Quando Deus Nos Toca

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Quem tem fé tem tudo As coisas não estavam fáceis, havia uma dor, uma aflição no coração daquele filho de fé. Por que com ele? Ele que sempre fora uma pessoa de bom coração, ajudava quem precisava e permitia sua ajuda, sabendo que não se pode ajudar aqueles que não querem. Mas a perda de seus familiares mais queridos estava mexendo demais com sua fé. Uma morte a cada três meses, sem razão, sem aviso prévio e o porquê disso? Mesmo confuso não perdeu, totalmente, a sua fé. Foi ao terreiro em busca de respostas, para louvar seus guias e pedir forças para resistir, para vencer mais esta. Chegando lá, sentiu, logo na entrada, uma aproximação diferente, talvez um guia, talvez um obsessor que percebendo sua vibração baixa foi puxado e acoplado à sua aura. Mas, ao certo, Mário não sabia o que era aquele calafrio percorrendo sua espinha dorsal, fazendo-o tremer. A sessão tem início com a defumação da casa, dos filhos de corrente e dos consulentes. Hoje é a noite dos pretos-velhos, 13 de maio, dia da liberdade e comemoração, rememoração desse dia. Os guias começam a chegar, um a um, ao ponto cantado com fé: “Embala eu Babá, Embala eu, Salve todos o Pretos-velhos, Salve todos os Orixás, Saravá Povo de Minas, Pretos-velhos no Congá”

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Um conto de cunho religioso escrito por mim. Dênis Moura de Quadros inspirado pelos espíritos trabalhadores da Seara de Umbanda, os nossos amados Pretos-Velhos.

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Page 1: Quando Deus Nos Toca

Quem tem fé tem tudo

As coisas não estavam fáceis, havia uma dor, uma aflição no coração daquele

filho de fé. Por que com ele? Ele que sempre fora uma pessoa de bom coração,

ajudava quem precisava e permitia sua ajuda, sabendo que não se pode ajudar

aqueles que não querem.

Mas a perda de seus familiares mais queridos estava mexendo demais com

sua fé. Uma morte a cada três meses, sem razão, sem aviso prévio e o porquê

disso?

Mesmo confuso não perdeu, totalmente, a sua fé. Foi ao terreiro em busca de

respostas, para louvar seus guias e pedir forças para resistir, para vencer mais esta.

Chegando lá, sentiu, logo na entrada, uma aproximação diferente, talvez um

guia, talvez um obsessor que percebendo sua vibração baixa foi puxado e acoplado

à sua aura. Mas, ao certo, Mário não sabia o que era aquele calafrio percorrendo

sua espinha dorsal, fazendo-o tremer.

A sessão tem início com a defumação da casa, dos filhos de corrente e dos

consulentes. Hoje é a noite dos pretos-velhos, 13 de maio, dia da liberdade e

comemoração, rememoração desse dia. Os guias começam a chegar, um a um, ao

ponto cantado com fé:

“Embala eu Babá,

Embala eu,

Salve todos o Pretos-velhos,

Salve todos os Orixás,

Saravá Povo de Minas,

Pretos-velhos no Congá”

A sessão festiva segue bonita, com risos, histórias contadas pelos nossos

vovôs e vovós, banhos e conselhos de todos os tipos a serem feitos. Os consulentes

foram sendo atendidos com amor, carinho e atenção necessárias aos filhos nesse

conturbado mundo, onde ninguém escuta ninguém.

Mário foi chegando aos poucos, quem lhe atenderá é Pai Cipriano das Almas,

um preto-velho muito mandingueiro que o chama com força.

-Venha filho. Se ajoelha aqui perto do negro velho que este negro tem muita

coisa pra dizer pra zuncê!

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Mário se alegra, afinal ainda tem fé nessa luz que guiou sua alma até ali e

que não lhe deixou cair, desistir, mas o levantou. Mário se ajoelha humildemente e

cumprimenta o guia de luz que estava à sua frente.

Pai Cipriano pita seu cachimbo e antes de recomeçar a falar limpa a aura tão

escura, cheia de medos, dores e anseios do consulente e sua frente, a arruda e o

guiné estão ao seu lado no auxílio dos trabalhos da noite. Pai Cipriano então fala.

- Meu filho, sei como está sendo difícil sua jornada aqui na terra. Sei que você

tem muitas dúvidas, dores que abalam sua fé. A fé é o que anima sua alma e que

não lhe deixa esmorecer e zuncê tá cansado, tá triste por ter fé e não conseguir ir

pra frente, ter fé e ter, como zuncês diz, perdido pessoas que são importantes. Filho

meu, as pessoas que desencarnam não estão perdidas, mas em outro lugar, a alma

é eterna e todas essas pessoas estão na Aruanda olhando por zuncê, mandando luz

e pedindo ao Grande Zambi pra te ajudar.

Com os olhos cheios de lágrimas, Mário escuta as palavras daquele guia,

trabalhando em um médium que nem sequer sabe quem é Mário, sua vida, suas

dores e angústias. Pai Cipriano se levante e leva Mário junto que vai com o guia

mesmo sem entender. Ambos vão à frente do congá, frente às imagens que ali

estão. Pai Cipriano então fala:

-Zuncê veio buscar respostas e o que levará, contudo elas não estão aqui

nessa casa de caridade, nem mesmo com esse negro velho que trabalha na luz pela

luz. As respostas meu filho estão dentro de seu coração, na confiança em seus

guias e em seu negro velho que nas piores horas lhe carregou nos ombros.

Pai Cipriano das Almas então entoa um canto melodioso que tocará o

coração de Mário com muita força.

“As lágrimas de um preto-velho

Correm dos olhos, mas vem do coração

Cada lágrima é uma dor de um filho seu

E o seu pranto é o pranto de emoção

Os pretos-velhos já foram moço e já sofreram

Na fé de Zambi, libertaram-se da escravidão

Mas que beleza nossa Umbanda iluminada

Sem preconceito na Seara do Senhor

A nossa banda cada vez fica mais linda

Com os conselhos da vovó e do vovô”

Page 3: Quando Deus Nos Toca

Mário entra em transe de incorporação, seu corpo treme muito e ele sente a

aproximação calma e serena de seu guia. Suas costas se envergam para frente e

seu corpo fica leve, perdendo alguns dos sentidos, mas vendo e ouvindo tudo o que

está acontecendo. O cambono alcança uma bengala, um chapéu e um toco ao lado

de Pai Cipriano que entoa outro ponto, agora com mais alegria pela chegada

daquele que veio para somar, Pai Benedito de Aruanda.

“Quem é aquele velhino

Que vem nos caminhos

Cansado e devagar

Com seu cachimbo na boa

Fumando fumaça, lembrando o luar

Mas ele é do Cativeiro,

Ele é Benedito

Ele é feiticeiro”

Ao final da sessão, os médiuns já desincorporaram e apenas o vô Cipriano,

como é chamado, está em terra. Mário não sente mais aquela aflição, suas dúvidas

foram sanadas e agora ele compreende o mistério da vida e da morte, o desencarne

e outras questões. Mas a incorporação de seu guia ainda mexe com ele. Por que

hoje? Cipriano então olha Mário como se estivesse lendo seus pensamentos:

-Meu filho, zuncê recebeu seu guia hoje porque era pra ser. Zuncê está limpo,

com o campo áurico limpo e com a mente desnuviada e o melhor, com a fé

renovada.

Mário responde ao Pai Cipriano com gratidão:

- Obrigado Pai Cipriano por me ajudar. É verdade estou bem melhor.

-Zuncê tem que agradecer seu negro velho. Espero meu filho que a fé nunca

lhe falte. Diz um ponto assim: “Quem tem fé tem tudo e quem não tem fé não tem

nada”. Vá em paz e que o Grande Zambi lhe abençoe.

Mário sempre conta essa história a todos que chegam em seu terreiro. Sim,

ele até hoje está na Umbanda, recebendo irmãos que necessitam e que vão ao

terreiro por Amor e pela Dor e Pai Benedito sempre tem um palavra de conforto, de

paz, amor e fé.