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AIDA MARIA MONTEIRO SILVA

ESCOLA PBLICA E A FORMAO DA CIDADANIA: possibilidades e limites

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Universidade de So PauloFaculdade de Educao 2000

AIDA MARIA MONTEIRO SILVA

ESCOLA PBLICA E A FORMAO DA CIDADANIA: possibilidades e limites

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo como requisito parcial obteno do ttulo de Doutorado em Educao, sob a orientao da Prof Dr Maria Victoria Benevides

Universidade de So Paulo Faculdade de Educao 2000

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Banca Examinadora

Prof Dra. Maria Victoria de Mesquita Benevides Orientadora Faculdade de Educao da USP

Prof. Dr. Celso de Rui Beisiegel Fac. de Educao USP

Prof, Dra. Selma Garrido Pimenta - Fac. de Educao USP

Prof. Dr. Fbio Konder Comparato Fac. de Direito USP

Prof Dra. Vera Maria Ferro Candau PUC Rio de Janeiro

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meu pai (in memorian), Armando Monteiro, com quem aprend a perceber a beleza da vida e a capacidade de sonhar, de sonhar sempre...

minha me (in memorian), dona Tiva, pela garra da mulher, pelo amor de me e pelos ensinamentos da educadora: solidariedade prtica de vida...

Aos meus filhos Cristiane Maria, Flvio Henrique e Gustavo Lus, smbolos do amor e expresso maior da minha alegria de viver...

A Arthurzinho, neto querido, na esperana de poder viver em mundo melhor, mais justo e mais solidrio...

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Eu tenho uma espcie de dever , de dever de sonhar de sonhar sempre, pois sendo mais do que espectadora de mim mesma, eu tenho que ter o melhor espetculo que posso.

Fernando Pessoa

Construir um trabalho acadmico no tarefa individual, fruto A de uma ao desta coletiva, tese foi

compartilhada.

concretizao

permeada pela participao de muitas pessoas, em diferentes momentos, pois acredito que o sonho que se sonha junto no s um sonho, uma realidade. Meus agradecimentos:A Maria Victoria Benevides, mais do que orientadora, a amiga presente, pela competncia, seriedade, compromisso e respeito ao meu ritmo e ao processo de construo deste trabalho. A Selma Garrido Pimenta e Celso Beisegel, estimados professores e amigos, pelas contribuies valiosas e competentes, especialmente no exame de qualificao. A Fbio Comparato, exemplo de coerncia do intelectual-poltico pelos grandes ensinamentos, a minha admirao. Aos amigos paulistas Sandra Zquia, Fusari, Mariazinha (in memorian), Angela Martins, Humberto Pereira, Csar Minto, Marlene Machado, Lcia Bruno, Antnio Carlos Ronca, Branca Ponce, Ftima Abdala e Terezinha Rios, com quem aprendi a gostar de So Paulo e com quem compartilhei saberes acadmicos e momentos de alegria.

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As colegas e companheiras do doutorado, Olga e Marite, por termos compartilhado saberes, saudades, momentos de alegria e apoio para levar adiante o projeto acadmico. A Margarida Genevois e a Vera Candau, pelo incentivo na definio do tema da tese e pelo exemplo de vida, no campo acadmico e na luta pelos direitos humanos. A Marli Andr, professora e amiga, pelos ensinamentos e motivao na realizao do doutorado. Associao de Ensino Superior de Olinda-AESO, na pessoa de Ivnia de Barros Melo, pelo apoio institucional e incentivo para realizao da pesquisa. Aos colegas do Centro de Educao da Universidade Federal de Pernambuco, pelo suporte institucional durante o perodo de afastamento para o doutorado. Aos amigos Janete Azevedo e Ferdinand Rohr, pelo estmulo e apoio no projeto do doutorado. Aos irmos queridos, Neuza, Antnio Alberto, Cira, Armando Jos (in memorian), Angela, Augusto Carlos, Alexandre Jos, e familiares, por termos construdo relaes fraternas e de amizade, pelo apoio e por compartilharem dos meus fatos e feitos. A Cristiane Arajo, amiga e nora, pelo apoio, incentivo e pela competente tarefa da digitao do trabalho. A Mrcia Angela Aguiar, comadre e irm, por opo pelos percursos construdos na vida, na profisso e durante o doutorado. O tempo confirma e reafirma a amizade. Aos amigos Vicentina Ramires e Paulo Bandeira, leitores iniciais do texto, pelas contribuies valiosas. A Nanci Del Guidice Pinheiro e Cludio vila, pelo trabalho competente e presteza do atendimento na Secretaria da ps-graduao.

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A Graa Silva, mulher do povo, pela troca de saberes que me permite entender melhor o mundo dos excludos e o apoio como secretria no suporte domstico. Aos educadores, alunos das escolas e gestores da Secretaria de Educao, pela ateno, disponibilidade durante a pesquisa e, principalmente, por acreditarem que possvel educar para a cidadania.

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(...) todos os seres humanos, apesar das inmeras diferenas biolgicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como nicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. o reconhecimento universal de que, em razo dessa radical igualdade, ningum nenhum indivduo, gnero, etnia, classe social, grupo religioso ou nao pode afirmar-se superior aos demais. Fbio Konder Comparato (1999)

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RESUMO possvel a escola pblica contribuir para a formao da cidadania democrtica? Quais as possibilidades e limites? Essas questes nortearam este estudo partindo da constatao de que a maioria da populao brasileira no tem os direitos bsicos assegurados que possam garantir uma vida digna, entre estes: educao, sade, moradia, trabalho, lazer.

O Estado brasileiro avanou em termos poltico-jurdicos dos ideais proclamados da democracia, a exemplo da Constituio Federal e dos principais acordos e pactos internacionais de garantia e proteo aos direitos humanos de que signatrio. Mas o modelo de gesto governamental fundamentado no neoliberalismo dificulta o fortalecimento da democracia e da cidadania, sendo esta entendida enquanto garantia dos direitos civis, polticos e sociais. nesse quadro de fragilidade do regime democrtico e da cidadania, e por acreditarmos na educao enquanto instrumento de formao da cidadania e na escola como instituio social que trabalha com a socializao do conhecimento, formao de hbitos, valores e atitudes, que procuramos verificar qual a contribuio da escola para a formao da cidadania democrtica. Nessa direo, tomamos como referncia a poltica educacional da Secretaria de Educao de Pernambuco 1996-1999, Projeto Escola Legal, devido nfase dada aos direitos do aluno, ao ensino cidado, gesto democrtica e ao professor profissional. A Secretaria, buscando efetivar o Plano Estadual de Educao, elaborou o Projeto Escola Legal com o objetivo de conscientizar os atores da escola sobre os direitos do aluno nesse mbito. , portanto, nesse contexto que procuramos investigar como a escola pblica pode contribuir para a formao da cidadania democrtica, tomando como objeto de anlise o trabalho desenvolvido em 04 escolas localizadas no Recife e no Grande Recife, no perodo de 1997/1999. Os resultados da investigao apontam alguns requerimentos necessrios ao desenvolvimento de um projeto pedaggico nessa direo: apoio institucional e definio de poltica governamental; vivncias de gesto democrtica; projeto pedaggico orientado para a formao da cidadania, enquanto proposta global de escola; domnio dos contedos especficos dos direitos humanos e da cidadania por todos os atores da escola, de forma a poder integr-los aos contedos curriculares; prtica pedaggica que respeite o aluno como sujeito produtor do conhecimento e a escola como espao sistemtico de exerccio da cidadania. Esses achados vm confirmar a tese de que esses requerimentos contribuem para a construo de um projeto pedaggico nessa perspectiva, mas o educador o elemento fundamental, a partir da sua deciso e da adeso ao projeto, o que requer uma formao profissional fundamentada nos contedos da cidadania democrtica.

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ABSTRACTIs it possible that a public school contributes towards the formation of a democratic citizenship? What are the possibilities and limits?

These questions led to this study starting with the general belief that the majority of Brazilians do not have their basic rights assured which can guarantee a dignified life such as education, health, a home, work and pleasure. The Brazilian state puts forward the ideas in juridical-political terms proclaiming democracy, the example of the Federal Constitution and the principal international agreement of guarantee and protection of human rights, of which, it signatory. But the fundamental governmental management model in neoliberalism makes it is difficult to strengthen the domocracy and the citizenship, while leading to believe that it guarantees the civil, political and social rights. It is in this area of fragility of a democratic regime and citizenship, and in our belief in education while instrumental in the formation of citizenship and in the school as a social institution working whith social knowledge, formation of habits, values and attitudes, which we look for to verify the contribution of the scholl to the formation of democratic citizenship. In this study, we used, as reference, the political education of the Secretary of Education of Pernambuco 1996-1999, Projecto Escola Legal, because of the emphasis given to the rights of the student, the taught citizen, the democratic management and the professional teacher. The Secretary, wanting to make the Plano Estadual de Educao effective, introduced the Projecto Escola Legal with the objective of making the participants of the school aware of the rights of the students. It is, therefore, in this context that we investigated how a public school can contribute to the formation of a democratic citizenship, taking as the object of analysis the work developed in four local schools in Recife and Grande Recife, in the period 1997/1999. The results of the investigation revealed some necessary requirements to the development of a pedagogical project of this type: intitutional help and the definition of political government: experience of democratic management; project pedagogical orientation in the formation of citizenship, bearing in mind a global prospect of the scholl; command of the specific content of the human rights and citizenship for all participants of the scholl, a way of integrating these into the curriculum; pedagogical practice which respects the student as a knowledge producing subject and a scholl as a systematic space for exercising citizenship. The findings confirm the theory that these requirements contribute towards the construction of a pedagogical project in this perspective, but the educator is the fundamental element, form the decision onwards and following through with the project, what is required is a fundamental professional education of the contents of a democratic citizenship.

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NDICE________________________________________________________ _________________________Pag.

INTRODUO1 - Direitos humanos e cidadania no contexto brasileiro: o distanciamento entre e do de do o prescrito vivido.......................................................................................................1 2 3 4 Origem e motivos estudo..........................................................................................8 Demarcando o objeto estudo..................................................................................13 Objetivos estudo.....................................................................................................15

1 CAPTULO DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E DEMOCRACIA: noes fundamentais1.1 Evoluo histrica ..................................................................19 1.2 A construo da histria.........................................................26 1.3 A cidadania e brasileiro....................................................32 a dos cidadania democracia direitos ao no humanos longo da contexto

2 CAPTULO EDUCAO E CIDADANIA2.1 A nfase na cidadania.........................................................................45 2.2 Fundamentos da cidadania...............................................................52 educao educao para para a

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2.3 A formao do cidadania........................60

professor

na

perspectiva

da

construo

da

3 CAPTULO ABORDAGEM METODOLGICA3.1 Fundamentos pesquisa......................................................68 terico-metodolgicos da

3.2 Objetivos.....................................................................................................................71 3.3 Campo Investigao...............................................................................................72 3.4 Seleo dos pesquisa................................................................................73 sujeitos de da da

3.5 Procedimentos pesquisa.........................................................................................74

4 CAPTULO ESCOLA PBLICA E A CONSTRUO DA CIDADANIA: o discurso oficial4.1 O cenrio da Estado..................................78 4.2 4.3 educao em do Pernambuco Estado de e o papel do

A poltica educacional 1995/1998.............................86

Pernambuco

Projeto Legal.................................................................................................98

Escola

5 CAPTULOA FORMAO DA CIDADANIA DEMOCRTICA NO ESPAO ESCOLAR: limites e possibilidades 5.1 Caracterizao do escola..........................................................................105 atores da Os Os

5.1 1 educadores....................................................................................................106 5.1.2 alunos...........................................................................................................113

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5.2 A escola e a cidadania..........................................................................118

formao

da

5.2.1 Dimenso organizacional-administrativa.........................................................119 5.2.2 Dimenso pedaggica...................................................................................... 136 5.3 social....................................................................................................165 Convivncia

CONSIDERAES FINAIS.....................................................................172 BIBLIOGRAFIA................................................................................... .....179 ANEXOS................................................................................................ ......187

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INTRODUO1 DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E DEMOCRACIA NO CONTEXTO BRASILEIRO: o distanciamento entre o prescrito e o vivido.Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade. Constituio Brasileira, Art 5,1988.

Na histria do povo brasileiro nunca se falou tanto em cidadania e em direitos humanos como nas ltimas dcadas. Essa temtica vem se constituindo em um dos focos de interesse de diferentes instncias da sociedade: movimentos sociais, meios de comunicao, partidos polticos, organizaes sindicais, instituies governamentais e no-governamentais e o meio acadmico. A motivao por essas questes eclodiu, principalmente, com o processo de redemocratizao da sociedade brasileira, aps longo perodo de mutilao da cidadania, no qual os direitos civis e polticos foram cerceados, e devido ao distanciamento que separa o direito proclamado e a sua concretizao, mesmo a despeito de o Brasil ter avanado em termos poltico-jurdicos dos ideais proclamados da democracia, conforme o que est prescrito no Art 5 da Constituio Federal. O Estado brasileiro, alm de suas leis especficas, tem um Programa Nacional de Direitos Humanos-1966, e signatrio dos principais acordos e

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pactos internacionais de garantia e proteo dos direitos humanos1. regido pela Constituio (1988) mais liberal e democrtica da histria do pas, conhecida como a Constituio Cidad, na qual os direitos foram ampliados em todas as dimenses: civil, poltica, social e cultural. No entanto, o avano da democracia, no campo do ordenamento jurdico, no foi acompanhado de polticas pblicas mais conseqentes, de forma a assegurar maioria da populao os direitos fundamentais, principalmente os sociais, e fortalecer o regime democrtico. Essa situao faz com que a sociedade brasileira conviva com uma permanente contradio o desrespeito aos direitos humanos e a negao da cidadania, pelo prprio Estado. Conforme dados do Programa das Naes Unidas para o DesenvolvimentoPNUD (1970-1996), o Brasil tem apresentado desempenho medocre em termos do ndice de Desenvolvimento Humano-IDH2, principalmente se comparado evoluo econmica, ou seja, ocupa o 62 lugar entre os 174 pases includos no ranking dessa avaliao. Um em cada trs brasileiros no tem renda suficiente para atender s necessidades bsicas. So 41,9 milhes de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza e uma parte dessas pessoas indigente. Essa populao concentra-se de forma desigual no pas, sendo a maior parte na regio Nordeste. O fato de a sociedade brasileira ser organizada e estruturada por um modelo econmico capitalista, extremamente excludente, caracterizado por grande concentrao de renda - alis, uma das maiores do mundo -, constitui um dos principais fatores da desigualdade social, da discriminao e da violncia, sendo esta ltima presente nas diferentes instituies da sociedade. O salrio dos1

PINHEIRO, Paulo Srgio et alii. Primeiro Relatrio de Direitos Humanos: realizaes e desafios. So Paulo, 1999, p100-101. Os autores destacam as leis e os pactos de garantia e proteo aos direitos humanos e cidadania, assinados pelo Brasil2

O ndice de Desenvolvimento HumanoIDH tem por objetivo medir o desenvolvimento e o bem estar da populao. O IDH combina trs variveis para medir o desenvolvimento humano da populao: longevidade reflete as condies de sade, medida pela esperana de vida ao nascer; educao avaliada por uma combinao de taxa de alfabetizao de adultos e matrcula do ensino fundamental, mdio e superior; renda medida pelo poder de compra da populao, baseada no PIB per capita ajustado ao custo de vida local. PINHEIRO, Paulo Srgio et alii. Primeiro Relatrio de Direitos Humanos/Direitos Humanos: realizaes e desafios. So Paulo, 1999.Op. Cit. p. 103.

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mais ricos corresponde a 50 vezes o valor do salrio dos pobres. 1% da populao detm 13,8% da renda do pas, enquanto 50% da populao ficam com 13,5% da renda total. A pobreza no Brasil to aguda que 19,5% das famlias tm renda per capita mensal de at meio salrio mnimo 3. O Nordeste apresenta a maior concentrao de renda do pas. Os 50% mais pobres detm 15,4% dos rendimentos, enquanto 1% mais rico absorve 16,4%. A menor concentrao est no Sudeste: 50% dos mais pobres recebem 14,6% dos rendimentos e 1% dos mais ricos percebem 12,6%. A desigualdade tambm explicitada em relao raa. Enquanto uma pessoa de cor parda ou negra tem 5,1 anos de escolaridade, o branco tem em mdia 7,5. Em relao situao salarial, a mdia de vencimentos para uma pessoa parda de 2,61 salrios mnimos, 2,71 para um negro e 5,6 para um branco. No campo da educao, apesar de ter havido avanos em relao ao aumento do nmero de matrculas, das taxas de escolaridade no ensino fundamental e uma queda da taxa de analfabetismo, no perodo de 1960 a 1995, de 39,5% de analfabetos passou para 15,5%. Esses resultados no aparecem de forma homognea no pas. Na regio Nordeste, 27,5% dos jovens com 15 anos ou mais de idade no tiveram acesso escola, enquanto na regio Sudeste essa taxa de 8,1%. Essa desigualdade se repete em relao formao de professores e a salrio. A maior parte dos professores leigos est concentrada nas regies Norte (19,2%) e Nordeste (14,3%), apresentando os salrios mais baixos do pas. A diferena salarial entre os que atuam nessas duas regies chega a 50% menos do que a dos professores das regies Sul e Sudeste. Alm dessas desigualdades regionais, as taxas de evaso e repetncia evidenciam ndices elevados. O Brasil apresenta-se como campeo em aluno repetente, quando comparado aos 16 pases em desenvolvimento. Em relao aos3

Os dados estatsticos referentes ao quadro de desigualdade social so do IBGE - Sntese dos Indicadores Sociais, 1999.

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pases da Amrica Latina essa diferena bastante significativa: 25,8% dos estudantes brasileiros repetiram, em 1997, alguma srie do Ensino Fundamental, enquanto no Paraguai essa taxa de 8,4%, no Uruguai de 8,2% e na Argentina de 6,6%. Apenas 55% dos alunos matriculados na 1 srie desse nvel de ensino so promovidos para a srie seguinte e na 5 srie o ndice de promoo de 61%. A evaso em geral acontece em decorrncia do elevado ndice de repetncia nessas sries (MEC-1999). Essas grandes diferenas geram relaes profundamente desiguais: privilgios para alguns e, conseqentemente, a ausncia de direitos, para muitos. Nancy Cardia (1995) chama a ateno para um fator extremamente preocupante no comportamento da populao, ou seja, no Brasil as desigualdades econmicas e sociais apresentam-se como uma normalidade, pois no so percebidas como injustias graves por aqueles que as sofrem. No conjunto dos dados estatsticos, o Brasil atravessa uma crise econmica e social que se apresenta de forma mais vi svel nas grandes cidades. Essa crise tem se agravado nos ltimos anos com o fortalecimento do projeto neoliberal, que no favorece a efetivao da cidadania Segundo Vera Candau et alii (1998, p.11), a poltica neoliberal implantada no pas dificulta o fortalecimento da cidadania e da democracia, pois: incorpora o discurso democrtico e favorece a democracia e a cidadania de baixa intensidade. Promove mudana estrutural com reformas econmicas e polticas e exclui e compromete direitos sociais conquistados. Reconhece a importncia da educao bsica, mas assume um enfoque tcnico-cientfico de seu tratamento e no valoriza o profissional da educao.

Algumas iniciativas de polticas governamentais esto sendo propostas, nos ltimos anos, no sentido de fomentar uma cultura de respeito e proteo aos

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direitos humanos, a exemplo dos Programas Nacional e Estaduais de Direitos Humanos, os Parmetros Curriculares NacionaisPCN e o Programa Nacional de Livro Didtico4. Essas iniciativas, embora tenham a sua validade, ainda so muito tmidas diante do quadro de desigualdade econmico-social e da baixa produtividade da escola para grande parte da populao brasileira. Nesse quadro de esgaramento do tecido social, a violncia est presente e se manifesta sob as mais diferentes formas: da criminalidade comum criminalidade institucional (polcia), bem como a explorao de crianas e adolescentes, a discriminao, a intolerncia. Paulo Srgio Pinheiro et alii5, ao analisarem a problemtica da violncia na sociedade brasileira, mostram a relao desta persistncia das graves desigualdades sociais e altas taxas de desemprego, de prticas autoritrias nos diferentes setores da sociedade, bem como em rgos estatais e pela impunidade. Para esses autores: fundamental reconhecer no apenas os graves problemas enfrentados no pas mas tambm as dificuldades e obstculos para superao desses problemas. Somente a partir de uma viso clara desses problemas, dificuldades e obstculos, ser possvel formular e implementar polticas eficazes para proteger e promover os direitos humanos ( p.100). Essa realidade brasileira mostra que apenas a formulao de leis no garante os direitos aos cidados, havendo, portanto, uma diferenciao entre a proclamao do direito e a forma de desfrut-lo (Norberto Bobbio,1986).

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Os Parmetros Curriculares Nacionais apresentam uma proposta de organizao curricular na perspectiva da educao comprometida com a cidadania, elegendo os princpios norteadores: dignidade humana; igualdade de direitos; participao e co-responsabilidade pela vida social. Documento de Introduo dos Parmetros Curriculares. MEC/SEF, Braslia, 1997. Em relao ao Programa Nacional do Livro Didtico, sob a responsabilidade do MEC (1996), o objetivo melhorar a qualidade dos livros, a partir da anlise e reelaborao de conceitos e contedos que apresentam situaes de preconceitos, discriminao e impropriedades tericometodolgicas. 5 PINHEIRO, Paulo Srgio et alii. Primeiro Relatrio de Direitos Humanos/Direitos Humanos: realizaes e desafios. So Paulo, 1999. Op. Cit p. 100.

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Entendemos que para desfrutar o direito necessrio que o indivduo tenha condies de exercer a sua cidadania. Esse exerccio est relacionado ao nvel de conhecimento e de conscientizao que o indivduo tem dos direitos e deveres, dos mecanismos para efetiv-los e do nvel de organizao que a sociedade possa ter para fazer valer os direitos. Essa uma ao que tem incio no plano individual mas exige uma articulao coletiva. A grande questo que se evidencia no incio deste sculo no mais o de fundamentar os direitos dos homens, mas de garanti-los, conforme ressalta Norberto Bobbio (1992):

O problema que temos diante de ns no filosfico, mas jurdico e, num sentido mais amplo, poltico. No se trata de saber quais e quantos so esses direitos, qual a sua natureza e o seu fundamento, se so direitos naturais ou histricos, absolutos ou relativos, mas sim qual o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declaraes, eles sejam continuamente violados (p.25).

Concordamos com Bobbio no sentido de que a garantia dos direitos humanos um problema poltico, e est relacionada ao nvel de compromisso que os gestores das polticas pblicas tm em assegur-los e do poder da populao de reivindic-los. Nessa direo, acreditamos que a escola, entre outras instncias da sociedade, como partidos polticos, sindicatos, igreja, movimentos sociais, associaes de classe, ou seja, os estratos mais organizados da sociedade, tm um papel fundamental a desempenhar nesse processo. No campo da escola, essa aparece como um locus privilegiado, na medida em que trabalha com contedos, valores, crenas, atitudes e possibilita o acesso ao conhecimento sistematizado, historicamente produzido, de forma que o

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aluno se aproprie dos significados dos contedos, ultrapassando o senso comum de maneira crtica e criativa. O grande desafio colocado s instituies que visam contribuir para a formao de cidados conscientes, possibilitando a estes o exerccio da cidadania ativa, como afirma Maria Victoria Benevides (1991), o de romper com a cultura escravocrata, clientelista e patrimonialista que embasa a formao do povo brasileiro, e que permeia as diferentes relaes no conjunto das instituies sociais. A escola no est isenta dessas influncias. A situao do Brasil, pas colonizado com a prtica da escravido, gerou uma cultura de submisso, de autoritarismo, com comportamentos de servido, de mando e de privilgios, em que o indivduo desrespeitado em sua condio fundamental de pessoa humana, tratado como objeto de manipulao dos seus proprietrios, enfim, no considerado cidado. Se concebermos a escola como uma instituio social, criada na e pela modernidade para a formao dos cidados de uma determinada sociedade, o que significa, de fato, formar o cidado enquanto sujeito consciente dos direitos e deveres no campo individual e no campo coletivo? At que ponto a escola consegue romper com a cultura sedimentada no autoritarismo e no clientelismo, fruto de uma sociedade escravocrata, paternalista, para criar uma nova cultura de respeito ao cidado como sujeito de direitos? Estas so algumas preocupaes que nos instigaram a desenvolver este estudo.

2 Origem e motivos do estudo

A motivao em investigar a formao da cidadania no espao escolar pblico est relacionada a alguns fatores que fazem parte da nossa histria de vida. Em primeiro lugar, na condio de profissional, na rea acadmica sempre

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tivemos insero na escola pblica, sobretudo no que diz respeito formao de educadores. O nosso interesse de produzir um conhecimento que subsidie o debate sobre a escola enquanto espao formador da cidadania, visto que os estudos sobre essa temtica, focalizando a escola, ainda so muito reduzidos. Em segundo lugar, na condio de participante de entidade da sociedade civil organizada Rede Brasileira de Educao em Direitos Humanos REDE6 ?, esperamos contribuir para o fortalecimento e ampliao d referido trabalho, atravs de o maior fundamentao terico-metodolgica. Finalmente, em terceiro, por acreditarmos na escola como um dos espaos da sociedade que pode contribuir para o fortalecimento da democracia em nosso pas. Essa motivao nos remete dcada de 80, quando iniciado, no Brasil, o processo de abertura poltica, aps longo perodo de ditadura militar 1964 a 1979. Nesse perodo os direitos civis e polticos dos brasileiros foram brutalmente violados, atravs da eliminao do Estado democrtico de Direito, com o fechamento do Congresso Nacional, a criao da Lei de Segurana Nacional e a implantao de Atos Institucionais como instrumentos legais de represso 7. nessa dcada que o debate sobre os direitos humanos surge com maior fora, no Brasil e em pases da Amrica Latina que estavam vivenciando situaes semelhantes, a exemplo da Argentina e do Chile. O contedo dessa discusso estava centralizado em denncias de violaes dos direitos polticos e civis, e em

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A Rede Brasileira de Educao em Direitos Humanos foi criada em 1995, e tem como objetivo articular, agregar, socializar e trocar experincias com entidades que desenvolvam trabalhos na rea de educao em direitos humanos e cidadania. Atualmente a sede em Pernambuco (maio de 2000). 7 Entre as medidas repressivas o Ato Institucional n5 AI5 foi o mais radical de todos. Dissolveu o Congresso Nacional, suspendeu o habeas corpus, quando o crime era considerado um delito contra a segurana nacional, e cassou os direitos polticos dos parlamentares.

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defesa dos presos polticos, tendo, como seus principais interlocutores, parte dos integrantes da Igreja Catlica e a Ordem dos Advogados do Brasil OAB8. A esse processo de restaurao dos direitos civis e polticos incorpora-se a defesa dos direitos sociais, como a sade, a educao, a habitao, entre outros. A problemtica das violaes dos direitos humanos passa, tambm, a ser tematizada por outros grupos sociais, chamados de minorias, conhecidos por suas identidades tnicas (negros e ndios), comportamentais (homossexuais) e de gnero (mulheres)9. fundamental ressaltar os espaos criados por outras organizaes e movimentos da sociedade, ao assumirem papel poltico importante, enquanto focos de resistncia ao governo militar: o movimento dos artistas, dos sindicatos, das associaes de classe e das associaes cientficas, envolvendo intelectuais/pesquisadores de diversas reas, ligados s instituies de ensino superior, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia-SBPC. Na rea mais especfica da educao, destacamos a Associao Nacional de PsGraduao e Pesquisa em Educao-ANPEd e as Conferncias Brasileiras de Educao-CBE, espaos conquistados pelos educadores para debater as questes relacionadas ao Estado, sociedade e educao. Nas demais reas, a V Conferncia Anual da Ordem dos Advogados, realizada em 1974, abordou a temtica dos direitos humanos, e a Associao Brasileira de Imprensa-ABI muito contribuiu na luta pela democratizao da informao, quando o pas vivia a censura de imprensa. nesse contexto que os direitos polticos so restaurados, com a Lei da Anistia e com as eleies diretas para os diferentes cargos eletivos presidente, governador, prefeito e representantes nas Cmaras e no Senado.

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Para ampliao da temtica sobre o processo histrico e a influncia da ditadura militar no Brasil e na Amrica Latina, consultar OLIVEIRA, Luciano, 1995. 9 Vale destacar o trabalho elaborado por Tnia Suely Brabo, Cidadania da Mulher-Professora, 1997, em que a autora faz uma anlise histrica do movimento da mulher no Brasil e do processo de conquista da cidadania da mulher, destacando o papel da professora .

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Em 1984, a mobilizao popular foi se ampliando e culminou com a campanha pelas eleies diretas. Essa se constituiu na maior campanha popular na histria do pas, at ento, considerando-se o nmero de pessoas que foram s ruas externar a opinio. O movimento pr-Constituinte, antes e durante a Assemblia Nacional Constituinte, dedicou-se intensamente discusso da Constituio, com uma larga consulta aos setores mais representativos e organizados da sociedade. Esse processo de distenso do regime militar trouxe para o cenrio da administrao pblica polticos anistiados, novos atores e novas propostas de polticas pblicas. Em 1987, assume o governo do Estado de Pernambuco o ex-governador Miguel Arraes de Alencar, apoiado por uma frente ampla de coligaes partidrias de centro-esquerda. Naquele momento havia um forte apelo da populao por um governo que apresentasse propostas democrticas, o que ficou evidenciado no prprio slogan da campanha: a esperana est de volta. Essa era tambm uma referncia ao retorno de Miguel Arraes como governador do Estado, tendo em vista que o seu 1 Governo 1964 foi interrompido pela ditadura militar. Uma das metas prioritrias desse governo era o atendimento s demandas fundamentais da populao, entre as quais a educao. Assim, o governo colocavase como instrumento de mudanas, estimulando a participao da sociedade, visando eliminao de distores sociais e de prticas de explorao de segmentos sociais de menor fora poltica e econmica, de maneira a: contribuir para o combate s polticas cartoriais e clientelistas que tm caracterizado a ao governamental nas ltimas dcadas e consequentemente, a superao do mito do Estado paternalista. [Visava ainda ao] engajamento progressivo das populaes beneficirias na concepo, execuo e avaliao dos programas governamentais (Plano Estadual de EducaoP.E.E.-PE-1988/1991, p. 10)

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A Secretaria de Educao, ao elaborar o Plano Estadual de Educao para o perodo 1988/1991, definiu, como princpio norteador da poltica educacional, a educao como um dos principais instrumentos de formao da cidadania. nesse perodo que coordenamos, na condio de Diretora de Ensino da Secretaria de Educao, o Projeto Escola Pblica, Direitos Humanos e a Conquista Coletiva da Cidadania, como uma das formas de pr em prtica a poltica educacional. Esse Projeto tinha como objetivos: desenvolver uma proposta de gesto escolar - tendo como base o respeito aos direitos humanos - que contribusse para a conquista coletiva da cidadania; desenvolver um processo contnuo e sistemtico de capacitao de diretores e tcnicos das equipes da Secretaria e dos Departamentos Regionais (dezessete em todo o Estado), diretores de escolas, professores, supervisores e orientadores educacionais, dentro da temtica dos direitos humanos, tomando como ponto de partida a reflexo da prtica pedaggica; socializar saberes no campo da administrao escolar, de modo que o pessoal envolvido no projeto compartilhasse significados; desenvolver habilidades no sentido de provocar mudanas qualitativas na prtica pedaggica e nas condies de vida da clientela escolar e rever a proposta curricular de 1 e 2 Graus, de maneira a possibilitar ao aluno entender as relaes sociais e as novas formas de produo do mundo do trabalho. O projeto foi desenvolvido em trs fases: sensibilizao, conhecimento/proposio e avaliao. Todas as etapas foram realizadas simultaneamente nos Departamentos Regionais de maneira a subsidiar a administrao do sistema educacional para execuo do projeto nas escolas. O principal objetivo dessa dinmica era contribuir para a escola incorporar no projeto pedaggico a diretriz que fundamentava o Plano Estadual de Educao 1988/1991: A educao um dos principais instrumentos de formao da cidadania. O desenvolvimento do projeto contou com a interlocuo de diferentes experincias de educao, em direitos humanos e cidadania, que se estavam iniciando no Brasil, quer no mbito de Secretarias de Educao de Estados e

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Municpios, quer em trabalhos desenvolvidos por entidades no-governamentais. Merecem destaque os trabalhos realizados no perodo 1987/1990, pelas Secretarias de Educao dos Estados de Santa Catarina, So Paulo e Rio de Janeiro, nas Comisses Justia e Paz de So Paulo10, do Rio Grande do Sul, da Paraba, de Pernambuco e o Centro Heleno Fragoso, no Paran. Na poca, o Instituto Interamericano de Derechos Humanos sediado em San Jos, Costa Rica teve um papel fundamental em relao aos apoios financeiro e material, possibilitando uma articulao entre essas Instituies, semente germinada com a criao da Rede Brasileira de Educao em Direitos Humanos, em 1995. Essas experincias passaram por diferentes fases: de ampliao ou de refluxo. No caso de Pernambuco, houve uma retrao, devido mudana de governo e de orientao poltico-partidria, no perodo de 1991-1994. Em 1991, assume o governo do Estado Joaquim Francisco Cavalcanti com o apoio do PFL e de uma frente partidria de centro-direita. Conseqentemente, a temtica dos direitos humanos e cidadania foi eliminada enquanto fundamentao da poltica educacional. A nova administrao no s mudou a orientao da poltica educacional como reteve os materiais de apoio elaborados pela equipe do Governo Arraes, que deveriam ser distribudos nas escolas. importante destacar que o trabalho sobreviveu em algumas escolas em que a experincia estava mais estruturada e sedimentada, fruto da resistncia dos educadores.

3 Demarcando o objeto de estudo

Em 1995, Miguel Arraes volta a assumir o Governo de Pernambuco, apoiado pelo Partido Socialista BrasileiroPSB e por partidos de centroesquerda. A Secretaria de Educao, ao definir o Plano Estadual, reafirma a10

O trabalho desenvolvido pela Comisso Justia e Paz de So Paulo, na rea de Educao em Direitos Humanos, foi sistematizado por Humberto Silva na Dissertao de Mestrado: Educao em Direitos Humanos: Conceitos, Valores e Hbitos, Faculdade de Educao, USP - 1995.

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educao enquanto instrumento de formao da cidadania, como princpio norteador da poltica educacional. Esse princpio ganha mais fora quando reconhecido que a educao de qualidade direito de todos e aponta o Ensino Fundamental como direito social bsico e uma necessidade social imperiosa (P.E.E 1996/1999, p.10). A definio desses princpios recebeu influncia da nova Lei de Diretrizes e Bases, sancionada em 1996, que contou, em seu projeto inicial, com uma grande mobilizao dos educadores em todo pas, pois, de acordo com o Art 2 da LDB: A educao, dever da famlia e do Estado, inspirada nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao para o trabalho. O Plano Estadual de Educao para esse perodo concebe o ensino cidado como a oferta de um ensino que apresente o conhecimento, a tecnologia, a arte e cultura como processos histricos, e o aluno passe a ser o centro das preocupaes da escola e o mesmo tenha seus direitos assegurados (p.20). A escola vista como um local que explora e aprofunda laos de solidariedade e interdependncia inerentes atividade pedaggica, aberta e inovadora, que instiga a compreenso conceitual e a organizao do pensamento e tematiza o mundo do trabalho, todavia, precisa ser construda de imediato (...) (P.E.E, p.10). Assim, com o objetivo de materializar a tnica de poltica dos direitos do aluno, a Secretaria elaborou um projeto especial, denominado Escola Legal. Esse Projeto se constituiu em uma das aes da Secretaria de Educao, voltada para a democratizao da poltica educacional, apresentando como proposta:

a criao de um espao legalmente institudo dentro da escola, com as competncias necessrias para garantir a proteo dos direitos do aluno no sentido de evitar a sua violao, no mbito da

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escola. (...) Um espao onde se possa estimular o debate pblico. Onde a escola, unida a outros segmentos, consiga discutir, ampliar e redimensionar estruturas que possam situar o aluno-cidado como sujeito transformador de uma prtica, e, portanto, defensor dos seus direitos(1997, p.3).

, portanto, a partir do panorama da poltica educacional do Estado de Pernambuco, no perodo de 1995-1998, que focalizamos o nosso objeto de estudo A Escola Pblica em Pernambuco e a Construo da Cidadania Democrtica.

4 Objetivos do estudo

Ao focalizarmos a educao como instrumento de formao da cidadania, atravs do trabalho desenvolvido na escola pblica, temos a clareza de que a escola sozinha no d conta da tarefa de formar o cidado, uma vez que a formao da cidadania vai alm de seus muros. Ela forjada no dia-a-dia das relaes dos indivduos e no conjunto das organizaes da sociedade, a exemplo dos movimentos sociais que tm apresentado contribuies relevantes nesse processo. Vale destacar que o nosso propsito, nesta pesquisa, no avaliar a poltica educacional do Estado de Pernambuco, mas utiliz-la como referncia enquanto instrumento de planejamento orientador do projeto pedaggico, no espao escolar, em especial, o Projeto Escola Legal. O principal objetivo desse estudo , portanto, investigar como a escola pblica pode contribuir para formao da cidadania democrtica, identificando as possibilidades e os limites.

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Este estudo parte do pressuposto de que a concretizao de uma proposta de escola nessa perspectiva tem como principal determinante o nvel de conscincia e de conhecimento que o educador tem dos direitos e deveres, alm de uma vivncia cidad que se efetiva no campo individual, mas, principalmente, enquanto sujeito coletivo. Isto requer um trabalho compartilhado e participativo de todos os atores que esto envolvidos no projeto pedaggico. Dessa forma, a efetivao de uma poltica educacional deve assegurar processos de capacitao dos sujeitos responsveis pela sua implantao. Nesse entendimento, a formao desses sujeitos deve possibilitar, alm da apropriao dos conhecimentos bsicos, dentro de um contexto histrico e poltico dos direitos humanos e da cidadania, a mudana de valores, atitudes e posturas. Essa formao compreende a apreenso de uma nova cultura em que o educador se perceba, bem como perceba o aluno e os demais integrantes do trabalho escolar, como sujeitos de direitos e deveres, e veja a escola como espao de exerccio permanente de construo coletiva da cidadania. A poltica educacional aqui compreendida como proposta de poltica de governo, enquanto ao pblica, no sentido do bem comum, do bem coletivo, que tem nas suas diretrizes os elementos orientadores do projeto escolar a ser efetivado na prtica pedaggica. Nessa mesma direo, Janete Azevedo afirma que:

a escola e principalmente a sala de aula so espaos em que se concretizam as definies sobre a poltica e o planejamento que as sociedades estabelecem para si prprias, como projeto ou modelo educativo que se tenta pr em ao. Sendo a poltica educacional parte de uma totalidade maior, deve-se pens-la sempre em sua articulao com o planejamento mais global que a sociedade constri como seu projeto e que se realiza por meio da ao do Estado(1997, p.59-60).

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Analisar a escola enquanto locus de formao da cidadania democrtica, luz de uma determinada poltica educacional, requer a explicitao dos conceitos bsicos que orientaram este trabalho. Compreendemos que a formao da cidadania est imbricada no entendimento que se tem de democracia e direitos humanos em um determinado contexto social, cultural, poltico e econmico. Partimos do princpio de que o regime democrtico o q oferece ue melhor condio para o respeito e a fruio dos direitos humanos, bem como a formao da cidadania. Compreendemos democracia na perspectiva de Fbio Comparato (1989), como sinnimo de soberania popular com total respeito aos direitos humanos, fundada nos princpios da liberdade e da igualdade. A igualdade aqui entendida no sentido de igualdade diante da lei e de garantia do acesso aos bens sociais e s condies bsicas necessrias a uma vida digna para todos os indivduos. A liberdade algo inerente condio do ser humano, em termos da liberdade de expresso, de pensamento, de ir e vir, de participar e de intervir na construo do projeto de sociedade em que o indivduo est inserido. Neste trabalho, assumimos o conceito de direitos humanos a partir do pressuposto do direito vida, condio primeira, sem a qual deixam de existir os outros direitos, e do reconhecimento da dignidade intrnseca ao ser humano. So os direitos fundamentais a toda pessoa, sem distino de etnia (raa), opo sexual, credo religioso, opinio poltica, sexo, nvel de instruo, posio scioeconmica, julgamento moral ou nacionalidade. E a cidadania, na perspectiva democrtica, a materializao dos direitos legalmente reconhecidos e garantidos pelo Estado, que inclui o exerccio da participao poltica e o acesso aos bens materiais. , tambm, a condio de participar de uma comunidade com valores e histria comuns, a qual permite aos indivduos uma identidade coletiva. , na verdade, o pleno exerccio do direito.

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Nessa direo, educar para a cidadania democrtica essencialmente romper com a cultura autoritria, de submisso, de mando, impregnada nas diferentes relaes sociais; criar uma nova cultura a partir do entendimento de que todo e qualquer indivduo portador de direitos e deveres; garantir o acesso ao conhecimento que permita-lhe apreender a complexidade das relaes e determinaes do conjunto da sociedade; prepar-lo para sua insero no mundo do trabalho, para compreender o avano tecnolgico e a participao ativa na organizao da sociedade. Para que a escola possa desenvolver um trabalho nesta perspectiva, faz-se necessria a construo de um projeto pedaggico, democrtico e participativo, em que a formao do sujeito possa ser assumida coletivamente. Esse processo se desenvolve na prtica diria, atravs da apreenso dos contedos curriculares e na vivncia do exerccio da cidadania. A partir desses pressupostos, optamos por desenvolver um estudo de caso, com uma abordagem qualitativa, para a investigao do objeto em estudo. A pesquisa emprica foi realizada em 04 (quatro) escolas localizadas nas regies metropolitanas do Recife e do Grande Recife. Para coleta de dados utilizamos os instrumentos: observao, anlise de documentos, questionrios, entrevistas com os atores do projeto escolar -- diretores, professores e alunos das escola , e com os gestores da Secretaria de Educao de Pernambuco. A coleta de dados foi realizada no perodo de junho de 1997 a julho de 1999.

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1 CAPTULODIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E DEMOCRACIA: noes fundamentaisA Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: a soberania; a cidadania, a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo poltico. Constituio Federal, 1988.

1.1 - Evoluo histrica dos direitos humanos

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Tratar da temtica da cidadania, no espao escolar pblico, requer um entendimento da evoluo histrica dos conceitos de direitos humanos, cidadania e democracia e das suas relaes com o contexto poltico e social, tendo em vista que esses conceitos se entrelaam e so produzidos nessas relaes. Como afirma Norberto Bobbio (1992), sem os direitos do homem protegidos e reconhecidos, no h democracia; sem democracia no existem as condies mnimas para soluo pacfica dos conflitos, e os direitos no so exercitados. A democracia a sociedade dos cidados, e os sditos se tornam cidados quando lhes so reconhecidos os direitos fundamentais. Ao buscarmos o significado da palavra direito, entre os diferentes significados, optamos pelo que est mais ligado teoria do Estado ou da poltica, que o direito como ordenamento normativo, considerando que o nosso objeto de estudo est relacionado a uma ao pblica governamental. Nesse sentido, direito: o conjunto de normas de conduta e de organizao, constituindo unanimidade e tendo por contedo a regulamentao das relaes fundamentais para a convivncia e sobrevivncia do grupo social, tais como as relaes familiares, as relaes econmicas, as relaes superiores de poder, tambm chamadas de relaes polticas, e ainda a regulamentao dos modos e das formas atravs das quais o grupo social reage a violao das normas de primeiro grau ou a institucionalizao da sano (Norberto Bobbio, 1999, p.349).

Esse conceito de direito tem uma relao com o surgimento dos direitos humanos. Historicamente, eles surgem como uma tentativa dos homens para regular os conflitos de interesses e disciplinar as relaes entre os mesmos. Eles foram estabelecidos e evoluram diante da necessidade da sociedade em ter o que se chama equilbrio da ordem social, ou seja, a existncia de direitos e deveres para todos os homens igualmente.

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A histria dos direitos humanos comea na Baixa Idade Mdia, na passagem do Sc. XII ao Sc. XIII. o incio do movimento para se pr limites ao poder dos governantes, embora, nessa poca, os direitos humanos no eram concebidos como direitos inerentes pessoa humana. Esse movimento, no entanto, representou o primeiro passo para o acolhimento de que havia direitos comuns a todos os indivduos. importante destacar que a afirmao ou ampliao dos direitos do homem tem, em geral, uma ligao muito prxima com os grandes acontecimentos, quer de conflitos, de guerras e revolues, como tambm das grandes invenes cientficas e tecnolgicas. Exemplo disso so a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, proclamada em 1789, na Revoluo Francesa, inspirada nos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, a Declarao de Direitos da Revoluo Americana e a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, aps a 2 Guerra Mundial. Inicialmente os direitos humanos foram concebidos como direitos naturais, impostos por Deus, sendo utilizados contra os burgueses, em favor dos reis, em favor da aristocracia. Posteriormente, o pressuposto teolgico rejeitado sob o argumento de que o fundamento dos direitos humanos no est em Deus e, sim, na razo. O fundamento racionalista no rejeita os direitos naturais, mas desloca a sua explicao para a razo. A lei passa a ser valorizada, mas, naquele momento, era vista como natural, na concepo de Aristteles e So Toms de Aquino. Acreditava-se que existia uma lei natural que a razo poderia descobrir, e, pela razo, o homem precisa ser livre, ter liberdade de expresso, de locomoo (Dalmo Dallari, 1995). O disciplinamento ou limitao do poder poltico surge da aliana entre a idia de direito natural e a de sociedade civil, sendo esta entendida, no incio, como a sociedade econmica, atravs da qual os atores reivindicavam a liberdade de empreender, permutar e exprimir idias (Al ain Touraine, 1996). No final da Idade Mdia, surge a burguesia como classe social, que se fortalece atravs da atividade econmica. Esta, no entanto, era uma classe

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marginalizada do poder poltico, o que a impedia de defender os direitos pessoais e o seu patrimnio. Foi o burgus, associado aos pensadores liberais como Espinoza, Locke, Rousseau e Montesquieu , que defendeu a liberdade e a igualdade como valores. O valor da liberdade aparece j no embrio dos direitos humanos. Essa liberdade, no entanto, no era em benefcio de todos, mas sim das classes especficas, principalmente, em favor do clero e da nobreza e com algumas concesses em benefcio do povo. No conjunto das legislaes, documentos e declaraes, inclusive a Declarao Universal dos Direitos Humanos 1948, em que se explicitam os direitos fundamentais, a nfase maior dada ao direito liberdade. O grande avano da histria da humanidade foi o reconhecimento posterior no campo jurdico, da igualdade do acesso aos direitos, principalmente, aos direitos econmicos e sociais. Algumas crticas tm sido feitas no sentido de que o surgimento dos direitos humanos teve como objetivo atender aos interesses burgueses, bem como a compreenso de que a idia de homem enquanto cidado muito abstrata. Uma das principais crticas feita por Marx em relao ao primado do homem abstrato e universal, principalmente ao conceito de homem que destacado na Declarao Universal dos Direitos Humanos, por no estar este situado historicamente e culturalmente (Fbio Comparato, 1989). Comparato, ao analisar essa posio de Marx, mostra que o titular desses direitos, com efeito no o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente; o conjunto dos grupos sociais esmagados pela misria, a doena, a fome e a marginalizao (1999, p. 42). Sem dvida, a defesa dos direitos humanos surge fundamentalmente do iderio liberal burgus, na tentativa de defender uma determinada classe social, ou seja, em favor dos direitos pessoais e do patrimnio da classe burguesa. Mas, ao mesmo tempo, necessrio compreender a contradio posta para a sociedade no momento em que os direitos so declarados, considerados universais, e no so respeitados pelo prprio Estado que os referendou.

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Neste sentido, Marilena Chau (1989) chama ateno para a importncia das declaraes e das leis, pois cada direito, uma vez proclamado, abre campo para a declarao de novos direitos. E a ampliao das declaraes de direitos entra em contradio com a ordem estabelecida. Essa contradio essencial para a histria dos direitos humanos, porque se verdade que o Estado est preso aos interesses de uma classe, tambm verdade que, contraditoriamente, no pode deixar de atender aos direitos de toda a sociedade para no perder a legitimidade. Essa contradio a chave da democracia moderna, que s possvel nesse tipo de regime, democrtico, devido possibilidade do confronto e do conflito. O que procuramos defender neste trabalho a concepo de direitos humanos que engloba a liberdade e a igualdade de direitos para todos, no s no campo poltico, mas, tambm, no campo das conquistas sociais produzidas pelo homem, de forma a possibilitar o exerccio da cidadania democrtica. Nesse entendimento, direitos humanos so aqueles direitos comuns a todo ser humano. So aqueles direitos que decorrem do reconhecimento da dignidade intrnseca do homem. Independem do reconhecimento formal dos poderes polticos por isso so universais, naturais ou acima e antes da lei, histricos e interdependentes , embora devam ser garantidos por esses poderes. A igualdade aqui defendida no tem relao com:

as condies fsicas, intelectuais ou psicolgicas, pois cada pessoa tem sua individualidade, sua personalidade, sua cultura, sua religiosidade, e tem de ser respeitada. As pessoas so diferentes, mas se apresentam iguais enquanto seres humanos, tendo as mesmas necessidades e faculdades essenciais. So, portanto, portadoras dos mesmos direitos (Dalmo Dallari, 1998).

Ao mesmo tempo em que as pessoas so iguais, elas so livres, e essa liberdade intrnseca a todo ser humano. E para que a liberdade individual

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prevalea necessrio que as pessoas tenham as mesmas oportunidades e condies, de forma que possam exercer sua livre escolha. Quando falamos em direitos na perspectiva democrtica, ou seja, o espao poltico de todos, a relao direito/dever intrnseca, e est relacionada concepo de governo republicano, no sentido do bem comum, do bem coletivo. Portanto, o poder de todos significa que cada indivduo tem o direito de participar dele, mas tambm o dever de faz-lo (Renato Janine Ribeiro, 1998). Os direitos humanos so naturais porque dizem respeito dignidade da pessoa humana e existem antes de qualquer lei, intrnsecos a todo ser humano; so universais porque no se referem apenas a um membro de uma sociedade poltica; e so histricos porque foram modificando-se e ampliando-se ao longo da histria da humanidade. Os direitos humanos so comuns a todos os homens, so pblicos e no privados e esto vinculados prpria condio humana. O princpio da complementaridade solidria dos direitos humanos foi proclamado pela Conferncia Mundial de Direitos Humanos, em Viena, em 1993. O fundamento de todos os direitos o direito vida, pois sem ela os outros no existiriam. Alm de serem universais, naturais e histricos, os direitos humanos so indivisveis e interdependentes, porque medida que so acrescentados ao rol dos direitos fundamentais da pessoa humana eles no podem mais ser fracionados (Maria Victoria Benevides, 1998, p.44). Os direitos humanos so, na verdade, todos os direitos fundamentais para que a pessoa tenha uma vida digna. E a dignidade, sendo uma condio inerente a todo indivduo, est necessariamente atrelada s condies materiais e ao respeito liberdade. Conforme Dalmo Dallari (1998):

todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as condies mnimas necessrias para se tornarem teis humanidade, como tambm devem ter a possibilidade de receber os benefcios que a vida em sociedade pode

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proporcionar. a esse conjunto de condies que se d o nome de direitos humanos (p.7).

Uma corrente moderna de pensadores apresenta, a partir de uma anlise histrica, os direitos humanos em trs geraes ou dimenses -, concebidas de forma interdependente e intercomplementar. A primeira gerao de direitos liberdades individuais ou direitos civis , expressos nas declaraes de final do Sculo XVIII, e consagradas em vrias Constituies Ocidentais, so os direitos liberdade, direito de locomoo, propriedade, segurana, expresso e crena religiosa, fundamentados no liberalismo. A segunda gerao direitos sociais , focalizados pela social-democracia europia, no final do sculo XIX, destacados no sistema Constitucional do Mxico e da Alemanha no incio dos anos 90, so os direitos sade, e educao, fruto das lutas dos trabalhadores. A terceira gerao direitos coletivos , reconhecidos no Sc. XX, so os direitos ao desenvolvimento, solidariedade, ao meio ambiente, paz e de participar do patrimnio comum da humanidade. Esses direitos incluem tambm respeito livre determinao dos povos. Essas trs geraes de direitos explicitam os valores da Revoluo Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade (Fbio Comparato, 1989). Os direitos sociais surgem com base no princpio da solidariedade e se efetivam atravs das polticas pblicas, como forma de garantir amparo e proteo social aos mais pobres e mais fracos, ou seja, condies de uma vida digna. tambm com base nesse princpio da solidariedade que em vrios sistemas jurdicos contemporneos consagrado o dever de se dar propriedade privada uma funo social (Fbio Comparato, 1999). A grande questo e o desafio que se coloca, como chamamos a ateno no incio do trabalho, que a lei existe, em princpio, para garantir a cada indivduo os seus direitos. No entanto, sabemos que ela no suficiente para garantir a sua efetiva concretizao.

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Os direitos humanos, apesar de estarem na vida das nossas instituies sociais, nunca fizeram parte do nosso patrimnio cultural. E como fazer valer os direitos proclamados e nunca conquistados? Essa questo que vai permear este trabalho, no sentido de verificar at que ponto a escola consegue contribuir para a formao da cidadania democrtica, ou seja, para fazer valer os direitos legalizados, normatizados e ampliar a conquista de novos direitos.

1.2 - A construo da cidadania ao longo da histria

Ao iniciarmos a reflexo sobre a evoluo do conceito de cidadania e a anlise da diferena entre os conceitos de direitos humanos e cidadania, uma questo se coloca: quais so as concepes de cidado e de cidadania que tm permeado a histria da humanidade? Historicamente, a concepo de cidado decorre da idia da igualdade poltica e da participao de todos. Essa idia permeou a Grcia antiga e foi resgatada pela Revoluo Francesa11. Os Gregos criaram um modelo de organizao poltica, em que as cidades se constituam em Estados independentes, com autonomia poltica, cultural e religiosa. A pleis significava, inicialmente, um tipo de instituio urbana a cidade Estado , e era a relao homem-Estado que distinguia as pleis no contexto poltico. Essas pleis evoluram, passando da monarquia para aristocracia, desta para a tirania, depois democracia. Ao cidado grego era exigida uma srie de atividades pblicas e

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Para a anlise histrica do conceito de cidadania tomamos como referncia os estudos de Dalmo Dallari (1998).

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participao poltica, tornando-o co-responsvel pela vida da comunidade, derivando da o conceito de cidadania. O direito de participar, no entanto, era restrito a um determinado nmero de pessoas. As mulheres, os estrangeiros e escravos eram excludos dessa participao. A palavra cidadania foi usada na Roma Antiga no sentido de indicar a situao poltica da pessoa e os direitos que ela podia exercer. Mas no eram todas as pessoas que tinham os mesmos direitos, e estas eram separadas em classes sociais. Isso repercutia na forma de participao e na seleo de quem podia exercer a cidadania. Os romanos faziam distino entre a cidadania e a cidadania ativa. Os cidados ativos eram os que tinham o direito de participar das atividades polticas, bem como ocupar os altos cargos da administrao pblica. Na Europa, nos Sc. XVII e XVIII, a sociedade era organizada em classes: os nobres, as pessoas comuns e a burguesia. Essas classes apresentavam grandes diferena em relao s condies econmicas e ao poder que detinham. Esse poder se tornava absoluto nas mos dos reis, denominando-se, na poca, de absolutismo. essa forma de poder que leva os burgueses e os trabalhadores a um processo de organizao e revolta, cujo resultado foi a revoluo na Inglaterra, nos anos de 1688 a 1689, e a Revoluo Francesa, em 1789. Esta ltima, na verdade, constituiu-se em um marco na histria da humanidade, devido repercusso da mesma em outras partes do mundo, cujos fundamentos buscavam a defesa da liberdade, da igualdade e da fraternidade. nesse contexto que nasce a moderna concepo de cidadania, no sentido de eliminar privilgios, embora posteriormente ela tenha sido utilizada para garantir novos privilgios. A Constituio Francesa, elaborada em 1791, mantm a idia da diferena de cidadania e cidadania ativa, utilizada pelos romanos. Para ser cidado ativo era necessrio ser francs, do sexo masculino, ser proprietrio de bens imveis e renda elevada. Estavam excludos da categoria de cidados ativos as mulheres, os

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trabalhadores e as camadas mais pobres da sociedade. Para a conquista da cidadania essas categorias tiveram que iniciar uma nova luta durante o Sc. XIX. Como se pode observar, o conceito de cidadania, embora esteja relacionado ao pertencimento a um Estado e participao em comunidade, tem sua evoluo diretamente relacionada s lutas e conquistas que foram sendo ampliadas ao longo da histria da humanidade. Essas caractersticas diferenciam os direitos humanos da cidadania, uma vez que esta depende das leis de cada pas. Ela no universal, particularizada e define a pertena a um Estado. Ela d ao indivduo um status jurdico, ao qual se ligam direitos e deveres particulares. Esse status depende das leis prprias de cada Estado (Patrice Canivez, 1991). Marshall, em seu clssico estudo Cidadania, Classes social e Status, ao tomar como referncia o contexto da Inglaterra, analisa as mudanas ocorridas no Sc. XX, em relao concepo de direitos e deveres do cidado, relacionando o conceito de cidadania s trs geraes de direitos: os civis, os polticos e os sociais. Os direitos polticos esto relacionados ao direito de participar no exerccio do poder poltico como um membro de um organismo investido da autoridade poltica ou como eleitor dos membros de tal organismo. Os direitos civis so os necessrios liberdade individual, liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e f, o direito propriedade e de concluir contratos vlidos e o direito justia. Enquanto que os direitos sociais referem-se a um mnimo de bem-estar econmico e segurana, ao direito de participar por completo da herana social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padres que prevalecem na sociedade(1967, p.61).

Os direitos de cidadania foram ampliando-se gradativamente e de forma inter-relacionada. Ao surgirem os direitos civis, o status de liberdade foi sendo ampliado, a partir do pressuposto de que todos os homens so livres. No momento

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em que os direitos civis se fortaleceram, abriu-se espao para o reconhecimento dos direitos polticos, mas esses eram privilgio de uma classe econmica limitada. Os direitos polticos, de fato, comeam a ser incorporados cidadania, para uma maioria da populao, somente no Sc. XX, aps as diferentes lutas dos trabalhadores e a elaborao das leis que passam a garanti-los. Os direitos sociais so os mais difceis de serem materializados, considerando-se que requerem mecanismos de distribuio de renda e de implementao de polticas sociais. Institucionalizar a educao uma das garantias desses direitos, embora, na perspectiva liberal burguesa, essa institucionalizao no seja concebida como um direito do indivduo, mas uma concesso do Estado para atender a ampliao da democracia poltica, como tambm para atender o mercado. nesse sentido que Marshall justifica a necessidade de qualificao dos indivduos: Tornou-se cada vez mais notrio, com o passar do sculo XIX, que a democracia poltica necessitava de um eleitorado educado e que a produo cientfica necessitava de tcnicos e trabalhadores qualificados. O dever de auto-aperfeioamento e autocivilizao , portanto, um dever social e no somente individual porque o bom funcionamento de uma sociedade depende da educao dos seus membros (1967,p.74).

No entendimento de Marshall, medida que os direitos de cidadania vo se ampliando, garantem, em princpio, a igualdade social. Mas a igualdade social defendida por esse autor em relao posio social, ou seja, a cidadania um status concedido queles que so membros integrais de uma comunidade, e a igualdade de status mais importante do que a igualdade de renda (1967, pp.76,95). Neste sentido, Lgia Coelho (1962) chama a ateno para o fato de que a cidadania, na perspectiva de Marshall, se refere aparncia e no fundamento, lastro econmico. Para ela, a afirmao de que a igualdade de status mais importante do que a igualdade de renda s pode ser feita em condies especiais,

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em que a sociedade esteja bem prxima da igualdade de renda e seus membros possam almejar outras melhorias sociais. Para Dalmo Dallari, a idia de cidadania est intimamente relacionada s condies bsicas para participar da vida pblica, o que exige assegurar os direitos fundamentais aos indivduos, ou seja, a cidadania expressa um conjunto de direitos que d a pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo (1998, p.14). Alain Touraine (1996) destaca a responsabilidade dos cidados de um pas como um dos alicerces da democracia, no contexto dos Estados Nacionais:

no h cidadania sem a conscincia de filiao a uma coletividade poltica, na maior parte dos casos, a uma nao, assim como a um Municpio, a uma regio, ou ainda a um conjunto federal. (...) Assim, o termo cidadania refere-se diretamente ao Estado Nacional (p.93).

Essa filiao a uma comunidade definida por direitos e garantias que demarcam as diferenas em relao aos indivduos que no fazem parte da comunidade, pois sem o sentimento de identidade coletiva, que se processa atravs da lngua, religio e histria, no seria possvel a existncia de naes democrticas modernas. E o que significa a cidadania democrtica? Entendemos que esta uma forma de contraposio cidadania liberal, que tem predominado na histria do nosso pas. A construo da cidadania democrtica exige o controle dos cidados sobre os governantes, como forma de proteo contra o poder arbitrrio. Conforme Nancy Cardia (1995, p.38), necessrio que os cidados se sintam participantes da formulao das leis para que possam perceb-las como resultados das transaes entre iguais e internaliz-los. Essa mesma autora desenvolveu uma pesquisa, na cidade de So Paulo, em que analisou a relao entre as atitudes da populao e os direitos, violaes e as

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implicaes dessas relaes para a construo da cidadania democrtica. Os dados mostram que parte da populao no apresenta reao de indignao diante de violaes do direito. Ela chama a ateno para o fato de que essa atitude pode ser um indicador de um processo coletivo de desativao dos mecanismos de autocontrole moral, a que denomina de excluso moral, a qual pode estar sendo alimentada pela ausncia de uma cidadania democrtica. A ausncia da cidadania democrtica ocorre quando os governados no tm controle sobre os governantes, pela alienao dos gove rnados em relao produo das leis e pela transgresso dos direitos sociais e econmicos. Essas caractersticas parecem deixar bastante claro que vivemos, no Brasil, exatamente essa ausncia da cidadania democrtica. A existncia da cidadania democrtica requer assegurar a vigncia do regime democrtico fundamentado na liberdade, no seu sentido mais amplo, e na garantia da igualdade para todos, o conjunto dos direitos conquistados ao longo da histria. a ultrapassagem da cidadania na concepo liberal, cuja nfase o princpio da liberdade - para a cidadania que garanta a incluso social de todos os indivduos, independentemente de qualquer tipo de diferena que os mesmos apresentem. Isto requer a materializao do Estado democrtico de Direito, conforme prescreve a Constituio Brasileira no Art. 1.

1.3

- A cidadania e a democracia no contexto brasileiro

Que cidadania e democracia foram construdas no Brasil? Quais os impasses, dificuldades e avanos que se evidenciam na construo da cidadania democrtica? Ao tentarmos responder essas questes importante indagarmos inicialmente: O que significa, de fato, ser cidado na sociedade brasileira? E no

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mundo globalizado, quando sabemos que grande parte da populao vive margem dos benefcios sociais, econmicos e culturais? Conforme indaga Terezinha Fres (1993):

O que significa ser cidado nesta sociedade plural, que vai desde a dimenso de uma sociedade tecnolgica de ponta, at aquela outra, de uma repblica de guabirus? Onde as fronteiras geopolticas perderam o seu significado e os pases considerados em funo de indicadores econmicos como de primeiro mundo, abarcam, hoje, no interior de suas respectivas sociedades, todo o espectro dos vrios terceiro e quarto mundos em que (aqueles mesmos indicadores econmicos) dividiram o planeta? Onde a histria dos vencedores perde a hegemonia e os vencidos desenvolvem outras formas de fazer histria? Onde outras formas de manifestao do conhecimento humano vm sofrendo modos revolucionrios de transformao, como o caso da cincia e da tecnologia?

A essa situao de marginalidade dos direitos Milton Santos (1997) denomina de cidadanias mutiladas, ou seja, aquelas manifestas pela negao das oportunidades de ingresso ao trabalho, nas diferenas de remunerao entre homens e mulheres e nas oportunidades de promoo, na inexistncia de educao, do no atendimento sade, habitao e ao lazer. Segundo esse autor, cidado o indivduo que tem a capacidade de entender o mundo, a sua situao no mundo e de compreender os seus direitos para poder reivindic-los (1997, p.133). Ao tomarmos como referncia essa definio de cidado e diante do quadro da marginalidade de direitos em que vive grande parte da populao brasileira, so poucos os que podem ser considerados, realmente, cidados no sentido da cidadania democrtica. O que realmente existe o cidado legal,

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cujos direitos esto garantidos atravs das leis, mas que est distante do acesso ao direito real. Jos Murilo de Carvalho (1995), ao analisar a evoluo histrica de cidadania do povo brasileiro, em relao aos direitos civis, mostra que existem no Brasil diferentes categorias de cidados: 1 - Os cidados doutores so aqueles que se encontram acima da lei, os privilegiados que sempre escapam dos rigores da lei, atravs do poder do dinheiro ou do prestgio social. So em geral os brancos, ricos, bem vestidos, gozam de boa sade e tm formao universitria. 2 - Os simples cidados so os que esto teoricamente sujeitos aos rigores e benefcios da lei, mas na prtica dependem da boa vontade dos representantes para materializar seus direitos. Em geral so os trabalhadores assalariados, com carteira assinada, de classe mdia baixa, pequenos proprietrios rurais ou urbanos, que tm educao bsica. Podem ser brancos, negros ou mulatos. Em geral, essas pessoas no tm clareza dos seus direitos, e quando tm no conhecem os mecanismos para sua concretizao. 3 - Os cidados elementos constituem grande parte da populao brasileira que marginalizada nas grandes cidades. So pessoas que trabalham sem carteira assinada, empregados domsticos, fazem trabalhos espordicos, menores abandonados e mendigos. Na sua maioria so mulatos, analfabetos e sem educao fundamental. So considerados cidados porque pertencem a uma comunidade poltica nacional, mas na verdade no conhecem os direitos e estes so sistematicamente violados por outros cidados e pelo prprio governo. A histria evidencia que o processo de desenvolvimento da democracia e da cidadania no Brasil foi permeado por caminhos bastante complexos e

tortuosos, devido principalmente formao cultural do povo brasileiro, forjada no contexto das determinaes econmicas, polticas e sociais e,

conseqentemente, pela falta de p olticas pblicas que garantam o acesso aos direitos bsicos maioria da populao. nesse contexto que so produzidos os

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cidados elementos, que compem os altos ndices estatsticos da excluso social. Essa formao extremamente marcada por um longo perodo de escravido, que gerou comportamentos de submisso, mando e conformismo em relao negao de direitos. O homem escravo, ao perder a sua liberdade, perdeu a prpria dignidade ao ser tratado como coisa, objeto ou mercadoria. A experincia da escravido foi to marcante que a luta do povo brasileiro pela conquista da cidadania sempre esteve mais voltada para a conquista da participao, relacionada aos direitos polticos, do que em relao aos outros direitos. Isso explica a dificuldade da populao para reivindicar a efetividade dos direitos de um modo geral. Jos Murilo de Carvalho (1995) destaca dois conjuntos de fatores que influenciaram a construo da cidadania no Brasil, herdados do perodo de colonizao portuguesa: de forma positiva, os portugueses deixaram uma enorme colnia dotada de unidade territorial, lingstica, cultural e religiosa, e, de forma negativa, uma populao analfabeta, uma sociedade escravista, uma economia baseada na monocultura do acar e no latifndio, um Estado policial e fiscalizador, de maneira que, no final da Colnia, no havia nem cidados

brasileiros nem ptria brasileira. Nesse perodo, a luta pelos direitos ficou centralizada na independncia poltica do pas e na construo da identidade nacional. Aliado s experincias do perodo de escravido, a cultura brasileira foi permeada pela prtica do coronelismo, caracterizada por pessoas coronis - que detinham o poder econmico e poltico. O poder desses coronis funcionava como um sistema de dominao privada em mbito nacional, especialmente no perodo de 1889 a 1930. Nessa poca, o voto, alm de ser restrito a uma pequena parcela da populao uma vez que as mulheres12 e, em alguns perodos, os negros e os analfabetos no votavam , no representava um exerccio de efetiva participao12

A mulher s conquistou o direito de voto em 1932.

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na vida poltica do pas. O eleitor no operava como membro de uma sociedade poltica ou de um partido poltico, mas como dependente de um chefe local, a quem devia fidelidade, e as eleies representavam a oportunidade de o eleitor trocar seu voto por mercadoria, dinheiro, roupa ou emprego 13. Esse sistema comeou a declinar, tornando-se uma questo mais localizada, ou seja, mais regional, nos Estados do Norte e Nordeste. Na regio do Centro-Sul o coronelismo foi sendo substitudo pelo clientelismo, dependente no tanto dos proprietrios de terra quanto daqueles que estivessem instalados na esfera do poder estatal ( Francisco Weffort, 1992, p.26). As estratgias e mecanismos de dominao poltica e de explorao econmica, no Brasil, ampliaram-se, resultando em um Estado de elites e oligarquias, no qual estas no tinham compromissos reais com os interesses da populao, agindo em benefcio de interesses individuais e de pequenos grupos. Essa dominao se mantm, at hoje, pelas habilidades que as elites tm de funcionarem como intermedirias entre os recursos pblicos e o atendimento aos interesses privados, ou seja, os interesses da sua clientela, a qual lhes assegura a permanncia no poder. , portanto, o uso do poder poltico para usufruir dos benefcios pblicos em favor do atendimento privado. Essa relao o que Victor Nunes Leal (1949) chama de reciprocidade, uma vez que h um favorecimento da parte dos chefes polticos e do eleitor. Os chefes polticos tm a garantia do voto que lhes assegura a permanncia nos cargos eletivos e funcionais nos rgos pblicos, a manuteno do poder. Em contrapartida, h uma troca de benefcios para o eleitor como retribuio pela sua lealdade. Essa prtica poltica s contribui para reproduzir o individualismo, pois, da parte do eleitor, geralmente so atendidos os interesses mais imediatos para suprir necessidades bsicas pessoais: alimentao, remdio, moradia, emprego,13

Esse tipo de voto conhecido no Nordeste como o voto de cabrestro, em que o eleitor no tem a conscincia da importncia do seu papel . O voto determinado pela influncia de pessoas que tm poder poltico em funo do interesse individual.

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educao. Para os chefes polticos, os interesses so a mdio e longo prazo, pois fazem parte de projetos de manuteno no poder de uma forma hereditria de pai para filho ,ou seja, a perpetuao do poder. Essa prtica traduzida na frase dando que se recebe, bastante conhecida na histria da poltica brasileira e que perpassa o conjunto das relaes da sociedade. O clientelismo favorece a perptua privatizao da coisa pblica e as lealdades exigidas pelos coronis. No se trata de uma representao republicana, uma vez que no se orienta pelo interesse comum, pblico. Nos rgos legislativos, os representantes desse clientelismo tornam-se

intermedirios de favores, de proteo frente ao executivo. O representante poltico, por no representar os interesses de uma maioria, passa a ter um papel secundrio na funo legislativa. Ao mesmo tempo, essa prtica de conceder privilgios para alguns e negar os direitos para muitos provoca um descrdito na populao em relao ao real papel dos representantes do povo, pois os benefcios so individuais, para aqueles que tm acesso e influncia junto aos donos do poder. Uma outra caracterstica da nossa sociedade o patrimonialismo, gerado e fortalecido com a concentrao de renda nas mos de poucos detentores do poder econmico, originrios dos latifndios da cultura do caf, e no Nordeste, principalmente, da cultura da cana de acar. Aliado a essas caractersticas, o acesso educao pblica s foi, de fato, materializado enquanto poltica governamental com o processo de

industrializao, diante da necessidade de mo-de-obra para o mercado de trabalho e da presso da sociedade mais organizada. A educao, na verdade, nunca se constituiu como prioridade neste pas, principalmente no perodo colonial, at porque o governo no tinha interesse em alfabetizar a populao, e muito menos os escravos. At 1872, 50 anos aps a Independncia, somente 16% da populao sabia ler. Com relao ao ensino superior a situao no era diferente, e nenhuma universidade foi instalada no

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perodo colonial. O brasileiro, para cursar a universidade, tinha que ir para Portugal, em especial Coimbra, o que era restrito a uma pequena parcela da populao de poder aquisitivo alto. Esse contexto evidencia o porqu de terem o regime democrtico e a nossa cidadania se apresentado sempre frgeis. Srgio Buarque de Holanda (1956), ao analisar o processo da democracia no Brasil, em seu livro Razes do Brasil, apresenta alguns entraves que dificultaram a sua concretizao e que confirmam os estudos j referendados neste trabalho. Ele mostra que a democracia foi importada por uma aristocracia rural e semifeudal, que procurou acomod-la, onde fosse possvel, aos seus interesses ou privilgios. Os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram sempre de cima para baixo: de inspirao intelectual e/ou sentimental, sem contar com a populao. Fbio Comparato (1994) refora essa anlise, enfatizando que esses e outros fatores contriburam negativamente para a formao poltica do povo brasileiro, e afetam a vigncia do regime democrtico: um primeiro conjunto engloba os fatores ligados nossa herana cultural, como o carter autocrtico da sociedade; quatro sculos de escravismo - negao do princpio da democracia, de que todos os homens nascem iguais, em dignidade e direitos; descrena na educao; civilizao privatista e, portanto, anti-republicana. O segundo grupo inclui fatores mais recentes: a poltica unidimensional da industrializao em substituio s importaes, a partir da dcada de 30; o consumismo como substituto participao ativa do cidado na vida poltica; o populismo como disfarce democrtico da poltica oligrquica. Outros aspectos, quer no mbito Mundial como no Nacional, podem ser acrescentados aos j mencionados por Srgio Buarque de Holanda e Fbio Comparato, como elementos que tm contribudo para a fragilidade do regime democrtico e que determinam a excluso social da maioria do povo brasileiro. Tnia Bacelar (1998), ao analisar o modelo econmico adotado no Brasil e seus efeitos para as condies de vida da populao, busca explicitar a relao

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desse modelo com a excluso social. No mbito mundial, a riqueza criada mais na esfera financeira e no na produtiva, avana a globalizao e a revoluo tecnolgica se concretiza. Os Estados Unidos assumem cada vez mais a liderana hegemnica com o fim da Guerra Fria e o desmonte da Unio Sovitica, bem como a crise japonesa. No Brasil, as elites estabelecem um pacto hegemnico, articulado aos interesses externos e conquistam apoio das camadas mais pobres da populao e parte da classe mdia, com a proposta de estabilizao inflacionria e de melhoria do poder aquisitivo, principalmente, para a populao pobre. Isso aparece de forma concreta com o advento do Plano Real, mas, na verdade, esse modelo econmico mostrou sua fragilidade, com uma economia estagnada, o crescente aumento do desemprego, da dvida externa e a perda do poder aquisitivo da classe mdia. A sada encontrada para tentar minimizar a dvida externa a privatizao, que resulta em favorecimento aos grandes grupos empresariais, cujo principal objetivo a especulao do capital. Esse quadro o que Tnia Bacelar denomina de falncia do Estado, em que os governos encontram justificativa para a no-garantia dos direitos fundamentais para a maioria dos cidados brasileiros. Na medida em que o Estado no garante os direitos bsicos, fundamentais para a populao, afeta a vigncia do regime democrtico e repercute diretamente na efetivao dos direitos humanos e no exerccio da cidadania. Se entendermos, ento, como Maria Victoria Benevides (1995), que a democracia o regime poltico que se funda na soberania popular, mas com o pleno e integral respeito aos diretos humanos, e, tambm, como Norberto Bobbio (1986), que a democracia nasceu com a perspectiva de eliminar para sempre das sociedades humanas o poder invisvel e dar vida a um governo cujas aes deveriam ser desenvolvidas publicamente, esse regime, no Brasil, est muito mais no plano formal do que no plano real.

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No momento em que a democracia se apresenta fragilizada, a conscincia da cidadania enfraquece, porque muitos dos indivduos se sentem mais consumidores do que cidados, mais cosmopolitas do que nacionais, ou porque so, de fato, marginalizados ou excludos da sociedade, no sentido da participao poltica e do acesso aos bens sociais. O regime democrtico hegemnico no Ocidente e foi referenciado na Conferncia Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, como o regime poltico que oferece melhores condies para a garantia e ampliao dos direitos humanos e a vivncia da cidadania. Mas, no Brasil, a crena na democracia aparece abalada, principalmente, pelo distanciamento entre os direitos declarados e os direitos concretizados, em especial os direitos sociais. Essa fragilidade afeta a crena no regime democrtico. o que mostra a pesquisa realizada, recentemente, pelo Datafolha (Jornal Folha de So Paulo, 16/07/2000), com o objetivo de verificar como a populao percebe a democracia no Brasil. Apenas 47% dos entrevistados, em um universo de 11.534 eleitores de todo o pas, consideram a democracia como o melhor regime. A grande surpresa dessa pesquisa o percentual de pessoas que apoiam a ditadura - 18% -, e tambm o percentual dos que acham que tanto faz uma democracia ou uma ditadura 29%. Algumas explicaes para esses resultados demonstram que o fator econmico afeta a crena no regime, ao mesmo tempo que o crescimento do apoio ditadura reflete as dificuldades sociais da populao e o clima de insegurana pessoal em que as pessoas esto vivendo. Conforme anlise de Francisco Panizza, destacada nessa pesquisa, em qualquer pas do mundo a democracia se legitima por seus procedimentos (eleies livres, etc), mas tambm por sua eficcia (o bem-estar geral). Em pases de cultura democrtica relativamente frgil, como o Brasil, a eficcia ainda mais importante (Folha de S. Paulo, 16/07/2000, p.29). Um ponto a merecer ateno dos educadores e, principalmente, daqueles que se preocupam com a formao da cidadania dos seus alunos o fato de a

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preferncia pelo regime democrtico aparecer mais alta entre os adultos, com maior nvel de escolaridade, enquanto os jovens e os que possuem menor tempo/nvel de escolaridade revelam mais indiferena. Quanto mais alto o nvel de escolaridade, mais aumenta a crena no regime democrtico, ou seja, os que tm 1 grau, 40%, o 2 grau, 55%, e nvel superior, 71%. Por outro lado, preocupante o percentual dos jovens 35% ? que so indiferentes democracia ou ditadura. Isto nos leva a indagar qual a educao que est sendo forjada no espao escolar, e at que ponto est contribuindo para a formao de cidados crticos e conscientes do seu papel no projeto de sociedade. E a democracia enfraquecida vulnervel ao poder autoritrio, que pode destru-la pelo caos, violncia e guerra civil, como pelo poder das oligarquias ou partidos que acumulam recursos econmicos ou polticos para impor suas escolhas a cidados reduzidos ao papel de eleitor.

Por falta de presso moral e social, a democracia transforma-se rapidamente em oligarquia, pela associao do poder poltico com todas as outras formas de dominao social. A democracia no surge do Estado de direito, mas do apelo a princpios ticos liberdade, justia em nome da maioria sem poder e contra os interesses dominantes (Alain Touraine, 1996, p.36).

O fortalecimento da democracia no possvel sem a compreenso do eleitor sobre a importncia da participao consciente no projeto de construo da sociedade, que passa pelo significado do voto. Embora saibamos que a eleio, apenas, no garanta a efetividade da democracia, ela um dos instrumentos legais, conquistados pela sociedade e o momento em que os sujeitos podem exercitar o direito de escolher seus representantes.

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Um outro aspecto, que um pressuposto para a existncia da democracia, a necessidade do respeito s diferenas culturais, o respeito diversidade cultural, de crenas, origens e projetos. O que define a democracia no apenas um conjunto de garantias institucionais ou a vontade da maioria, mas o respeito pelos projetos individuais e coletivos que combinam a afirmao de uma liberdade pessoal com o direito de identificao com uma coletividade social, nacional ou religiosa. O que se coloca como um risco democracia e cidadania o favorecimento de grupos que se impem em defesa de suas identidades ao assumirem prticas antidemocrticas, em nome da diversidade e da diferena cultural. No possvel entender que a liberdade cultural venha contrapor-se aos direitos conquistados historicamente, visto ter a humanidade evoludo na conquista dos direitos. Como podemos observar, a luta pela democracia e pelos direitos da cidadania secular, contra, principalmente, as relaes de dominao, explorao, autoritarismo, os modos de discriminao e violao dos direitos do homem. Essa luta vem se processando nas relaes estabelecidas em diferentes instncias da sociedade, nos movimentos sociais e polticos, no sentido de criar uma nova cultura, em que a democracia possa ser vista como uma possibilidade de criar novos comportamentos e relaes de respeito ao indivduo como sujeito de direitos. Ao se pensar na construo da democracia moderna, alguns fatores so determinantes: o Estado democrtico de direito, que limita o poder arbitrrio do Estado, de forma a garantir a todos a igualdade de direitos; a soberania popular, atravs da representatividade dos governantes, e a recusa da arbitrariedade do poder e a garantia da cidadania, enquanto exerccio pleno da liberdade e igualdade (Alain Touraine, 1996). Assim, ao mesmo tempo em que a democracia, nos termos aqui referendados, condio para a existncia da cidadania, aquela no sobrevive sem a garantia desta.

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O Brasil regido por uma Constituio que garante o Estado democrtico de Direito fundamentado nos princpios da soberania, da cidadania, da dignidade, do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo poltico. Mas, segundo Renato Janine Ribeiro (1998), o Estado democrtico no suficiente para garantir a sua vigncia se no pertencer a uma sociedade democrtica. No possvel haver uma sociedade discriminadora ao mesmo tempo que um Estado de formas democrticas, pois a democracia , necessariamente, uma cultura, e por isso mesmo se expande do que se refere ao Estado para o que diz respeito sociedade como um todo (p.49). A concretizao de uma sociedade democrtica exigir pensar o Estado na direo dos direitos humanos, o que requer a reforma da sociedade no rumo dos mesmos direitos e dos valores democrticos. Um dos avanos na conquista dos direitos como form