Quando Tudo é Permitido - Wolfhart Pannenberg

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  • 7/23/2019 Quando Tudo Permitido - Wolfhart Pannenberg

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    Traduo do alemo para o ingls por Markus Bockmuehl.

    Para ler outro artigo do Pannenberg traduzido neste blog:

    Como Pensar Sobre o Secularismo - Wolfhart Pannenberg

    Traduo: Vitor [email protected]

    VitorGrando.wordpress.com

    uma notvel singularidade dos nossos dias que o assunto da moralidade e da

    tica seja tido como uma questo de interesse pblico, enquanto a questo

    referente a Deus seja tida como uma questo esotrica de interesse de telogos e

    "pessoas que buscam esse tipo de coisa." Nem sempre foi assim e muito

    importante perguntarmos como chegamos presente situao e o que pode ser

    feito em relao a isso.

    O debate pblico, hoje em dia, sobre valores morais normalmente estruturado

    em termos de uma busca por um consenso moral que no mais autoevidente;

    de fato, a questo da moralidade no evidente para muita gente. A busca por

    um consenso moral baseado numa natureza humana comum tem, por algum

    tempo j, substitudo a funo social da crena religiosa, que por muito foi tida

    como um fundamento indispensvel paz social. Em grande parte da histria, a

    unidade religiosa era vista como essencial unidade da sociedade e da cultura.

    Essa suposio foi abalada durante as guerras religiosas na Europa nos sculos

    XVI e XVII.

    Como consequncia das guerras religiosas, a concluso oposta foi tirada: A paz

    social requer que as crenas religiosas, e desacordos sobre crenas religiosas,

    sejam desconsideradas. Apesar de a religio institucionalizada ter continuado

    por um bom tempo na Europa, a religio no mais servia a seu antigo propsito.

    No lugar da religio, conceitos sobre a natureza humana se tornaramfundamentais em teorias sobre a sociedade e a cultura pblica.

    https://vitorgrando.wordpress.com/2016/01/08/como-pensar-sobre-o-secularismo-wolfhart-pannenberg/https://vitorgrando.wordpress.com/2016/01/08/como-pensar-sobre-o-secularismo-wolfhart-pannenberg/mailto:[email protected]:[email protected]://vitorgrando.wordpress.com/http://vitorgrando.wordpress.com/https://vitorgrando.files.wordpress.com/2016/01/pannenberg.jpghttp://vitorgrando.wordpress.com/mailto:[email protected]://vitorgrando.wordpress.com/2016/01/08/como-pensar-sobre-o-secularismo-wolfhart-pannenberg/
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    Entre os pensadores alemes, foi Wilhelm Dilthey quem, j no final do sculo

    XIX, delineou as maneiras pelas quais, comeando em meados do sculo XVII, a

    natureza humana substituiu a religio no pensamento Europeu. Sendo

    construdas sobre reformulaes da lei natural por Hugo Grotius e Thomas

    Hobbes; as teorias de contrato social, conceitos de moralidade natural e religionatural se tornaram populares e foram frequentemente usadas contra a religio

    e moralidade reveladas. Ainda assim, por algum tempo os conceitos de

    moralidade continuaram a usar a crena em Deus como origem das normas

    morais e como o juiz final do comportamento humano. A conexo necessria

    entre Deus e a moralidade foi preservada, por exemplo, no pensamento de

    Herbert de Cherbury e John Locke. Com Anthony Shaftesbury, entretanto, o

    sentimento moral foi tratado como autnomo. Mesmo no caso dele, entretanto,

    enquanto o sentimento moral era independente da religio, seu ideal deharmonia requeria, no final, harmonia com Deus e a ordem do universo.

    O sculo XVIII testemunhou abordagens diferentes sobre se h autonomia

    humana em se tratando de moral, ou se o sentimento moral depende da crena

    em Deus. David Hume argumentou a favor da autonomia do sentimento moral,

    enquanto Rousseau foi pelo outro lado. Enquanto Rousseau pensava que a

    conscincia era a fonte de nosso conhecimento sobre os deveres da lei natural,

    ele tambm pensava que a conscincia do homem est desajustada. No livro

    Emlio, de Rousseau, o Vigrio de Savoy argumenta que a voz da conscincia foi

    praticamente extinta na maioria de ns devido expressiva experincia de

    perverso humana e injustia. Uma purificao da conscincia requerida, e

    isso somente possvel se acreditarmos em Deus. Se Deus no existe, o vigrio

    afirma, ento somente os perversos esto agindo razoavelmente. No faz sentido

    ser bom. Assim, o sucesso do perverso nessa vida enfraqueceria o sentimento

    moral do bom. Isso pode ser prevenido apenas pela crena de que h uma

    recompensa final alm dessa vida na qual todos recebero o que lhes devido. A

    religio , portanto, de importncia pblica no Contrato Social de Rousseau,apesar de no ser religio revelada. Em vez disso, ele props uma "religio civil"

    com artigos suficientes de f para motivar o comportamento moral: crena em

    Deus como origem da ordem social e da lei, na divina providncia, e na

    recompensa futura.

    Apesar disso ser, s vezes, menosprezado, Immanuel Kant era um admirador de

    Rousseau e em sua Crtica da Razo Pura ele aderiu ideia de que a moral

    pressupe religio. Kant afirmou a autonomia da razo como a nica fonte denossa conscincia da lei moral, mas em sua viso a motivao da conduta moral

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    pressupe uma ordem moral na qual cada pessoa vai receber a medida de

    alegria ou tristeza apropriada a seu mrito. Para ser assim, deve haver uma

    harmonia entre a ordem moral e o curso da natureza e isso pode ser garantido

    apenas pelo criador que, em sua capacidade como razo mxima, tambm a

    fonte de nossa obrigao moral. Sem a existncia de Deus, a razo seriacompelida a concluir que sua intuio da lei moral pura fico. Essa viso

    deixa um problema para Kant, j que torna nosso sentido moral dependente da

    existncia de Deus, o que contradiz sua alegao da autonomia moral da razo.

    Em seus ltimos anos, portanto, Kant se sentiu forado a atenuar a importncia

    da crena religiosa no sentido de obrigao moral. Ele agora argumentava que a

    religio uma consequncia da conscincia moral, no mais uma pressuposio

    da obrigao moral. Nesse caso, a crena em Deus e na imortalidade s exerce

    um papel de reconciliadora entre as exigncias da lei moral e nosso desejonatural por felicidade. Isso, entretanto, parece extremamente com

    eudemonismo; a teoria segundo a qual o maior objetivo moral a felicidade, que

    era repugnante para Kant. No de se imaginar por que a filosofia da religio de

    Kant foi logo considerada a parte mais fraca de seu pensamento, enquanto seu

    princpio da autonomia da razo na filosofia moral foi tido como marco pico.

    II

    Na situao de hoje, h poucas chances de que o apelo autonomia da razo v

    trazer amplo consenso em relao s normas morais. Mesmo Kant no esperaria

    que isso acontecesse, visto que ele atribuiu religio a tarefa de introduzir os

    princpios morais da conduta social. Ele insistiu somente que a lei moral deveria

    ser o princpio hermenutico na transmisso da crena religiosa, com o

    resultado de que a filosofia moral tomaria a frente na formao do consenso

    moral da sociedade. Seja como kantianismo ou algum tipo de utilitarianismo, a

    filosofia moral no sculo XIV e comeo do sculo XX, de fato, substituiu a

    religio entre a elite intelectual e aqueles influenciados por ela. Tanto asfilosofias morais kantianas quanto utilitrias continuaram a afirmar a

    autoridade pblica das normas morais, como tambm seu poder racional de

    persuadir.

    A autoridade da filosofia moral recebeu um duro golpe, entretanto, da anlise

    psicolgica de Nietzsche sobre a genealogia dos valores morais. O que

    chamamos de valores morais, Nietzsche defendeu, esto na verdade a servio de

    propenses, inclinaes e desejos mais profundos, em especial o desejo de

    dominar os outros. A histria da cultura a histria de uma luta entre diferentes

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    conjuntos de normas morais. Como resultado, as normas morais so relativas, e

    a voz da conscincia , na verdade, a voz do contexto cultural. Essa maneira de

    pensar foi popularizada e reforada por Sigmund Freud e a psicanlise, onde

    encontramos a doutrina do superego como fonte da conscincia moral.

    A relativizao da antes absoluta autoridade das normas morais converge hoje

    com a nfase na liberdade individual como a autoridade final da conduo da

    vida. Na filosofia de John Locke, a liberdade enraizada no conceito de lei.

    Hoje, liberdade e lei so vistas como inimigas. A lei moral e civil so vistas como

    limites liberdade do indivduo. Isso evidente, por exemplo, na constituio

    do meu prprio pas, Alemanha. L a liberdade de autorrealizao limitada

    por trs fatores: As justificadas alegaes dos outros, a lei moral, e a ordem da

    lei positiva. Perceba o que aconteceu, entretanto, e no preciso dizer que issono aconteceu somente na Alemanha. Dos trs fatores limitantes, o conceito de

    lei moral no mais til j que no h acordo sobre seu contedo e autoridade

    coercitiva. Disso se segue que "as alegaes justificadas dos outros" no pode ser

    afirmada, j que no sabemos o que e o que no uma alegao justificada. O

    resultado final que os nicos limites ao exerccio da liberdade individual so as

    exigncias da lei positiva. Moralidade e lei so fundidas, da o que no ilegal

    no imoral. Se algo no proibido por lei, os outros so constrangidos a

    tolerar o que o indivduo considera necessrio ao exerccio de sua liberdade.

    Uma consequncia nada surpreendente disso que a lei positiva vista, s

    vezes, como uma limitao arbitrria da liberdade pessoal.

    A filosofia moral no oferece muita ajuda nessa situao, no desde 1903

    quando George Herbert Moore em Principia Ethica reduziu o julgamento moral

    a intuies que no podem nem ser demostradas nem refutadas por argumentos

    racionais. Se esse o caso, razovel ver as normas morais como preferncias

    guiadas pela emoo em vez de assunto reservados a argumentao racional.

    Essa a circunstncia intelectual e cultural brilhantemente exposta por AlasdairMacIntyre em seu livroAfter Virtue, no qual ele mostra como o intuitivismo e o

    emotivismo se fortaleceram com a desconstruo das normas morais

    empreendida por Nietzsche. Tendo dito isso tudo, entretanto, no preciso nos

    desesperar quanto ao futuro da conscincia e da argumentao moral. Elas no

    vo desaparecer. H vrias razes para isso, e a menor no a propenso

    humana a julgar a conduta alheia. No vamos parar de julgar, em privado ou em

    pblico. Isso se d simplesmente por nossa tendncia de sermos juzes. O

    julgamento moral intrnseco a nossa natureza como seres sociais. No temosescolha a no ser julgar como as pessoas deveriam se comportar em situaes

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    diferentes. As situaes exigem isso, quer queiramos julgar ou no. No

    importa, ao menos neste nvel, se as idias normativas pressupostas no nosso

    julgamento da conduta alheia so corretas ou justas. suficiente que tais idias

    normativas so empregadas e no d pra fugir disso.

    Reflexo sobre como julgamos pode levar a conceitos bsicos de lei natural.

    Nosso julgamento, por exemplo, evidencia uma demanda por alguma forma de

    mutualidade nas relaes sociais:pacta sunt servandaambos os lados devem

    manter suas promessas. Essa a regra de ouro da mutualidade: O que voc

    no quer que outros lhe faam, voc no deve fazer a eles. claro, a regra exige

    especificaes posteriores em relao a como as pessoas esto diferentemente

    situadas, mas de uma forma ou de outr o princpio da mutualidade est por trs

    de nosso julgamento de outros. Os seres humanos tm um interesse comum nosrequisitos bsicos da vida social e a mutualidade a base do bsico.

    Isso no sugere que as pessoas sempre agem de acordo com a regra de ouro da

    mutualidade. Longe disso. obviamente mais fcil julgar a conduta dos outros

    do que nossa prpria conduta. Em relao nossa prpria situao, somos

    incrivelmente tendenciosos a clamar por excees s regrais gerais. Isso no se

    d apenas por sermos criaturas egostas. tambm por que situaes

    individuais so, de fato, nicas e nem sempre se encaixam s regras gerais, e

    cada um de ns consegue mais facilmente perceber a singularidade de nossa

    prpria situao do que a singularidade da situao de uma outra pessoa. Isso

    no uma falha. natural. No devemos ficar surpresos pelo fato de uma

    pessoa poder ter uma forte conscincia das regrais gerais enquanto, ao mesmo

    tempo, tender a clamar excees para si mesma. A tentao, claro,

    superestimar a importncia das particularidades individuais. Nosso

    conhecimento das normas observadas pela maioria pode funcionar como

    condio para clamar por excees para ns mesmos. Afinal, nenhum de ns

    maioria.

    Precisamente neste ponto a dissoluo da autoridade absoluta das normas

    morais impregnam a conduta das vidas individuais. A crise da conscincia

    moral no que as pessoas no mais sabem sobre as condies e requisitos

    gerais da vida em sociedade. A crise vem ao aplicar tal conhecimento a casos

    individuais, e especialmente aos nossos prprios casos. Isso inclui a questo de

    como a formulao e observncia das normas gerais podem se tornar

    subservientes preferncia individual. Como resultado da falta de habilidade de

    concordar sobre a conexo entre as regras gerais e os casos individuais, no h

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    consenso quanto ideia de justia. A justia requer que cada pessoa ou grupo

    receba e contribua de acordo com seu posicionamento dentro de um sistema

    social. H um cacofonia de reivindicaes de justia, tipicamente articuladas em

    termos de direitos. Mas no h nenhum consenso sobre os requisitos da

    justia. Na ausncia desSe consenso, reivindicaes de justia parecem vazias ecomo moralismo autosserviente.

    III

    Reivindicaes discordantes sobre justia no so modernas. Sempre houve tais

    discordncias dentro de sociedades e entre sociedades, como o resultado da

    ruptura social e guerras entre naes. Na viso bblica, a condio de paz

    duradoura um apaziguamento das reivindicaes discordantes, um

    apaziguamento que pode vir somente de uma autoridade superior reconhecida

    por todos os partidos em conflito. Em Isaas e Miqueias ns temos uma viso da

    peregrinao de todas as naes ao Monte Sio, onde o Deus de Israel organiza

    suas reivindicaes discordantes e estabelece a paz eterna. Certamente a viso

    tem a ver com o fim dos dias. No presente, as naes do mundo no parecem

    inclinadas a ter suas reivindicaes julgadas pelo Deus de Israel. Alguns apelam

    ao Presidente dos Estados Unidos e uns poucos apelam ao Papa, mas mesmo

    essas naes que compartilham da herana crist no reconhecem a autoridade

    do Deus de Israel para resolver suas diferenas. Nem podemos esperar que as

    sociedades secularizadas do Ocidentes resolvam seus conflitos internos

    apelando autoridade de Deus.

    Pode ser o caso de que a crise moral das sociedades seculares modernas sejam

    atribudas ao fato de que Deus no mais reconhecido publicamente como fonte

    das normas morais. Enquanto esse reconhecimento estava intacto, a validade

    absoluta das normais morais e o senso individual de obrigao para com essas

    normas estavam assegurados. A experincia histrica demonstra que, parasociedades e para indivduos, a autonomia da razo no pode substituir

    satisfatoriamente a autoridade de Deus. Quanto a isso, Rousseau est

    totalmente correto. Como estava Dostoivski, quando seu Ivan Karamazov

    observou que, sem Deus, tudo permitido. Numa entrevista de 1970, o

    filsofo marxista Max Horkheimer declarou que, ao menos no Ocidentes, tudo

    que relacionado moralidade est ligado a razes teolgicas. Podemos querer

    modificar isso notando que a tradio da filosofia moral remonta Grcia

    clssica e, portanto, no tem todas suas razes na f judaico-crist no Deus de

    Israel. E modificar isso por notar ainda que uma disposio benevolncia, uma

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    benevolncia que se compraz na felicidade dos outros, parte da natureza

    humana. Todavia, o sendo de obrigao moral cultivado pelos ltimos quinze

    sculos no pode ser concebido parte da f no Deus da Bblia.

    A verdade que nas nossas sociedades ocidentais e secularizadas a autoridadepblica da religio, principalmente o cristianismo, no ser facilmente

    reconstruda. A perspectiva mais promissora por uma renovao de uma

    moralidade especificamente crist dentro da prpria comunidade crist. Aqui

    devemos dar ateno a uma maneira crist de viver que claramente distinta

    das formas convencionais da cultura que nos circunda. H importantes objees

    ao que parece ser um voltar-se para si que foca mais o raciocnio moral no

    desenvolvimento de uma tica distinta para a comunidade crist. A mais

    importante objeo que a moralidade, por sua prpria natureza, estrelacionada a tudo que universalmente humano. H algo inerentemente

    equivocado com uma tica sectria. O discurso moral na teologia crist, como na

    filosofia, atende natureza humana, os anseios e aspiraes de todos. No

    atende somente, nem em primeiro lugar, a preocupaes especiais dos cristos.

    Na histria da tica crist, a tica crist no somente para cristos.

    Esse interesse universal grande, evidente deste os tempos dos Pais da Igreja. A

    tica crist se dirige a todos os seres humanos como criaturas do nico Deus;

    todos esto envolvidos na queda de Ado, e todos so chamados reconciliao

    com Deus, libertao da escravido do pecado e da morte, e glorificao final na

    comunho com Deus, o Pai, Filho e o Esprito Santo. Essa compreenso da

    natureza e histria da raa humana explica os imperativos missionrios do

    cristianismo. Isso est enraizado na crena de que toda a humanidade e todo o

    universo so criados pelo Deus de Israel que se revelou definitivamente em

    Jesus Cristo. Verdade, esse entendimento no mais compartilhado por todos

    em nossas sociedades e, portanto, no caracteriza mais o esprito de nossa

    cultura pblica. Isso visto como um entendimento peculiar aos cristos. Mas,todavia, um entendimento cristo que abarca todos os seres humanos.

    A tica crist, ento, no est limitada aos cristos, mas est relacionada a

    situao moral e ao chamado de todos. Essa a conexo entre o particular e o

    universal no pensamento cristo e uma conexo que deve ser honrada hoje no

    pensamento moral cristo. No pode haver uma virada em direo

    comunidade crist que exclua as alegaes crists e as preocupaes crists

    sobre a condio universal e o destino dos seres humanos como tais. Como a

    Igreja Antiga integrou o catlogo clssico de virtudes doutrina crist de virtude

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    que culmina na trade paulina da f, esperana, e amor, ento a tica crist deve

    compreender tudo que verdadeiro no pensamento moral alm das fronteiras

    formais do prprio cristianismo. No podemos nos atrever a esquecer que Joo

    3.16 comea com Deus amou o mundo... A tica crist digna do nome que

    sustenta entende a si mesma como um relato moral do e para o mundo.

    J tratamos da primeira objeo a uma tica crist que trata especificamente da

    conduta da comunidade crist. Uma segunda objeo surge da peculiar histria

    do protestantismo. Enquanto o o ensinamento moral catlico-romano

    tradicionalmente foi articulado em tenso com a modernidade, o

    protestantismo entendeu a si como aliado ao desenvolvimento do mundo

    moderno. Isso notavelmente verdadeiro no protestantismo liberal, que

    frequentemente chamado de protestantismo cultural outrora dominante emmuito da Europa e Amrica do Norte. Esse protestantismo reluta a diferir dos

    valores preponderantes da cultura geral. De fato, ele se v com um interesse

    proprietrio nesses valores. Essa atitude pode ser remontada Reforma e,

    especialmente, doutrina de Lutero de que o cristo satisfaz sua vocao divina

    fazendo a obra a qual ele chamado a fazer na esfera secular. Isso contrastava

    com a viso catlico-romana de que h, por exemplo no monasticismo, vocaes

    especiais santidade. Alm do mais, e muito importante para nossa discusso

    sobre autoridade moral, o protestantismo tem crdito no desenvolvimento das

    ideias modernas de liberdade e direitos humanos. Como resultado, os

    protestantes viram a adaptao cultura moderna no como um processo de

    compromisso moral, mas como um processo de fidelidade a sua herana.

    Exemplos no faltam para ilustrar as maneiras pelas quais o protestantismo se

    identificou com a cultura geral, mesmo quando tentava transform-la. Essa

    identificao parece ser exposta quando a tica crist torna sua ateno

    comunidade da f em vez da cultura geral. Tal ateno comunidade suspeita

    de sectarianismo, especialmente quando a nfase est na separao crist doscaminhos do mundo, ou quando o mandamento de amar o prximo entendido

    como uma responsabilidade de amar os irmos e irms crists. Ainda assim

    devemos acolher a possibilidade de que uma virada sectria comunidade e

    longe de uma cultura geral que est alienada de sua herana crist, pode

    contribuir muito significantemente para a renovao moral dessa cultura. Na

    Igreja Antiga, os cristos viveram uma moralidade muito diferente da moral da

    cultura que os circundava e sua coragem de ser diferente se tornou um forte

    atrativo do cristianismo. As pessoas reconheceram que a tica crist era

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    superior e digna de imitao. No deveramos descartar a possibilidade disso

    acontecer novamente.

    Uma terceira objeo proposta de que a tica crist deveria se direcionar

    comunidade da f surge da ideia crist de amor. No requer o chamado ao amorincondicional que aceitemos pessoas assim como elas so? Isso parece

    incondicionalmente comprometido se discriminarmos entre os cristos e no-

    cristos ou fizermos exigncias das pessoas. Em nome do amor, as

    admoestaes apostlicas de no termos comunho com pessoas que vivem em

    violao ao ensinamento apostlico so facilmente descartadas. Mas o amor

    cristo tem um aspecto crtico. Esse amor no pode ser equiparado aceitao

    incondicional. O amor est pronto para aceitar qualquer um, mas tambm

    convoca todos a mudar. adltera de Joo 8, Jesus disse V, e no pequesmais. Quando, ao contarmos a histria de aceitao da mulher por Cristo,

    omitirmos a admoestao, quebramos a conexo entre o mandamento de amar

    ao prximo e o mandamento mais importante de amar a Deus. No se pode

    amar a Deus sem obedecer sua vontade e no ensinamento de Jesus o amor de

    Deus tanto a fonte como o critrio de nossa obrigao de amarmos os outros.

    As pessoas devem ser amadas luz do destino planejado por Deus para elas.

    No Antigo Testamento, o amor de Deus expresso em sua eleio de um povo

    para si mesmo e em sua perseverana nesse ato de eleio. Essa a fonte e o

    critrio de toda obrigao moral. Pois Deus quer que seu povo eleito floresa,

    requerido de todo membro da comunidade que observe as condies mnimas

    para o florescimento da comunidade. Isso explica a correspondncia entre a

    segunda tbua do Declogo e as verdades da lei natural que so essenciais vida

    comunitria. Nenhuma comunidade humana possvel onde pessoas se matam,

    roubam as posses dos outros, violam seus casamentos, desonram seus pais, ou

    agridem-se mutuamente por difamaes.

    O ensinamento moral de Jesus era tambm derivado diretamente da autoridade

    de Deus e de seu amor, no da autoridade do ensinamento moral e legal da

    tradio. Em Mateus 6, por exemplo, o amor do Criador por suas criaturas

    evidente no fato de que ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e manda chuva

    sobre justos e injustos. Assim devemos seguir o exemplo de Deus, amando no

    somente nossos amigos, mas tambm nossos inimigos. Diversas vezes, Jesus

    ensinou que, assim como o amor do Pai celeste expresso em seu perdo por

    ns, da mesma maneira estamos obrigados a perdoar os outros. Assim ele nos

    ensinou a orar, Perdoai as nossas ofensas assim como temos perdoado a quem

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    nos tem ofendido. O perdo de Deus antecede e a fonte e critrio do nosso

    perdo.

    Esse entendimento do amor a contribuio crist ao discurso tico e

    moralidade universal. O amor cristo enriquece e fortalece as inclinaesnaturais dos seres humanos benevolncia, que esto sempre carentes de

    fortalecimento. Essa a mais importante contribuio crist vida moral em

    geral, tambm sob as condies das sociedades seculares modernas. Mas os

    cristos tambm precisam apontar que a benevolncia e a alegria que vem com

    isso so evidncia de um anseio mais profundo do ser humano pelo bem. O bem

    pelo qual o ser humano anseia no est limitado ao bem moral. o bem

    entendido no sentido platnico, que significa o bem que fonte da felicidade. ,

    em resumo, um anseio por Deus, a fonte ltima e duradoura de felicidade. Nabenevolncia h um vislumbre desse bem ltimo, acompanhado pela

    experincia da felicidade. um sinal do Reino porvir.

    Nosso vislumbre do Reino, entretanto, no leva a indiferena s condies

    quotidianas da comunidade humana. Pelo contrrio, onde a benevolncia

    mtua domina, essas condies aparecem sem necessidade de alvoroo. Nas

    palavras de Paulo, Assim, se algum est em Cristo, nova criatura ; as coisas

    velhas se passaram, eis que tudo se fez novo. Se a tica crist atende ao viver

    dessa nova maneira uma nova maneira que a satisfao de nossa natureza

    desde o incio o mundo pode novamente nos notar. Ento, por ltimo, ns

    poderemos superar essa singularidade impressionante de nossa circunstncia

    moderna onde a questo da moralidade e da tica vista como uma questo de

    interesse pblico, enquanto a questo de Deus vista como uma questo

    esotrica de interesse de telogos e pessoas que se interessam por esse tipo de

    coisa. Ento, por ltimo, nossa cultura pode ser renovada ao entender que no

    precisamos escolher entre a natureza e a religio e que a liberdade, longe de ser

    limitada quando reguladas pela autoridade moral, no so possveis sem ela.