permitida através da obra de arte.

Todo o aprofundamento realizado durante a pesquisa e a escrita da

dissertação levou-me a questionamentos acerca da necessidade de incluir o Outro

no trabalho de arte. Neste parágrafo do livro A Parte do Diabo (2004) 97 Michel

Maffesoli fala acerca da motivação que nos leva a nos relacionarmos, a suposta

incompletude que nos leva a procurar no Outro um transitório preenchimento:

Existe na duplicidade estrutural, na falta, na diferença, uma espécie de abertura, uma disposição para o outro. O prefixo “dis”, traduzindo o aspecto clivado, duplo de todo ser e de toda situação, é o indício de uma abertura, de um receptáculo, sinal de que a vida é apenas interação. “Acima da realidade permanece a possibilidade”: ao afirmá-lo, Heidegger acentua efetivamente a incompletude. Incompletude que, na realidade induz à partilha, à criação contínua. Ser permeado pela falta só pode favorecer a procura, em mim mesmo, no social, na natureza, na deidade, do Outro que, por um momento e de modo imperfeito, me completa. Até que outro impulso de incompletude me leve novamente para outros horizontes da mesma ordem. 98

Tomada por este “impulso de incompletude”, sempre procurei a inclusão do

Outro por acreditar que falar dos e com os outros pode acrescentar pontos de vista

dissonantes, quebrar mais barreiras ou gerar mais movimento do que falar de mim

mesma. Muitas vezes fui questionada sobre a opção de não colocar o “eu” em foco

em detrimento do “outro”, mas aprendi que o eu nunca está ausente ou apagado,

mas sim em relação ao outro, que o trabalho colaborativo na realidade indica outras

abordagens do eu, permitem uma vivência de inconstâncias.

Não se busca o outro para se reconhecer, mas para “ser composto e decomposto constante, violenta e silenciosamente”. Para colocar a própria existência em seu questionamento ou no questionamento de seu próprio. “A existência de cada ser apela ao outro ou à pluralidade de outros”, diz Blanchot: é essa privação que o torna consciente da impossibilidade de ser ele mesmo, de se insistir como ipse ou como indivíduo separado. A insuficiência não se coloca a partir de um momento de suficiência, mas do “excesso de uma falta que se aprofunda à medida que se preencheria”.

99 Minhas experiências em arte participativa geram questões acerca da

qualidade das relações, como elas ocorrem e quem estaria envolvida nelas, estes

97 MAFFESOLI, Michel. A parte do Diabo. Rio de Janeiro: Record, 2004. 98 MAFFESOLI (2004) Op. Cit. p 94 99 CESAR, Marisa Flórido. “Como se existisse a Humanidade” in Revista Arte & Ensaios nº15 ano 2012. Acessado em http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wpcontent/uploads/2012/01/ae15_mariza_fl orido_cesar1.pdf. Acessado em 15/03/2015.

76

momentos fugidios de encontro, a permanência fugaz das obras, a subjetividade do

diálogo. A utopia da Estética Relacional de Bourriaud supõe relações homogêneas,

de saldo positivo, segundo Marisa Florido César no artigo “Como se existisse a

humanidade” (2012):

Rancière reprovará em particular a “estética relacional”, teorizada por Nicolas Bourriaud, uma vez que ela deseja operar como “medicina social”, em que a arte tem a tarefa de “restaurar as falhas do vínculo social”, nas palavras do próprio Bourriaud. Ao fazê-lo, essa arte exaure a invenção política das situações de dissensos, que abrem mundos em um mundo que se lhes opõe.100

O estar junto através da arte seria então mais constituído de dissenso do que

de consenso, estar junto imprime violência e insegurança, mesmo que seja – como

me ensinou Lygia Clark – um fazer que não de todo solitário; a relação na arte está

na tensão, na variedade, no desassossego.

Claire Bishop no texto Antagonismo e Estética Relacional (2004) 101· utilizou

um exemplo extremo de proposição participativa, as ações propostas pelo artista

Santiago Sierra, para refutar a teoria da Estética Relacional de Bourriaud. O artista

radicaliza as críticas sociais esbarrando nas questões éticas; ao pagar pessoas para

fazerem os mais diversos trabalhos, Bishop propõe a definição de sua obra pelo

conceito de antagonismo relacional, que seria uma forma de problematizar as

relações mais que solucioná-las.102 Sendo assim, percebo a riqueza desta

possibilidade de problematizar mais do que solucionar questões sociais, afinal, o

espaço da arte dispõe da liberdade de transformação através do sensível e tem o

poder de manter questões em movimento, nas palavras de Marisa Flórido Cesar:

É essa transmissão do intransmissível que desconcerta a sensibilidade, que desabriga o pensamento, que abre, quem sabe, a possibilidade de amar, a possibilidade de “tomber amoureux” que a arte acena em várias de suas mitologias de origem como em seus juízos de gosto. Fenda na espessura do mundo para que esse nós tenha lugar e existência. Um nós como ficção, desvio, êxtase. Um nós em perpétuo entrelaçar e em imprevisível fuga.103

100 CESAR (2012) Op. Cit. p 21 101 BISHOP, Claire. Antagonismo e Estética Relacional (2004). In http://issuu.com/tatui/docs/t atui12/7. Acessado em 10/01/2015. 102 SARNAGLIA (2009) Op. Cit. 103 CESAR (2012) Op. Cit. p 24

77

Figura 43 - Voz Temporária

Fonte: A autora, 2015.

78

Figura 44 – Anotação Visual Nº11

Fonte: A autora, 2015.

79

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação levantou um conjunto de questões relacionadas à reflexão

do meu processo artístico, tendo como ponto de partida a ideia da casa como lugar

de segurança e da construção do indivíduo, mas também como lembrança e

ausência. Tendo presente também o ato de dormir como imagem poética

pertencente à casa, e a partir da qual pude inclusive pensar o desabrigo.

Como consequência da observação da falta da moradia passei a produzir

trabalhos acerca das pessoas que vivem nas ruas, os chamados sem-teto, bem

como comecei a pensar os problemas de acessibilidade e uso da cidade.

As experiências que reuni nesta dissertação são, em sua maioria, trabalhos

efêmeros e quase imperceptíveis em sua materialidade e duração, e, somados a

isso, têm como temas a invisibilidade e a visibilidade. Ou seja, discutem as formas

de apagamento, desaparecimento e invisibilidade através de ações pouco visíveis

ou que tendem à dissolução/camuflagem.

As experiências artísticas feitas na rua estimularam-me a enfatizar as trocas

de informações e ações em conjunto, surgindo o interesse por compreender a

influência de alguns artistas brasileiros como Flávio de Carvalho, Lygia Clark e Hélio

Oiticica na pesquisa e produção da arte participativa. Ao mesmo tempo, analisei o

espaço urbano como lugar de acontecimento dessas obras, o que me levou a

conhecer os conceitos de site specific e site oriented (KWON 1998), sendo o

primeiro referente à produção artística baseada no espaço utilizado, o lugar e suas

características, e o segundo sendo mais voltado para problemas sociais e grupos

definidos, com maior foco nos indivíduos.

Acerca dos trabalhos que envolvem relações e propostas de convivência,

uma importante fonte de estudo acessada foi o livro Estética Relacional (2009), de

Nicholas Bourriaud, no qual o autor discute obras de diversos artistas cujos olhares

estão voltados para as relações humanas, para o contexto e para o público que ativa

as obras. Segundo ele, a arte é vista como um espaço de encontros fortuitos104 no

qual as experiências entre pessoas visam à construção de significados comuns.

Esta teoria foi refutada por Claire Bishop em Antagonismos e Estética

Relacional (2004), texto no qual a autora apresenta o termo antagonismo relacional 104 BOURRIAUD (2009) Op. Cit.

80

referindo-se à problematização das questões sociais através da arte, ao invés de

sua solução ou criação de novas relações a partir da arte para que influenciem a

realidade social, conforme pregava Bourriaud.

Somadas às alterações de minha lembrança, ter vivenciado experiências

artísticas nas quais conversei com pessoas, muitas vezes em situações de limite

social e psicológico, me fez considerar a polifonia gerada por suas histórias como

constituintes das obras, o que me aproximou da possibilidade da ficção.

Em contato com os outros, os participantes dos trabalhos que propus, percebi

como a narração de si aproxima-se da ideia de autoficção (DOUBROVSKY, 1977) e

da escrita de si (FOULCAULT 2002), tendo me interessado pela tensão gerada entre

a verdade e a mentira como um componente a ser incluído em meus trabalhos,

sobretudo no mais recente, intitulado Voz Temporária (2015), no qual produzi uma

intervenção urbana composta de lambe-lambes com personagens baseadas tanto

visualmente quanto nas histórias dos moradores de rua reais, criados através da

combinação de alguns elementos narrados pelas pessoas no projeto Rio Invisível e

nas histórias que ouvi pessoalmente.

A relação com o desenho foi observada como meio principal e não mais

somente ferramenta, assim como admiti a importância do desenho e do esquema na

minha produção de sentido, pontuando a dissertação com “anotações visuais”,

constituídas por esquemas de palavras e grafismos.

Tendo observado o papel exercido pelo mediador, pude ver como ele se

entrelaça muitas vezes com o do artista, já que o mediador não é o dono das

respostas certas e sim aquele que instiga o público a fazer suas próprias perguntas,

com uma escuta atenta e generosa. Isso me revelou a possibilidade de entender

meu trabalho como artista, do ponto de vista de uma artista mediadora.

Este aspecto múltiplo, a identidade plural do artista, trouxe-me de volta ao

conceito de participação total de Hélio Oiticica (1967), que implica uma ampla

atuação ativa política e culturalmente do artista, assim como o conceito de artista-

etc, apresentado por Ricardo Basbaum (2013), e que define o artista contemporâneo

como este agente complexo, atuante e multidisciplinar.

Como última reflexão, apresentei alguns pontos acerca da relação do artista

com o “outro”, pensando a minha própria inserção como indivíduo nas obras que

produzo, a partir da posição de artista-mediadora-ouvinte que propõe um jogo de

81

imantação entre verdade e inverdade. O que me levou a perceber e abraçar a

circularidade e a peculiaridade da minha pesquisa artística que busca dar

visibilidade através de ações efêmeras, insere-se na rua tornando-se fugaz e quase

imperceptível, acessa narrações de pessoas reais para a criação de ficções e foca

nas trocas para sublinhar os indivíduos. Esta atração ou impulso em direção ao

outro que gera diálogos, trocas que me fazem desaparecer, até um amanhã que

surge com o desejo renovado.

82

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88

ANEXO

89

(Entrevista) Rio Invisível Yzadora + Nelson 27/02/2015 Como surgiu o projeto? Qual a motivação pessoal de cada um para

desenvolver estas ações?

O RIO Invisível surgiu a partir do primeiro contato com os integrantes do SP Invisível. Assim que acessamos a página deles no Facebook, nos identificamos e vimos a possibilidade de extensão aqui pro Rio – uma cidade grande, igualmente urbana. Eles nos deram algumas dicas e direcionamentos de estrutura, mas tivemos liberdade para que pudéssemos criar um conteúdo com a nossa cara.

Aos poucos, percebemos que, embora megalópoles, Rio e São Paulo apresentam diferenças quando o tema é pessoas em situação de rua. As motivações para se estar ali são diferentes, e a dinâmica do cotidiano também.

Continuamos no projeto por acreditar que existe algo que precisa ser exposto. Certo dia nos perguntamos sobre o que acontecia quando a rua se esvaziava, os carros paravam de passar, o transporte público já não circulava, as lojas estavam fechadas... Ninguém sabe, e vamos continuar sem saber se não perguntarmos. Por isso, decidimos prosseguir, pela vontade de desvendar e trazer ao nível consciente uma realidade pouco debatida, sem os pré-julgamentos sociais.

Em que área vocês acreditam que suas ações melhor se encaixariam:

serviço social, fotografia, arte contemporânea?

Achamos que o projeto poderia se encaixar em todas essas áreas e em diversas outras, mas justamente por sua amplitude de atuações ele acaba não se fechando em nenhuma dessas. É possível que, a partir dele, possam surgir movimentos e ações que sejam mais voltados para o serviço social, assim como para um projeto de fotografia e formas de arte contemporânea,

O Rio Invisível é uma base para que outras esferas sejam desenvolvidas. O nosso rigor fotográfico é apenas para trazer humanidade e retirar aquelas pessoas da posição integrante da paisagem urbana. Dito isto, justificamos o não uso do preto e branco, por exemplo.

Como acontece a abordagem das pessoas, como vocês se preparam para

isso?

Procuramos abordar pessoas que estão sozinhas, para que elas se sintam mais à vontade para contar suas histórias, e até mesmo para nos sentirmos confortáveis com a situação. Como estamos sempre com a câmera, registramos pessoas que fazem parte do nosso cotidiano e que estão no caminho convencional casa-trabalho. Às vezes, marcamos de sair no fim de semana também.

Nosso preparo tem muito a ver com o nosso estado de espírito, é um trabalho artesanal. Quando abordamos uma pessoa, não sabemos qual será a recepção e a reação dela, por isso, precisamos estar seguros do que estamos fazendo, desde a ter uma percepção de como a pessoa está se sentindo até a saber como ganhar a confiança dela.

Quase sempre vamos separados para conversar com alguém. Dessa forma, acreditamos ser menos complicado o contato, deixando que o momento seja uma troca mútua, uma conversa horizontal, e não assumir uma posição de entrevistador x entrevistado. Quando estamos ali, surge muito das nossas vivências em relação ao que eles dizem. Por isso mesmo, não

90

adianta estarmos em um dia que não estamos a fim de dialogar ou se abrir para um desconhecido. Se chegarmos fechados até eles, não tem como querermos que eles se abram para nós.

Sobre o uso do Facebook qual a importância de divulgar as histórias

das pessoas em situação de rua?

O Facebook é a nossa principal ferramenta de trabalho, nossa plataforma. Queremos que as histórias tomem forma e sejam vistas, para que assim possamos cumprir o que prometemos, de tornar visível vidas que passam despercebidas no nosso dia a dia. Quando publicamos, nosso intuito não é fazer um serviço de assistencialismo e arrecadar ajuda. Nosso objetivo é dar um lugar para que eles deixem de ser apenas uma estatística e passem a ser sujeitos de suas próprias histórias. É uma página que fala sobre ser humano (e não moradores de rua), são pessoas em uma circunstância.

O intuito é estreitar as relações, despertar reconhecimentos e quebrar a barreira invisível. O Facebook acaba sendo a ferramenta atual que nos garante uma visibilidade. Através dos compartilhamentos, aumentamos o alcance e expandimos o movimento, tiramos mais pessoas da zona de conforto.

O nosso conteúdo não tem formato de rede social. Os textos são longos, a nossa linguagem não é tão corriqueira. É mesmo um artifício para mover o público e despertar reflexão.

Vocês já receberam críticas? Quais?

Várias. As críticas geralmente vêm quando não entendem o propósito da página, achando que queremos ganhar fama à custa das histórias ou que não faz sentido que divulguemos as histórias se não pudermos fazer nada para que supra as necessidades deles.

Há quem tente justificar de alguma forma o fato de a pessoa estar na rua, encontrar alguma lacuna que preencha a angústia de ler e ver que poderia ser qualquer um de nós. Aí é quando caem em cima da página, dizem que não estamos contando a história direito, que há “alguma coisa errada”.

Os valores éticos estão sempre em questão, seja por explorar imagem ou história. O fato de não conseguirmos dar acesso imediato aos entrevistados, ao produto final, pode dar a impressão de que eles não têm controle sobre suas histórias. Mas, sempre que possível, retomamos contato e mostramos a repercussão das postagens.

Outra crítica é por não divulgarmos o local que encontramos a pessoa, impossibilitando o contato. Neste caso, tentamos sempre explicar que a privacidade e a segurança das pessoas devem vir em primeiro lugar. Não temos como controlar quais serão as pessoas que irão até eles, e muitos contam histórias que acabam envolvendo outras pessoas. Assim, tentamos fazer a ponte entre os que procuram realmente para ajudar.

Quando se trata de um trabalho que envolve pessoas em situação de

marginalidade, risco ou miséria, a ética é sempre um ponto de

tensão. Como vocês lidam com a ideia de usar imagens de pessoas que

possivelmente não têm consciência do veículo no qual serão

divulgadas as informações?

Procuramos sempre explicar o projeto, dizer onde será divulgado e se possível mostrar como funciona, pelo celular mesmo. Deixamos claro que eles podem falar o que quiserem e tentamos não direcionar a conversa para algum assunto específico, além de nos livrarmos do juízo de valor.

91

Desta forma, recebemos depoimentos mais sinceros, que vão desde problemas extremamente íntimos a relatos cotidianos. A miséria e a marginalidade não são temas que levantamos na entrevista, se eles aparecem, são espontâneos. Depois, pedimos para fazer uma foto. Se não aceitarem, agradecemos pelo papo e seguimos em frente.

É sempre complicado lidar com a história de alguém, tê-la sob sua responsabilidade. Como é um trabalho que se baseia em confiança, nós escutamos a gravação da entrevista e revisitamos todos os pontos que foram levantados, conservando inclusive os vícios de linguagem.

Em alguns casos, alguns acabam fazendo denúncias e tocando em assuntos delicados. O dilema, então, passa a ser entender até onde estamos dando voz a essas pessoas sem que seja um risco para eles. Tentamos extrair o que representa de fato aquela pessoa, e não uma construção de revolta pela sociedade, que reforce qualquer tipo de estereótipo.

As histórias muitas vezes podem friccionar o limite entre a verdade

e a fantasia. Como é isso para vocês?

Muitas pessoas nos perguntam se as histórias são verdadeiras — duvidam de nós ou do entrevistado. Não temos como saber, e também não achamos que seja nosso papel, duvidar das histórias que nos contam. Aquele é o momento em que ele se torna sujeito de si, e não mais uma versão vista/contada por terceiros. O que nos interessa é quem ele quer ser, a história que ele quer contar, como ele quer ser visto. É uma pena que as pessoas sempre busquem uma brecha para duvidar, questionar o porquê de elas estarem nas ruas. Não temos essas respostas. Mas acreditamos que este é o processo normal do conhecimento — quanto mais se conhece, mais se dá conta de que ainda precisa saber mais. Todo discurso é uma construção.

Por outro lado, os entrevistados podem virar personagens, quiçá “celebridades”. Logo no começo da página, tivemos pessoas que “tietavam” os entrevistados, iam atrás e tiravam fotos para postar nos comentários. Acredito que esta seja a pior das consequências, quando nós, ainda que desloquemos o entrevistado da posição de vítima, não conseguimos encaixá-lo no ser humano, sem nada extraordinário, além da vida.

Vocês já ouviram histórias que não quiseram divulgar? E por quê?

Sim, em algumas situações decidimos cortar informações, por conta das questões éticas. É quando entra nosso papel de filtrar e entender qual é a mensagem, para que não prejudiquemos ninguém.

Muitas vezes estas histórias ultrapassam o campo pessoal e podemos entrar em um território que deslocaria a atenção.

Vocês se veem de certa forma como ativistas políticos?

Temos consciência do nosso papel por estarmos lidando com vidas de pessoas e por estarmos na tentativa de mudança de olhar. Certa vez, uma jornalista nos perguntou se não fazemos o papel que os políticos deveriam fazer. Aquilo mexeu conosco e, na hora, respondemos que não, porque talvez estivéssemos colocando no pacote político algo que foge dessa institucionalização política.

No entanto, podemos dizer que quando o projeto se iniciou não nos enxergávamos como ativistas, mas, com o tempo, vimos que é o caminho. Dentro de nós, surgiu a necessidade de levantar a bandeira da cidadania e dos direitos humanos.

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Qual o retorno desse trabalho para o mundo?

Não sabemos exatamente onde vamos chegar. Num mundo utópico, se pudéssemos dizer qual futuro gostaríamos de dar à página, diríamos que seria a sua não existência, a sua não necessidade. Conseguimos visualizar uma mudança positiva nos lugares e para algumas pessoas que já conversamos, e tivemos alguns retornos de pessoas que vivenciaram alguma situação em que a página foi agente de reflexão.

Acho que é mesmo um trabalho que preenche uma lacuna quase narrativa. É como se todas as pessoas tivessem suas versões de mundo, mas ainda faltem algumas. Estas algumas são os entrevistados do Rio Invisível. Cremos que as histórias ajudam a entender o que acontece nas ruas, a noção de tempo, do que é público e privado e conceitos de vida, amor, companheirismo, raiva... Diferentes, ou não.

É uma lanterna. Iluminamos um espaço que estava na escuridão para o, digamos, grande público. Esta é a grande vantagem do Facebook. O que revelamos não é novidade para quem escolheu trabalhar com isso, mas é incrivelmente novo para a maioria. E conhecer nunca é demais, a partir do conhecimento, outras discussões podem ser levantadas. É assim que o projeto cresce e não se fecha em si, ele está para ser de todos.

E para vocês?

O retorno pessoal é difícil de explicar. Acho que isso nos abriu a mente, somos receptores, assim como as pessoas que leem a página. A diferença é o contato, estar vivendo o momento do encontro. É isso que acaba sendo gratificante, o que não está escrito no Facebook.

(fim)