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  • Anlise Psicolgica (2013), 2 (XXXI): 197-211

    Quando o cliente pensa que no sente e sente o que no pensa: Alexitimia e

    psicoterapia

    Ana Nunes da Silva* / Antnio Branco Vasco* / Jeanne C. Watson**

    * Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa; ** OISE, Toronto University, Canad

    repetidamente referido na literatura que pacientes alexitmicos tm piores resultados em psicoterapia. Tendo como referncia que as caractersticas associadas ao conceito de alexitimia reflectem dfices ao nvel do processamento emocional, no s ao nvel da regulao emocional, mas tambm dos processos subjacentes, como a conscincia e a experienciao emocionais e a expresso e a diferenciao emocional, sugere-se que com pacientes com funcionamento alexitmico seja necessrio um maior enfoque teraputico ao nvel das tarefas emocionais. Neste trabalho salientamos as dificuldades que podem ocorrer ao nvel da aliana teraputica e discutem-se as implicaes para as tomadas de deciso clnica. Atravs de uma anlise crtica da literatura apontamos a importncia de ter em conta esta dimenso na conceptualizao de caso, no sentido de antecipar dificuldades ao nvel da relao teraputica e de se optar por objectivos mais focados nos processos subjacentes alexitimia do que nas suas consequncias.

    Palavras-chave: Alexitimia, Processos emocionais, Psicoterapia, Relao teraputica.

    As emoes so interminveis. Quanto mais as exprimimos, mais maneiras temos de as exprimir.

    (Edward Organ Forster)

    O conceito alexitimia tem sido amplamente estudado, sendo as caractersticas que compem o mesmo de extrema relevncia no processo teraputico. Ao longo deste artigo refletimos acerca das vivncias emocionais de pacientes com caractersticas alexitmicas e quais as suas implicaes para o processo teraputico. Pretende-se repensar a alexitimia em termos de processos psicolgicos especficos, de forma a melhorar a interveno junto de pacientes com este tipo de funcionamento.

    ALEXITIMIA

    Alexitimia etimologicamente significa sem palavras para os sentimentos (Sifneos, 1973). Deriva do Grego e do Latim Sem (a) palavras (lexus) para emoes (thymus). O termo foi inicialmente usado por Sifneos (1973) para designar um grupo de caractersticas cognitivas e afectivas tpicas de pacientes com patologia somtica. Apesar de ter sido um conceito inicialmente

    Este trabalho recebeu apoio da Fundao para a Cincia e Tecnologia SFRH/BD/65066/2009).

    A correspondncia relativa a este artigo dever ser enviada para: Ana Catarina Nunes da Silva, Faculdade de Psi-cologia da Universidade, Lisboa, Alameda da Universidade, 1649-013 Lisboa. E-mail: [email protected]

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  • ligado a este grupo de transtornos, tornou-se rapidamente evidente que a alexitimia estava presente num largo espectro de perturbaes, tais como: perturbaes alimentares (e.g., Bourke, Taylor, Parker, & Bagby, 1992; Merino, Godas, & Pombo, 2002; Petterson, 2004), abuso e dependncia de substncias (e.g., Gomez, Eizaguirre, & Aresti, 1997; Haviland, Hendryx, Shaw, & Henry 1994; Speranza et al., 2004; Uzun, 2003), perturbaes de ansiedade e depresso (e.g., Wise, Mann, & Hill, 1990; Zeitlan & McNally, 1993) e perturbao de ps-stress traumtico (e.g., Hyer, Woods, & Boudewyns, 1991; Krystal, 1979). A investigao sugere ainda uma relao entre alexitimia e perturbaes da personalidade, verificando-se uma associao com as perturbaes anti-sociais, narcsicas e borderline (Sifneos, 1973; Taylor, 2000; Zlotnick, Mattia, & Zimmerman, 2001).

    Taylor, Bagby e Parker (1997), numa tentativa de reduzir o nmero de concepes de alexitimia sugeridas na literatura, encontraram trs factores centrais que podem ser usados para a conceptualizar: (1) dificuldade em identificar sentimentos e em distingui-los das sensaes corporais da emoo; (2) dificuldade em comunicar sentimentos e; (3) pensamento orientado para o exterior. Estes factores resultam da anlise efectuada aquando da elaborao de um instrumento que permitisse avaliar o constructo a escala de alexitimia de Toronto. Os autores propem que as caractersticas associadas ao conceito de alexitimia reflectem dfices ao nvel do processamento cognitivo e da regulao emocional. Esta ideia tem por base que as respostas emocionais e a regulao emocional envolvem trs sistemas interligados: neurofisiolgico (sistema nervoso autnomo e activao neuroendcrina), expressivo motor (expresso facial, tom de voz) e cognitivo-experiencial (conscincia subjectiva e reportrio verbal sobre estados emocionais) (Dodge & Garber, 1991). Taylor (1994) criticou a posio que afirmava que os indivduos com funcionamento alexitmico no tinham qualquer experincia ou conscincia emocional, salientando o carcter biolgico e inato das emoes. Inclusivamente defende a re-conceptualizao tanto da alexitimia, como de algumas perturbaes associadas s dificuldades de regulao emocional, como perturbaes da regulao do afecto. Sugerindo ainda que as intervenes devam ser mais focadas nas dificuldades de regulao do que nas suas consequncias (Taylor et al., 1997).

    J em 1984, Taylor alertara para que este constructo fosse visto como uma condio comorbida e no como um trao das perturbaes a que tem sido associada. Mais recentemente Ogrodniczuk, Piper e Joyce (2005) referem a importncia de pensar na alexitimia no como uma perturbao psiquitrica, mas como uma caracterstica psicolgica do pensamento, sentimentos e processos relacionados. Assim, estamos perante uma forma mais compreensiva de pensar a alexitimia que permite com maior facilidade a sua gesto ao nvel do processo teraputico e das tomadas de deciso clnica. Nesta linha de pensamento sugerimos que se passe a usar a expresso funcionamento alexitmico em detrimento de alexitimia, uma vez que amplia a noo de processo. Para uma melhor compreenso do fenmeno passamos a uma breve reflexo sobre a etiologia do funcionamento alexitmico.

    ETIOLOGIA DA ALEXITIMIA

    Vrias perspectivas tm sido apresentadas na tentativa de explicar a etiologia da alexitimia: neurofisiolgica (Bermond, Vorst, & Moormann, 2006), aprendizagem social (Borens, Grosse-Schultze, Jaensch, & Kortemme, 1977), desenvolvimentista (Nemiah, 1977), psicodinmica (Krystal, 1979) e at gentica (Heiberg & Heiberg, 1977). O debate tem includo questes relativas ao facto de a alexitimia ser um trao estvel de personalidade, um estado flutuante, uma defesa do ego, ou um artefacto cultural (Bach, de Zwaan, Ackard, Nutsinger, & Mitchell, 1994; Parker, Taylor, & Bagby, 1998; Wise, Mann, & Epstein, 1991). Apesar de no haver um consenso quanto sua etiologia, vrios factores parecem ser relevantes para esta resposta, quer como factores

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  • etiolgicos, quer como factores que afectam a vivncia da alexitimia, como por exemplo factores sociodemogrficos (Parker, Keefer, Taylor, & Bagby, 2008; Taylor, 1984).

    Vrios investigadores apontam a hiptese de que a alexitimia tem uma base desenvolvimentista em estilos de vinculao e socializao desadequados e inseguros (Lane & Schwartz, 1987; Taylor et al., 1997). Tendo em conta a importncia dada pelas teorias da vinculao regulao do afecto, vrios estudos tm examinado esta relao (e.g., Scheidt et al., 1999; Troisi, DArgenio, Peracchio, & Petti, 2001). Por exemplo, Troisi et al. (2001) observaram, numa amostra clnica usando a Escala de Alexitimia de Toronto (TAS-20), que pacientes com estilo de vinculao preocupado ou evitante eram os que apresentavam uma maior prevalncia de alexitimia, 65% e 73% respectivamente. Dos participantes com um estilo desligado, menos de metade (36%) apresentavam valores para a presena de alexitimia. Os autores apontam que estes dados sugerem um papel importante de factores precoces do desenvolvimento na etiologia da alexitimia. Tambm o estudo de Pedrosa, Scheidt, Hoeger e Nickel (2008) parece suportar esta hiptese, onde observaram numa amostra de pacientes com patologia somatoforme, uma elevada prevalncia de vinculao insegura (88.2%) dos quais 22% de sujeitos apresentaram valores para a TAS considerados clinicamente significativos. As anlises de regresso demonstraram a relao entre os estilos de vinculao inseguros e traos mais marcados de alexitimia. Estudos mais recentes tm tentado compreender o papel destas duas variveis no desenvolvimento de determinadas perturbaes, como a Perturbao Borderline de Personalidade, onde a alexitimia parece apresentar um papel de mediao entre os estilos de vinculao preocupado e evitante e o desenvolvimento desse tipo de personalidade (e.g., Deborde et al., 2012).

    As relaes entre estilo de vinculao e funcionamento emocional na vida adulta so ainda ilustradas pelo facto de as crianas a quem as necessidades e expresso emocional so validadas tenderem a transformar-se em adultos mais calmos e emocionalmente inteligentes (Gottman, 1997; Gottman, Katz, & Hooven, 1997). Vrios tericos da emoo (e.g., Fridja, 2005; Greenberg, 2002) referem que existem emoes inatas que so biologicamente adaptativas e contribuem para a regulao das necessidades bsicas para o funcionamento humano e que cada uma dessas emoes est relacionada com uma tendncia de aco distinta ou com uma imediaticidade psicolgica para agir de modo a promover a sobrevivncia e o bem-estar psicolgico. Por exemplo, relativamente auto-proteco, a aco de fuga surge porque temos medo. Assim, indivduos com experincias precoces que no permitam ressonncia emocional estaro mais vulnerveis a desenvolver psicopatologia.

    Esta teorizao com base nas relaes precoces parece, contudo, apresentar limitaes ao no dar resposta perspectiva de uma alexitimia secundria. Freyberger (1977) sugeriu a distino entre alexitimia primria e secundria, ao constatar que as caractersticas alexitmicas podem ocorrer no adulto aps, por exemplo, uma situao traumtica ou como defesa relativamente ao aparecimento de doenas cuja etiologia principal a orgnica. Seria a