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QUARTO DE EMPREGADA Texto de Roberto Freire

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QUARTO

DE

EMPREGADA

Texto de Roberto Freire

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PERSONAGENS

ROSA

Preta de cinqüenta anos, cozinheira.

Espécie remanescente das velhas

escravas. Mulher simplória e boa, mas

de linguagem dura e de grande

experiência.

SUELY

Moça branca, de uns vinte anos.

Copeira. Típica mocinha do interior,

adaptada à condição de doméstica.

Guarda ainda uma certa pureza de

província, mesclada ao cinismo de

contágio das marginalizadas nas

grandes cidades. Levemente avoada e

bonita.

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CENÁRIO

Cubículo com cama beliche ao fundo, e

armário repleto de roupas, que

transbordam. Malas sobre o armário,

quase até o teto. À esquerda, uma porta

e à direita uma janela para a rua de

grande movimento de bondes e

automóveis. O espaço que sobra é

realmente mínimo. Típico quarto de

empregada em apartamentos

modernos. Estamos num primeiro

andar. Há nas paredes (no que sobra

das paredes): espelhinho, gravura de

São Jorge, retratos amarelados, etc.

Um pequeno rádio junto à cabeceira da

cama de Rosa.

ÉPOCA

Atual.

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Ao abrir-se o pano, Rosa está sentada

junto à cabeceira da cama, atenta,

ouvindo no rádio, fim de capítulo de

novela. Suely, de pé, retira roupas de

uma mala, sobre a cama de cima do

beliche.

RÁDIO (À medida que vai se abrindo o pano ouvem-se os acordes iniciais da Marcha Nupcial. Suely deixa cair os braços com as roupas nas mãos e ouve também. Voz masculina.) – Roberto de Vandervil, aceita esta mulher como sua legítima esposa? RÁDIO (Outra voz masculina) – Sim! RÁDIO (Primeira voz masculina) – Maria Teresa de Sugur, aceita este homem como seu legítimo esposo? RÁDIO (Voz feminina) – Sim! RÁDIO (Primeira voz masculina) – Ego conjugo vobis in matrimonium in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen. (Entra subitamente música brilhante, tipo fim de novela.). SUELY (Rompendo o estado de encantamento) – Que foi que ele disse? ROSA (Saindo também do transe) - Hein? SUELY – Que foi que o padre disse? ROSA (Levantando-se) – Sei lá... RÁDIO (Cai a música. Voz de locutor) – Acabam de ouvir o último capítulo da emocionante... (Rosa desliga o rádio. Há um silêncio. Ouvem-se os ruídos de um bonde que passa e algumas buzinas.

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Suely volta à sua mala. Rosa a observa um pouco. Depois se deita, ajeitando um travesseiro sob os pés.). SUELY – Eles casaram. ROSA – Tudo besteira. Não sei porque ouço essas novelas. Deve ser porque não tenho ninguém para conversar. SUELY – E eu? ROSA (Olha significativamente para Suely e resolve não responder. Pausa. Rosa acabou de se ajeitar. Recosta-se. Suspira) - Uai, até que é bom! SUELY (Cuidando de suas roupas) – O quê? ROSA – A posição do médico. Faz tempo que ele mandou. Só hoje experimentei. Diz que é bom para as varizes, pro sangue escoar. (Suely vai olhar a janela.) Olha pra isto, Suely! (Mostra-lhe uma perna.). SUELY (Virando-se) – Já vi, você vive mostrando. ROSA – Mas é pra você não se esquecer. Eu tinha pernas bonitas, mais bonitas que as suas. Veja agora: tá cheia de caroço. E dói, sabe? SUELY (Sorrindo) – Será que isso não pega, Rosa? ROSA – Se pega, você já pegou! SUELY (Levanta a ponta da saia e olha as pernas até os joelhos) – Eu, hein? ROSA – Primeiro ela fica escondida, só doendo. Não se vê. Aparece depois. SUELY (Um pouco preocupada) – Pois não sinto nada. (Pausa.) Pega mesmo?

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ROSA – Por isso é que preciso ouvir novela. Pelo menos é besteira com música, e só meia hora por dia... SUELY – Que foi que eu disse? Foi você... ROSA – Varizes não é doença, sua burra. É velhice... SUELY – Ah, isto também é besteira. Conheço muita gente nova com varizes. A Jurema, a do quinze... ROSA – A copeira? Aquela é velha... SUELY – Não é, não. ROSA – Gente pobre já nasce velha... SUELY – Puxa! E depois sou eu que... ROSA – Com as misérias de velha! Você não entende nada! Chega, acabou a novela! SUELY – Acabou! Hoje não quero briga. (Pausa. Suely examina e depois veste um vestido estampado, muito espalhafatoso. Rosa observa-a. Suely gira para mostrar a saia.) Gosta, Rosa? ROSA (Virando o rosto) – Não! SUELY (Afetando mágoa) – Mas me custou os olhos da cara! ROSA – E daí? SUELY – A fazenda é fina, olhe... (Aproxima a saia.). ROSA (Sem se virar) – Que me importa? SUELY – Olhe pelo menos! ROSA – Não quero ver essa droga. Já disse: não gosto! SUELY – Por quê, Rosa?

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ROSA (Virando-se) – você não tem vergonha? Olhe bem. É roupa de mulher à toa, quero dizer, de mulher que tá ficando à toa. Foi você que pagou? SUELY (Olhando no espelhinho) – Não, foi o Argemiro. Que é que tem? Não vejo nada demais no vestido. Você tá é ficando louca. ROSA – Então agora soldado escolhe modelo? SUELY – Não banque a besta, Rosa. Ele me deu o dinheiro. ROSA – Não vai atrás de conversa de homem, Suely! SUELY – Já fui. ROSA (Depois de curta pausa, em que fica pensando) – Há quanto tempo você é dele? SUELY – Faz tempo... ROSA – Ele é o primeiro? SUELY – Claro: não sou mulher da vida. ROSA – Não... mas vai ficar! SUELY (Irritada) – Vamos deixar desse negócio de me ofender, tá bem? Como se você fosse grande coisa! Você não passa de uma negra velha, toda empelotada, e vai ver que é por causa de doenças... Quer me enganar que também não teve seus homens? ROSA – Tive, sim. O primeiro... deixa ver... faz tanto tempo... acho que foi o tio do patrão. É, foi ele mesmo! SUELY (Interessada) - Qual? O Senador? ROSA – O Senador... na fazenda. (Ri.) Era ainda bem mocinho. Acho que pra ele também era a primeira vez. Tremia todo, coitado! Agora nem me cumprimenta...

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SUELY – Velho safado! ROSA – Mas isso é história muito velha. Naqueles tempos as negrinhas é que pagavam. Eu devia ter uns quinze anos. SUELY – Agora tá que é só pose, mas continua safado! ROSA – Nada. Tá borocochô. SUELY – O quê? (Ri.) Vai nessa! Outro dia na escada – tava escuro – me deu um beliscão. Mandei ele beliscar a papuda da mulher dele. Comigo não, que eu não sou de velho! ROSA (Irônica) – Você assim vai mal na carreira. Perdeu uma boa oportunidade. Devia deixar, sua boba. Ele tá podre de rico e podia te dar um vestido bem melhor que este. SUELY – E pra você, o que é que ele deu quando te abusou? ROSA – Nada. Ele era um menino. E nem precisava! Os tempos eram outros. Pra mim, foi até uma bruta honra! Fiquei toda orgulhosa. Contei pra todo mundo, na cozinha. SUELY (Vai até à janela, novamente) - Daqui a pouco ele chega. Puxa! Eu fico falando e vou me atrasar. (Vai para o espelhinho e se penteia.) O Argemiro não gosta de esperar. (Pausa.) Tou precisando uma permanente. (Pausa.) O que é que você acha de eu tingir ele de loiro? ROSA – Fica mais próprio... Que tipo de soldado ele é? SUELY – Sargento do Exército. Logo é capitão! ROSA – Tenente, sua burra! SUELY – E se ele quiser ser capitão, o que é que você tem com isso? ROSA – Nada. Eu nada. No quartel é que não vão gostar muito. SUELY – Ah, você é chata!

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ROSA – Vocês vão se casar? SUELY – Acho que não, vamos morar juntos. Eu contei que estava grávida e ele nem ligou. Pensei que ia quebrar o pau. Até ficou mais delicado. Depois, combinamos morar na casa da velha dele até a criança nascer. Como eu ando enjoando muito, pedi que me levasse logo. Combinamos que ia ser hoje. ROSA – Há quantos dias ele não vem? SUELY – Quase duas semanas. Ele está quebrando um galho no quartel. ROSA – E você acreditou nessa história? SUELY – Você não conhece o Argemiro! Se acreditei! Tenho certeza! Ele é bom, Rosa. (Entusiasmando-se.) Você precisava ver... ROSA – O quê? SUELY – Nada. É jeito de falar. Olha: ele me deu também este sapato. Vamos sempre no cinema. Quando tem revista no teatro, nós também vamos. Ele gosta é de revista! Dá cada risada! Eu só não gosto é quando aquelas descaradas ficam rebolando em pêlo. Ele nem me responde – se eu falo -, porque, nessas horas, eu falo pra distrair ele... ROSA – Quantos anos você tem, Suely? SUELY - Eu? Vinte anos. ROSA – Seus pais, lá em Lorena, tão sabendo desse seu arranjo? SUELY – Eu não dou pelota pros velhos. Gente de roça não entende dessas coisas. Queriam que eu me casasse com um aleijado, só porque tem dinheiro. ROSA – E você não quis? O que é que ele fazia?

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SUELY – Auxiliar de farmacia. Um chato. Comi no pé quando o negócio ficou preto. Aqui é outra coisa! A gente se diverte... A turma é boa. ROSA – Que turma? SUELY – A minha turma. A Olga, a Jurema, a Magali, o Argemiro, o Zé, e... ROSA – Pois é, mas agora acabou a farra... SUELY – Por quê? ROSA – O soldadinho... Pra quando é a festa? SUELY – Sei lá... acho que pra dezembro. ROSA (Faz o sinal da cruz) – Como Nosso Senhor Jesus Cristo. SUELY (Pensa um pouco) – É mesmo! Nem tinha pensado... (Olha o retrato de São Jorge.) Você acredita em Deus, Rosa? ROSA – Acredito. E você? SUELY – Eu não. Pra que acreditar? ROSA – Pra tudo. É só o que vale. Não tem mais nada. SUELY – Eu não preciso. ROSA – Já sei! (Imita Suely.) “Eu tenho o Argemiro”. (Ri.) Deus te castiga, Suely. SUELY - Eu? Por quê? Só castiga quem acredita nele... ROSA – Quem sabe?... Eu tenho sido castigada... e com razão. Você devia ter temor de Deus, menina... ainda mais agora. SUELY – Besteira, Rosa, besteira...

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ROSA (Mostra-lhe o retrato de São Jorge) – Reza pra aquele. É mais fácil não sei porquê. Depois ele fala com Deus em favor da gente. SUELY (Examina o retrato) – Que rezar nada... O que é que ele tá fazendo? ROSA – Matando o dragão. SUELY – Que dragão? ROSA – É assim mesmo. SUELY – Como, assim mesmo? Nunca vi dragão! ROSA – Mas vai ver. E então vai chamar São Jorge! (Ouve-se um assobio. Suely corre à janela.). SUELY – É ele! (Volta sem graça.) Não é, não. Você falava do dragão... é aquele bicho lá? ROSA – É! Ele não vem, menina. SUELY – Não fica chamando azar! Claro que vem! ROSA – Tou lhe avisando. E se vier é pior. Homem não presta. Veja o patrão. SUELY – O patrão até que é bom... ROSA – Bom pro fogo! Eu é que sei... SUELY – Quer me dizer que ele também?... Ah, Rosa, deixa de conversa. O que você quer é cartaz! ROSA – Tou velha pressas coisas. Esse não se passa por preta. É papa-fina. Tem amantes ricas e a patroa sabe. Tem tido cada briga! SUELY – Mas ele é rico. Homem rico é assim. E faz bem. Dona Marta tem que agüentar o galho. Que mais ela quer? Tem tudo...

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ROSA – Se eu fosse ela, pregava nele uma lição. Homem não gosta de chifre. Garanto que ele aprendia. SUELY – E você tem certeza que ela já... ROSA – Cala a boca! No mundo não tem só gente ruim... Enquanto ele vai pra farra, a coitada trabalha, dá duro com as crianças... SUELY – Trabalha porque quer. Tem duas empregadas. ROSA – Uma só. Você não vai embora? SUELY – Vou. Ela arranja logo outra. ROSA – Você conversou com ela? Contou por que vai embora? SUELY – Falei. Mas nem precisava. Você se encarregou de fazer minha caveira. ROSA – Ela estava contando com você. Não se pode deixar pra última hora. Tá lembrada? Eu pedi pra você avisar. Esperei. Ontem ela me perguntou. SUELY – Mas não precisava dizer que eu estou grávida, sua xereta! Agora ela fica gozando... ROSA – Não seja ingrata. Ela sempre foi boa com você... e eu também. SUELY (Volta-se irritada) - Você? O que é que eu lhe devo? ROSA – Até agora nada... SUELY – E então? ROSA – Mas vai dever... SUELY - Eu? Pra você? Essa é boa! O Argemiro já vai chegar. Não vou precisar de mais ninguém!

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ROSA (Sentando-se na cama) – Tá bom... Tá bom, sua teimosa... (Muda de tom.) Eu até falei com a patroa! SUELY (Fechando a mala) – O quê? Falou o quê? ROSA – Sobre você... SUELY – Não te encomendei sermão! ROSA – Mas, Suely... SUELY – Negra metida! ROSA – Suely! SUELY (Bem próxima) – O que é que você tem comigo? Por que é que você se mete desse jeito? ROSA – Fala baixo... SUELY – Falo nada! Responde, responde! ROSA – Baixa a voz... SUELY – Quero saber: diz, diz, diz! ROSA – Bem, então você vai ouvir! (Agarra Suely pelo braço.) Não adianta – ou tu não presta mesmo... (Suely chora e tenta soltar-se.) Pára com isso!... ou te enfeitiçaram. Olha para mim... Não seja burra! (Suely que se acalmara, torna a se agitar.) Aproveita, aproveita que eu tenho pena de você, ninguém mais, muito menos soldado... SUELY (Lutando) – Me larga! Me larga! (Rosa solta-a, bruscamente. Suely cambaleia.) Sua negra! Quem está pensando que é? ROSA (Voltando-se para a cama, ofegante) – Desculpa... (Volta-se.) Sua mãe... SUELY – Ninguém tem nada comigo, mais ninguém! Mãe, mãe! Não se enxerga?

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ROSA – Acho que não. SUELY – Não preciso de mais ninguém... muito menos de mãe... aquela, então... Agora estou livre. ROSA (De costas, olha em torno) - Livre? SUELY – Eu tenho o Argemiro... ROSA – Ele ainda não veio... O que você ainda tem é ou... a negra... ou Dona Marta. (Dirige-se para o rádio, liga-o, ouve-se a voz de Ângela Maria cantando Vida de Bailarina. Suely vai para a janela. Olha um pouco para baixo. Ouve-se quase toda a canção. Rosa vira-se na cama e fica de costas. Depois, torna a virar e observa Suely que presta atenção à letra.). SUELY – Por que vocês não me esquecem? Já não sou mais empregada desta casa... já não sou mais empregada de ninguém! ROSA (Dirigindo-se para a porta) – Dona Marta disse que te recebe de volta... a qualquer hora, pelo menos, até o dia da criança nascer. SUELY – Não pedi nada. Meu filho tem pai, ouviu? ROSA (Cansada) – Ouvi. (Pausa.) Esse médico quer que eu vire água. (Sai. Suely desliga o rádio, desconfiando que a música possa fazer não ouvir o assobio. Tira a mala da cama e a põe sob a janela e fica olhando para baixo, cantarolando a canção ouvida no rádio. Depois, apanha o espelho e examina o corpo, a seguir o quarto. Suely continua a cantar e volta para a janela. Rosa entra, enxugando as mãos na saia. Olha Suely e torna a deitar-se.) Você tem dinheiro? SUELY (Que não a ouviu) – Que horas são? ROSA – Na cozinha não tem relógio... SUELY – Você não foi na cozinha? ROSA – Não. Mas deve ser nove horas.

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SUELY – Mentira! Por que você é assim, Rosa? Parece que gosta de me fazer sofrer. ROSA – Vá ver, então. (Suely vai sair, Rosa a detém. Muda de tom.) Eu gosto de você, Suely. A que horas ele disse que vinha? SUELY (Hesita) – Às oito horas... ROSA (Penalizada) – É, já passou... Mas vá ver... aproveita e come um pouco. SUELY (Iludindo-se) – Rosa, diga se eu estou bem. (Vira-se.). ROSA (Comovida) – Você é bonitinha. Tá é ficando barriguda. SUELY (Examina o ventre) – É, eu também acho. Mas, e o vestido? ROSA – Não gosto. É presente do capitão. SUELY – Sargento. Eu que escolhi o feitio... tirei do ‘Cruzeiro’. ROSA – Mas ele pagou e voce fez pra ele. SUELY – Eu empres... (Interrompe.) Ah, isso foi. Vou ver a hora. (Sai. Rosa levanta-se, abre o armário e tira de dentro um embrulho feito com um lenço. Abre-o e apanha uma nota de dinheiro. Pega a bolsa de Suely de cima da cama. Deposita a nota dentro, repondo-a no lugar em que estava. Suely entra nervosa, aflita, descascando uma tangerina. Vai para a janela.). ROSA (Percebendo a aflição de Suely, tenta distraí-la) – Você não jantou, menina. (Ergue-se.) Espera, vou lhe preparar alguma coisa. Agora você deve se alimentar bem. SUELY (Vira-se. Está chorando) – Não, Rosa, não precisa! ROSA (Indo ao seu encontro) – Vem cá, minha filha, senta aqui... (Traz Suely para a cama.).

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SUELY (Obedece, largada) – Mas ele precisa vir... Rosa, eu dei pra ele todo o dinheiro... (Enquanto fala, chupa a tangerina, cuspindo os caroços no chão.). ROSA – Que dinheiro? SUELY – O meu, toda a economia... ROSA – Mas pra que ele queria o dinheiro? SUELY – Ele precisava... sempre precisava, ficava nervoso, me ameaçava de não voltar mais... ROSA – Oh, Suely, por que você deu? SUELY – Eu gosto dele, Rosa! ROSA (Passa a mão pelo cabelo e depois no vestido de Suely) – Não tem importância, não, Suely. É assim mesmo. Paciência. Sabe, já estou gostando do seu vestido. Você tinha razão... é macio. SUELY (Examina o vestido, entre lágrimas) – É sim... mas você não gostava... ROSA – Eu não sabia... reparando melhor... SUELY (Levanta-se, limpa o rosto no lençol da cama) – Eu não devia chorar, nem estar falando assim. Ele ainda pode chegar. ROSA (Puxando Suely para a cama) – Não vem mais, não. Fica aqui, Suely. Ele só queria o teu dinheiro... SUELY (Já refeita) – É mentira! É você que me faz chorar. Ele costuma chegar atrasado. Com o Argemiro é diferente: eu juro, Rosa! ROSA – Não é, não, minha filha. SUELY (Levanta-se, dá alguns passos nervosos) – Eu juro... (Passa a mão pelo ventre.) Se ele não vier o que é que eu faço?

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ROSA – Foi o que conversei com a patroa. Você fica aqui até chegar a hora. Eu te faço todo o enxoval. E pode deixar que eu pego no pesado pra você. É por pouco tempo. Quem sabe até faz bem pras varizes. SUELY – Mas, e depois? Como é que vai ser com a criança? ROSA (Ergue-se, vai até o armário e tira de lá um caderninho que folheia) – Você conhece o Exército da Salvação? SUELY (Que estava distraída) – O quê? ROSA – O Exército da Salvação! SUELY – Acho que o Argemiro é da Infantaria... ROSA – Da salvação, Suely. É outra coisa. É religião. SUELY – Aquelas pessoas fardadas, que cantam na rua? Coitados! ROSA – Coitados, por quê? SUELY – Ninguém presta atenção neles. ROSA – É só impressão. Eu também achava esquisito. Um dia precisei deles. Veja (mostra-lhe o caderninho.). São os hinos. Eu sei todos de cor. Veja este: (canta.) “escuta a voz de meu Jesus \ segue-me, vem, segue-me”... SUELY – É bonito... ROSA – É triste... É, mas é bonito... Todo mundo fardado... o violino... Eu fazia parte da segunda voz... a grossa... assim... (canta.) “segue-me, vem, segue-me”... SUELY – Então, Rosa, então você... ROSA – É sim, senhora. É por isso que eu sei, por isso é que estou falando... Pra mim também aconteceu... SUELY – Você tem um filho?

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ROSA (Senta-se) – Tinha: morreu com dois anos. Nasceu com defeito, o coitadinho! Durou pouco. Pois foi. É isso mesmo, menina. Eu também caí nessa história de vestidos, sapatos, promessas de casamento... Esta preta velha toda empelotada como você disse, já foi um dia uma negrinha boba, besta, cheia de idéias na cabeça, como você. (Olha Suely.) Desculpa, não é pra ofender... SUELY (Abraça a negra. Ficam ambas sentadas) – Oh, Rosa! Nunca pensei... Como é que ele chamava? Era menino? ROSA – Não me lembro mais. (Pausa.) Mentira... chamava José... Zezinho... Eles não voltam mais quando descobrem que fizeram filho na gente. Nem querem ver... SUELY (Depois de uma pausa) – Por que eles não gostam de filhos? ROSA – É assim mesmo. Não ligam uma coisa com outra. Já pensei muito. Eu sou uma preta ignorante. Não compreendo nada. Só sei que é assim. Só compreendo o que dói, o que dá fome, o que dá frio... explicação não resolve. SUELY – Acho que comigo é diferente. Eu compreendo o Argemiro. ROSA – Compreende nada. Os homens que procuram a gente são uns medrosos, gente que não presta. Gente que tá sobrando por aí. SUELY – Eu não estou sobrando. Já disse. ROSA – Tá sim, mais eu também, todas as empregadas... Depois... quem sobra acaba se encontrando, se juntando... pra quê, não sei. SUELY – Já não sou mais empregada... Argemiro tem carreira. ROSA – Olha, Suely: olha este quarto... nem mesmo é quarto. SUELY – Você fica aqui porque quer. ROSA – Ir pra onde? São todos iguais. SUELY – O quarto da patroa é diferente... o meu...

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ROSA – Deixa de ilusão, sua tonta... Se sair daqui, deste, cai noutro... Não, Suely, não adianta pensar nos tapetes e nas cortinas lá da sala, nem no colchão de mola... SUELY (Recosta-se na guarda da cama) – Você parece que tem gosto... ROSA – Gosto de dizer a verdade? SUELY – Não... de tirar os sonhos da gente. ROSA – Vou te dizer: é assim mesmo. Ilusão é o que mata a gente. É pior que mentira feita de propósito. SUELY (Deita o tronco na cama) – Estou ficando cansada... cansada, Rosa. De repente... e... meio enjoada. Acho que foi a tangerina. ROSA (Levanta-se. Apanha a mala de Suely e começa a desarrumá-la. Vai repondo as roupas no armário. Descobre uma toalha fina e alguns talheres de prata) – Sua burra! (Suely descobre o rosto, vê os objetos nas mãos de Rosa e começa a chorar, cobrindo os olhos.) Chora, burra, porque não tem jeito. É assim mesmo: a gente é capaz de tudo. Você só pegou besteiras, porque é uma bobalhona. Eu já roubei também, mas foi dinheiro, pra comprar comida, tá entendendo? Mas é tudo a mesma coisa! (Suely chora alto.) Tá bem, eu sei, você não tem culpa! (Sai, levando os objetos. Suely levanta-se, interrompendo bruscamente o choro. Vai até à janela. Volta. Está com a fisionomia desfeita. Olha o quarto. Pára diante de São Jorge. Vai começar a fazer o “pelo sinal”, mas desiste. Irrita-se. Vai sair, quando entra Rosa.) Onde é que você vai? (Toma-lhe o braço.) Não vai pra lugar nenhum, não senhora! Ande, tire essa roupa! Vamos dormir. SUELY – Rosa... ROSA – Chega! Tá na hora de dormir... eu preciso dormir! Vamos! (Muda de tom.) Vamos, Suely. (Rosa começa a despir-se. Suely a acompanha. Devem ficar apenas de combinação.) Eu estava contando... Pois quando chegou a hora, eu estava enorme, toda

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inchada. Não tinha ninguém. Estava só... Ninguém queria dar emprego pra uma bruxa barriguda e doente. Eu tinha vergonha de voltar na casa da finada Dona Adélia – a mãe do patrão – de onde eu tinha saído por causa do homem. Numa tarde de domingo eu estava desesperada de fome... e de abandono. Você vai ver, a gente se sente mais só quando está esperando criança. Foi num banco da praça. Chorava como uma burra, como você... Veio um homem fardado e começou a falar. Falava manso como todos os que querem enganar a gente. Disse pra ele os palavrão que sabia. Ele ficou parado, esperando, sorrindo. Eu estava tão fraca que logo cansei. Ele então disse que era do Exército da Salvação. Eu desconfiava, mas achei melhor acreditar, mesmo que fosse fuzileiro naval. Que me adiantava? Era melhor seguir o homem que morrer em qualquer canto. Só não compreendia o interesse dele por causa da barriga. Ele me levou pra um abrigo onde tinha muitas outras como eu. Lá nasceu meu filho. Me ensinaram cozinha fina, costura e a religião deles. Mas só aprendi os hinos. Já te disse – confio mesmo é em São Jorge. Quando o menino começou a andar, deixaram eu sair. A finada Dona me recebeu com a criança. Que Deus a tenha em bom lugar! Fez tudo pra salvar o menino, mas ele morreu. (Pausa. As duas se deitam.). SUELY – E você acha que eles vão me receber? ROSA – Recebem, sim. Mas tem de ficar um ano. Não pode sair. Eu vou ver você nos domingos. Te levo coisas. SUELY – E depois? ROSA (Custa a responder) – Depois... acho que você aprendeu. Salvou o filho. O pior já passou. SUELY – Mas, e se ele vier? ROSA – Não vem, não. (Rosa estica o braço e apaga a luz.). SUELY (Há apenas a luz que vem de fora, pela janela aberta) – Rosa... tem uma coisa que eu preciso falar... mas é difícil. Pra você, agora que está velha, deve ser fácil pensar assim. Mas você deve se lembrar. É de noite que vem a coisa... uma vontade... a gente vai

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agüentando... Quando eles chegam perto da gente, quando eles tocam na gente, tudo volta, cega a gente... Você está ouvindo? ROSA – Estou... SUELY – Você tá compreendendo, Rosa? ROSA – Estou... é fácil, não? SUELY – Eu queria tanto que ele viesse! (Chora.) Oh, Rosa... tá certo que tá tudo errado... mas eu queria tanto! ROSA (Senta na cama) – Quer saber de uma coisa? Deviam é operar a gente! SUELY (Assusta-se) – O quê? ROSA – Operar... pra gente não precisar de homem... pra gente não ficar grávida... SUELY – Todo mundo? ROSA – Não... nós, as empregadas... Era o único jeito... Acabava com esse negócio de uma vez. Acabava com os Argemiros e... e com os Zezinhos. E a gente vivia em paz... e as patroas também. (Deita-se outra vez.) Deus me perdoe... (Faz o sinal da cruz.). SUELY – Eu não deixava... ROSA – Eu sei... nem eu. SUELY – Rosa... ROSA (Boceja. Voz pesada de sono) – Durma, Suely, durma. Tudo isso é besteira... o que você precisa é dormir bastante, comer bem. Aqui você tem pelo menos cama e comida. Lembra o defeito do menino... de nascença. Acho que foi minha fraqueza... minha fome. (Pausa longa. Rosa boceja novamente. Suely mexe-se muito na cama. Vem da rua sons de bondes e automóveis.).

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SUELY – Rosa... (Rosa não responde. Suely olha para baixo.) Rosa... ROSA – O que é, menina? SUELY – De quem é a culpa? ROSA – De quê? SUELY – De a gente ser empregada, não poder gostar de um homem direito que case com a gente... ROSA – Não sei. SUELY – Uns têm tudo... tudo dá certo, como no cinema... na novela. Eu conheço tanta gente feliz! É dos patrões? ROSA – Deve ser. Quem tem dinheiro é que manda. E tão mandando errado. Daí a desgraceira deste mundo. Eles também sofrem, porque não se entendem. Veja a patroa... SUELY – Só que não precisa do Exército da Salvação, Rosa. Com dinheiro... ROSA – Isso é. Pelo menos, com dinheiro, a desgraça deles é limpa, confortável. (Boceja.) Suely, pelo amor de Deus, deixa eu dormir... SUELY – Se o Argemiro... ROSA – Boa noite! SUELY (Depois de uma pausa) – E se eu morresse? ROSA – Sorte sua! SUELY – Rosa: é ruim ser velha e sozinha? ROSA – É.

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SUELY – E ser velha sozinha... e preta? (Rosa não responde.) Não sei... acho que ainda deve ser pior... ROSA – O que me incomoda é não poder dormir... é você não me deixar dormir... são as varizes... é essa porcaria de mijo solto... SUELY – Acho que vou me matar. ROSA – Já vai tarde. SUELY – Você não tem pena mesmo? ROSA – Não. Não adianta se matar. Só morria a criança. SUELY – Por que não eu também, ora essa? ROSA – Você já não conta. Perdeu a vez... SUELY – Então não adianta? Nada mesmo? ROSA – Não! SUELY – Que pena!... O Argemiro ia ter remorso... ROSA – Ia ter coisa nenhuma. Seria até um alívio pra ele. (Boceja.) O sono tá chegando. Cala a boca, Suely. (Pausa. Ouve-se um assobio. Suely senta-se na cama. Outra vez o assobio.). SUELY – Rosa... é ele! ROSA – Ele quem? SUELY – O Argemiro. Está lá embaixo. Conheço o assobio. ROSA – Deixa ele. Por favor, vamos dormir. Que assobie até rebentar. SUELY – Mas eu não posso! ROSA – Fique quieta.

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SUELY – Eu vou ver. ROSA – Deita. Não vai, não! SUELY – Eu quero, Rosa! (Começa a descer.). ROSA – Gastei tanta palavra... contei segredo... agüentei tanta conversa besta... SUELY – Foi até bacana... ROSA – Vai, vai! Olha: até acho bom... pelo menos vou poder dormir... SUELY (Depois de olhar pela janela e fazer um gesto para baixo) –É ele! É ele! Veio me buscar... Desculpa, Rosa. (Veste-se às carreiras.) Eu não disse que ele vinha? ROSA (Olha Suely com pena) – Suely... SUELY (Não a ouve) – O Argemiro... Eu sabia, eu sabia... (Começa a arrumar a mala.). ROSA (Muito baixo) – Minha filha... SUELY - Hum? (A mala está pronta. Corre para a janela e faz um novo gesto. Apanha a bolsa e a mala e pára diante de Rosa.) Agora eu vou, Rosa... (Rosa faz um gesto para abraçá-la, mas Suely não percebe e caminha para a porta. Volta-se mais uma vez.) Estou bem, Rosa? (Rosa vira o rosto.) Tchau, Rosa... (Sai.). ROSA (Deixa-se cair na cama) – Tchau, burra! (Silêncio. Ouve-se um bonde, ao longe, que se aproxima fazendo enorme ruído. Rosa levanta-se. Vai até à janela e olha para baixo. A seguir começa a arrumar as cobertas desfeitas da cama de Suely. Os seus gestos passam a ser de carinho. Depois, encosta a cabeça e chora sobre o colchão da cama da outra. Caminha até à gravura de São Jorge e começa a rezar baixo. Volta-se e fica de frente para o público. Tem lágrimas nos olhos. Súbito, muda completamente de expressão.) Droga de remédio! Pareço uma torneira! (Vai até o armário e apanha um roupão. Entra Suely.) Uai!

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Você subiu depressa!... (Olha para o santo.) Obrigado, São Jorge... Tu trabalha depressa... (Para Suely.) Melhor assim. Agradece você também pro Santo! (Suely está paralisada.) Suely, amanhã eu digo pra patroa que você vai ficar e que está enjoando. Ela vem te visitar e você se desabafa. Nada de orgulho, hein? Não precisa sair do quarto. Descansa. Eu arrumo a casa. (Aproxima-se da cama.) Dorme agora. Deus é grande... São Jorge tá coa gente. (Suely balança levemente a cabeça.). SUELY – Rosa... ROSA – Hum... SUELY – Ele... ROSA – Hum... SUELY – Havia um dinheiro... eu nem sabia... na bolsa... ROSA – Hum... SUELY – Ele levou... à força. Estava bêbado. Depois me bateu... porque eu disse que não tinha... (Irrompe em soluços, largando a mala e a bolsa no chão.) Eu juro que não sabia! Eu já tinha dado tudo... Tudo, Rosa! (Chora. Súbito pára.) Rosa... (Aproxima-se.) Rosa! Eu tou enjoando... Eu vou vomitar! (Contorce-se. Rosa a abraça e fecha a cortina.).

FIM