Quando Os Animais Vão Ao Médico

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Perspectiva de uma veterinária sobre o dia-a-dia numa clínica.

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  • Clia Palma

    HISTRIAS CARICATAS DE UMA VETERINRIA AO SERVIO DE CES, GATOS, HAMSTERS

    E AT RATAZANAS

    QUANDO OS ANIMAISVO AO MDICO

  • 7NDICE

    INTRODUO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    1. NA CIRURGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    2. NA CONSULTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

    3. SER VETERINRIO NO S TRATAR CES E GATOS . . . . . . . . . . . 99

    4. QUANDO OS ANIMAIS SE TORNAM MAIS DO QUE PACIENTES . . . . 115

    5. EXISTE UMA VIDA PARA ALM DA ATIVIDADE CLNICA . . . . . . . . . 147

    6. QUANDO OS CLIENTES TENTAM FALAR VETERINS. . . . . . . . . . . . 213

    AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237

  • 9INTRODUO

    Desde que me lembro que todos me conhecem pela minha paixo por animais.

    Com cinco anos, aps a morte do meu gato Tareco, fechei -me na minha concha durante uma semana, no emitindo palavra. Vestia ( revelia de todos) as roupas pretas da minha me, apanhava &ores e ia coloc -las no local onde o bichano estava enterrado. Ficava horas sentada ao lado do tmulo, muito quieta e introspetiva um verdadeiro culto fnebre, verdadeiramente sentido, porque ainda me lembro de estar a sofrer um verdadeiro desgosto.

    Fui sempre muito ligada a todos os animais e +cava muito triste quando os patos ou galinhas, para os quais tinha escolhido nomes, desapareciam misteriosamente, provavelmente para o prato. Este facto era -me sempre ocultado, por j todos saberem que o meu sofrimento era real e com certeza para evitar alguns traumas.

    Tomei a importante deciso de ser veterinria quando um dia, j mais crescida (com cerca de nove anos), o meu segundo gato Tareco apareceu em casa a salivar abundantemente e com convulses graves. Regressava dos seus passeios noturnos, provavelmente em busca de ratos, moradores nos quintais vizinhos. Uma vizinha caridosa, revoltada com a intruso no seu jardim, resolveu pr +m questo, envenenando um pedao suculento de carne. O meu gato foi a vtima e teve uma morte prolongada e dolorosa na minha impotente presena.

    Nesse dia e ainda no leito de morte do meu amigo laranja, disse para mim mesma que iria ser veterinria e que quando o conseguisse salvaria

  • 10

    todos os animais do mundo. A morte passaria a ser assunto do passado, assim que eu conseguisse alcanar o meu objetivo pro+ssional.

    Efetivamente vim a ser veterinria. No entanto, ao contrrio do que tinha imaginado, no deixaram de morrer animais e a pro+sso veio a revelar -se muito dura, no s fsica como emocionalmente. O facto de nem sempre conseguir salvar e at algumas vezes ter de dar uma ajudinha para abre-viar um doloroso +nal, foi o primeiro revs. A fadiga da compaixo e o bloqueio pro+ssional so as principais consequncias de uma atividade que requer uma grande capacidade psicolgica para lidar com a dor, situaes crticas e a presso inerente ao facto de termos vidas na nossa dependncia. No por acaso que nesta rea que ocorre uma das maiores taxas de suicdio relacionado com o stresse pro+ssional. Os conhecimentos mdicos e a facilidade de acesso a substncias letais, facilitam muito esta inteno.

    No meu caso pessoal, aprendi, com o tempo, a ter o distanciamento necessrio para fazer um trabalho o melhor possvel, sem comprometer a minha parte psquica ou o interesse do animal. Mas isto no acontece com todos e um nmero aprecivel de veterinrios segue caminhos alternativos, ou vertentes menos conhecidas da pro+sso.

    Mas nem tudo so espinhos e se verdade que existem alguns pontos negativos, o saldo completamente positivo e a pro+sso bastante grati+-cante. Devemos ter a capacidade de relevar os acontecimentos tristes, apren-der com eles (mas no +car presos a estas memrias) e valorizar os bons momentos. O ser humano repleto de surpresas e na sua imprevisibilidade reside um dos grandes desa+os. Apesar de estar especialmente vocacionada para lidar com animais e sempre ter fantasiado nessa exclusividade, estava redondamente enganada e com o meu semelhante que mais me relaciono. Mas no o lamento. Tenho aprendido muito. E, na verdade, acredito na raa humana. No pretendo aqui ridicularizar, mas valorizar toda esta riqueza e diversidade de atitudes. So exatamente os proprietrios, veterinrios e outros, os principais protagonistas destas crnicas.

    Ao +m de alguns anos, os episdios engraados (alguns hilariantes) j eram tantos, que resolvi escrev -los e partilh -los com os outros. Os epis-dios tristes ou menos agradveis esto bem guardados em bas lacrados, para nunca mais serem desenterrados e no me fazerem vacilar sobre a deciso tomada aos nove anos, perante o triste quadro da morte prematura do meu animal de estimao.

  • NA CIRURGIA

  • 13

    A ESTRELINHA

    J trabalhava como veterinria h uns seis anos, quando nasceu a minha primeira +lha, Mariana. Como todos os +lhos de mes que trabalham, a Mariana foi para o infantrio bastante cedo. O stio eleito chamava -se Estrelinha e era l que a minha beb +cava guarda das educadoras, enquanto os pais cumpriam os seus afazeres dirios. Foi sempre muito sau-dvel e nunca me haviam ligado para dar nenhuma espcie de informao ou aviso.

    Normalmente reservvamos, na clnica, o dia de quarta -feira, para fazer cirurgias no urgentes. Este dia costumava ser muito atarefado, pelo elevado nmero de intervenes efetuadas, com horrios rgidos a cumprir.

    Numa quarta -feira rotineira intervencionmos uma cadelinha de pequeno tamanho, acompanhada por um casal novo, muito ansioso. Ainda sem +lhos, concentraram no animal todas as suas atenes e receios e foi neste clima que a passaram para as minhas mos, na mais completa apreen-so. Na verdade haviam adotado a cadela j com cerca de seis anos, resga-tada de maus -tratos, a um proprietrio descuidado e amoral. Servia para procriar e as ninhadas paridas eram tantas, quantos os cios que tinha tido. Ainterveno consistia numa destartarizao com arrancamento de alguns dentes e mastectomia devido a ndulos mamrios suspeitos de carcinoma. Infelizmente o tipo de vida precrio a que havia estado sujeita durante os primeiros seis anos de vida, haviam condicionado uma pssima dentio e as lactaes frequentes o aparecimento de doena mamria.

  • 14

    E, curiosamente, a dita cadelinha tinha sido batizada com o nome de Estrelinha.

    Depois da interveno, decorrida sem problemas e algum tempo no recobro, os ansiosos proprietrios vieram buscar a cadelita, j acordada e bem de sade.

    Cerca de uma hora depois recebo uma chamada, no meu telemvel pessoal, de um nmero no identi+cado. A ligao no estava muito boa es ouvi do outro lado algo parecido com:

    Bl, bl, bl, da ESTRELINHA.A minha cabea fez logo o raciocnio completo: como que estes donos

    haviam conseguido o meu telefone privado??? Havia um telefone +xo e um mvel para clientes!!! Comecei logo a ferver e conhecendo j um pouco aqueles proprietrios saberia que moveriam montanhas para falarem comigo, se essa fosse a sua vontade, mesmo sem razo real. Imaginei logo que tinham conseguido o meu contacto de alguma forma ilcita.

    Foi j um pouco rispidamente que respondi: Sim!!!Do outro lado uma voz feminina explica um pouco a medo: s para avisar que a menina est com febre!Era normal aqueles proprietrios chamarem menina sua cadela Estre-

    linha. Com febre? duvido eu. Quanto tem? 38,5. Tem 38,5? Para eles isso no febre!!! (a temperatura corporal normal

    de um co varia entre os 38 e os 39). Ns consideramos que 38,5 febre! responde a voz do outro lado

    j um pouco enervada. Oua, essa temperatura normal! Contraponho eu bastante irri-

    tada. Ela s arrancou uns dentes e tirou um pequeno ndulo. No +que assustada que ela est bem

    Ouo do outro lado, a voz que me ligava, a sumir -se, resignadamente: Se calhar melhor ligar ao pai!Nesse momento o meu crebro iluminou -se e por ashes cintilantes

    percebi aquilo que acabara de fazer. Estavam a ligar do infantrio porque a minha prpria +lha, beb de seis meses e ainda sem um nico dente, estava febril.

    Tentei imediatamente justi+car -me, com a ntida noo de que as minhas explicaes estavam a cair no vazio. A voz do outro lado continuava a sumir -se e era j com di+culdade que a conseguia ouvir. Expliquei que

  • 15

    estava em cirurgias, que tinha ocorrido a engraada coincidncia de intervencionar uma cadelinha tambm ela com o nome Estrelinha e que havia pensado que o telefonema era dos ansiosos proprietrios.

    Rimo -nos as duas um pouco nervosamente mas percebi de imediato que a minha reputao como me estava irremediavelmente perdida. Havia deixado a impresso de que era um pouco louca e esta impresso no iria ser facilmente apagada.

    L tomei providncias para que os meus pais fossem buscar a menina, que de facto estava doente. Quando esta regressou escola, j de boa sade, voltei a justi+car a minha atitude. Todas rimos muito, mas a dita impresso +cou sempre a pairar como uma nuvem no relacionamento me/educadoras.

    S voltei a sentir -me confortvel quando a Mariana, simplesmente por razes logsticas, mudou de escola.

    E h que dizer, para remate +nal, que as duas, Mariana e Estrelinha, +caram bem e com sade de ferro, indiferentes ao divertido (at um pouco bizarro) episdio que as envolveu, causado pela coincidncia de nomes e momentos.

    ONDE EST O MATERIAL CIRRGICO?

    Durante uns bons anos, a clnica onde trabalho teve localizao e insta-laes diferentes das atuais. Mudmos para a nova clnica em 2005 e at l exercia numa moradia que havia sido adaptada a clnica veterinria. A sala de cirurgia era ampla, com duas marquesas cirrgicas, mas abria direta-mente para a sala de espera das consultas, por uma simples porta de correr.

    Os clientes tiravam uma senha de admisso, faziam a inscrio e aguar-davam a sua vez, pacientemente sentados em duas +las de cadeiras, frente a frente. Uma dessas +las estava virada diretamente para a porta da sala de cirurgia, localizada na parede oposta.

    Era um dia concorrido, com a sala de espera apinhada, pessoas em p, animais inquietos e um burburinho surdo, resultante de conversas em surdina e latidos de ces. Fazia calor e como no tnhamos, nessa altura, ar condicionado, as senhoras abanavam -se freneticamente com tudo o que tinham mo, desde pan&etos de medicamentos a revistas semanais.

    Dentro da sala de cirurgia tudo decorria como habitual. A enfermeira preparava para a interveno o animal do momento: colocava cateter intravenoso para administrao de &uidos ou qualquer outro frmaco

  • 16

    necessrio, rapava e higienizava a zona da inciso cirrgica, administrava antibiticos e analgsicos.

    Enquanto isso, eu e a colega que me auxiliava na interveno, preparvamo -nos: desinfeo das mos, bata e luvas descartveis, mscara e touca cirrgicas. No ramos indiferentes ao barulho velado que nos che-gava da sala de espera e ao calor intenso que fazia com que gotas de suor nos deslizassem pela cara, desembocando dentro da mscara cirrgica. Por tudo isto estvamos um pouco mais impacientes do que habitual.

    Depois de terminados os preparativos posicionmo -nos uma de cada lado da marquesa, +cando a colega de frente para a porta. Tudo a postos, cadela pronta e tapada com pano de campo, compressas e +os espalhadas por cima da rea estril, comemos a cirurgia pela inciso. Procurando o bisturi reparmos que nos havamos esquecido dos instrumentos cirrgicos dentro do pacote de esterilizao. Olhando em volta demos pela falta da enfermeira que nos auxiliava, constatando que estvamos sozinhas na sala. Jcom as luvas estreis caladas entreolhamo -nos, cada uma na expectativa da outra ter a soluo para este pequeno problema. Para abrir o pacote perderamos a esterilidade das luvas e estava a custar -nos desperdiar mate-rial. Para pedir enfermeira, esta parecia ter -se evaporado ou desaparecido para parte incerta.

    Na tentativa de aliviar um pouco o ambiente pesado, causado pelo barulho de fundo e pelo calor incomodativo, a minha parceira abre a boca num sorriso rasgado (escondido pela mscara) e brincando com o assunto inclina -se em direo barriga da cadela declarando:

    No h problema. Vai mesmo dentada!E ao mesmo tempo que se aproxima do animal vai emitindo barulhos

    guturais, semelhantes ao dilacerar de uma presa pelo predador.Nesse exato momento abre -se a porta e entra a enfermeira com as mos

    ocupadas por frascos de desinfetante. Surpreendida pelo espetculo com que se deparou, atrasa -se um pouco na entrada e a porta permanece aberta por mais tempo do que seria razovel.

    Apercebendo -se de que o burburinho vindo da sala de espera se havia intensi+cado, a colega levanta um pouco a cabea e depara -se com vrios rostos curiosos e estupefactos a observarem -na. A viagem de elevao do tronco at posio vertical feita em cmara lenta, de olhos +xos no exterior, apercebendo -se de que se tinha instalado um silncio sepulcral. Nem um latido se ouvia, nem uma nica voz humana se pronunciava. Parecia que algum havia carregado no boto da pausa de um qualquer controlo remoto de televiso e que fazamos todos parte de um programa

  • 17

    de qualidade duvidosa. O nico movimento era o das ondas de calor que se elevavam dos corpos dos clientes estticos e da colega a posicionar -se lentamente na vertical. Os pan&etos imobilizaram -se no ar, as bocas per-maneceram abertas e os olhos esbugalhados denunciando incredulidade total.

    Quando +nalmente a nossa enfermeira conseguiu reagir e fechou a porta, tudo voltou ao normal, o comando de pausa foi removido e a vida &uiu como sempre. Nesse momento, tomando conscincia do episdio surreal e imaginando o que estaria a passar pela cabea dos clientes, come-mos as duas a rir descontroladamente, agarradas barriga (l se foi a esterilidade das luvas). Rimos at s lgrimas. Quando nos conseguimos acalmar, continumos a interveno e o resto do dia decorreu sem inciden-tes. No entanto era impossvel deixar de rir sempre que nos lembrvamos do ocorrido. Ainda hoje, quando me lembro das caras dos clientes, no consigo deixar de sorrir e muitas vezes contamos este episdio a amigos e outros colegas.

    O ALMOO MERECE SER REGADO

    Todos os residentes da clnica praticam a medicina geral. Quando pre-cisamos de exames complementares, como ecogra+as e ecocardiogra+as ou consultas de especialidade, chamamos colegas espec+cos. Estes vm por marcao. Tambm cirurgias de especialidade, como por exemplo ortopedia, so feitas por marcao.

    Na consulta geral recebemos o Tinto, co de mdio porte, de cor escura, talvez com alguns re&exos arruivados. Havia sido atropelado e vinha bas-tante maltratado, em choque e com fratura exposta num dos membros posteriores. Apresentava tambm escoriaes vrias.

    As fraturas expostas so sempre uma urgncia cirrgica, devido ao perigo de infeo. O animal foi estabilizado com &uidos intravenosos, administrados os antibiticos e analgsicos e o colega da cirurgia ortopdica foi contactado para vir com alguma brevidade.

    Por volta da hora de almoo chegou, acompanhado do embrulho do fast food, uma vez que teve de sacri+car a refeio em prol do co acidentado.

    Enquanto a enfermeira preparava o animal, sedao, anestesia, limpeza de feridas e desinfeo para interveno, o colega aproveitou para fazer apressadamente a refeio, meio escondido na sala de tratamento, situada ao fundo da clnica.

  • 18

    Estando j o co pronto e no tendo ainda o cirurgio entrado na sala de cirurgia, a enfermeira vai procur -lo por toda a clnica. No o vendo, espreita para a rua, no fosse este estar no carro a alimentar -se.

    Como sempre, a sala de espera estava cheia, clientes em p, outros sen-tados, consultas a decorrer normalmente. Havia uma porta divisria entre a sala de espera e a rea reservada da clnica. Era para l dessa porta que se desenrolava toda a ao. Era l que se localizavam as salas de cirurgia, tratamentos e de radiogra+a. O acesso a clientes para l dessa porta era interdito, salvo com autorizao prvia. A sala de consultas tinha a possibi-lidade de abrir diretamente para a rea reservada ou para a sala de espera.

    No tendo tido xito na demanda de busca do ortopedista desaparecido, na rea exterior da clnica, a nossa enfermeira volta para dentro j um pouco ansiosa. Nesse momento abro eu a porta da sala de consulta para deixar sair os clientes j atendidos. Reparo na sua apreenso e percebendo porqu esclareo que o colega est recolhido na sala do fundo. Demasiado apressada para fazer as coisas de forma comedida, abre a porta divisria de par em par e grita l para dentro em plenos pulmes:

    Oh doutor. Despache l o almoo, que o tinto est na mesa!Faz -se silncio em toda a clnica e toda a gente vira a cabea em direo

    indiscreta enfermeira, com ar interrogativo. Os clientes que iam a sair do consultrio no conseguem evitar um sorriso maroto enquanto o colega surge com ar comprometido, reaparecido da sala dos fundos, ainda a mas-tigar o ltimo pedao de comida. Parecia muito envergonhado e era visvel um certo rubor nas suas faces afogueadas. No estava muito habituado euforia da nossa enfermeira e tendo dado de caras com inmeros rostos que o olhavam interrogativamente atravs da porta aberta, sentiu -se des-confortvel e como que apanhado em falta. Esta, aliviada por +nalmente o encontrar e no sendo pessoa para se atrapalhar facilmente, tendo por +m tomado conscincia do que todos deveriam estar a pensar, acrescenta:

    V l doutor. O Tinto espera -o!E comea a rir continuando o seu trabalho sem mais explicaes, cons-

    ciente dos olhares inquiridores com que todos a presenteavam.O Tinto teve uma recuperao complicada e demorada, mas voltou

    ao seu pleno. O colega demorou tambm bastante a sentir -se novamente confortvel nas suas visitas clnica. Era muito bom pro+ssional mas uma pessoa sria e introvertida. Este episdio abalou bastante a sua +loso+a de vida

  • 19

    J EST?

    Recebemos um animal para consulta pr -cirrgica. Era uma cadela, ainda nova, que os proprietrios queriam esterilizar. Tinham um co macho e no queriam ninhadas indesejadas.

    Foram feitos os exames necessrios que incluam anlises sanguneas e eletrocardiograma. Foi marcado o dia e hora para a interveno, foram dadas, por escrito e oralmente, todas as recomendaes necessrias. Entre-gamos sempre aos clientes um prospeto de preparao cirrgica onde relembramos o jejum necessrio, o dia e hora da interveno assim como pedimos que tragam uma mantinha de casa para acompanhar o animal no recobro. No verso tem as recomendaes ps -cirrgicas, onde indicamos o que esperar do animal nas primeiras 48 horas, quando deve voltar cl-nica para observao ou tirar pontos, que medicao deve fazer e durante quanto tempo.

    No dia estipulado, a senhora compareceu hora marcada.Fizemos tudo como habitualmente. Instalmos a proprietria e a cadela

    numa sala de pr -anestesia. Aqui so administrados os analgsicos e uma ligeira sedao, que preferimos que seja feita ainda na presena dos fami-liares humanos. S com o animal j relaxado que o transportamos para a sala de cirurgia. neste momento que os proprietrios se ausentam dei-xando o paciente ao nosso cuidado.

    Quando nos preparvamos para administrar os frmacos referidos, pedimos senhora para segurar a cabea da cadela, de forma a termos mais segurana na aplicao dos mesmos. Esta +ca de repente muito ansiosa, pede um momento para se preparar psicologicamente, agarra a cadela com toda a fora, fecha exageradamente os olhos, enquanto geme baixinho.

    Eu, atnita, fao a administrao dos injetveis, ao som das lamrias veladas da senhora. Assim que terminei, esta abre muito os olhos, com as faces completamente coradas do esforo e diz num murmrio arrastado:

    J est?! Posso levar a cadela daqui?O meu crebro disparou completamente perplexo, pensando se estaria

    a perceber realmente bem a senhora havia pensado que a cirurgia de ovariohisterectomia (ato cirrgico que consiste na remoo dos rgos reprodutores femininos, ovrios e tero), pretendida e marcada, se resumia administrao de um injetvel??? No era possvel! Em que parte que havamos falhado? Em que parte que no nos havamos feito entender? Pensava que seria do conhecimento de todos que a interveno implicava um ato cirrgico sob anestesia geral. At porque havamos falado que

  • 20

    seria necessrio vir tirar pontos ao +m de 10 dias. Onde que estava a confuso???

    Quando consegui acalmar as ideias, arranjei coragem para falar com a senhora e explicar aquilo que no havia +cado bem explcito: aquela era s a primeira fase de um procedimento. Seria necessria a interveno cirrgica de remoo de ovrios e tero e todo este procedimento seria bastante mais complexo do que uma simples injeo.

    Mais uma vez, ao contrrio do que esperava (esta senhora tinha o dom de me surpreender), a proprietria pareceu at um pouco aliviada por no ter de estar presente durante a interveno. Simplesmente se despediu e foi -se embora, como se nada tivesse acontecido e como se fosse tudo muito normal.

    E eu +quei a assistir despedida, completamente boquiaberta, seringas numa mo e aceno tmido na outra, a pensar que j de tudo me tinha acon-tecido e que nada mais me iria espantar. claro que estava completamente enganada e ainda muito me surpreendi ao longo da minha vida pro+ssional como veterinria.

    O PAR DE MEIAS DESAPARECIDO

    Recebemos uma cadela golden retrivier, com seis meses, tambm esta para uma ovariohisterectomia de rotina. Este tipo de interveno representa cerca de 80% das cirurgias por ns efetuadas, uma vez que os proprietrios querem evitar o incmodo do cio, das gravidezes indesejadas, as alteraes hormonais que mudam comportamentos e provocam lactaes inoportunas.

    Proprietria e animal foram comodamente instalados na sala de sedao, sendo esta aplicada cadela, enquanto era explicado ao pormenor todo o procedimento. Muitos animais vomitam cerca de cinco minutos aps a injeo. A cliente foi avisada de que isto poderia ocorrer, para no +car assustada com um efeito incmodo, mas normal, da aplicao do sedativo.

    Samos da sala, baixando a luz e explicando que a obscuridade favorecia o relaxamento. Da a pouco ouvimos sons guturais de vmito, vindos desta mesma sala, onde cadela e proprietria aguardavam o passo seguinte.

    Fomos em auxlio, munidos de uma boa dose de papel absorvente, para limpar a zona e evitar que o animal se sujasse, quando casse, relaxado.

    Para nosso espanto e completa estupefao da cliente, a cadela vomitou um par de meias completo, inteirinho e em bom estado de conservao, apesar de amarelecido e humedecido pelo viscoso e cido suco gstrico.

  • 21

    Atnita e gaguejando bastante, a senhora exclama: As voltas que eu dei procura destas pegas!!! Num momento esta-

    vam ali, debaixo de olho, e no momento seguinte haviam desaparecido. Revirei tudo do avesso, procurei nos stios mais improvveis nada ela comeu as pegas num momento de distrao e nem sequer a tinha visto por ali por esta no esperava. Achava que, de alguma forma, o cho se tinha aberto para as engolir

    Mistrio resolvido, as pegas foram diretamente para o lixo, a cadela foi operada e tudo voltou ao normal, deixando, simplesmente, mais um episdio engraado na nossa memria.

    ESTOU A SENTIR -ME FRAQUINHO

    No h dvida que tenho uma pro+sso para a qual preciso alguma preparao psicolgica, no s pelo desgaste emocional a que diariamente estou sujeita, mas tambm por aquilo que tenho de ter coragem para enfrentar.

    Sou obrigada a manter o sangue -frio nas situaes mais adversas. Tenho de ser imune a cheiros repugnantes, a situaes crticas de vida ou morte, a acidentados graves com impressionantes alteraes da anatomia, a verda-deiras feras selvagens dentro do corpo de doces animais domsticos.

    Conseguir trabalhar nestas condies implica treino, no sentido de con-seguir manter a calma e a abstrao su+ciente para ser e+caz ao mximo, reduzindo o tempo de reao. Mas, como compreensvel, quem no tra-balha nesta rea no tem este treino e mais que natural que no consiga assistir a intervenes que para mim parecem simples e banais.

    No entanto, para muitas pessoas, uma questo de honra mostrarem -se indiferentes a todos os procedimentos mdicos, sejam eles mais ou menos impressionantes. Caso contrrio sentir -se -o feridos no seu orgulho.

    Tambm verdade que h muitos clientes com verdadeiras fobias de coisas simples como, por exemplo, de agulhas ou sangue. Mas estes tm conscincia das suas limitaes e so os primeiros a querer abandonar a sala quando alguma destas situaes est prestes a veri+car -se. E como sabem que se sentem verdadeiramente mal, no hesitam em reconhecer a sua fobia quando nos preparamos para administrar uma simples vacina ou recolher uma amostra de sangue.

    Recebi um gato jovem para castrao. Vinha acompanhado do seu pro-prietrio, sexagenrio, aparentando boa preparao fsica, apesar da idade.

  • 22

    Possua tatuagens vrias, porte atltico e uma altura pouco comum nos homens portugueses. Era obrigado a baixar um pouco a cabea para passar na porta de correr, apesar de esta ter uma dimenso aceitvel paraqualquer outro cliente.

    Expliquei tudo o que considerava importante que tomasse conhecimento sobre a interveno e pedi -lhe para se retirar e voltar da a umas horas para vir buscar o gato, j recuperado. Mostrou -se contrafeito, declarando que queria estar presente durante todo o procedimento. Na sua opinio era o seu gato e tinha esse direito! Contrapus que, apesar de ser uma pequena cirurgia, sendo proprietrio e por isso incapaz de ser imparcial, seria melhor no assistir por poder +car sensibilizado.

    O cliente, j impaciente e ofendido declara, a ttulo de remate +nal: menina! Eu estive na guerra de frica, ainda a menina no tinha

    nascido! Vi os meus colegas e amigos aos bocados! Acha que me vou impressionar com uma interveno destas???

    Eu era ainda um pouco inexperiente, por essa altura, em relao a deixar proprietrios assistirem a procedimentos mais elaborados. E o caso envolvia um ex -combatente da guerra colonial. Podia at ser um dos muitos doentes psiquitricos, devido a stresse ps -traumtico. No queria ferir suscetibi-lidades. Sendo assim acedi e iniciei a interveno.

    Anestesiei o gato, posicionei -o de forma a me facilitar o trabalho, higie-nizei e +z a assepsia da zona. Equipei -me e preparei o material necessrio (que neste caso se resumia a luvas e compressas estreis e lmina de bisturi). Trabalhava em silncio, mas observava o cliente, pelo canto do olho. Estava um pouco descon+ada que me iria dar problemas.

    Devia ter con+ado no meu instinto. Mal iniciei a inciso vi um corpo gigantesco desmoronar -se, como uma marioneta, mesmo em frente ao meu nariz. No me deu tempo de fazer fosse o que fosse. No que tivesse conseguido evitar a queda de to grande volume. Fiquei a assistir, impo-tente, de bisturi na mo, enquanto o meu cliente se transformava numa rodilha, a ocupar todo o espao do consultrio. Durante a queda bateu com a cabea na esquina de um dos mveis e abriu uma enorme e hemor-rgica fenda mesmo na testa. Enquanto o sangue se espalhava no soalho, fui obrigada a abandonar o gato, em plena cirurgia, para ir tentar estancar a hemorragia. Difcil foi conseguir virar aquele corpo inerte, de forma a expor a ferida, que tinha +cado virada para baixo, uma vez que o homem caiu de cara no cho. Ao mesmo tempo que me ocupava dos primeiros--socorros, gritei para a enfermeira me ajudar. Esta entra no consultrio e +ca boquiaberta com o triste espetculo que testemunha: o gato adormecido

  • 23

    e meio intervencionado, em cima da marquesa, o proprietrio cado no cho, em posio muito pouco ortodoxa, de tronco para baixo e cabea para cima, numa amlgama de membros retorcidos, uma poa de sangue que se estendia por baixo da marquesa, numa extenso considervel. Um verdadeiro cenrio de guerra.

    Depois de dar instrues de socorro e de chamado o INEM, voltei cirurgia em si. Entretanto o cliente foi acordando, lentamente, sem com-preender o que tinha acontecido. Mais confuso +cou quando viu entrar uma maca e vrios bombeiros (sem dvida tinham de ser vrios), para o levarem para o hospital.

    No +nal da tarde, um familiar prximo veio buscar o gato e informou--nos que o proprietrio tinha +cado a passar a noite no hospital, para observao e tinha uma valente sutura de agrafos a coroar -lhe a testa.

    A sensibilidade a procedimentos mdicos no reservada ao sexo mas-culino, mas, segundo a minha prpria estatstica, pouco fundamentada, mais comum em pessoas de estatura acima da mdia. Talvez porque o sangue chegue com mais di+culdade a alturas mais elevadas, uma vez que o bombeamento requer muito mais esforo do corao. Talvez estas pessoas devessem permanecer, sobretudo, na posio horizontal. Assim evitavam algumas abordagens mais aparatosas aos soalhos.

    O PROBLEMA EST NA ESTATURA

    Para con+rmar esta minha teoria, relembro o caso da Nina. Esta yorkshire terrier, j velhota, estava indicada para cirurgia e havia vindo recolher uma amostra de sangue para analises pr -cirrgicas. Vinha acom-panhada do proprietrio, tambm ele idoso, e da sua neta, ainda jovem. Esta era possuidora, tal como o ex -combatente, de uma estatura fora do normal, sobretudo sendo do sexo feminino. A recolha foi especialmente difcil, porque as veias eram invisveis e a quantidade de sangue conse-guido em cada abordagem era mnima. No entanto a paciente portava -se estoicamente, suportando silenciosamente todas as abordagens venosas. Adifcil operao de recolha estava a ser intentada pela nossa enfermeira de servio, muito experiente mas de pequeno tamanho. Mal tinha terminado a primeira tentativa, ainda nos preparativos para a segunda, j a neta tinha desabado sobre ela, apoiando todo o peso inerte no seu corpo franzino. O espao onde as duas estavam estacionadas era exguo, uma vez que se resumia a um pequeno corredor apertado, entre uma das marquesas e a

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    bancada da torneira. Enquanto a nossa enfermeira teve capacidade fsica, ainda foi suportando o peso da cliente, vermelha de esforo, entalada entre a bancada, a marquesa e o corpo.

    Quando entrei na sala, deparei -me com a cena bizarra da pro+ssional quase dobrada ao meio, vergada pelo peso avultado, o idoso a tentar equilibrar -se sem bengala, com inteno de tentar ajudar, caindo, tambm ele, por cima da neta. E no curto espao de tempo entre a minha entrada e conseguir agarrar o velhote, j os trs estavam estatelados no cho, corpos por cima de corpos, com a enfermeira soterrada, a neta, cujo tamanho no era compatvel com o espao disponvel, em posio pouco +siolgica, dobrada e revirada, encaixada por baixo da marquesa e o idoso a tentar desesperadamente levantar -se, sem sucesso.

    Arrastando -se, num esforo grotesco, a enfermeira surge de debaixo da confuso de corpos, o idoso consegue levantar -se com a minha ajuda, mas a neta continua, solitria, deitada no cho, alheia a tudo, tendo escapado sem um nico arranho (esperava eu, que tambm sem fraturas, uma vez que os seus membros jaziam inanimados, em posies pouco convencionais). Acadelita, nica normal no meio desta cena hilariante, permanecia imvel, em cima da marquesa de exame, de garrote na pata, sem emitir queixume. Estava to espantada como eu, de tal forma que nem lutava contra a presso desconfortvel que este lhe fazia no membro e lhe arrepanhava os pelos.

    Demorou aquilo que me pareceu uma eternidade, at a neta acor-dar. Oav no me parecia muito preocupado com a situao e, exausto, sentou -se numa cadeira disponvel, espera que a neta voltasse a si. Ainda comentou:

    Esta minha neta s tamanho!E eu a pensar para os meus botes que possivelmente o tamanho era o

    principal responsvel por esta fragilidade.Para alm destes dois casos mais marcantes, muitos outros aconteceram,

    menos aparatosos, mas que no deixaram de ser memorveis. J estou relativamente treinada a identi+car casos crticos e mal me apercebo dos silncios inesperados, da palidez extrema e do cambalear subtil, aconselho imediatamente que o cliente se sente e que coloque a cabea numa posi-o mais baixa. Normalmente resulta e as cores comeam de imediato a a&orar as faces. Mas j aconteceu o cliente baixar a cabea em direo aos joelhos e, porque entretanto perdeu a conscincia, cair de testa no cho, de pernas abertas, corpo a passar entre os joelhos, enquanto permanece milagrosamente sentado, dobrado pela cintura. Outro, antes de se conse-guir sentar, as pernas atraioaram -no e vergaram como uma marioneta.

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    Perdeu a conscincia por milsimos de segundo e quando j ia a chegar ao cho, acordou de repente, ainda a tempo de, milagrosamente, se conseguir levantar, sem chegar a estatelar -se.

    Muitos no chegam a perder totalmente a conscincia, mas +cam com-pletamente perdidos por alguns instantes, lutando interiormente para que o desmaio no ocorra, tentando disfarar o que sentem e, para tal, enve-redando por um discurso, logicamente sem nexo e completamente des-contextualizado. Depois de voltarem posse de todas as suas faculdades, arranjam as justi+caes mais disparatadas, atribuindo culpas, sobretudo, ao jejum prolongado.

    ACHO QUE A MINHA CADELA EST GRVIDA!

    Mais um dia movimentado de consultas. Estava calor, dia de vero, sala de espera cheia, consultrios ocupados, imenso burburinho. A nossa rececionista avisa -me, durante uma das consultas, que havia acabado de chegar uma cliente, com a sua cadela boxer, em adiantado trabalho de parto. Pedi para a colocarem na sala dos fundos, para estar mais sossegada, pedi desculpa ao proprietrio que estava nesse momento a ser atendido e dirigi -me dita sala, para observar a cadela.

    O animal estava em verdadeiro sofrimento. Arfava, resfolegava, tentava sentar -se, mas levantava -se logo de seguida, andava de um lado para o outro, gemia e gania. O abdmen parecia rebentar a qualquer momento, de to dilatado que estava. Ainda introduzi, cuidadosamente, o dedo na vagina para ver se sentia algum co no canal de parto, que estivesse dist-cico, impedindo a progresso normal do parto. Nada. A cadela nem sequer apresentava qualquer tipo de dilatao do colo do crvix uterino. Tudo completamente estanque.

    Comecei a inquirir os donos sobre tempo de gestao da cadela, quando havia estado com o cio, tamanho do pai dos cachorros (a me era uma boxer), quando tinha comeado com contraes (na verdade desde que ali estava a ser por mim observada, ainda no tinha tido nenhuma).

    Os proprietrios estavam demasiado ansiosos para responderem com clareza. Falavam um por cima do outro, atabalhoada e apressadamente. E eu, sem conseguir compreender nada do que diziam, passeava os meus olhos de um para o outro, tentando descortinar o que tentavam transmitir, mais pela leitura dos lbios, que propriamente pelo que diziam. Consegui, a muito custo, perceber que nem sequer sabiam que a cadela estava grvida.