Quadro Programático da CRB SETEMBRO 2010-2013 · 2020-02-06 · SETEMBRO 2011 • XLVI • n ......

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Quadro Programático da CRB 2010-2013 HORIZONTE Em meio aos grandes desafios do mundo complexo e plural, da realidade da Igreja e da Vida Religiosa Consagrada, a Palavra de Deus nos impulsiona a avançar com os “olhos fixos em Jesus” (Hb 12,1-3), movidos/as pelo Espírito que o consagrou e enviou a anunciar a Boa-Nova (Lc 4,18). Provocados/as por uma nuvem de testemunhas (Hb 12,1), reafirmamos nossa identidade místico-profética e reaviva- mos a paixão pelo Reino, defendendo e promovendo a vida, assu- mindo a causa dos empobrecidos e construindo relações humanas, fraternas e solidárias. PRIORIDADES 1. Redescobrir o sentido profundo da VRC, revitalizando a paixão por Jesus e seu Reino mediante a escuta da Palavra de Deus, a oração encarnada, a contemplação sapiencial da realidade, o compromisso discipular-missionário, a convivência como ir- mãos e irmãs e a comunhão com toda a criação. 2. Avivar a dimensão profético-missionária da VRC, atuando nas novas periferias e fronteiras, intensificando a opção pelos em- pobrecidos, e fortalecendo o compromisso com as grandes cau- sas sociais, econômicas, políticas e ambientais. 3. Qualificar as relações na VRC e em seu espaço de inserção, em diálogo com as diferenças pessoais, culturais, étnicas, religio- sas, geracionais e de gênero. 4. Ampliar o diálogo com as novas gerações em seus anseios e inquietações, e buscar novas metodologias para a animação vo- cacional. 5. Aprofundar o conhecimento da realidade juvenil e intensificar a presença e ação junto às juventudes. 6. Buscar maior leveza e agilidade institucional da VRC e ampliar as fronteiras congregacionais por meio da intercongregaciona- lidade, da partilha do carisma com outras pessoas e grupos de redes e parcerias. CONVERGÊNCIA SETEMBRO 2011 • XLVI • 444 Luzes e sombras da VRC nos dias de hoje Experiência de Deus que gera Projeto de Vida Um sacerdócio diferente Caminhos de espiritualidade bíblica na VRC

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Quadro Programático da CRB2010-2013

HORIZONTEEm meio aos grandes desafios do mundo complexo e plural, da

realidade da Igreja e da Vida Religiosa Consagrada, a Palavra de Deus nos impulsiona a avançar com os “olhos fixos em Jesus” (Hb 12,1-3), movidos/as pelo Espírito que o consagrou e enviou a anunciar a Boa-Nova (Lc 4,18). Provocados/as por uma nuvem de testemunhas (Hb 12,1), reafirmamos nossa identidade místico-profética e reaviva-mos a paixão pelo Reino, defendendo e promovendo a vida, assu-mindo a causa dos empobrecidos e construindo relações humanas, fraternas e solidárias.

PRIORIDADES1. Redescobrir o sentido profundo da VRC, revitalizando a paixão

por Jesus e seu Reino mediante a escuta da Palavra de Deus, a oração encarnada, a contemplação sapiencial da realidade, o compromisso discipular-missionário, a convivência como ir-mãos e irmãs e a comunhão com toda a criação.

2. Avivar a dimensão profético-missionária da VRC, atuando nas novas periferias e fronteiras, intensificando a opção pelos em-pobrecidos, e fortalecendo o compromisso com as grandes cau-sas sociais, econômicas, políticas e ambientais.

3. Qualificar as relações na VRC e em seu espaço de inserção, em diálogo com as diferenças pessoais, culturais, étnicas, religio-sas, geracionais e de gênero.

4. Ampliar o diálogo com as novas gerações em seus anseios e inquietações, e buscar novas metodologias para a animação vo-cacional.

5. Aprofundar o conhecimento da realidade juvenil e intensificar a presença e ação junto às juventudes.

6. Buscar maior leveza e agilidade institucional da VRC e ampliar as fronteiras congregacionais por meio da intercongregaciona-lidade, da partilha do carisma com outras pessoas e grupos de redes e parcerias. CONVE

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XLV

I • nº 4

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■ Luzes e sombras da VRC nos dias de hoje

■ Experiência de Deus que gera Projeto de Vida

■Um sacerdócio diferente

■Caminhos de espiritualidade bíblica na VRC

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Sumário

EditorialLer, reler, provocar, motivar ....................................................................................... 385

InformesCaminhos de Espiritualidade Bíblica na Vida Religiosa ConsagradaZenilda luZia Petry, ifsj .......................................................................................................389

Na escola dos povos da floresta e das águaselisa Maria Bisol, sts ...........................................................................................................398

Arte & CulturaNós e a TVPlutarco alMeida, sj ............................................................................................................409

ArtigosLuzes e sombras da Vida Religiosa Consagrada nos dias de hojecarlos Palácio, sj ................................................................................................................416

Experiência de Deus que gera Projeto de VidaruBens nunes da Mota, ofMcaP ...........................................................................................442

Um sacerdócio diferentejosé aBel de sousa, sj ............................................................................................................455

DIRETORA RESPONSÁVELIr. Márian Ambrosio, dp

REDATOR RESPONSÁVELPe. Plutarco Almeida, sjMTb 2122

CONSELHO EDITORIAL:Ir. Helena Teresinha Rech, sstIr. Vera Ivanise Bombonatto, fspPe. Cleto Caliman, sdbPe. Jaldemir Vitório, sjPe. Roberto Duarte Rosalino, cmf

DIREÇÃO, REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃOSDS, Bloco H, n. 26, sala 507Ed. Venâncio II70393-900 - Brasília - DFTels.: (61) 3226-5540Fax: (61) 3225-3409E-mail: [email protected] na Divisão de Censura e Diversões Públicas do PDF sob o n. P. 209/73

Projeto gráfico:Manuel Rebelato Miramontes

Revisão:Cirano Dias Pelin e Sandra Sinzato

Impressão:Gráfica de Paulinas Editora

CRB

CONVERGÊNCIARevista mensal da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRBISSN 0010-8162

Os artigos assinados são de responsabilidade pessoal de seus autores e não refletem necessariamente o pensamento da CRB como tal.

Assinatura anual para 2011: Brasil: R$ 84,00Exterior: US$ 84,00 ou correspondente em R$ (reais)

Números avulsos: R$ 8,40 ou US$ 8,40

INFORMAÇÕES E INSCRIÇÕES NO SITE:

crbnacional.org.br

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EDIT

ORI

AL

Ler, reler, provocar, motivar

Irmãs e irmãos,

Gente amada que se esforça no dia a dia para viver com autenticidade a sua vocação, a fé na vida e a vida na fé,

Shalom!

Paz e Bem!

Axé!

A Convergência de setembro traz artigos e informes que certamente vão mexer com muita gente. Aliás, esta é, talvez, a missão mais importante da nossa revista: suscitar o debate franco, livre e democrático das ideias, atiçar pensamentos e corações no sentido de renovar, dinamizar, animar a VRC através, é claro, de um maior compromisso com o Evange-lho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em sintonia com as prio-ridades da CRB Nacional para o triênio 2010-2013, o nosso objetivo é o de humildemente ajudar nossas leitoras e leitores a “redescobrir o sentido profundo da VRC, revitalizando a paixão por Jesus e seu Reino” (Prioridades, n. 1).

Desejamos, portanto, que as nossas comunidades, ao rece-berem a revista, não a deixem mofando no canto da sala ou tomando poeira nas estantes. É preciso ler e reler, provocar, motivar os membros da comunidade para que discutam os seus conteúdos e por eles se deixem também questionar, se for o caso. Aí, então, a Convergência estará cumprindo o seu papel realmente! Fora disso a revista da CRB será apenas mais uma revista que se compra e não se lê, ou se lê e dela nada ou pouca coisa se aproveita.

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Ler, reler, provocar, motivar

A primeira provocação pode surgir da leitura atenta do artigo do Pe. Dr. Carlos Palácio, um dos mais respeitáveis teólogos jesuítas do Brasil e atual vice-presidente da CRB Nacional. No seu texto ele faz uma análise da VRC com o auxílio da metáfora “luzes e sombras”, a qual nos ajuda a entender melhor todo o processo histórico e socioeclesial vivido desde o Concílio Vaticano II até os dias de hoje. Para o Pe. Palácio,

a profunda transformação da VRC a partir do Concílio Va-

ticano II começou com a firme decisão de “voltar às fontes”

em resposta ao convite do Concílio: mergulhar na raiz de cada

carisma, para re-significar a identidade da VR e a sua relevância

no mundo atual. Tal decisão exigia um “êxodo”: era preciso

abandonar o modelo tradicional de VR que dominava até o

Concílio.

E finaliza o nosso vice-presidente nacional dizendo que “este momento histórico pode representar um verdadeiro kairós para a VR apostólica, a graça ‘pascal’ de ressurgir para uma vida recriada. Mas para isso tem de aprender a ler os ‘sinais dos tempos’”.

Duas das prioridades da CRB (2010-2013) contemplam as juventudes (n. 4 e 5) e por isso abrimos espaço para uma nova matéria do Frei Rubens Nunes da Mota, ofmcap, as-sessor de Juventudes da CRB Nacional. O nosso querido Irmão Rubens tem percorrido as Regionais da CRB por todo o País a fim de animar o trabalho com as juventu-des em consonância com a Pastoral Vocacional também. “Experiência de Deus que gera Projeto de Vida” é o título do seu artigo, que, além de uma proposta de reflexão, traz também indicações práticas de como iniciar o processo de elaboração de um Projeto de Vida a partir de quatro tópicos em formato de passos que remetem às seguintes dimensões: eu comigo, eu com o outro, eu com o mundo/natureza e eu com Deus.

Concluindo a seção de artigos, a Convergência de setembro traz a contribuição de um jovem teólogo da nova geração da

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 444 – setembro 2011

387Companhia de Jesus, o Pe. José Abel de Sousa, que expõe o tema do sacerdócio segundo a Carta/Epístola aos Hebreus, o único texto do Novo Testamento que, de acordo com ele, dá sustentação a uma teologia do sacerdócio cristão. Após uma análise exegética bastante simples, mas ao mesmo tempo séria e profunda, Pe. Abel leva-nos a compreender as origens e o verdadeiro sentido do sacerdócio na Igreja, o sa-cerdócio comum dos fiéis: “Aos presbíteros compete exercer o sacerdócio ministerial, que não deve jamais se caracterizar como uma espécie de privilégio, tampouco superioridade, mas sim um serviço prestado sempre em sintonia com a comunidade eclesial”.

Sem dúvida, esse tipo de reflexão pode ajudar a VRC, de modo particular os presbíteros, a reavaliarem, talvez, algu-mas posições conservadoras ou ortodoxas demais em rela-ção ao seu status de padre no meio do Povo de Deus.

E já que estamos no “Mês da Bíblia”, o primeiro informe desta edição resgata a memória dos Seminários de Espiri-tualidade Bíblica (SESBIs), promovidos pela Equipe de Re-flexão Bíblica (ERB) da CRB Nacional. O último acon-teceu no mês de junho de 2011, em Luziânia-GO, com representantes de norte a sul do Brasil. A Ir. Zenilda Luzia Petry, ifsj, que acompanha o movimento bíblico na VRC do Brasil há muitos anos com grande alegria e disposição, nos presenteia com um histórico dos SESBIs e as quatro publicações que serviram de base para a sua realização, com destaque para o último livro da ERB, Que nossos olhos se abram! – Uma leitura de Mateus em perspectiva de Tesouro.1

O segundo informe tem a intenção de continuar avivando a dimensão profético-missionária da CRB (Prioridade n. 2), trazendo mais um relato da Pan-Amazônia a partir da experiência missionária da Ir. Elisa Maria Bisol, sts, membro da “Equipe Itinerante”, cuja sede é um barraco nas palafitas de Manaus e o campo de trabalho é a imensidão dos rios e igarapés do norte do Brasil e suas fronteiras internacionais. Com o sugestivo título “Na escola dos povos da floresta e das águas”, a Ir. Elisa fala-nos da sua opção pela Amazônia e convida-nos também a refletir sobre as opções que fazemos

1. A primeira edi-ção estava esgo-tada, mas a CRB providenciou uma segunda edição. Pedidos pelo e-mail publicaçõ[email protected].

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Ler, reler, provocar, motivar

na VRC: “Como a semente de mostarda que cresce no silên-cio, debaixo da terra e de forma que não entendemos como, assim pude contemplar o ‘Reino’ crescendo e acontecendo em meio a esses povos das águas e das florestas”.

Convergência se alegra em publicar esse tipo de testemu-nho e espera que outras religiosas e religiosos também se sintam chamados e se disponham generosamente a trabalhar na Amazônia.

Então, pessoal, vamos aproveitar ao máximo!Boa leitura, e até a próxima!

Padre Plutarco almeida, sj

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INFO

RM

ES

Caminhos de Espiritualidade Bíblica na Vida Religiosa Consagrada

A Vida Religiosa Consagrada nasce da Palavra de Deus e dela se alimenta em sua vida e missão. O horizonte do con-teúdo programático da CRB Nacional, triênio 2010-2013, inicia dizendo: “Em meio aos grandes desafios do mundo complexo e plural, da realidade da Igreja e da Vida Religio-sa Consagrada, a Palavra de Deus nos impulsiona a avançar, com os ‘olhos fixos em Jesus’ (cf. Hb12,1-3)”. E a primei-ra prioridade propõe: “Redescobrir o sentido profundo da VRC, revitalizando a paixão por Jesus e seu Reino median-te a escuta da Palavra de Deus, [...]”.

A Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) se com-preende como promotora e discípula da Palavra. A Espiri-tualidade Bíblica é fundamental para a refundação e susten-tação da VR. A caminhada bíblica promovida pela CRB e realizada pelas pessoas consagradas vem dando uma nova identidade à VRC. A centralidade da Palavra de Deus deve ser buscada por toda a VR. Em meio às múltiplas ofertas de sentido de vida, a VRC é convocada a ser portadora do verdadeiro sentido da vida e contribuir para a geração de uma nova humanidade, que tenha “os olhos fixos em Jesus”. Centrada na Palavra divina, as pessoas consagradas, com sua “visão iluminada”, necessitam imbuir-se de novas sensibilidades, voltar a beber das fontes da profecia, assumir a função de referências do Absoluto de Deus nestes tempos de mudança civilizatória.

É neste contexto que se insere a realização de Seminários de Espiritualidade Bíblica (SESBIs) a partir dos Evangelhos. A necessidade de iluminar a VRC pela Palavra de Deus

* Irmã Zenilda Luzia Petry é membro da Equi-pe de Reflexão Bíblica (ERB) da CRB Nacional, presidente da CRB Regional de Be-lém e assessora da Pastoral Bíblica na Região Norte do Brasil. Endereço da autora: Rua Oseias Silva, 104, Bairro Guanabara, CEP 67030-970, Ananindeua-PA. E-mail: [email protected].

Zenilda luZia Petry, ifsj*

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390 levou a CRB, por meio da Diretoria Nacional, a solicitar à Equipe de Reflexão Bíblica (ERB) uma leitura contextua-lizada dos Evangelhos, enfocando temáticas que perpassem cada Evangelho e que respondam a determinadas urgências da VRC no Brasil.

A exortação apostólica Vitae Consecrata (n. 84) assim se expressa:

A verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com ele, da escuta

diligente da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história.

O profeta sente arder no coração a paixão pela santidade de

Deus e, depois de ter acolhido a palavra no diálogo da oração,

proclama-a com a vida, com os lábios e com os gestos, fazendo-

-se porta-voz de Deus contra o mal e o pecado.

A “escuta diligente da Palavra” é condição de fidelidade à vida e à missão de todo consagrado, de toda consagrada.

Uma “nova geração” de VR só será “nova” se for renova-da constantemente pela Palavra de Deus.

A Inserção da VR nos meios populares e a Presença So-lidária terão sua inspiração no evento fundante do Povo de Deus, onde Javé vê e escuta o clamor do seu povo e desce para libertar, encarnando-se em Jesus de Nazaré, que armou sua tenda entre os mais pobres.

O necessário diálogo intercultural, tão urgente em nossos dias, poderá efetuar avanços com uma leitura mais crítica da Bíblia, numa perspectiva intercultural, com a crescente consciência de que o Evangelho é vivido na Palestina e di-vulgado no Império Romano, numa mescla de culturas e povos.

O avivamento da dimensão profético-missionária, prio-ridade da CRB, se dará quando a “estrela guia” da Palavra nos encantar e seduzir.

As relações serão qualificadas pelos “olhos fixos em Jesus”, que nos “obriga” a avançar para outras margens, vencendo as fronteiras de nossos espaços privados.

Caminhos de Espiritualidade Bíblica na Vida Religiosa Consagrada

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391Será ainda a Palavra de Deus que nos propiciará a sonha-da “leveza institucional”, pois junto com Jesus saberemos afirmar que “o jugo é suave e o peso é leve” (cf. Mt 11,30).

A CRB sente a necessidade de permanecer fiel no cami-nho da Palavra. Assim, na última década, a Palavra de Deus aparece prioritária em todos os Planos da CRB.

Seminário de Espiritualidade Bíblica (SESBI)

O SESBI é uma iniciativa de Animação Bíblica da VRC e situa-se na certeza de que a CRB deve promover a busca da Espiritualidade Bíblica como eixo da formação e missão da VR.

O Projeto “Tua Palavra é Vida” animou a VRC para a busca de maior formação bíblica. A década de 1990 ficará para sempre na história da CRB como a década da anima-ção e formação bíblica da VR do Brasil.

Nesse grande mutirão de busca da Sagrada Escritura, jun-to com todo o Povo de Deus, as pessoas consagradas foram percebendo que a elas cabia acentuar não tanto a questão acadêmica da exegese bíblica, mas a dimensão espiritual.

A Espiritualidade Bíblica, conquistada especialmente pelo método da Leitura Orante, foi o caminho assumido pela VRC.

O primeiro seminário foi realizado em 1993, quando um grupo de Congregações reconheceu ser a Espiritualidade Bíblica uma urgência para a VR. Durante aproximadamen-te um mês realizaram-se grupos, oficinas, exercícios de Lei-tura Orante da Palavra de Deus.

A CRB retomou essa perspectiva em 2002, quando rea-lizou um Seminário de Espiritualidade Bíblica Nacional. Dele participaram vinte e quatro pessoas. Na metodologia da Leitura Orante, sob o tema Reencontro com Jesus de Nazaré através da releitura bíblica, o seminário foi uma tentativa de resgate da Espiritualidade Bíblica.

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392 Leitura Orante dos Evangelhos

A Assembleia Jubilar da CRB Nacional, em 2004, apon-tou para a necessidade de crescimento da espiritualidade evangé-lica e mística enraizada na Palavra de Deus. Eram como “notas musicais” que brotavam das “partituras” da Assembleia Ju-bilar: Testemunho, Profecia, Esperança. Ao lado dessa necessi-dade, a Assembleia sinalizou para uma outra realidade pre-sente na VRC nestes tempos de mudança de época. Nossas relações comunitárias estão deterioradas, sofrem da falta de sabor evangélico. Nasce a proposta de oferecer um exercício orante e contextualizado da Bíblia para que a Palavra de Deus seja, de fato, a base da espiritualidade da VRC.

A Diretoria Nacional eleita, junto com Presidentes Re-gionais, assessorias Nacional e Regionais, em Assembleia Anual, solicitou que a Equipe de Reflexão Bíblica ofereces-se à VR subsídios de reflexão bíblica, visando a um resgate evangélico das relações comunitárias.

A forma de concretizar tal decisão foi a Leitura Orante e contextualizada do Evangelho. Num primeiro momento, optou-se pelo Evangelho de Marcos. Era, então, o Evan-gelho do Ano e favorecia a leitura em perspectiva de novas relações. Nascia, assim, a publicação de Roteiros de Leitu-ra Orante da Palavra: Reconstruir relações num mundo ferido – Uma leitura de Marcos em perspectiva de novas relações (2006). A publicação dos Roteiros foi precedida, em 2005, de um Seminário de Espiritualidade Bíblica, no qual os quase cin-quenta participantes, em Luziânia-GO, provindos de todo o Brasil, rezaram e enriqueceram os Roteiros preparados pela ERB.

Dessa primeira iniciativa, com toda a riqueza de experi-ências geradas, nasceram as demais leituras contextualizadas dos Evangelhos: Corpos solidários em tempos de travessia – Uma leitura de Lucas em perspectiva de corporeidade (2007); Caminho para a vida em abundância – Uma leitura de João em perspectiva de festa (2009); Que nossos olhos se abram! – Uma leitura de Mateus em perspectiva de Tesouro (2011).

Caminhos de Espiritualidade Bíblica na Vida Religiosa Consagrada

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393Para cada publicação de Roteiros de Leitura Orante foi realizado um SESBI, sempre com a perspectiva de envolver, capacitar, dinamizar e motivar a VR do Brasil, através das Regionais e das Congregações, para a adesão e empenho na Leitura Orante da Palavra, percorrendo, assim, caminhos de Espiritualidade Bíblica.

1. Reconstruir relações num mundo ferido – Uma leitura de Marcos em perspectiva de novas relações

A Leitura Orante do Evangelho de Marcos situa-se no horizonte de “reconstruir relações num mundo ferido”. A XX Assembleia Geral da CRB – Assembleia Jubilar – indi-cava que a Palavra de Deus era caminho de restauração de relações feridas.

O confronto cotidiano com a Palavra é a grande escola que plasma a vida e as relações segundo o Espírito. Ela é fonte de audácia missionária e de sustentação do empenho de buscar respostas novas para os novos problemas do mun-do de hoje. Nesse contexto, a VRC é chamada a ser sacra-mento de novas relações.

O caminho escolhido foi a Leitura Orante do Evange-lho de Marcos. Analisando os gestos e as palavras de Jesus, percebemos que sua prática constante foi a reconstrução de relações: com o meio ambiente, com judeus e pagãos, com fariseus e escribas, com discípulos e discípulas. O itinerário formativo de seus discípulos é essencialmente uma questão de reconstrução de relações.

O subsídio de Leitura Orante de Marcos contém vinte e um Roteiros de Encontros Orantes Comunitários. Se-guindo a estrutura literária de Marcos, que organiza seu Evangelho em blocos temáticos, com pequenos sumários que conectam os blocos entre si, evidenciou-se que o Evan-gelho segundo Marcos é uma narrativa catequética que visa a introduzir os catecúmenos na nova comunidade de novas

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394 relações: é a comunidade das seguidoras e seguidores de Jesus.

Os blocos temáticos, vistos em perspectiva de relações, sinalizam para relações que congregam e libertam, relações que incluem, relações interculturais e inter-religiosas, relações que hu-manizam, relações conflitivas, a fonte das relações, e, finalmen-te, vida plena em relações novas. Esses blocos temáticos foram desdobrados em Roteiros que conduzem ao encontro com a fonte das novas relações.

As chaves de leitura em perspectiva de relações revelam múltiplas facetas do Evangelho de Marcos e abrem novas perspectivas de Leitura Orante da Palavra de Deus, sinali-zando caminhos novos de Espiritualidade Bíblica.

2. Corpos solidários em tempo de travessia – Uma leitura de Lucas em perspectiva de corporeidade

Precedido também de um SESBI, realizado em Salvador--BA, o segundo livro de Leitura Orante da Palavra segundo os Evangelhos trouxe o tema da corporeidade no Evangelho de Lucas. Situada nestes tempos em que a corporeidade as-sume uma relevância nunca antes vista, a VRC vê-se neces-sitada de abordar a temática a partir do Evangelho. Herdeira de uma tradição em que a corporeidade era temática suspei-ta ou mesmo silenciada, o assunto exige da VR rupturas e travessias audaciosas.

Corpos solidários em tempos de travessia – Usamos a palavra “travessia” para acentuar a necessidade de estar sempre em movimento, em progressivo desenvolvimento, pois mudar faz parte da dinâmica da vida.

A travessia é uma forte característica do Jesus lucano. Ele está sempre passando de um lugar para outro, fazendo cami-nho, avançando (9,51-56; 10,38; 13,33; 17,11; 19,12), e nada o impede (4,28-30) de chegar à meta. A meta geografica-mente chama-se Jerusalém, mas na verdade é bem mais que isso, é glorificação (ver 9,51). A glorificação é a plenitude da

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395humanidade, da corporeidade, segundo o projeto de Deus. Na pessoa de Jesus revela-se a nossa razão de existir: ser pessoas inteiras, integradas, solidárias, doadas, relacionadas com todas as outras e com todas as criaturas.

Percorremos o Evangelho de Lucas resgatando temáticas que ajudam a resgatar a corporeidade em chave evangélica. São sete temas, distribuídos em vinte e dois Roteiros de Leitura Orante que nos ajudarão a fazer a travessia de cor-pos solitários do sistema neoliberal para corpos solidários da comunidade cristã.

3. Caminho para a vida em abundância – Uma leitura de João em perspectiva de festa

Dessa vez o Centro de Formação Vicente Canhas, CIMI, em Luziânia-GO, estava todo em clima de festa. Era junho de 2009. O clima de festa não era por ser mês de junho, mas porque se realizaria mais um SESBI, agora do Evan-gelho de João, lido em perspectiva de festa. Mais de trinta participantes mergulharam nos cenários de festa do quarto Evangelho e contemplaram as belas paisagens como lugares de encontros contemplativos. Dessa feita o SESBI contou com o texto publicado. Aliás, o lançamento foi feito duran-te o seminário. Tudo foi vivido, celebrado, contemplado em clima de festa.

Por que a leitura de João em perspectiva de festa? – Duas foram as motivações básicas: a primeira e mais importante diz res-peito à necessidade de mergulhar profunda e alegremente na celebração do mistério do Deus feito gente. Em segundo lugar, como vimos, a VRC necessita resgatar a dimensão mais festiva da vida, da alegre entrega de sua consagração e missão. Vivemos inseridas(os) num mundo que vai perden-do o festivo da festa. A comercialização das festas e celebra-ções está descartando o poder gerador de sentido de vida, a dimensão místico-espiritual das mesmas.

A leitura de João em perspectiva de festa visa a ajudar a aprofundar o sentido espiritual e existencial das celebrações

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Caminhos de Espiritualidade Bíblica na Vida Religiosa Consagrada

e festas. João é o evangelista das festas. Jesus realiza a maior parte de seus sinais em ambiente de festa.

Parece que a comunidade joanina viveu, em seu tempo, um período semelhante ao que nós vivemos hoje. As festas da Páscoa, de Pentecostes, das Tendas e da Dedicação, tão significativas para a espiritualidade do povo de Israel, en-veredaram por um caminho de esvaziamento do sentido primeiro. Desviadas de seu foco original e originário, já não eram mais memória de seus eventos fundantes, mas ocasião de vantagens financeiras, de manifestação e manutenção do poder de uns sobre outros. O que era gerador de espiritua-lidade se transformara em covil de ladrões.

Lançando mão das indicações oferecidas por Jesus, segun-do a comunidade joanina, o subsídio buscou iluminar os caminhos das comunidades atuais, particularmente a VRC. Como toda festa reclama cenários específicos, também as festas em João foram situadas em Cenários e contempladas em paisagens. Assim, neste subsídio recorreu-se à metáfora de cinco cenários para situar as diversas festas, e os vinte e três Roteiros ou Encontros de Leitura Orante são compre-endidos como paisagens a serem contempladas.

4. Que nossos olhos se abram! – Uma leitura de Mateus em perspectiva de Tesouro

O quarto SESBI de Leitura Orante dos Evangelhos reali-zou-se no clima do tema da XXII AGE – De olhos fixos em Jesus (Hb 12,2). Daí o sugestivo título: Que nossos olhos se abram! Uma leitura de Mateus em perspectiva de Tesouro.

A leitura, reflexão e contemplação do Evangelho de Ma-teus quer nos ajudar a abrir os olhos e fixá-los em Jesus, que caminha à nossa frente. Assim como ocorreu com os dois cegos de Jericó (Mt 20,29-34), ocorrerá com cada pessoa que se reconhece cega, ouve Jesus que passa, clama por ver e salta em seguimento do Tesouro.

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397Os Roteiros de Leitura Orante do Evangelho de Mateus estão organizados em campos que contêm tesouros e trilhas para se ter acesso a eles.

A palavra “tesouro” está presente em cada um dos tradi-cionais campos da estrutura literária em que os estudiosos da Bíblia costumam dividir o Evangelho. No último campo (Mt 24–28), a palavra “talento” ocupa o lugar de tesouro.

O convite é: guiados pelo tesouro, percorrer os seis campos deste Evangelho, as vinte e cinco trilhas que levam a um sig-nificativo número de minas, onde se pode escavar e extrair tesouros de infinito valor.

Com este quarto volume de Leitura contextualizada dos Evangelhos a CRB oferece à VRC do Brasil um privilegia-do caminho de Espiritualidade Bíblica.

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398 Na escola dos povos da floresta e das águas

* Irmã Elisa Maria Bisol é religiosa da Congregação das Servas da Santíssima Trindade. Endereço da autora: Rua Rangel Torres, 1515, Vila Mary, CEP 79831-270, Dourados-MS. Tel.: (67) 3424-1939. E-mail: [email protected].

elisa Maria Bisol, sts*

A beleza não está na partida nem na chegada, mas na travessia.

(Guimarães Rosa)

Nas asas da Divina RuahComo mulher e consagrada na Congregação das Servas

da Santíssima Trindade, com um caminho de vinte e cinco anos nessa instituição, é com gratidão e alegria que com-partilho um pouco de minha experiência missionária na Amazônia nos últimos cinco anos, de 2005 a 2009.

E se, como nos recorda São Paulo, é Deus quem realiza em nós tanto o querer como o fazer (cf. Fl 2,13), a ele minha ação de graças por ter suscitado em mim o desejo de missionar na Amazônia junto aos povos ribeirinhos, indígenas e mar-ginalizados urbanos.

Rostos “sem lugar”, vítimas dos incontáveis impactos am-bientais produzidos por uma sociedade que prioriza o pro-gresso tecnológico e o lucro, que instiga a produção e o consumo e produz a exclusão e o abandono. Esses mesmos rostos são os que convidam ao aprendizado, à mudança de paradigmas, à conversão.

Ação de graças por tudo o que me tem permitido realizar e viver. Ao Pai de bondade, que em sua Divina Ruah me tem conduzido com suas “asas de águia” (cf. Dt 32,11). Foi sintonizando com a dinâmica de seus movimentos que o desejo, o sonho foi-se construindo e se tornando realidade.

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399Nos ventos da Divina Ruah, que soprou na Igreja, que soprou na CRB Nacional, convocando à missionariedade e à presença solidária junto aos povos amazônicos. Também ressoaram em nossas assembleias congregacionais, suscitan-do o desejo de “soltar as amarras” (Is 52,2).

Em nosso Capítulo Congregacional de 2002, foram to-mando a forma de exortação à itinerância para novas fron-teiras simbólicas e geográficas.

Nesse contexto é que se foi configurando a missão de pre-sença junto aos povos da Amazônia.

Com o apoio da coordenadora-geral, Ir. Gelza F. Ribeiro, em gestão; dos contatos e articulações, dos quais destaco a pessoa de Ir. João Gutemberg, marista que nos apresentou o Projeto da Equipe Itinerante; da escuta e acompanhamento que recebi de Ir. Odila Gaviragh, fscj, e de Pe. Fernando Lopez, sj, mantendo contatos e animando; do desejo de ar-riscar e ousar novas fronteiras; e da acolhida, meu êxodo missionário foi tomando rosto e forma.

Foi então que, coincidente ou teocidentemente, no dia 19 de fevereiro de 2005, data de meu aniversário de Batismo, como sinal de meu envio missionário, embarquei no Rio de Janeiro com destino a Manaus, onde fui calorosamente acolhida por Paco Almenar, sj, e Carmem Anghebem, fscj, membros do Projeto Equipe Itinerante – núcleo de Manaus, dando início, assim, a uma história de presença missionária marcada pela mística da itinerância.

Na dinâmica da gratuidade

Ao ser introduzida na missão, junto aos povos da Amazô-nia, antes mesmo de chegar à Amazônia, uma recomenda-ção muito clara por parte dos que me acolheram e acom-panharam na Equipe Itinerante: “Não traga muitas coisas, nem muita bagagem, somente o necessário”.

De imediato me senti convidada ao despojamento. Mas somente ao longo do tempo e dos anos de missão na

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400 Amazônia é que pude ir gradativamente entendendo o que isso significava.

Fui entendendo que para evangelizar junto aos povos da Amazônia é preciso desconstruir, é preciso despojar-se, é preciso descer, é preciso deixar, não apenas as muitas coisas materiais acumuladas, mas também os muitos conceitos e preconceitos construídos e adquiridos ao longo de minha formação religiosa cristã e de minha cultura.

Fui entendendo que evangelizar pressupõe inculturação e encarnação, como nos lembra o I Encontro de Pastoral Indigenista (1997) – Manaus: “Evangelizar não é levar ou impor, e menos ainda transculturar. Significa, antes, diálo-go, encontro transfigurador, descoberta reveladora do Deus sempre ativo e presente”.

A evangelização-encontro exige antes uma contínua con-versão ao outro na sua diferença, na sua alteridade, de forma dialogal e respeitosa, numa fiel escuta e acompanhamento na mesma atitude de Jesus, que se fez solidário da condição humana, reconhecendo ali nos rostos amazônicos o rosto do Cristo, a face da Trindade amada que dança ao ritmo da vida dos povos das águas, no remo ou na proa, com uma singularidade muito própria e única.

Ao mesmo tempo, apontando para uma incrível liberdade geradora de uma vasta diversidade de formas, etnias, cultu-ras, sem perder a profunda unidade que as entrelaça e lhes dá harmonia e encanto.

Como semente do Reino, do tamanho de um grão de mos-tarda, que somente aos simples e humildes é dado revelar-se e ser reconhecido, fui-me fazendo necessitada de um novo olhar, de um novo enfoque metodológico e pedagógico em minha prática de evangelizadora.

Fui compreendendo, aos poucos, a minha necessidade de silenciar, de fazer-me “vazio”, para que outros mundos, outros rostos, outras culturas, outros diferentes pudessem encontrar em mim o espaço e o tempo de serem acolhidos e, a pouco e pouco, tornarem-se parte de mim.

Na escola dos povos da floresta e das águas

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401Somente assim as palavras de Jesus – “[...] Não leveis nada pelo caminho: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem di-nheiro, nem duas túnicas. [...]” (Lc 9,1-6) – puderam en-contrar significado nessa minha experiência missionária.

Eu vi o Reino acontecendoComo a semente de mostarda que cresce no silêncio, debaixo

da terra e de forma que não entendemos como, assim pude contemplar o “Reino” crescendo e acontecendo em meio a esses povos das águas e das florestas.

Vi o Reino acontecendo na calorosa e desejosa acolhi-da das comunidades ribeirinhas, distantes dias de barco ou de canoa, por onde itinerei, tendo a oportunidade de com-partilhar a vida, as lutas e as esperanças dessas famílias e comunidades na sua mais rica simplicidade e na sua sabedo-ria de viver com o necessário, sem supérfluos e ainda não contagiados(as), contaminados(as) com a cultura do consu-mismo e do descartável.

Vi o Reino acontecendo em suas crianças, jovens, adultos – homens e mulheres – e anciãos(ãs) em sua capacidade de contemplar e viver a vida, na sua naturalidade e liberdade.

Vi o Reino acontecendo nas comunidades ribeirinhas e indígenas em sua relação intrínseca, intimamente entrelaça-da e interdependente com as águas e com as florestas.

Vi o Reino acontecendo em suas formas de resistência, em sua luta pela vida e pela sobrevivência.

Vi o Reino acontecendo em sua crescente organização e em suas pautas de luta em defesa de seus direitos, territórios.

Cito, em particular, a luta, a organização e a resistência dos povos Wapichana, Ingaricó, Macuxi, Taurepang e Pa-tamona da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no norte de Roraima. Denunciando toda forma de opressão por parte dos detentores do poder político e do agronegócio em suas tentativas de extermínio, denunciando os poderes do lati-fúndio e do agronegócio com suas estratégias de violência, controle da mídia e preconceito étnico.

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402 Povos que, após um longo e sofrido processo de mais de trinta anos de luta pela demarcação de seu território, pude-ram celebrar a homologação da sua terra.

Vi o Reino acontecendo nos rituais de xamanismo dos povos Yanomami. Foi participando de um dos encontros de pajés Yanomami, em 2008, na Missão Catrimani, que contemplei seus rituais carregados de simbolismo religioso e de profunda conexão com o mundo espiritual e com todo o cosmo.

O que me foi confirmando e convocando ao diálogo inter-religioso e ao profundo respeito pela diversidade de concepções do sagrado e a valorização das múltiplas formas de ritualizar a fé e alimentar as próprias crenças.

Como nos atenta o Encontro Ecumênico de Pastoral In-digenista (1992) – La Paz: “Todas as religiões são formas de expressão da fé em Deus”. O contato com os diferentes povos indígenas aponta, para além de nossa visão dicotômi-ca, um olhar mais integrador e unitivo, onde a dimensão religiosa está presente em todos os aspectos da vida, em seus modos de ser, de pensar, de viver e interagir.

Como afirma Paulo Suess em seu artigo “Inovação Pas-toral da Igreja Católica”: “[...] ela é força motora dos seus projetos de vida, alternativos ao projeto neoliberal”.

Aprendiz do Reino

É aqui que confirmo o aprendizado e o entendimento de que evangelizar, mais que ensinar, é deixar-se ensinar pelos pobres e simples de coração, é dispor-se em atitude de aprendiz diante desses povos da Amazônia que vivem a sabedoria milenar na sua relação mística com a Terra-Mãe “Pachamama”.

Como nos recorda o I Encontro de Pastoral Indigenista (1997) – Manaus: “É antes reconhecer a profunda riqueza de cada povo indígena e sua contribuição com seus valores e contribuições originais diversas”.

Na escola dos povos da floresta e das águas

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403Esses povos me ensinam, me evangelizam, me proclamam, não com suas palavras e discursos, mas com sua prática vi-vencial e histórica, a mais urgente e atual teologia ecológica e socioambiental de que tanto nossa sociedade ocidental, secularizada e sucateada, necessita.

Necessita ouvir, acolher e redimensionar seus paradigmas e valores se quiser sobreviver. Sua voz ecoa por todo o pla-neta: “Mudem de Vida!”. Pois esses povos são, hoje, a voz profética, que clama no silêncio, no escondido, no “não lu-gar” em nossa sociedade de produção e de consumo.

Seu grito ecoa e conclama a uma re-significação de uma teologia bíblica sustentada e fundamentada no antropocen-trismo que favoreceu uma prática de dominação e explora-ção de nossos recursos finitos.

Seu grito ecoa e conclama para, mais que “dominar a ter-ra” (cf. Gn 1,28), na sua interpretação mais adversa de ex-ploração sem limites, a escuta do clamor “cultivar a terra, nosso planeta, como jardim-nossa Casa Comum” (cf. Gn 2,15), assumindo assim nosso papel de administradores(as) responsáveis.

Seu grito conclama para o resgate da mística do cuidado para com a vida. Ecoa e conclama a uma vida simples, “sem supérfluos”, na condição de seres humanos, parte integran-te, intrínseca e interdependente deste nosso planeta Terra de recursos finitos.

A relação de afeto, cuidado, e o respeito dos povos indí-genas para com a Terra “Pachamama” conclamam para uma re-configuração de nossa relação com o meio ambiente, e apontam a urgência de uma nova ética onde se estabele-çam a harmonia e o respeito do ser humano com seu meio ambiente.

Denunciam o modelo econômico consumista promovido pela sociedade de mercado capitalista selvagem.

Em sua cosmovisão e prática milenar, de modo de vida e produção coletiva, reforçam igualmente o questionamen-to ao absoluto da propriedade da terra, dos mananciais de águas, dos rios e das florestas.

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404 Sua forma de vida e seu modo de produção contribuem positivamente, seja para uma reflexão e um olhar mais am-plo, seja apontando novos paradigmas para além de modelos econômicos e culturais hegemônicos e excludentes, gera-dores de morte, bem como para a construção de uma ética baseada no respeito e na valorização para com o universo plural, pluriétnico, pluricultural e plurinacional.

A unidade na diversidadeO convívio com os povos da Amazônia, povos tradicio-

nais, marcados pela singularidade de suas línguas, tradições, crenças e mitos, numa diversidade tão vasta quanto o nú-mero de povos, me remeteu ao rosto de Deus Trindade.

Trindade, unidade na diversidade. Diversidade de Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo numa só comunhão. Co-munhão gerada na relação entre os três diferentes.

Na relação trinitária, não há anulação das diferentes pes-soas da Trindade, mas antes uma relação de reciprocidade e de complementaridade na afirmação das suas diferenças.

A contemplação da diversidade, característica dos povos amazônicos, sinaliza-me que o caminho da evangelização e da construção do Reino de Deus passa, antes, pelo respei-to e reconhecimento das diferenças de cada povo, cultura, etnia, manifestação religiosa, e do singular e próprio que somos cada um de nós. Denunciando, assim, toda forma de homogeneidade, integracionismo e/ou massificação impos-ta pela globalização.

Apontam, ademais, para a construção de redes, conexões, intercâmbio, comunicação, troca de saberes e de solidarie-dade, possibilitando, assim, somar no fortalecimento das lutas e da identidade específica de cada povo e sua cultu-ra. Permitem-me vislumbrar o Reino como uma grande “mesa”. A mesa da diversidade e da unidade.

Na escola dos povos da floresta e das águas

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405Rede de instituições

Integrar o Projeto Equipe Itinerante permitiu-me não apenas vislumbrar alternativas, mas vivenciar concretamen-te a possibilidade de novas formas de relações eclesiais.

O Projeto Equipe Itinerante, identificado por sua dimen-são itinerante e com o intuito de ser “fio na rede”, ou seja, fortemente marcado pelo desejo de construir conexões, re-des, articulações entre as organizações, movimentos e ins-tituições, foi gradativamente integrando, em sua dimensão intra, o processo “inter”.

Inspirado por Pe. Claudio Perani, sj, sendo inicialmente um projeto de uma única instituição, logo nos primeiros anos foi-se abrindo ao processo de interinstitucionalidade que, no movimento do Espírito, suscitou a inclusão de pre-sença leiga e religiosa masculina e feminina no projeto. Ou seja, o projeto foi-se convertendo em seu próprio objetivo, construindo redes a partir de dentro, a partir de sua própria estruturação, abrindo-se a novas configurações, novas co-nexões e redes de articulação.

Destaco, nesse aspecto, as redes interfronteiras geográficas amazônicas, ali onde se identifica a necessidade de construir uma Igreja comum atenta aos conflitos de fronteiras.

O abrir-se para a interdisciplinaridade, interculturalidade e intergênero, com a presença de leigos(as), religiosos(as) e padres de diferentes culturas, nacionalidades e especificida-des. Trazendo um novo dinamismo e enriquecimento tanto nas relações internas à equipe como em um novo jeito de marcar a presença missionária na Amazônia.

O grande desafio de construir redes entre instituições su-põe a superação de um modelo piramidal de relações por um modelo circular, onde todos são responsáveis de igual forma, onde todos os que entram na “ciranda” estejam dis-postos a partilhar os serviços, o poder e os bens. Ainda que seja do tamanho de um grão de mostarda, sonhar é preciso!

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406 Impulsionada pela mística da itinerância

Dediquem-se a andar pela Amazônia.

Visitem as comunidades, as Igrejas locais, as organizações...

Observem tudo cuidadosamente

e escutem atentamente o que o povo diz:

suas demandas e esperanças, seus problemas e soluções,

suas utopias e sonhos.

Participem da vida cotidiana do povo.

Observem e registrem tudo.

Anotem o que o povo fala com suas próprias palavras.

Não se preocupem com os resultados,

o Espírito irá mostrando o caminho!

Pe. Claudio Perani, sj

Com essas palavras sábias, Pe. Claudio expressou a intui-ção que deu o fundamento ao Projeto Equipe Itinerante.1

Recolhendo, nessa intuição, os verbos andar, visitar, ob-servar, escutar, participar, registrar, verbos que indicam ação missionária, temos, então, a pedagogia e a metodologia de evangelização junto aos povos da Amazônia. Verbos que nos remetem à mística da itinerância, do êxodo, da saída, do colocar-se a caminho, do ir ao encontro.

Reportando-nos à prática de Paulo, o grande evangeliza-dor itinerante, andando de comunidade em comunidade, deixando-se acolher, participando da vida cotidiana, intei-rando-se dos conflitos, desafios, e lutas, solidarizando-se nos sofrimentos, escutando seus sonhos e utopias.

A partir dessa experiência, celebrar a vida e a história re-conhecendo os sinais do Reino que “já está entre nós”, ain-da que de forma silenciosa e escondida, fortalecendo as lutas e a resistência, alimentando a esperança e o sonho de “um novo céu e uma nova terra”, um “outro mundo possível”, “a terra sem males”.

Essa proposta metodológica de evangelização, ainda que não explicitada, carrega em seu bojo a interpelação da “es-cuta aos sinais dos tempos” (cf. Mt 16,3), de um modelo de

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1. Encontro Anual dos Jesuítas do Distrito da Amazônia – 1996.

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407evangelização que nasce do chão da vida e da história desses rostos específicos, e que convoca ao despertar da sensibili-dade e da solidariedade.

“Não se preocupem com os resultados [...] o Espírito irá conduzindo.” Palavras proféticas que denunciam toda for-ma de autossuficiência e autossuficiência em nossa prática evangelizadora. Jesus já alertava os discípulos: “Não vos preocupeis [...] o vosso Pai sabe do que necessitais [...]” (cf. Mt 6,25s).

Essas palavras foram ecoando, ecoando, e, no confron-to com o modo simples e desapegado, despojado de ambi-ção, dos povos amazônicos, encontrei um grande recado de Deus para mim. O recado da confiança e do abandono na ação providente do nosso Pai de bondade.

Importa lançar a semente, mas já não compete a nós co-lher ou contabilizar o fruto (cf. 1Cor 3,6-7).

Seu eco continua ressoando e me convidando a deixar-me conduzir pelo Espírito de Jesus, a Divina Ruah, que sonda e conhece a partir de dentro. Ela é a força que impulsiona, que move, que dinamiza, que gera laços e conexões, que unifica e vivifica nosso ser missionário, nossa missão, e todo ser vivente.

Alimentando o SonhoQuero expressar minha comum-união com todos(as) que

buscam viver a missionariedade inculturada, permitindo emergir do anonimato os novos rostos culturais. Na cons-trução de redes de solidariedade, na compaixão e na mise-ricórdia. Onde o diverso, o diferente e o plural encontram acolhida na grande mesa da partilha.

Poética e profeticamente, Alfredo J. Gonçalves nos brinda com o poema “Sou diferente”, que nos confirma e nos ani-ma a perseguir o Sonho:

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408 Sou diferente de vocêNão sou nem pior nem melhor,Apenas diferente.[...]Falo outra língua,Tenho outros costumes,Outros valores e comportamentos...Mas não sou nem melhor nem pior,Apenas diferente.Minha pele pertence a outra raça,Minhas roupas têm outro colorido,Meus olhos e cabelos outro tom...Mas não sou nem pior nem melhor,Apenas diferente.[...]Cultuo outro Deus,Rezo outras orações,Outra é minha religião...Mas não sou nem melhor nem pior,Apenas diferente.

BibliografiaPREZIA, Benedito (org.). Caminhando na luta e na esperança. São

Paulo: Loyola, 2003.SUESS, Paulo. Inovação Pastoral da Igreja Católica. Disponível em:

<www.missiologia.org.br/cms/UserFiles/cms_artigos_pdf_85.pdf>.

CRB/EQUIPES de Reflexão da CRB Nacional (org.). A caminho XXII AGE. Brasilia: CRB Publicações, 2010.

EQUIPE ITINERANTE. Projeto Equipe Itinerante. Versão 2007.

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409

ART

E E

CULT

UR

A

Nós e a TV

Plutarco alMeida, sj*

Perguntinhas básicas

Vamos direto ao assunto: ainda existe alguma coisa que preste na televisão brasileira? Vale a pena perder tempo as-sistindo TV? Podemos aproveitar certos programas televi-sivos, seja para o lazer e o entretenimento da comunidade, seja mesmo para levantar a discussão e a reflexão de temas interessantes? Não seria melhor ler um livro, uma revista, ou simplesmente assistir a um filme em DVD?

Essas e outras tantas indagações talvez existam, de um modo geral, na cabeça de nossas superioras e superiores de comunidades, sobretudo quando se trata de casas de forma-ção. São questionamentos e dúvidas surgidas não agora, mas num passado também não muito distante. De certo modo, ainda somos herdeiros, digamos assim, de uma cultura nas-cida e fortalecida num contexto sócio-político-eclesial que condenava a televisão e seus produtos, muitas vezes sem dar-se ao trabalho de pesquisá-los e avaliá-los mais criti-camente. Quem não se lembra daquela verdadeira ojeriza que muita gente na Vida Religiosa Consagrada tinha, por exemplo, da Rede Globo?

Restos do passado

Havia dois tipos de pessoas que não gostavam da televisão (leia-se: da Globo). As religiosas e os religiosos engajados nas lutas sociais jogavam a emissora do “plim-plim” sim-plesmente na fogueira, com a alegação de que a TV do Sr.

* Padre Plutar-co Almeida é jornalista, editor da revista Conver-gência. Visite o blog <plutarcoalmeida.blogspot.com>.

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410 Roberto Marinho era “de direita” e estava permanente-mente a serviço das elites brasileiras e internacionais. Na década de 1980, de modo especial, muitos de nós, com a melhor das boas intenções, aliás, fomos às ruas para gritar “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!”. Era mais ou menos como se por trás das câmeras existisse uma espécie de “gênio do mal”, sempre pronto a planejar seus ataques contra o movimento social e as aspirações legítimas das clas-ses empobrecidas do nosso Brasil. O mentor de tudo era o jornalista e empresário Roberto Marinho, sempre associado ao poder político e econômico nacional e internacional, é claro.

Do outro lado postavam-se as irmãs, irmãos e padres “de direita”,1 mas que paradoxalmente também não gostavam da TV Globo por conta de suas novelas “imorais” e “per-missivas”, principalmente. Nesse caso, o veredicto era o mesmo, ou seja: “A Globo não presta, a Globo está de mãos dadas com o ‘gênio do mal’ para destruir os valores da nos-sa ‘civilização ocidental cristã’, inoculando sorrateiramen-te nas famílias brasileiras o vírus da pornografia e de toda espécie de vícios”. No máximo, quando a(o) superiora(or) não era assim tão radical, os membros da comunidade po-diam assistir ao “Jornal Nacional”, ao “Fantástico” etc., mas sempre vigiados, ainda que discretamente. Novelas, jamais! A invenção do controle remoto foi uma verdadeira bênção para certas casas religiosas, diga-se de passagem!

Quem tinha razão?Mas, finalmente, a “esquerda” estava certa nos seus ata-

ques e críticas ferozes? Os moralistas de plantão estavam cobertos de razão quando censuravam a TV Globo? Ora, não somos tão ingênuos a ponto de afirmar que ambas as posturas nunca se sustentaram. Deixando de lado os exa-geros, fruto, talvez, da ausência de uma análise crítica mais apurada, mais técnica e menos emocional e ideológica, os comportamentos e as posições “de esquerda” e “de direi-ta” que colocamos brevemente aqui possuíam alguma base

Nós e a TV

1. Usaremos aqui estes termos, embora sabendo que, por força das circunstâncias, as expressões “de direita” ou “de esquerda” pouco a pouco estão se tornando obsoletas, seja em termos do linguajar cotidiano, seja até mesmo enquanto práticas político-ideológicas.

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411sim. Ninguém pode negar que entre Roberto Marinho e as elites deste país existiam laços estreitos e pontes bastante sólidas, e também não há dúvida de que o dono da Globo defendia os interesses dessas elites. Estranho, aliás, seria se assim não fosse!

Por outro lado, a briga pela audiência no decorrer da dé-cada de 1980, briga que depois virou guerra, quando a TV Manchete colocou no ar a novela “Pantanal”, com a atriz Cristiana Oliveira aparecendo nua pela primeira vez na te-levisão brasileira (alguém se recorda?), fez com que a tele-dramaturgia realmente apelasse para cenas eróticas mais ou menos fortes (coisa boba, diga-se a bem da verdade, nada comparável ao que hoje assistimos, é claro). Esse show de baixaria, essa apelação geral das nossas TVs gerou protestos aqui e ali, mas nem os órgãos do governo, nem ninguém conseguiu acabar com ela. Quando o assunto é dinheiro, money, tudo se torna mais difícil, certamente. Na guerra Globo x Manchete, é lógico que havia muita grana envol-vida e, portanto, o interesse comercial ditava as regras do jogo, o jogo sujo do sistema.

Novos temposMas o tempo passou, a Rede Manchete faliu e a Globo

saiu mais ou menos ilesa, consolidando-se como o carro--chefe da televisão brasileira. O tempo passou e também mudou, mudou muito. A TV comum que nós conhecemos e amamos (ou detestamos, quem sabe) enfrenta nos dias de hoje uma cruel concorrência, e mesmo a Globo, com todo o seu poder, já não é a senhora absoluta das atenções do povo brasileiro, mesmo de religiosos e religiosas.

Dentre outros fatores que contribuíram para um cer-to enfraquecimento ou desprestígio da televisão, enquan-to veículo de comunicação mais tradicional, destacamos o crescimento da TV por assinatura e a expansão da inter-net. Não há dúvida de que “navegar na net” passou a ser uma outra opção de diversão e entretenimento, sobretudo para adolescentes e jovens. Hoje em dia, as “redes sociais”

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412 atraem muito mais a “galera” do que a TV aberta. Com raras exceções, tal público já não perde mais tempo diante da televisão e sim na frente de seus computadores e apare-lhos celulares. O mundo cabe numa tela! E mesmo na Vida Religiosa Consagrada, especialmente para aqueles e aquelas que têm menos de 50/60 anos, a preferência pelo compu-tador é bem maior. Apesar de não conhecermos nenhuma pesquisa específica sobre o assunto, é ponto pacífico que em nossas casas religiosas já começam a proliferar tanto os com-putadores como os telefones celulares. E nada indica que essa tendência vá desaparecer tão cedo! Enquanto isso, coi-tada, a “sala de TV” vai ficando cada dia mais vazia. Aquele velho hábito de assistir juntos ao “Jornal Nacional” ou ou-tro telejornal da noite já não encontra tantos adeptos como no passado. Em muitas comunidades, quase sempre são as irmãs, os irmãos, os padres da “melhor idade” os únicos frequentadores, ou pelo menos os mais assíduos, em geral.

Bem, mas até agora não respondemos àquelas perguntas que fizemos no início deste pequeno texto. Então, vamos tentar comentar rapidamente algumas pelo menos.

Ainda existe alguma coisa que preste na televisão brasileira?

Sim, existe! Mesmo na chamada “TV aberta”, isto é, aque-la que é de graça (custa somente a energia e a compra do aparelho, é claro), ainda se pode encontrar bons programas, com certeza. E não estamos falando aqui exclusivamente das redes católicas. É bom ressaltar que não é só na Rede Vida, na Canção Nova, na TV Século 21 e na TV Apareci-da que são exibidos programas de boa qualidade ou os mais adequados, digamos assim, à Vida Religiosa Consagrada. Em certos casos, aliás, infelizmente, as emissoras da Igreja deixam muito a desejar!

Contudo, muitas vezes é preciso pesquisar entre as di-versas emissoras, católicas ou não, quais são realmente os programas melhores, os mais interessantes, ou pelo menos de que se possa aproveitar algo de bom. Discernir é preciso,

Nós e a TV

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413sempre. Nesse sentido, o uso do controle remoto é extre-mamente saudável, desde que ninguém tome posse dele eternamente para impor os seus gostos pessoais à comuni-dade toda (esta é uma conduta abominável, não há dúvida!).

Pode ser que um ou outro programa nos surpreenda com cenas “indecentes”, “picantes”, ou, no mínimo, com uma certa dose de erotismo, violência etc., mas isso vai depender do discernimento a ser feito. Somando os prós e os contras, a que programas podemos assistir finalmente? Também não é porque num determinado seriado televisivo, por exemplo, acontece um beijo na boca ou surge um casal na cama que temos de mudar de canal, ou quem sabe até desligar o apa-relho! Se fosse assim, não deveríamos nem sair mais de casa!

Vale a pena perder tempo assistindo TV?A TV pode ser usada como meio de informação. Nesse

sentido, é bom que nós, religiosos e religiosas, estejamos em dia com o que acontece no mundo. Nada pior do que “estar por fora” das realidades política, econômica e social, que fazem parte, afinal de contas, do nosso dia a dia. A igno-rância não ajuda em nada, muito pelo contrário, atrapalha, dificulta até mesmo o nosso trabalho e o nosso testemunho cristão no meio da sociedade em que vivemos. Dizer sim-plesmente “eu não gosto de política nem de economia, por isso mesmo não assisto televisão” é uma verdadeira aberra-ção hoje em dia, um atestado de incompetência e talvez até de inapetência para a Vida Religiosa Consagrada, ousamos afirmar. Ora bolas, será que fomos chamados por Deus a viver uma vocação à margem dos acontecimentos da his-tória humana? A partir de que base concreta pretendemos evangelizar afinal? Podemos “desligar-nos” inocentemente (impunemente) da realidade que nos cerca? Somos, assim, meio “extraterrenos” (ETs)?

Além de tudo isso, é bom frisar que o velho costume de assistir juntos à TV pode ser muito bom, por exemplo, para aquelas comunidades religiosas com extrema dificuldade de reunir-se. Então, se a comunidade vive na base do “cada

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414 qual para o seu lado”, ou se em cada quarto da casa existe um aparelho de televisão e um computador, o fato de seus membros quererem estar juntos pelo menos na hora do te-lejornal (além da hora da missa, é lógico) é, sem dúvida, uma boa pedida. Portanto, cabe ao(à) superior(a) incentivar sempre mais a criação de espaços e de momentos comuns, evitando ao máximo, ou pelo menos não privilegiando tan-to, o isolamento das pessoas que, afinal de contas, optaram, pelo menos em tese, por uma vida “em comunidade”. Se fosse para viver de maneira isolada, não precisaríamos de toda essa estrutura que temos na Vida Religiosa Consagra-da. A não ser que estejamos transformando nossas casas reli-giosas em “pensionatos” de gente chata e egoísta! Deus nos livre!

Por outro lado, fugindo da TV aberta e acessando os ca-nais pagos, ainda é possível encontrar boas opções de filmes, seriados, documentários, esportes, programas humorísticos etc. Existe um leque muito grande de alternativas, por sinal, e para todos os gostos! É só procurar e se programar bem! Esta, aliás, pode ser uma boa opção para o lazer da comuni-dade também. Aqui temos uma outra função importante da televisão, ou seja, a função de entreter ou divertir simples-mente. Como diria o poeta Vinicius de Moraes, “é melhor ser alegre que ser triste!”.

Queira Deus, então:

1. Que não perdure entre nós, religiosos e religiosas, aquele ranço antigo, aquele velho (e bobo) preconceito contra a televisão como se fosse coisa do diabo, embora devamos reconhecer que ainda existe muito “lixo eletrônico” sendo jogado em nossas casas não só pela Globo, mas por todas as emissoras, mesmo as “católicas”, por que não? Precisamos, por isso mesmo, discernir o que assistir e o que não assistir, usando o controle remoto de modo democrático também.

Xô, preconceito!

Nós e a TV

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4152. Que o costume de assistir televisão possa servir para au-mentar o nosso nível de informação sobre o que aconte-ce nas esferas da política, da economia etc., capacitando--nos a dialogar mais e melhor com o mundo em que vivemos.

Que venha a informação!3. Que em determinadas circunstâncias a televisão possa

ser uma fonte de descontração, de alegria para as nos-sas comunidades, além de uma boa opção de formação também para a Vida Religiosa Consagrada de uma for-ma geral.

Viva o lazer! Palmas para a formação!4. Que o fato de deixarmos de lado uma ou outra ativi-

dade cotidiana para ficarmos alguns momentos juntos na velha “sala de TV” da comunidade possa de alguma forma desestimular os “fujões” e as “fujonas”, aquele pessoal que gosta do isolamento do seu próprio quarto.

Abaixo o isolamento!

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Luzes e sombras da Vida Religiosa Consagrada nos dias de hoje

* Padre Carlos Palácio é jesuíta, doutor em Teolo-gia, provincial do Brasil da Compa-nhia de Jesus e vice-presidente da CRB. Endereço do autor: Rua Prof. Alfredo Gomes, Botafogo, 28, CEP 22251-080, Rio de Janeiro-RJ. E-mail: cpalacio.58@ gmail.com.

carlos Palácio, sj*

A metáfora das “luzes e sombras” nos transporta à obra dos grandes pintores impressionistas e ao uso que faziam dos jogos de luz para captar uma cena. Aplicado à VRC, equivaleria a flagrar num quadro o jogo de luzes e sombras que a definem neste momento.

Mas, logo a seguir, vem uma aposição temporal: “nos dias de hoje”. Não é só uma menção pontual à atualidade (hoje!) da VRC, mas uma alusão à sua história mais recente, que podemos delimitar aos últimos cinquenta anos.

Assim, da metáfora das luzes e sombras somos conduzidos à história cotidiana como lugar da vida. Luzes e sombras, então, são as conquistas e os impasses, as grandezas e misérias nas quais se debate hoje a VRC.

Não se trata, portanto, de flagrar o instantâneo de uma “natureza morta”, mas o movimento de uma experiência humana e espiritual que compromete a existência de muitos homens e mulheres. Que acontece com essa vida? A que ameaças está exposta tanto do ponto de vista da Instituição como das pessoas?

Levantar essas perguntas não é confessar que a VRC se encontre em estado terminal. Mas como negar o desencan-to estampado na vida de tantos(as) religiosos(as). Qual a origem desse mal-estar? E as suas causas?

O futuro da VRC só pode ser construído a partir do presente, mas de um presente convertido ao Evangelho, com a responsabilidade que exige de nós o seguimento de

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417Jesus. Estas reflexões desejam ser uma contribuição para tal discernimento.

1. PressupostosPode ser útil, para tranquilidade de todos, deixar bem cla-

ro, de maneira sucinta, três pressupostos ou convicções que sustentam, provocam e animam esta tentativa de interpretar o momento atual da VRC. Trata-se de convicções funda-mentais que iluminam a minha própria busca e que desejo partilhar com inúmeros religiosos – homens e mulheres – que, apesar de tantas dificuldades, não cessam de acreditar que a VRC tem futuro.

1) O primeiro pressuposto – que é também convicção – é simples: a VRC nasceu do Evangelho, da descoberta apai-xonada da pessoa de Jesus e da adesão à sua forma de vida. Por isso podemos dizer que, enquanto houver homens e mulheres “loucos por Cristo”, apaixonados por esse modo de ser de Jesus, não deixará de haver expressões dessa ex-periência em “figuras de VRC”. Convicção fundamental neste momento histórico, no qual a VR é questionada na sua qualidade evangélica de vida.

2) O segundo pressuposto é uma constatação histórica. Foram muitas e diversificadas as formas nas quais tomou corpo a VRC ao longo da história. A história da VRC ates-ta que certos grupos e formas de vida desapareceram após algum tempo de existência. Por isso nenhuma forma histó-rica particular de VRC pode ter garantia da sua perenidade. Sem que isso tenha significado nem signifique hoje o fim da VRC. Constatação que deveria dar-nos a paz e a liber-dade necessária neste momento para responder aos apelos do Senhor.

3) O terceiro pressuposto é um diagnóstico: a VRC sofre hoje de uma inegável “anemia evangélica”. Pessoal e ins-titucional. Tal diagnóstico não é um juízo de valor sobre as pessoas, é a constatação de uma situação objetiva, lida a partir de certos sintomas. Essa poderia ser uma das razões da falta de significação da VRC na cultura moderna e da sua

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418 irrelevância social. E uma das explicações possíveis da dimi-nuição das vocações. Para superar essa anemia, é preciso res-gatar a paixão pela pessoa de Jesus Cristo, o amor primeiro que deve irradiar em toda VRC. É a condição indispensável para um futuro com sentido.

2. Evolução da Vida Religiosa Consagrada desde o Concílio Vaticano II: uma releitura

A profunda transformação da VRC a partir do Concílio Vaticano II começou com a firme decisão de “voltar às fon-tes” em resposta ao convite do Concílio: mergulhar na raiz de cada carisma, para re-significar a identidade da VR e a sua relevância no mundo atual. Tal decisão exigia um “êxo-do”: era preciso abandonar o modelo tradicional de VR que dominava até o Concílio.

Com o recuo desses cinquenta anos é possível ter uma vi-são de conjunto e fazer uma avaliação objetiva desse período histórico. Tendo vivido e participado ativamente do proces-so, temos a possibilidade e, sobretudo, a responsabilidade de fazer a decantação dessa rica e complexa experiência.

Tarefa delicada que tem de ser realizada num diálogo aberto entre as várias gerações: a dos protagonistas, a dos que receberam prontos os resultados das mudanças, e a das gerações mais recentes, para as quais o Concílio é apenas história.

Cada geração tem uma percepção diferente desse período histórico porque diferente foi a sua forma de “padecê-lo”. De qualquer maneira, as marcas dessa evolução estão presentes no momento atual da VR. Como fazer esse discernimento?

O ponto de partida

É indispensável evocar – mesmo com rápidas pinceladas – qual era a situação da VR no momento do grande aconteci-mento que foi o Concílio Vaticano II. Até o acontecimento conciliar, ela desfrutava de uma situação tranquila, reflexo do que era a Igreja e a própria sociedade.

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419O Concílio dirigiu seu convite de renovação a uma forma de VR homogênea e unificada, reduzida durante séculos a um modelo único – o “modelo monástico” –, imposto a to-das as formas de VR, até mesmo à chamada VR apostólica.

Essa uniformização só foi possível por um exercício de abstração, isto é, uma abordagem que prescindia da diver-sidade concreta das formas de VR (teologia dos carismas) para privilegiar os seus aspectos formais (dimensão jurídica).

A perspectiva jurídica prevaleceu sobre a leitura teológica da VR, mas esse triunfo resultou num ato de violência, empo-brecedor não só da teologia, mas da prática vivida da VR na Igreja. Reduzida a um denominador comum, ela perdeu a riqueza da sua viva diversidade.

Esse modelo se consolidou e, em certo sentido, atingiu o seu ápice no século XIX. Três características lhe definiam o perfil:

a) uma floração de vocações até então desconhecida, res-ponsável pelo surpreendente crescimento numérico de VR, que foi levando insensivelmente à exaltação do quantitativo e do mensurável;

b) a solidez e o esplendor das instituições apostólicas (edu-cação, saúde, área social etc.) que lhe davam visibili-dade e eram reconhecidas pela sociedade com grande respeito;

c) e uma minuciosa codificação das práticas espirituais e comunitárias que transmitiam segurança espiritual e psicológica às pessoas.

Miragem ou realidade? O fato é que a VR era reconheci-da (identidade) e respeitada (incidência social) por essa “fi-gura histórica”. E até hoje, no imaginário de muitos cristãos (leigos, clero, hierarquia e mesmo religiosos), essa “figura” continua exercendo seu fascínio como se fosse a expressão definitiva da VR. Nos momentos de crise, essa atração fatal pode transformar-se em perigosa tentação. Teria sido um erro abandonar esse modelo de vida?

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420 Caminhos não percorridos até o fim

O abandono do “modelo tradicional” (tradição muito “curta”, contudo) significou a des-construção de uma forma de VR que dava sentido aos que a viviam e era um “sinal” compreendido de fora. Essa des-construção, contudo, era necessária. Primeiro porque o contexto cultural e eclesial da VR na época do Concílio Vaticano II não era mais o do modelo tradicional. Além disso, porque o resgate do que havia de original em cada carisma pôs em evidência que a VR apostólica não cabia nesse modelo.

Desafiada pelo Concílio a “voltar às fontes”, a VR iniciou uma travessia que dura até hoje. Ao mesmo tempo que mer-gulhava nas próprias origens, ela se abria ao mundo, entrava em diálogo com a mentalidade moderna e se apropriava de valores que, até esse momento, lhe resultavam estranhos (o respeito da liberdade da pessoa e da sua responsabilidade, o diálogo e o exercício da autoridade, a participação ativa nas decisões etc.).

As marcas dessas mudanças se tornaram visíveis no exer-cício da autoridade, num estilo novo de vida comunitária, na proposta da formação, nos deslocamentos apostólicos da Vida Religiosa Inserida etc. Outras eram mais sutis: trans-formações de mentalidade, capacidade de captar e interpre-tar os desafios novos, consciência de estar diante de uma exigência de maior fidelidade ao Evangelho. Aos poucos, a VR adquiriu um novo rosto.

Hoje, à distância de cinquenta anos, podemos reconhecer que essas mudanças, por mais necessárias que fossem, não conseguiram que o aggiornamento desejado pelo Concílio chegasse a transformar a VR em pontos essenciais, como a sua experiência fundante etc.

É como se a renovação tivesse dado de si tudo o que podia nas outras mudanças. Ou terá sido interrompida antes de poder chegar ao fim? Por falta de tempo? Pela ambiguidade inerente a todo processo humano?

Essa poderia ser uma das chaves de compreensão do mal-estar atual: diante da des-construção do “modelo

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421tradicional”, a VR pós-conciliar não foi capaz de construir um modelo alternativo, capaz de dar unidade e consistência à experiência das pessoas e visibilidade à VR.

O processo de ressignificação da identidade (a) e o da re-articulação da missão (b) foi interrompido. Nessa situação de interrupção dos processos deu-se o confronto da VR com o sujeito Pós-Moderno (c).

a) A busca interrompida da identidadeParece um paradoxo, mas na origem da crise pós-conci-

liar da VR está o próprio Concílio Vaticano II. O Concílio da Perfectae Caritatis, com a “volta às fontes”, é o mesmo da Lumen Gentium, que afirma a vocação de todos os cristãos à santidade.

Ao fazer da primeira e fundamental vocação cristã o chão comum da Igreja, a Lumen Gentium realizou uma verda-deira “revolução eclesiológica” que desestabilizou as outras vocações.

O impacto dessa revolução sobre as outras vocações, con-tudo, só se faria sentir mais tarde. Não é por acaso que as duas “vocações tradicionais” – à VR e ao presbiterado – en-traram em “crise” nos anos pós-conciliares: era necessário redefinir a sua identidade a partir da referência à vocação cristã comum.

Durante muito tempo, a auréola da santidade projetou so-bre a VR uma falsa superioridade que a mantinha distante dos simples fiéis cristãos. Essa poderia ser uma das expli-cações do crescimento numérico da VR tradicional: não havia alternativa para os cristãos que aspiravam a uma maior “perfeição”. Mas, desde o momento em que o Concílio de-clarou que todos os cristãos são chamados à santidade, a VR perdia o estatuto de estado de perfeição.

Confrontada com a igualdade fundamental da vocação cristã, a VR foi obrigada a dizer a si mesma em que consiste a diferença da sua forma de vida em relação às outras vocações. Só assim poderia recuperar o seu lugar dentro da comunidade eclesial.

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422 A questão não era só teórica. Ela exigia uma radical mu-dança de perspectiva na maneira de ver a Igreja: a passagem de uma Igreja pensada hierarquicamente para uma Igreja de comunhão, cujo pressuposto é a igualdade e a comunhão entre os cristãos.

As vocações na Igreja não são melhores ou piores em ter-mos absolutos. São diferentes. Por isso, compará-las entre si equivaleria a entendê-las como disputa pelo poder ou como questão de prestígio espiritual.

A diversidade é dom do Espírito para enriquecer o corpo. Não é concorrência, é convergência. Não é separação, é harmonia.

Nas suas cartas, Paulo gosta de descrever essa riqueza ecle-sial com a metáfora do corpo, da diversidade complexa que constitui a sua unidade viva.

A teologia da “concorrência” não é inocente. Tampouco é evidente que a VR tenha assimilado a teologia da igualdade na diversidade. Sobretudo nas suas consequências práticas.

Dois indícios permitem suspeitar que essa ainda é uma lição pendente. O primeiro é a relação com os movimentos eclesiais; o segundo, a “emergência dos leigos” e o papel que eles vão assumindo na Igreja.

Os dois causam mal-estar na VR. Incomoda-a o manifes-to apreço da hierarquia pelos movimentos. Representariam eles as “novas formas de VR”?

Por outro lado, o recente fenômeno dos “leigos asso-ciados”, “colaboradores” etc., que pode ser verificado na maioria das Congregações (e, em si mesmo, pode ser um encontro fecundo e enriquecedor entre vocações diferen-tes), é sentido por muitos religiosos como ameaça à própria identidade.

Dúvida identitária que já era visível na discussão sobre o “caráter leigo” da VR alguns anos atrás. Os motivos eram outros (dissociá-la com clareza da estrutura hierárquica da Igreja), mas a solução era no mínimo ambígua, com reper-cussão na identidade da VR.

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423Essa nova realidade eclesial operou um deslocamento da identidade na VR. Qual é o seu lugar na comunidade ecle-sial? É a pergunta subjacente à perplexidade atual de muitos religiosos e religiosas que se interrogam sobre a sua iden-tidade e lugar na Igreja. Crise de identidade institucional e pessoal, agravada por um contexto cultural no qual as pessoas – também os religiosos – são solicitadas em dire-ções contraditórias pelos mais diversos valores. É o que Z. Baumann chamou “identidades líquidas”. Em que consiste o específico da VR apostólica e que significa para a Igreja? Pergunta que não pode ser resolvida só teoricamente; exige uma resposta existencial: é a questão da “razão de ser” e de permanecer hoje na VR.

b) A desarticulação da missão: que é “ser enviados”?A crise de identidade se fez sentir de modo peculiar na

chamada VR apostólica. E com razão. Para ela, redefinir-se a partir da vocação cristã fundamental (primeira identidade) significava, ao mesmo tempo, recuperar o que há de espe-cífico na sua forma original de vida (segunda identidade).

Ora, a consciência dessa originalidade tinha desaparecido ou, pelo menos, ficou diluída, em estado letárgico, desde que a VR apostólica foi obrigada a compreender-se dentro do “modelo monástico” que lhe era alheio.

Essa transposição monástica da VR apostólica afetou a sua identidade porque desfez a síntese original entre experiência de Deus, vida comunitária e missão que constitui a novida-de da sua proposta de vida. Fora dessa unidade constitutiva, cada um desses elementos adquire outra significação. Não se expressa nem tem o mesmo sentido a experiência de Deus na VR apostólica e na vida monástica.

Que tipo de experiência espiritual alimenta e dá consis-tência à missão? São diferentes a função da vida comunitária num contexto monástico e o sentido apostólico do “viver em comum” para “ser enviados em missão”, característica da VR apostólica. A identidade da VR apostólica está en-raizada nessa unidade circular: as três dimensões se comple-mentam e se interpretam mutuamente.

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425Eis por que a VR se tornou mais vulnerável a valores e critérios alheios ao Evangelho. Como negar que houve uma assimilação acrítica da “mentalidade do mundo” (cf. Rm 12,2), uma mistura indevida do que o Evangelho de João distingue com tanta nitidez: “estar no mundo” e “ser do mundo” (cf. Jo 17,9-18)? O resultado foi perda da mobilida-de apostólica, falta de liberdade em relação às obras atuais e medo em face dos novos desafios.

O segundo fator da crise da missão é a perda da visibilidade social e a ambiguidade das instituições. Durante vários séculos, num contexto histórico, social e cultural diferente, a VR expressou sua dedicação e cuidado aos mais necessitados através de instituições como hospitais, orfanatos, escolas etc., que lhe davam visibilidade social e expressavam o seu devotamento aos pobres “em nome do Evangelho”. O apre-ço e o respeito da sociedade por essas instituições era um testemunho de que o “sinal” era compreendido.

Hoje a situação é diferente. Na sociedade moderna, tais instituições (colégios, universidades, hospitais, orfanatos etc.) são instrumentos de “serviços públicos” (educação, saúde etc.), cuja prestação cabe ao Estado em primeiro lugar.

Por isso a presença controladora do Estado nesses serviços se torna cada vez mais evidente, mesmo quando se trata de instituições dirigidas por religiosos. Por outro lado, tais instituições fazem parte de uma sociedade dominada pela lógica do mercado. O fator econômico é determinante: condiciona e permeia todas as relações.

É possível subtrair as Instituições religiosas a essa lógica onipresente do Estado e do mercado? Esse problema não se resolve com uma declaração de princípios. O contexto im-pede que transpareça nelas a finalidade apostólica. Mesmo que portem nomes religiosos. Querendo ou não, são tam-bém expressões da lei da oferta e da procura, expressões do mercado e a serviço dos valores desse mercado (status social, poder etc.). Não são “sinais” inteligíveis do Evangelho.

Essa é uma situação objetiva que agrava a crise da mis-são pessoal e institucional. A pergunta é inquietante: no

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426 contexto atual, podem essas instituições ser mediações do Evangelho? É possível subtraí-las à lógica do mercado do qual fazem parte, modificar-lhes a ambiguidade que as permeia e transformá-las em “sinais” inteligíveis do que significa a missão? Tal situação não poderia deixar de pe-sar nas pessoas. É questão de coerência espiritual. E exige discernimento.

O terceiro elemento desta crise vem à tona no modo pragmá-tico de conceber e realizar a missão. O desejo de eficácia, a vontade de transformar o mundo e a sociedade tornam-se um peso insuportável, como se a nossa missão fosse “salvar o mundo”.

Seduzidos pela aparente onipotência da moderna “razão instrumental” e por uma tecnologia que não conhece limi-tes, é grande a tentação de transpor para a ação apostólica os critérios da eficácia e dos resultados mensuráveis. Sucumbir a essa tentação seria a morte da missão.

Somos apenas “servidores da missão de Cristo” e não “do-nos” da missão. Os meios não se podem separar do espírito. O modo de “estar e de realizar a missão” é tão importante quanto o resultado da mesma.

Por isso, o estilo de vida – pessoal e comunitário – é parte integrante da missão. Mais ainda, é missão em sentido ple-no. Mais uma vez vem à tona a circularidade inseparável das três dimensões.

c) Encontro e confronto com o sujeito Pós-ModernoComo o próprio Concílio Vaticano II, a VRC foi sur-

preendida na sua travessia por uma profunda e inesperada mutação cultural que significou uma mudança de interlo-cutor: a passagem do sujeito moderno para o Pós-Moderno. Essa mudança não se deu só pela emergência das “novas gerações” na VRC, é resultado do impacto da mentalida-de Pós-Moderna na sociedade e na cultura. E, portanto, na VRC.

Não é necessário fazer uma análise de tal situação cultural para perceber como incidem na VR os traços mais marcantes dessa cultura. Ser ou não ser Modernos ou Pós-Modernos

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427não é questão de escolha, é um modo de ser que a cultura e a sociedade nos impõem. A questão é saber como lidar com esse “imperativo cultural”: até que ponto o submetemos ao crivo do Evangelho?

Há não poucos indícios de que a fragmentação do sujeito Pós-Moderno incide poderosamente na crise de identida-de da VR apostólica e contribui para a desintegração da unidade perdida entre experiência espiritual, estilo de vida e envio em missão. Não só pela afirmação incondicional do sujeito, cada vez mais ilhado no individualismo, mas pela acelerada e constante transformação das mentalidades e valores.

É possível ser seguidores de Jesus sem submeter tais mu-danças a um discernimento permanente? Como processá--las de modo evangélico? O problema não é só dos mais jovens. A contaminação cultural das mentalidades não faz distinção de pessoas nem de idade.

Como resultado dessa contaminação, a VR foi-se trans-formando, de maneira imperceptível, num estuário no qual desembocaram concepções inconciliáveis, senão contraditórias.

É visível a fragmentação da experiência espiritual, da con-vivência fraterna e da missão apostólica. Nela vem à tona a ausência de uma base homogênea e coerente e de uma lin-guagem comum que expresse a unidade do vivido.

Continuamos utilizando a mesma linguagem sem perce-ber que ela tem outro sentido; falamos em carisma como se fosse possível encontrá-lo em algum lugar mítico, privile-giado (seria o “espiritual”?), à margem da unidade indisso-lúvel entre experiência fontal de Deus, envio em missão e vida compartilhada.

Não temos consciência de que a prolongada “redução mo-nástica” causou à VR apostólica um mal mortal do qual não se recuperou ainda: a desarticulação da unidade da expe-riência e a fragmentação de cada um desses elementos.

Onde se encontraria o sentido profundo da VR senão na qualidade da vida fraterna e no estilo de vida em missão?

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428 Por que teimamos em reduzir a missão ao que “fazemos” ou às obras e instituições que temos? Quando cairemos na conta de que o que somos e vivemos tem de ser a alma (animar) da vida fraterna e inspirar a missão? E que sem essa mútua interação a nossa identidade é oca e a missão não passa de agitação vazia? Se a missão não visibiliza e expressa de modo significativo o que somos, a nossa vida e o que fa-zemos é sem sentido. Ou somos missão viva ou não somos; mesmo que nos desgastemos trabalhando.

Essa desintegração da unidade é uma das razões da insa-tisfação e do desencanto perceptíveis em tantos religiosos. Em certo sentido, tornamo-nos reféns do ceticismo e do pessimismo que paralisam a cultura contemporânea. Anê-micas de espírito, as nossas vidas não “falam” de Deus. É como se, na nossa experiência espiritual, não houvesse mais lugar para uma irrupção surpreendente e imprevisível de Deus, como, por exemplo, a experiência de reconhecer um chamado especial de Deus na própria vida.

A vocação à VR é a misteriosa e exultante experiência de sentir-se chamado(a) a viver a “forma de vida de Jesus”. Essa é, de fato, a vocação originária da VR: reproduzir a “forma de vida” de Jesus, deixando-se configurar em tudo pelos seus valores e estilo de vida.

Ora, no caldo cultural e pseudorreligioso da Pós-Moder-nidade, a VR corre o risco de ser reduzida cada vez mais a um “espaço terapêutico” de “autorrealização”.

As demandas cada vez mais exigentes do indivíduo se afastam da Instituição e o vínculo institucional se desfaz suavemente até a ruptura.

O indivíduo tende a apropriar-se da instituição como es-paço propício para os seus objetivos: a VR se transforma em “meio”, instrumento a serviço dos interesses do indivíduo. É possível falar em vocação quando o imperativo da autorrea-lização se instaura em critério da VR?

A pergunta não é retórica. A preocupação do sujeito mo-derno com o “eu” pode obnubilar a tal ponto a pessoa do(a) religioso(a) que se torna incapaz de reconhecer que está

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429instalada numa contradição: busca-se em tudo a si mesma, mas convencida de estar respondendo ao chamado de Deus.

Não que a VR rejeite as qualidades humanas das pessoas ou negue a sua importância. Mas essa realização passa por um des-centramento do “eu” pessoal ao ser confrontado com o estilo de vida de Jesus. Quando temos “os olhos fi-xos em Jesus”, muda a compreensão do “autorrealizar-se”?

Não há como fugir. O chamado de Jesus altera a vida da pessoa e a obriga a pensar de outra forma o próprio “eu”. Só essa experiência pode justificar que alguém abra mão de algo que até o momento era para ele(ela) absoluto, irrenunciável.

Por isso, no “mundo líquido” no qual estamos mergulha-dos, para recuperar o encantamento e a atração da “forma de vida” que exige o seguimento de Jesus, a VR requer vocações autênticas, isto é, identidades pessoais definidas a partir de um “eu” atingido (como diz Paulo em Fl 3,12) pelo chamado de Jesus e disposto a ir até o fim desse caminho. É a condição indispensável para que a VR seja capaz de configurar um ethos próprio que não seja pura repetição da “mentalidade do mundo”. Só assim poderá ser re-conhecida (visibilidade social e cultural) no que tem de específico.

3. Duas “parábolas” para o momento histórico da Vida Religiosa apostólica

Dois relatos de Lucas – Emaús (Lc 24,13-35) e a pesca milagrosa (Lc 5,1-11) – podem ser lidos como “parábola” deste momento histórico. Como aqueles dois discípulos, a VR se encontra no caminho de uma “noite escura”. Ao seu redor, nada favorece um olhar de esperança. O presente está habitado por “todas as coisas que aconteceram”, tão fortes, tão “evidentes” que matam a esperança e a capacidade de ler os sinais que existem. O vazio da ausência se impõe. Depois de uma longa noite trabalhando sem os frutos esperados (Lc 5,5), a VR precisa ouvir do Senhor esta “ordem” taxativa: “Faze-te ao largo!” (cf. 5,4), entra em mar profundo, até que se descortine diante dela um horizonte inesperado. A solução não é voltar ao passado nem afastar-se do Senhor,

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430 como Pedro (cf. 5,8), mas voltar a lançar as redes “em teu nome”, “pela tua palavra” (cf. 5,5), até ouvir o chamado que a projeta para o futuro de Deus: “Eu farei de vós pesca-dores de homens” (cf. 5,10).

Emaús é a tentação do passado. Solução ilusória, porque esse passado não existe mais. As incertezas do momento histórico foram incorporadas na nossa vida sem remédio, nos habitam. A única saída é processá-las à luz do Evan-gelho. É a função do “trabalho terapêutico” realizado por Jesus com os discípulos ao longo do caminho de Emaús. Também nós necessitamos formular e elaborar o que nos dói, até que os corações se aqueçam, os olhos se abram e a esperança retorne.

Crer no futuro da VR é acreditar na fidelidade maior de Deus que habita e torna possível a travessia deste momento histórico. Apoiados na palavra do Senhor, é preciso “entrar em águas profundas”. Travessia que nos leva da identidade suspendida à identificação do chamado; e da desarticulação da missão à recuperação da unidade originária entre “ser” e “ser para os outros” na experiência única de “ser com Jesus”.

1. Recuperar a experiência da vocação, do “ser chamado”: é a primeira condição para que a VR possa reviver. À primeira vista, parece óbvio, mas é algo que não pode ser dado por suposto. Sem “vocação” não pode haver “vida”.

“Ninguém deve atribuir-se esta honra” – diz a Carta aos Hebreus (5,4s), ao falar do sacerdócio de Cristo – “senão aquele que foi chamado por Deus, como Aarão”.

Discernir a vocação: é o primeiro trabalho para reconstruir a VR apostólica. Questão relacionada com o problema das vocações que tanto nos preocupa.

É urgente discernir com maior cuidado a vocação dos que desejam entrar, mas, com não menos cuidado, é necessário discernir a qualidade da vocação dos que já estão (“como es-tamos” na VR?; como explicar tantas “saídas”?).

A qualidade de vida na VR é um problema de vocação (como estamos e vivemos?). Vocação entendida como opção de vida, não apenas como questão de gosto, inclinação, qualidades

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431etc. na decisão inicial. Ora, toda opção de vida implica ris-cos. “Porque não se sabe”, dizia Guimarães Rosa. Por isso uma vocação consistente exige um fundamento sólido, ne-cessita de uma “mística” que a sustente.

É urgente recuperar a “mística da vocação” tal como nos sai ao encontro nos relatos evangélicos. A aparente “inge-nuidade” desses relatos, estilizados ao máximo, não esconde a sua densidade antropológica: Jesus passa, vê, chama e sus-cita a resposta do seguimento.

A vocação aparece como um “acontecimento” que sobre-vém na vida de uma pessoa, ao encontrar-se com alguém que lhe dirige um chamado. Acontecimento surpreendente, ines-perado e por isso gratuito.

O chamado vem de fora, de “outro”, alguém que inter-pela e dessa forma altera (alteridade) a vida da pessoa. É o que os Evangelhos descrevem como “encontro” com Jesus de Nazaré.

A resposta só pode ser pessoal e livre, ninguém pode res-ponder no lugar do outro: o chamado é categórico, impera-tivo (segue-me!). E aponta para a radicalidade antropológi-ca do seguimento: é tudo ou nada. O que está em jogo é a totalidade da vida da pessoa. Mas é possível alguém arriscar dessa forma a sua liberdade humana?

A “graça” da vocação está presente no ato mesmo de estar aberto(a), de acolher e “escutar” o chamado. Essa graça sus-cita a liberdade responsorial e torna possível uma resposta livre. A radicalidade antropológica, contudo, não se esgota no ato de responder; tem de ser “posta em prática” ao longo da vida e em todas as dimensões.

Esse é o sentido de o evangélico “negar-se a si mesmo”, que não tem nada a ver com repressão ou negação do hu-mano (des-humanizar-se), mas é a renúncia a fazer do “eu” o centro, a norma e a meta da própria vida.

De antemão, é preciso “renunciar a si mesmo”, abdicar do domínio sobre a própria vida.

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432 O que só é possível “por causa de mim e do Evangelho” (Mc 8,35), ou seja, na medida em que Jesus entra e se apo-dera sem retorno da nossa vida. E assim a realiza.

Relação pessoal na qual a forma de vida de Jesus exerce uma verdadeira sedução sobre a pessoa, tornando-a capaz de aderir em liberdade.

É o que significa, aqui, “recuperar a vocação”. Paradoxal-mente, esse “perder-se para encontrar-se” é a condição para podermos ser “enviados” como testemunhas do Senhor.

Servir só é possível numa atitude desarmada, quando não se tem nada para levar. É a “mística da vocação”. Sem ela a VR se tornará, mais cedo ou mais tarde, um peso insuportável.

Inconscientemente, a resposta irá se deslocando da “VR como opção de vida”, livremente assumida, para a “VR como fardo que se carrega”. O que afeta não só a pessoa, mas o corpo.

Ora, “ter vocação” hoje não é algo evidente. Menos ainda numa cultura onde prima o “sucesso profissional”, a ob-sessão com a realização. Cultura de “profissões”, não de “vocações”.

A cultura moderna privilegia, por um lado, a lógica da razão instrumental (a tecnologia demanda profissionais al-tamente qualificados) e, por outro, a afirmação do indiví-duo (eu!) como sujeito definitivo da sua autorrealização. Profissão é sinônimo de trabalho, dinheiro, nível de vida e autorrealização.

Não há lugar, nessa perspectiva, para a experiência da “vo-cação recebida”, que qualifica o “eu” do sujeito para além do profissional e confere sentido à sua vida.

Perde-se o sentido da vocação porque se perdeu o sentido de pôr a vida a serviço dos outros. Por isso faltam “voca-ções” em todos os âmbitos da vida humana e social.

Pode haver excelentes profissionais da medicina sem “vo-cação” para serem médicos, assim como é possível fazer coi-sas boas na VR sem ter “vocação” para viver essa opção.

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433A vocação como opção de vida – vida posta a serviço dos outros – supõe uma experiência de êxodo de si mesmo: sair do “eu ensimesmado” para receber-se como “eu pro--vocado” por Deus. É preciso ter passado pela experiência dessa perda de si mesmo para descobrir a alegria de realizar--se “perdendo-se”, de ganhar a vida dando-a. É o paradoxo do Evangelho.

Como opção de vida, a vocação não pode ser relegada ao passado (o momento de entrar na VR). Por isso, o proble-ma de “viver a vocação ou com vocação” é mais preocu-pante que o das “vocações” (quantos somos?). Porque está em jogo a qualidade do que somos: o que se vive é mais importante que o número de pessoas que entram na VR. É possível transmitir com nossa vida (qualidade de vida) a experiência que nos habita e dá sentido?

Tal abordagem pode resultar estranha à primeira vista, mas é fundamental. O problema das vocações à VR não é apenas uma questão de número. É questão de identidade, inseparável da qualidade de vida. Eis por que se faz necessário discernir não só a vocação dos que estão para entrar, mas também a dos que já estão na VR.

a) O fundamento da VR apostólica: como toda vocação cris-tã, a VR encontra seu fundamento no Evangelho. Não há nisso nenhuma pretensão de apropriar-se com exclusividade dos relatos evangélicos de vocação. Poderia recorrer igual-mente à elaboração paulina da vocação como conversão, passagem, da “escravidão” para a “liberdade de filhos”; ou a outros textos do Novo Testamento.

Uma coisa é certa, a experiência fundante da vocação à VR é o chamado a seguir a forma de vida concreta de Jesus. Nele descobrimos uma experiência de Deus feita carne – com gritos e lágrimas – nos embates da vida cotidiana: aprendeu a ser Filho nos sofrimentos da vida (cf. Hb 5,8).

Em contraposição ao autocentramento do sujeito moder-no, Jesus vivia duplamente “des-centrado”: voltado para o Pai e entregue aos outros. Essa é a experiência que queria

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434 transmitir aos que chamou para “estar com ele”, “os com Jesus”, como diz Marcos.

O relato paradigmático de Mc 3,13-15 o expressa de ma-neira sucinta e plástica: chamou os que quis, e foram a ele, para “estar com ele” e “enviá-los” a anunciar o Evangelho.

O tríptico “chamou os que quis, para estar com ele e en-viá-los” indica claramente qual é o núcleo específico da VR apostólica, a sua experiência fundante, a “mística” sem a qual essa vida se desintegra e perde o sabor. “Ser com os ou-tros” (vida fraterna) para “ser enviado com outros” (missão) faz parte da identidade (ser, sendo com Jesus) desse tipo de VR. A raiz dessa experiência é o chamado de Jesus.

Tal chamado deve configurar a vida da pessoa em todas as suas dimensões. A con-vivência é resultado do “estar com Jesus”. Somos amigos no Senhor porque somos amigos do Senhor. E, ao mesmo tempo, qualifica a missão: somos en-viados não como indivíduos isolados, mas como “corpo apostólico”.

Essa “forma de vida” é um dom (carisma) para a Igreja e pode constituir-se apelo para que outros a vivam. Mas a sua força reside na unidade indissolúvel desses três elementos.

Recuperar a primazia da vocação é experimentar no con-creto da vida que o chamado de Deus me precede e me pro--voca, qualificando cada dia o meu “eu”. Essa precedência dá sentido e fundamento à vida e à missão. Experiência de Deus que nos desloca sem cessar, fazendo-nos sair de nós mesmos para os outros. A experiência de continuarmos a ser seduzidos por Jesus e por sua vida devolve atualidade à vocação e nos faz sair do marasmo e da anemia espiritual.

b) Discernir a vocação dos que estão na VR. A vocação é ne-cessária para “entrar” na VR, mas também para “permane-cer” nela. É preciso sentir-se chamado para escolher o estilo evangélico de vida. Não bastam as qualidades humanas e espirituais. Sozinhas, elas não são critério nem “sinal” de vocação. É preciso ter sido “atingido” por Jesus (cf. Fl 3,12), sentir-se chamado a viver a sua “forma de vida” e fazer dela

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435o sentido da própria vida. Essa é a primeira e fundamental “missão” na VR.

Ora, da “forma de vida” de Jesus fazem parte constitutiva: a) a relação fontal com o Pai, b) a con-vivência com os que ele con-voca (viver “com Jesus” cria comunhão e comuni-dade) e c) pôr a vida a serviço dos outros. Esses três aspectos vividos numa síntese original constituem a característica da VR apostólica. A “mística da vocação” repousa sobre essa unidade entre “ser” e “ser enviado em missão”.

Por isso, perguntar-se “como estamos/permanecemos” na VR é decisivo para recuperar-lhe a qualidade. Do contrá-rio, aos poucos a permanência se torna um peso morto que infecciona o corpo da VR e o vai debilitando. É a “anemia espiritual”. Por isso é necessário discernir a “vocação dos que estão”.

Até que ponto a “vocação” define a permanência e o modo de estar e viver na VR? A resposta não é evidente. Em muitos casos, a vocação parece ser “coisa do passado”, não conserva a força do aoristo permanente: um chamado que continua a ressoar no presente. Como se, dado o passo inicial, consumada a entrega primeira, fosse só questão de “tocar a vida”.

É decisivo, portanto, recuperar a força da vocação para re-constituir a unidade perdida da VR apostólica. Só a partir da experiência de “ser chamado” será possível recriar a sín-tese viva entre experiência de Deus, partilha da vida com outros e envio em missão, que constitui a “mística inspira-dora” dessa forma peculiar de vida que é a VR apostólica.

c) Ao mesmo tempo, um imperativo se impõe: ter maior clareza e rigor no discernimento das vocações à VR. Não como atitude elitista, mas por uma questão de coerência com a eclesiologia da Lumen Gentium e a sua teologia das voca-ções. Cada uma das vocações na Igreja tem a sua função na comunidade e deve ser valorizada na diferença que repre-senta. Por isso é necessário discernir o chamado de Deus em cada caso. Não existe uma vocação “superior”. A “melhor”

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436 vocação é a que Deus dá a escolher a cada um, não a que a pessoa escolhe de modo arbitrário.

A VR é uma das vocações possíveis na Igreja. Não é me-lhor nem pior do que outras. Por isso o decisivo é ter certeza de que Deus chama alguém para esse tipo de vida. Não pa-rece que seja essa a atitude dominante na admissão dos(as) candidatos(as) à VR. É preciso ter critérios bem claros e definidos.

Não basta ter inclinação, gosto, certas qualidades etc. Nada disso é indício de vocação, de chamado de Deus. Hu-manamente, é indispensável a maturidade para fazer uma opção de vida. As qualidades têm o seu lugar, sobretudo pelo perfil que caracteriza cada tipo de vocação. Mas o de-cisivo é detectar os sinais de um verdadeiro chamado.

Tem-se a impressão, contudo, que a obsessão do número continua a condicionar os nossos discernimentos. Os itine-rários vocacionais de muitos candidatos são surpreendentes: eles revelam buscas aleatórias, em função da pessoa, mais do que discernimentos de uma vocação divina. Tanto na VR masculina como na feminina.

Com a maior naturalidade, o mesmo candidato transita por diversas comunidades religiosas: depois da estadia numa Ordem monástica, bate às portas de uma Congregação apostólica sacerdotal, passando por várias Congregações de Irmãos. Como se os carismas fossem iguais ou as formas de vida, intercambiáveis.

De qual discernimento se trata? O chamado de Deus pode ser tão aleatório? Ou estamos alimentando itinerários pes-soais cujo desfecho é tão fortuito quanto casual foi o seu ponto de partida? As consequências desse tipo de “vocação” se farão sentir mais tarde. Com prejuízo para todos. E em detrimento da qualidade de vida.

A própria VR se deprecia ao compactuar com esses proce-dimentos. O rigor no discernimento vocacional é uma pro-va de honestidade com Deus e de seriedade com a vocação e com o candidato.

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4372. Ao mesmo tempo que a VR apostólica é desafiada a reconstituir a sua unidade vital, ela é chamada a recuperar a qualidade evangélica de vida. É necessário que a experiência fundante se expresse em traduções concretas que lhe deem visibilidade e lhe devolvam a capacidade de atração.

É o “vinde e vede” do convite de Jesus ( Jo 1,39; cf. v. 46). No tempo pós-pascal, o chamado, a vocação, nos al-cança através de outros ( Jo 1,41 e 45ss): “Encontramos o Cristo!”. Não haverá vocações se a nossa vida não suscitar interrogações.

Como acontecia com Jesus, é preciso que as pessoas se perguntem a respeito da nossa forma de vida: “Quem és tu que fazes estas coisas e as fazes desta maneira?”.

É uma das tarefas pendentes da VR hoje. Ao longo de cinquenta anos, ela passou por profundas transformações que lhe deram um rosto mais humano. Não parece, contu-do, ter alcançado o que buscava com a renovação. É como se a “modernização” da VR tivesse ficado aquém do verdadei-ro alvo: uma qualidade de vida mais evangélica. Contentar-se com menos seria baratear a vocação à VR, reduzi-la a um espaço terapêutico de autorrealização. Não será essa a razão da nossa insatisfação atual?

Dois elementos são indispensáveis para que a VR apos-tólica recupere a sua qualidade evangélica. O primeiro é a reconstituição da sua “experiência fundante”, da síntese viva dos três aspectos que a constituem. As mudanças pelas quais passou não tiveram a incidência esperada em aspectos fun-damentais da VR, não modificaram qualitativamente nem a nossa experiência de Deus, nem as nossas relações fraternas, nem a maneira de realizar a missão.

Em segundo lugar, reconstituída essa experiência, a VR apostólica tem de reconstruir a sua visibilidade institucional. Algo que era muito evidente no “modelo tradicional”. Mas visibilidade não é sinônimo de multiplicação de estruturas. A VR pós-conciliar partiu, com razão, à procura de outras expressões. Há muitos indícios, contudo, de não ter che-gado a reconstruir a sua visibilidade própria. Navegamos

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438 entre resíduos do passado e fragmentos erráticos de novas expressões. Mas não temos traduções claras da experiência vivida como “forma concreta de vida”.

Que significa para a VR dar-se uma visibilidade evangé-lica? Não se trata de qualquer estrutura. A visibilidade tem de brotar do interior da “experiência fundante”, é ela que deve configurar de maneira concreta cada um dos aspectos do modo de ser e viver. Em outras palavras, a experiência é a matriz para uma base comum que confira coerência ao vivido: um horizonte comum de compreensão, uma lin-guagem comum e um ethos específico, do qual deve brotar o estilo de vida.

Sem um horizonte comum de compreensão não pode haver “comunhão de vida”. A uniformização monástica foi um golpe mortal para a identidade da VR apostólica. No ex-tremo oposto, a cultura moderna fragmentada não oferece um horizonte comum de sentido. Nesse contexto, a VR só poderá conviver com a grande diversidade que a constitui se for capaz de manifestar nessa diversidade a unidade plu-ral que se tece ao redor de Jesus. Ele é o “critério de vida”, a “norma fundamental” do horizonte de compreensão da VR. O contrário dessa “unidade plural” seria uma diver-sidade caótica, na qual tudo é igualmente possível. O que equivaleria à morte da VR.

Tal unidade não é negação da diversidade, mas integração das diferenças e da diversidade plural que enriquecem. É o que a VR apostólica parece ter perdido por falta de imagi-nação ou de criatividade. Ou talvez porque não tem a li-berdade de deixar que as suas expressões brotem livremente da vida.

Situarmo-nos no mesmo horizonte, a partir de perspecti-vas diferentes, nos fará descobrir uma linguagem identificadora – espiritual, comunitária e apostólica – que dê unidade à diversidade de perspectivas. A linguagem que identifica e dá corpo “à unidade na diferença”. Tal linguagem só poderá brotar da unidade recuperada da experiência originária: a experiência que sustenta e dá sentido aos indivíduos (ex-periência de Deus em Jesus Cristo) é a que torna possível

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439a con-vivência com outros (vida fraterna em comum) e a que deve inspirar, animar e dar sentido à missão (o que “fazemos”).

A VR apostólica carece também de um “ethos” próprio que dê visibilidade e expresse com clareza a “diferença” da sua proposta de vida. O formalismo da normativa tradicional da VR deu lugar a um vazio de referências, no qual cada um é critério de comportamentos. Se os valores e os compor-tamentos com os quais nos identificamos são os da cultura dominante, em que consiste o nosso testemunho, qual é a nossa diferença? A VR necessita de um ethos comum, cuja referência seja o universo de valores do Evangelho, isto é, um modo de ser que crie comportamentos diferenciados em relação à sociedade e à cultura circundante.

É a diferença entre “estar no mundo” e “ser do mundo”, na qual insiste tanto o Evangelho de João. Não podemos excluir que a VR, nesse processo de transformação, tenha assimilado, sob diversos aspectos e de maneira acrítica, o modo de ser e o espírito do mundo, afastando-se da sua matriz evangélica.

Desse ethos particular, desse estilo de vida “ao modo de Jesus” (ethos e estilo nos quais se encontram e se reconhe-cem os chamados a viver essa forma de vida) irá surgindo, de modo espontâneo, a expressão visível desse modo de viver. Assim, a VR se dá a conhecer (visibilidade) e se torna, ao mesmo tempo, uma interpelação e um questionamento para outros (significação). A atração desse estilo de vida e a ca-pacidade de suscitar interrogações (por que são assim? O que justifica essa vida?) serão a prova da autenticidade da experiência vivida e da sua força transformadora.

Se os homens e mulheres com quem convivemos são inca-pazes de captar “de que” e “para que” vivemos, deveríamos nos perguntar se a nossa vida não passa, como diz Paulo, de um címbalo que retine (cf. 1Cor 13,1).

* * *

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440 Este momento histórico pode representar um verdadeiro kairós para a VR apostólica, a graça “pascal” de ressurgir para uma vida recriada. Mas para isso tem de aprender a ler os “sinais dos tempos”. As mortes parecem claras. O núcleo duro de tal “páscoa” é a redução ao Evangelho, a conversão à sua “forma de vida” original. Qualquer outra tentativa re-sultará insuficiente. É possível essa reconversão – pessoal e institucional – da identidade e da missão da VR apostólica? Ainda há lugar nas nossas vidas para uma irrupção criadora do Espírito?

Dupla é a missão da VR apostólica dentro da Igreja. Ad intra, ela é chamada a manter viva na comunidade eclesial a consciência de que a Igreja não existe para si mesma nem termina em si mesma, mas existe “para o mundo” – o único mundo, concreto e real, pelo qual Jesus Cristo entregou a vida. Ad extra, a VR é enviada para estar presente no mun-do, “gritando com a vida” – como diriam o Irmão Carlos e a Irmãzinha Madalena – que para gerar vida é preciso transmitir fé na vida, que “outro mundo é possível” só no “espírito das bem-aventuranças”, e que é desse Espírito de Jesus – “Espírito” com grande maiúscula – que o mundo está sedento.

Para desempenhar essa dupla missão, contudo, é necessá-rio que a VR realize previamente em si mesma a “síntese vital” entre paixão por Deus, vida fraterna e missão. Não é com discursos que convenceremos o mundo da primazia de Deus na nossa vida ou nos tornaremos “sinal” de Jesus Cristo para os outros.

Não basta “viver juntos” para nos tornarmos sinais do que significa ser “companheiros de Jesus”, podemos desgastar--nos no trabalho sem que transpareça o mais importante, isto é, que somos “servidores da missão de Cristo”.

A partir dessas premissas, com simplicidade e humildade, a VR apostólica poderá entrar em diálogo com outras vo-cações e formas de vida na Igreja. Sem esconder o seu rosto nem diluir-se em alguma das outras formas, mas afirman-do o seu lugar e a sua função na comunidade eclesial e no mundo ao qual é enviada. Basta que ela se “faça ao largo”, se

Luzes e sombras da Vida Religiosa Consagrada nos dias de hoje

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Questões para ajudar a leituraindividual ou o debate em comunidade1. Qual a origem (as causas) e as principais manifesta-

ções de mal-estar que podem ser detectadas hoje na VRC?

2. O convite do Concílio Vaticano II à VR para “vol-tar às fontes” parece ter entrado em conflito com a afirmação conciliar sobre a vocação de todo cristão à santidade. Trata-se de um conflito? Como é que ele repercutiu na VR?

3. Em que sentido se pode falar de uma desarticulação do sentido da missão na VR apostólica? E como se manifesta na configuração da sua forma de vida?

4. Como repercutem as características culturais do su-jeito moderno na pessoa do(a) religioso(a), no seu estilo de vida e na maneira de conceber a própria vocação?

arrisque a entrar nessas águas profundas às quais está sendo convidada hoje pelo Senhor.

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442 Experiência de Deus que gera Projeto de Vida

ruBens nunes da Mota, ofMcaP*

“Vejam, fiz de novo a leitura das raízes da vida, que meu Pai vê melhor.

Luzes, acendi com brandura...” (Música: Frei Antônio Fabreti, ofm;

Letra: J. Thomaz Filho)

Este breve artigo quer ser uma provocação que ajude nas reflexões sobre o Serviço de Animação Vocacional (SAV) neste triênio.1 São contribuições que evocam as experiên-cias de Assessoria, participação em Congressos e contribui-ções de alguns autores.

A sequência dos temas abordados revela um caminho pos-sível para a construção de um Projeto de Vida a partir da leitura do processo pessoal e das implicações da história de vida no processo vocacional. A temática “vocação” está cen-trada na experiência de Deus, evocando o tema da Assem-bleia Geral da CRB Nacional – “De olhos fixos em Jesus” (Hb 12,3) –, incita a pensar novas metodologias para o SAV, considerando sempre a vida das Juventudes, sua diversidade, sonhos e projetos antes das necessidades institucionais.

Comunhão com Deus

Fazer experiência pressupõe união entre um desejo e uma iniciativa. Damos o nome a esse duplo movimento de ação vocacional. A iniciativa é de Deus e obterá ressonância se encontrar na pessoa chamada um desejo despertado para fa-zer a experiência. Encontrando resposta, o chamado terá

* Frei Rubens Nunes da Mota é religioso capu-chinho, mestrando em Psicologia pela Universidade Cató-lica de Brasília-DF, assessor executivo da CRB Nacional para o Setor Juven-tudes. Endereço do autor: SGAS Qd 906, Conj. D, CEP 70390-060, Brasilia-DF. E-mail: freirubens@ crbnacional.org.br.

1. Plano trienal da CRB Nacional 2010-2013 (XXII AGE).

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443um dinamismo próprio, estabelecendo uma aliança/comu-nhão de amor com quem chama (CNBB/SAV, 2009).

Amedeo Cencini2 diz que existem muitas implicações culturais que podem dificultar a compreensão desse cha-mado. Cultura, diz Cencini, é compreendida como fruto da interação humana que tem pontos de encontro, ou seja, a assimilação de valores e costumes. É o que se converte em sistema e tradição, sendo expressão da identidade de um povo. Tem valores subjetivos e objetivos que dão valor à sua vida. Não se dá somente através de repetições, mas é moti-vacional sempre. É uma prática de vida que, mesmo tendo um método, é vivencial, não sendo somente um dado teóri-co e comportamental, mas atenção permanente e vigilante à vida cotidiana, onde se concretiza a resposta.

A cultura vocacional implicará o encontro entre as cren-ças pessoais e os valores comunitários. Essa assimilação será mais saudável se as crenças pessoais se converterem em pa-trimônio que serve à comunidade e à sociedade, fazendo do valor subjetivo um dom público, ou, ainda, a satisfação pessoal em alegria e solidariedade a outrem.

Para levar a uma comunhão com Deus, a cultura vocacio-nal segue uma pedagogia que se transforma em um projeto. Tal projeto é compreendido a partir de uma teologia voca-cional que parte de Deus e encontra ressonância no projeto dele mesmo. Parte da imagem de Deus como aquele que chama e ama eternamente, com a finalidade de contribuir na sua messe, efetivando seu Reino no mundo.

O termo vocação não fala exatamente de um projeto de vida, de um serviço, mas fala de Deus, de um Deus que chama para manifestar seu amor. O chamado pode transfor-mar-se em um Projeto de Vida, mas somente será vocacio-nal se for orientado a partir do amor e da relação com Deus. Tal relação ajuda a perceber que Deus não quer empregados ou meros funcionários para sua messe, mas está interessado na vida e no desejo de compartilhar seu mistério. Mistério que se deixa revelar no cotidiano da vida e no encontro íntimo com ele, não um enigma distante e frio. É mistério, sim, mas revelado na diversidade das vocações, não somente

2. II Congresso Vocacional promovido pela Conferência Episcopal Latino--Americana (Celam), Costa Rica. Disponível em: <http://www.celam.org/Images/img_noticias/doc224d9205cb5190c_29032011_1116am.pdf> e <http://www.celam.org/Images/img_noticias/doc234d92068d71694_29032011_1119am.pdf>. Em Mota, 2011.

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444 uma, mas na diversidade. Mesmo a salvação e a redenção são pilares do mistério que envolve a vocação humana, sen-do um convite ao ser humano a participar de uma missão de maior amplitude, uma causa social.

Vocação, aqui, não se reduz somente ao âmbito pessoal, mas tem um desdobramento comunitário e social. O(a) vocacionado(a) dimensiona sua resposta no bem das demais pessoas, faz-se veículo da herança divina. Foi para isso que Deus fez o ser humano à sua imagem, capaz de ser agente de salvação.

Reduzir o relacionamento com Deus ao projeto pessoal, sem o aspecto missionário, é infantilizar a Teologia Voca-cional e deturpar a comunhão com Deus. A comunhão des-perta para um chamado a participar da obra da redenção. Esse é o mistério de Deus que vem ao encontro do nos-so mistério, é a nossa história, com seus limites e virtudes, que se propõe continuar a história de salvação, o Reinar de Deus.

Comunhão consigo

A comunhão com Deus e com seu Projeto entende pessoas inteiras, integradas consigo e com sua história. Isso não quer dizer que existe uma ordem linear onde ocorre primeiro a comunhão com Deus e depois a comunhão consigo mesmo. Tampouco entrar em comunhão com Deus se torna um aval automático para estar em comunhão interna. Essa não é uma sequência, nem essa organização quer impor uma ordem, pois têm pessoas que precisam ajustar sua história pessoal para depois perceber outras realidades. Essa proposta quer dizer que a comunhão com Deus ou consigo pode acontecer simultaneamente, onde um passo ajuda o outro.

O caminho para entrar em comunhão consigo é peculiar a cada pessoa, pois tem a ver com a própria história de vida. Aqui cabe, no máximo e com certa ousadia, propor um iti-nerário para entrar em contato com a própria história, pro-cesso facilitado para a proposta dessa etapa. Apresentamos seis etapas que podem ajudar:

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4451. Fazer anamnese, uma memória viva da própria histó-ria. Nela são considerados aspectos familiares que dizem respeito à árvore genealógica.3

2. A própria identidade originária: quem deu o nome, o que motivou esse nome, qual a inspiração para esse nome, qual o significado e origem.

3. Sobre a cultura onde a família esteve inserida: o que é próprio da região onde nasceu, costumes alimentares, modo de falar, comidas típicas etc.

4. Dimensão religiosa: a forma de rezar/orações, a imagem de Deus que foi passada na catequese e pela família.

5. Contexto do sistema: perceber a dimensão política e ideológica da época; questões econômicas (condições financeiras – realidade socioeconômica).

6. Dimensão afetivo-sexual: como tomou contato com o corpo (primeiras descobertas sobre a heroicidade), pai-xões, desejos, relacionamentos.

Essas etapas são divididas somente para compreensão peda-gógica, pois elas estão intimamente relacionadas, formando um único processo. Como exemplo, podemos perceber, na exposição de Amedeo Cencini,4 quando fala da correlação entre a afetividade, a sensibilidade e a espiritualidade. São di-mensões que dizem respeito ao mesmo potencial que podem proporcionar a experiência pessoal com as pessoas e com Deus.

Essas dimensões constituem a pessoa, mas foram construí-das ao longo da vida, como confirma Cencini ao afirmar que a sensibilidade é um construto histórico elaborado ao longo da vida. Se são construtos que constituem a identida-de, deve-se atentar à contraposição entre o que cultivo e o que se deseja para o futuro pessoal e relacional.

Experiência de DeusMesmo já tendo mencionado a imagem de Deus na di-

mensão religiosa, essa merece maior atenção por constituir o elemento principal neste texto. Falar de imagem não é falar de algo estático e neutro, como não é estático o olhar

3. A árvore genealógica tem vários formatos e compreensões, mas aqui pode ser compreendida da seguinte maneira: as raízes são os patriarcas e matriarcas (antepassados); a árvore é a família nuclear (pais e irmãos), onde o tronco podem ser os pais e os galhos, os irmãos.

4. Rodapé, n. 1.

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446 fixo em Jesus. Fixar o olhar em Jesus, como nos alertou a Conferência dos Religiosos do Brasil,5 é estar atentos(as) à realidade interna e externa, que clama pela experiência de Deus e por nosso testemunho/ação. Estarmos atentos(as) a essa realidade é o mesmo que perceber a gênese conceptiva do ser, ou, utilizando uma analogia, é a base da construção.

Duas perguntas ajudam a perceber a influência que a ima-gem de Deus tem sobre a identidade pessoal. A primeira é: quem é Deus para mim? A resposta a essa pergunta desvela em qual imagem de Deus se acredita e como essa imagem influencia as atitudes, ações e concepção de vida. A segunda é: quem sou eu (ou estou sendo) para Deus? Normalmente, esta tem sido uma pergunta mais difícil de ser respondida nos exercícios feitos junto às pessoas no ministério do acom-panhamento espiritual. O grau de dificuldade é justificado pela necessária reflexão de ficar no lugar de Deus e perce-ber-se a partir dele. Essa segunda questão tem o mesmo objetivo da primeira, o de mostrar o grau de fé em Deus nas próprias atitudes.

Justamente para tomar consciência da influência que a crença pessoal tem na constituição de cada pessoa é que esse tópico entra em tal análise. É muito comum a convicção de que a concepção que se tem de Deus é como a concepção de si e das próprias relações, logo a relação consigo, com Deus e com as pessoas se influencia mutuamente por essa imagem que se foi criando ao longo da história de vida.

Além do propósito de mostrar o nível de influência da imagem de Deus sobre a identidade pessoal, quer-se de-monstrar que o êxito do projeto de vida vai depender do aprofundamento desse relacionamento. Da relação profun-da e íntima com Deus Trindade, o Deus de Jesus Cristo, dependerá o nascimento de um sonho – mas não somente o nascimento –, mas também a sua consolidação.

Itinerário vocacionalA partir da tomada de consciência da própria história e

das questões que contribuíram para essa constituição será

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5. XXII Assem-bleia Nacional da Conferência dos Religiosos do Brasil (“De olhos fixos em Jesus”).

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447possível iniciar a reflexão sobre o itinerário que leva ao Pro-jeto de Vida. A pessoa chamada percorre esse caminho atra-vés da dimensão vocacional.

Falar sobre vocação significa falar da realidade mais pro-funda da pessoa, disse-nos Amedeo Cencini na Costa Rica.6 Não se trata apenas de buscar a satisfação de um mero desejo pessoal ou de sentir-se realizado(a) em determinadas tarefas gratificantes (CNBB/SAV, 2009). Refletir sobre a dimen-são vocacional é ir ao encontro dos desejos individuais que encontram o propósito no sonho de Deus, realização pes-soal em seu Reino.

Um dos grandes desafios de quem acompanha um itinerá-rio vocacional é perceber e deixar-se embalar pelos sonhos de quem é acompanhado(a), entrelaçando com o sonho de Deus. Valorizar as iniciativas e propósitos da pessoa que está buscando e, ao mesmo tempo, convidá-la a cruzar os dados pessoais com a história da salvação, eis o labor da Animação Vocacional.

Esse discernimento é tão trabalhoso para quem está cons-truindo o projeto como para quem acompanha esse itinerá-rio. Grandes desafios estão ligados às diversas opções ofere-cidas nos tempos modernos, sendo umas favoráveis e outras prejudiciais nesse caminho. Por isso, junto ao embalo dos sonhos juvenis, propõe-se partir da aventura empolgante do Evangelho, pois é ele que ilumina o caminho da construção do Projeto.

Partir do Evangelho é partir do sonho de Deus e de seu desejo para a humanidade. Amedeo Cencini, quando fala sobre a mentalidade vocacional, trata justamente de tal questão, orientando que o processo vocacional parte da imagem de Deus como aquele que chama eternamente por-que ama e, amando, chama. No chamado, a iniciativa é sempre de Deus, que dá condições, através de dons, aos(às) chamados(as).

Dons são carismas, biblicamente definidos como graça e Espírito. O conceito, introduzido por Paulo na literatu-ra cristã, de “expressão abrangente que designa os dons da 7. Ibid.

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448 graça dos cristãos, que são entendidos como manifestações da charis, do poder da graça de Deus e de seu Espírito”, ajuda a compreender que o carisma é dado individualmen-te, é próprio (cf. 1Cor 7,7), mas impõe um desdobramento comunitário, ou seja, traduz-se em serviço à Comunidade. O dom ou carisma é, pois, a célula-tronco que gerará a vocação e, ainda, o talento que em seu desenvolvimento vocacional revelará o Projeto de Vida que inclui o sonho de Deus e as necessidades humanas.

Contudo, esse não é um processo automático, ao con-trário, a descoberta vocacional é exigente, pressupõe crises pessoais em relação aos questionamentos existenciais que põem em cheque várias concepções até então tidas como certas e verdadeiras. Toda vocação tende a sofrer com os conflitos familiares e sociais por contrariar lógicas estabe-lecidas e sonhos questionados, valores revistos, com novo rumo tomado.

O discernimento sério com esse itinerário levará a um Projeto de Vida comprometido com o sonho pessoal-sonho de Deus. Nesse encontro de sonhos, a pessoa é livre para escolher a lógica para sua vida, mas não é livre para sair dessa lógica, pois trair-se significa trair o projeto de Deus. Tal itinerário mostra que optar livremente por um proje-to implica a fidelidade ao dinamismo da opção vocacional feita. Esse dinamismo, comenta Cencini, tem implicações vocacionais, tais como: doação, vivência na e para a Comu-nidade, dimensão social como responsabilidade e resposta diante do sim dito mediante o discernimento feito.

Projeto de VidaO sim vocacional, que implica compromisso com o pro-

jeto de Deus, implica desdobramentos de corresponsabili-dade. Essa atitude de coconstrução do Reino fica aqui no-meada Projeto de Vida. O termo vocação não fala exata-mente de um projeto de vida, diz-nos Cencini, alertando para centralidade em Deus e não nas tarefas. Diz respeito primeiro à experiência de Deus, como já vimos, todavia

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6. Nota de rodapé, n. 1.

essa experiência não é intimista ou egoísta, pois a verdadeira experiência de Deus conduz à manifestação de seu amor e de seu projeto.

Um Projeto de Vida, para ser um projeto vocacional, tem ressonância com o Projeto de Jesus.

Ao elaborar o seu projeto, a pessoa busca inspiração no itinerário percorrido por Jesus para analisar se tal projeto é vocacional ou se é uma elaboração que busca apenas a própria realização. Na comparação, deve aparecer a tríade encarnação, paixão e ressurreição. É percebendo o presé-pio que o projeto terá a realidade concreta como referen-cial para atuação. É no mistério pascal que os sofrimentos, angústias e inquietudes tomarão sentido para impulsionar a continuidade do Reino. E é na ressurreição que as lutas e desafios encontrarão sentido, pois o fim não é aqui, há uma realidade que vai além desses limites.

A própria encarnação do Filho nos revela o verdadeiro rosto da transcendência e o seu modo de atuar na história. Este é o paradigma do qual não se pode distanciar o pensa-mento vocacional de uma estrutura fundada na revelação. A essência do Projeto de Vida deve manter uma nítida e definitiva coerência com a verdade da mensagem de Jesus, manifestando-se ao mundo através do anúncio do Reino do Pai.

O Projeto de Vida é um convite à obediência despojada de Jesus. O itinerário de Jesus é a principal motivação vo-cacional para um projeto confiável e bem estruturado. Se-guindo esse caminho, o projeto vai ser para Deus e para os outros, tendo como base, razão, centro e meta Jesus Cristo. Nesse sentido, o Projeto de Vida será consequência da ex-periência de Deus em Jesus. Essa é a lógica que não deve ser interrompida, como já refletimos anteriormente, pois é esse itinerário vocacional que ilumina o verdadeiro projeto.

É a experiência de Deus, no contexto da encarnação, que gera um Projeto de Vida vocacional. É a práxis, para a qual Cencini7 alerta, que mantém a sintonia entre a resposta vo-cacional e a missão assumida. Essa missão tem conotação

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450 tanto eclesial quanto social. A eclesial contempla a pastoral da Igreja, que tem seu fundamento teológico na eclesiologia renovadora do Concílio Vaticano II, o qual define a Igreja como comunhão e missão (CNBB/SAV, 2009). A conota-ção social contempla as diversas iniciativas de organizações da sociedade que lutam em favor da vida.

Passos para elaboração do Projeto de Vida

Já temos alguns escritos que tratam do assunto. Dom Eduardo Pinheiro (2008), bispo referencial para o Setor Juventude da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), lançou um livro sobre o assunto onde inclui, no itinerário para escrever o projeto, a necessidade de perceber os sonhos e a realidade antes dos passos para sua concreti-zação. O enfoque aqui será a elaboração de um Projeto de Vida com centralidade na experiência de Deus revelado por Jesus Cristo com atenção à leitura da vida. Para isso seguem algumas pistas para sua elaboração.8

A preocupação de elaborar e assumir um projeto é antece-dida pela atenção à sua importância vivencial/existencial. Ter presente o momento/estágio da VIDA e da VOCA-ÇÃO que se está vivendo e o situar-se para elaborar ou ree-laborar o Projeto de Vida com maior solidez e realismo são pressupostos aqui pontuados. Essa preparação não diz res-peito somente à reflexão racional, mas tem seu fundamento na reflexão-oração, a fim de incluir Deus em todo o processo.

A elaboração do Projeto de Vida parte das reflexões sobre o processo pessoal para o autoconhecimento. Tomar cons-ciência do processo geracional-familiar ajuda a retirar as amarras da própria história de vida que deixam refém das vontades alheias ou mesmo das tramas e traumas pessoais. A consciência da própria história e de seu contexto dá condi-ções de elaborar o Projeto de Vida.

Para sistematização objetiva do Projeto de Vida, propo-mos quatro tópicos, em formato de passos, que remetem às seguintes dimensões: eu comigo, eu com o outro, eu com o mundo/natureza e eu com Deus. Vamos perceber algumas

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8. Baseia-se no itinerário percorrido desde 1992 pelo autor, quando do início da elaboração de seu Projeto de Vida. São experiências pessoais e fruto de acompanhamento pessoal e grupal.

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451questões que podem iluminar a elaboração do Projeto de Vida através desses quatro passos:

• Passos em nível pessoal (eu comigo): encantamento com a possibilidade de dar um significado para a vida e en-frentamento de si mesmo(a) diante das crises e angústias pessoais que antecedem a compreensão do chamado.

• Passos em nível familiar e social (eu com o outro/mundo): en-frentar os sonhos, as expectativas e possíveis incompre-ensões familiares e confrontar as inquietações diante das opções que o mundo oferece.

• Passos diante da opção a ser feita (eu com Deus): escolha diante dos diferentes carismas, tendo presente o chama-do de Deus e o desejo pessoal. Momento de cruzar os dados obtidos na história de vida com o carisma pelo qual se está optando para perceber bem como se coadu-nam o carisma pessoal e os dons recebidos e se condu-zem para a missão.

Perceber se há confluência do carisma pessoal com o ca-risma institucional exige atenção especial ao processo de discernimento vocacional, contemplando (olhando com os olhos de Deus) as motivações para a escolha de tal carisma. Aqui se podem verificar as principais inquie-tações vocacionais, percebendo o que e quem ajudou a fazer esse processo, bem como as principais crises, “cer-tezas” e dúvidas nas diversas fases do discernimento.

• Passos na Instituição: trata-se do ajuste do projeto pessoal com o da Instituição (Congregação/Província). Algu-mas questões podem ajudar na verificação do carisma pessoal e congregacional: quais as principais motivações para a escolha desse Carisma e dessa Instituição? Como é o processo de identificação com esse estilo de vida? Como essa Instituição atua como Igreja? Ou: quais as funções que exerce? Essas questões levam a uma revisão do discernimento vocacional, pois é justamente o bom discernimento que proporcionará mais acerto na opção.

A partir deste passo, a expectativa é que o processo formativo acrescente valores para que a etapa posterior

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452 tenha maiores acertos. A contribuição mútua favorece a continuidade do processo, pois uma etapa bem viven-ciada ajuda a vivenciar as demais.

Duas dimensões podem ajudar no ajuste desse processo entre as etapas. A primeira diz respeito ao projeto e à equipe formativa da Instituição, que deve ser afinada com o regi-mento e orientações comuns. A outra diz respeito à abertura e sintonia da pessoa que está passando pelo processo. Esse(a) formando(a) deve estar atento(a) ao que marca cada etapa para ir agregando o aprendizado ao longo do processo. Para isso, pode perguntar-se: o que mais me marcou no acompanha-mento vocacional (sentimentos)? Quais as principais contribuições na primeira etapa de formação? O que ficou de cada etapa vivencia-da e quais os pontos que mais marcaram?

Questões que implicam a elaboração do projeto (supondo uma escolha vocacional em uma Congregação religiosa)

As perguntas que seguem apontam para um ideal de Vida Consagrada a ser coconstruída, pressupondo a contribuição do carisma de quem está entrando na Congregação:

Vida em fraternidade/convivência

• Como pretendo ajudar na construção desse sonho, espe-cialmente da vida fraterna/comunitária, diariamente?

• Sou único e tenho um carisma próprio, porém encontro carismas na Congregação. Como ser um dom na vida das pessoas com quem convivo?

Vida em oração

• Como darei continuidade ao cultivo da experiência de Deus que foi despertada em mim?

• Como pretendo ajudar para que os momentos de oração fraterna/comunitária sejam mais ricos e proporcionem experiências fortes de Deus e da Fé?

Experiência de Deus que gera Projeto de Vida

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453Vida missionária/profissional/estudos

• Qual minha opção ministerial enquanto estado lai-cal (Irmão leigo) ou ministério sacerdotal? Em ambas as opções devo aprofundar minha opção perguntando quais as motivações que me levaram a essa opção.

• Quais as motivações para cursar uma faculdade ou curso profissionalizante? Pretendo fazer um curso profissiona-lizante? Com qual área profissional me identifico? Qual a aplicação e importância desse curso para mim e para a Instituição da qual faço parte? Como ser dom para o Povo de Deus?

Essa terceira etapa contempla uma ressonância com os ca-rismas, tanto pessoais quanto congregacionais. Para não se caracterizar como um projeto rígido e fechado, é bom e convém que seja flexível, tanto para possíveis mudanças nas concepções pessoais quanto para sugestões que dizem res-peito à realidade da Congregação/Instituição.

ConcluindoComo dissemos na introdução, este pequeno artigo teve

a pretensão de provocar os(as) Animadores(as) Vocacionais e os(as) Formadores(as) a repensar os métodos que têm sido utilizados para elaboração de Projeto de Vida. Alguns mé-todos têm instrumentalizado a vida das Juventudes e/ou ba-nalizado carismas, tanto pessoais quanto institucionais.

Após essas reflexões, ficam dois grandes desejos: o pri-meiro, cuidar da vida como dom de Deus, zelando sempre para não sobrepor as necessidades institucionais acima da vida, sob a tentação de colocar em risco a própria vocação; o segundo, diz respeito ao cuidado com as inspirações pri-meiras, não como insistência em concepções rígidas ou pro-cessos travados, mas valorizando o chamado de Deus como origem de tudo, como nos diz Santa Clara: “Não perca de vista seu ponto de partida”.9

9. Segunda Carta de Santa Clara a Santa Inês de Praga, n. 11, Escritos Franciscla-rianos, p. 1.706.

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454 BibliografiaCNBB. Comissão Episcopal Pastoral para os Ministérios Ordena-

dos e a Vida Consagrada Pastoral Vocacional (PV)/Serviço de Animação Vocacional 11 (02). Brasília, maio de 2009.

KONIG, Franz Cardeal; HANS, Waldenfels. Léxico das religiões. Petrópolis: Vozes, 1998.

SILVA, Dom Eduardo Pinheiro. Projeto pessoal de vida. Brasília: Cisbrasil/CIB, 2008.

Questões para ajudar a leituraindividual ou o debate em comunidade1. Como é despertada e refletida a experiência de

Deus como origem da vida e do chamado?2. De que maneira esta leitura ajudou a assumir a his-

tória de vida e perceber a presença de Deus no Pro-jeto de Vida?

3. Qual a ligação entre a história de vida e a experiên-cia de Deus que gera um Projeto de Vida?

Experiência de Deus que gera Projeto de Vida

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455Um sacerdócio diferente

josé aBel de sousa, sj*

Introdução

Nosso objetivo no presente escrito é, antes de tudo, “am-pliar o diálogo com as novas gerações em seus anseios e inquietações [...]”.1 Oxalá, mediante a leitura, a escuta da Palavra de Deus, da oração encarnada, possam ser estas li-nhas uma modesta contribuição visando revitalizar a paixão por Jesus e seu Reino.

Os sacerdotes da Igreja Católica Apostólica Romana afir-mam que o seu sacerdócio se identifica com o sacerdócio de Jesus Cristo, pois as celebrações que presidem são funda-mentadas na última ceia presidida por Jesus Cristo. Mas será que Jesus Cristo foi/é sacerdote?2

Nenhum dos quatro Evangelhos apresenta Jesus como tendo sido sacerdote. Os Evangelhos limitam-se a mencio-nar os sacerdotes tal como eram no Templo de Jerusalém (Mc 1,44), como Zacarias, pai de João Batista (Lc 1,5). Ja-mais relatam que Jesus tenha oficiado alguma cerimônia no templo.3

Tampouco os Atos dos Apóstolos mencionam algum tipo de sacerdócio além dos levíticos (cf. At 4,1) ou pagãos (cf. At 14,13). Nas cartas/epístolas paulinas não encontramos sequer a palavra sacerdote ou sacerdócio.

Nas cartas denominadas católicas, no Apocalipse, também não encontramos qualquer referência a Jesus Cristo como sendo sacerdote.

* Padre José Abel de Sousa é jesuíta, mestre em Teologia Bíblica pela Ponti-fícia Universidade Gregoriana (PUG), de Roma; professor de Sagrada Escri-tura no Instituto São Boaventura (ISB), de Brasília--DF; assessor de movimentos juvenis e coordenador da área de Juventudes do Centro Cul-tural de Brasília (CCB). Endereço do autor: SGAN L 2-Norte, Qd. 601, Conj. B, CEP 72830-010, Brasília-DF.

1. Quadro Progra-mático da CRB 2010-2013 – Prioridade 4.

2. Tal questão tem sido estudada, entre outros, por um dos maiores estudio-sos da Epístola aos Hebreus, o Cardeal Albert Vanhoye, sj – ver entrevista em: <http://www.unigre.it/even-ti/20110307_Va-nhoye/index.php> –, que, entre tantas outras publicações acaba de lançar em quatro línguas seu último livro, L Epistola agli Ebrei

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456 Um único livro em todo o Novo Testamento dá a Jesus o título de sacerdote. Trata-se da Epístola aos Hebreus.4

Jesus era leigo?Jesus Cristo não pertenceu a nenhum dos grupos político-

-religiosos5 existentes na sociedade judaica do seu tempo, mas, mesmo que tivesse pertencido, isso não teria sido su-ficiente para ter sido aceito como sacerdote, pois para sê-lo era necessário pertencer à tribo de Levi, e Jesus era originá-rio da tribo de Judá.

Muitos dos contemporâneos de Jesus começaram, aos poucos, a observar nele sinais que o identificavam como um enviado de Deus. Jesus foi reconhecido como um “grande profeta” (Lc 7,16), “o profeta por excelência” (cf. Jo 6,14). Foi reconhecido também como “rei” (Mt 21,9; Lc 19,38; Jo 12,13). Nos Atos dos Apóstolos, Pedro reconhece em Jesus o profeta prometido (At 3,22), o rei esperado (cf. At 2,36), porém sobre seu sacerdócio não se tem notícia.

O aparecimento de um sacerdote, um profeta e um rei, como personagem prometido por Deus para o fim dos tem-pos era esperado. O Deuteronômio anuncia o compareci-mento de um profeta no meio do povo (cf. Dt 18,18).

A promessa da parte de Deus de um rei que sucederia a Davi garantindo a estabilidade do reino encontra-se em 2Sm 7,12. Tal profecia fez com que os israelitas permane-cessem à espera de um rei potente enviado da parte de Deus a seu povo.

A promessa de um sacerdote santo destinado aos últimos tempos foi feita por Deus ao sacerdote Eli (1Sm 2,35).

Em relação a Jesus, durante sua peregrinação terrena nin-guém o reconheceu como sendo sacerdote, para o povo de sua época Jesus era o que na linguagem eclesial hodierna denominamos leigo.

Os primeiros cristãos, destinatários da Epístola aos He-breus (cf. Hb 3,14; cf. 5,12), encontravam-se num momen-to de crise de fé (cf. Hb 13,7-8).6 Nesse contexto começou

Um sacerdócio diferente

(Bologna: EDB, 2010). Sobre o mesmo tema, cf.: VALDÉS, A. A. Cosa sappiamo della Bibbia? Vicenza: ISG edizioni, 2002. vol. 5, p. 102-112.

3. A religião dos judeus no tempo de Jesus estava centra-da em dois polos fundamentais: o templo e a sinago-ga. O templo era o centro de Israel. Era nele que todos os judeus deveriam se reunir para prestar culto a Deus, pois no templo habitaria o Deus único, san-to, puro, separado, perfeito.

4. Embora seja in-titulada Epístola de São Paulo aos He-breus, não é exata-mente uma epístola, nem é de Paulo, tampouco dirigida aos hebreus, mas sim aos cristãos (cf. Hb 3,14; 5,12). Para um estudo detalhado sobre o conjunto da epísto-la, pode-se recorrer, entre outros, a: VANHOYE, A. A mensagem da Epísto-la aos Hebreus. São Paulo: Paulus, 1983. (Col. Cadernos

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457a ganhar força uma espécie de nostalgia em relação ao sa-cerdócio, aos ritos, aos sacrifícios, ao culto do Antigo Testa-mento a que eles estavam habituados havia séculos.

Entre o culto antigo e a cerimônia cristã havia notável diferença. Aquele era caracterizado por celebrações solenes no Templo de Jerusalém, contavam com a participação de vários sacerdotes, músicas e ornamentos. Havia também sa-crifícios7 de animais, holocaustos,8 verdadeiras nuvens de incenso, purificações com água, enfim, tratava-se de um ritual capaz de atrair peregrinações nacionais que aconte-ciam, sobretudo, por ocasião de grandes festas, das quais participavam com espontaneidade até mesmo as classes mais modestas da população.9

O Cristianismo eliminou todo esse ritual solene. Não obrigava ninguém a frequentar templo algum. Jesus res-ponde à mulher samaritana que Deus não se encontra no templo, mas sim no coração do ser humano ( Jo 4,21-23).

No Cristianismo não havia mais lugar para as tradicionais cerimônias de sacrifícios de animais, pois foram substituí-dos pelo imperativo de se viver como irmãos, ajudando-se mutuamente e servindo uns aos outros. O culto, sobretudo o sacrifício cristão, consistia antes de tudo na fé que deveria ser expressa como amor e serviço ao próximo.

As próprias celebrações eucarísticas dominicais, que na Igreja primitiva aconteciam nas casas dos fiéis, não se dis-tinguiam muito dos jantares familiares da vida cotidiana.

A sobriedade do rito cristão, portanto, provocava desilu-são no ânimo dos primeiros cristãos acostumados ao culto antigo. Comparando com os rituais israelitas, o Cristianis-mo parecia carecer de culto, de rituais capazes de satisfazer as expectativas dos fiéis.

O problema foi-se tornando preocupante e somente po-deria ser solucionado por alguém que tivesse familiarida-de com as antigas instituições e que também conhecesse a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Foi assim que surgiu, por volta dos anos 80 d.C., um personagem de vasta cultura religiosa e notável conhecimento da língua grega. Depois

Bíblicos, n. 21.) FABRIS, R. As cartas de Paulo (III). São Paulo: Loyola, 1992. p. 341-513. (Col. Bíblica Loyo-la, n. 6.) KONINGS, J. Hebreus. São Paulo: Loyola, 1995. (Col. A Bíblia Passo a Passo.)

5. Os principais eram: saduceus, doutores da Lei (escribas), fariseus, herodianos (parti-dários de Herodes), essênios, samarita-nos e zelotes, pelo menos dois dentre os apóstolos de Jesus eram zelotes: Simão Pedro (Mc 3,19) e Judas Iscariotes.

6. Cf. LINDARS, B. The Theology of the Letter to the He-brews. Cambridge: University Press, 1991. p. 8s.

7. KONINGS, Hebreus, p. 17: “O costume de apre-sentar sacrifícios a Deus baseava-se num sentimento bem simples: o israelita gostava de ficar perto do seu Senhor e não queria apresentar-se de mãos vazias”. Cf.

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458 de analisar a questão, propôs a solução. Esse autor, até en-tão desconhecido,10 inspirado pelo Espírito Santo, compôs a Epístola aos Hebreus, um escrito que, em termos estéticos e também quanto ao conteúdo teológico, é considerado pelos estudiosos como sendo um dos melhores de todo o Novo Testamento.

Jesus, sumo sacerdote à maneira de Melquisedec

O núcleo da Epístola aos Hebreus encontra-se entre os capítulos 7 e 10. É nessa seção que o autor apresenta Je-sus como sacerdote. Conforme já dissemos, Jesus não era membro da tribo de Levi, mas da tribo de Judá, portanto se encontrava de antemão excluído do sacerdócio de então.

O autor da Epístola aos Hebreus, sem dúvida sob a ilumi-nação do Espírito, teve uma ideia genial: constata que pode afirmar, sim, que Jesus é sacerdote, pois Jesus pertenceria a uma “ordem” diversa daquela dos levitas.11 Jesus é sacer-dote sim, porém à maneira de Melquisedec12 (Hb 5,10)13 e não segundo a linhagem proveniente de Aarão. Jesus, na conclusão dos seus dias de vida terrestre, conheceu um mo-mento de agonia (cf. Mc 14,36 par.), porém sua entrega à vontade do Pai foi atendida. Jesus, na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que o obedecem tal como ele sempre obedeceu, isto é, cumpriu a vontade do Pai. Jesus “consumou” sua vida em dois sen-tidos: levou-a até o fim, mas também até à plena realização (cf. Jo 13,1). Jesus fez de sua vida o máximo: tornou-se cau-sa de salvação para todos os que dão ouvidos à palavra que ele fala em nome do Pai. Desse modo ele os santifica e une a Deus, o Santo por excelência (cf. Lv 19,2), portanto Jesus foi proclamado sacerdote por Deus ( já no Sl 110[109],4): “Tu és sacerdote para sempre à maneira de Melquisedec”.14

Hb 7,1-28 apresenta um novo tipo de sacerdote, para isso recorre à memória do povo hebreu. Ele conta a história de Gn 14,17-20: Melquisedec,15 rei de Salém,16 saiu ao encon-tro de Abraão, quando este regressava do combate contra

Um sacerdócio diferente

também: Ex 23,15; 34,20.

8. Holocausto é o sacrifício de uma vítima totalmente consumida pelo fogo sobre o altar, exceto a pele. Cf. Lv 7,8.

9. Sobre os rituais dos sacrifícios israe-litas, cf. Lv 1–7.

10. Em EUSÉBIO, Hist. Ecc. 6,25, Orígenes afirma: “As ideias presentes em Hebreus são certamente pau-linas, mas a com-posição é de outro que certamente quis recordar Paulo, como quem anota palavras do mestre. Por isso, se alguma Igreja tem esta carta como de Paulo, pode-se felicitá-la por isso, pois não foi por acaso que nossos irmãos maio-res ‘entregaram’ a carta como sendo de Paulo, mas quem de fato a compôs, isso só Deus sabe”.

11. Sl 110[109],4 “Tu és sacerdote para sempre à ma-neira de Melquise-dec”. J. Konings, a propósito, observa: “[...] geralmente

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459os reis de Canaã. Abençoou a Abraão, e este lhe entregou a décima parte dos despojos, o “dízimo”.

A Bíblia geralmente menciona o nome do pai ou da mãe quando apresenta um novo personagem, mas no caso de Melquisedec isso não ocorre, não se conhece seu pai, sua mãe, nem nada a respeito da sua genealogia. Tampouco se faz menção ao início ou ao fim de sua vida. Melquisedec claramente se assemelha ao Filho de Deus, cuja origem eterna e preexistência são mencionadas em Hb 1.

Melquisedec é “maior” que Abraão, pois este lhe entregou o dízimo daquilo que havia de melhor nos despojos dos reis vencidos. Os sacerdotes levíticos, descendentes de Levi, tornaram-se sacerdotes para o resto do povo e recebiam o dízimo dos filhos de Abraão, mas Melquisedec seguramente não era sacerdote levítico (pois terá sido contemporâneo de Abraão, o bisavô de Levi).17 Contudo, ele recebe o dízimo de Abraão e ainda dá sua benção a este, que é o portador de uma promessa de Deus. Ora, quem dá a benção deve ser superior àquele que a recebe (cf. Hb 7,7ss). Melquisedec é, portanto, superior a Abraão, a Levi e aos sacerdotes levíti-cos. Os sacerdotes filhos de Levi, que recebiam o dízimo, eram pessoas mortais. Quanto a Melquisedec, Deus dá tes-temunho de que ele está vivo. O autor de Hebreus deduz isso do Sl 110[109],4 e de Gn 14,17-20: em nenhum desses dois textos se menciona o início ou o fim de sua vida.

A linha de raciocínio do autor de Hebreus é a de que o sacerdócio levítico é incompleto quanto à sua função prin-cipal, que é a de exercer mediação entre Deus e os seres humanos.

O sacerdócio levítico cumpriu a função de mediar para o povo o dom da Lei, uma vez que Moisés era levita, e ao seu lado estava Aarão, que na ocasião era o sacerdote por excelência. Contudo, não se tratava ainda da perfeição do sacerdócio, muito menos da mediação, pois, se já o fosse, por que reconhecer outro sacerdócio, como o de Melquise-dec? Por que no Sl 110[109],4 se faria referência a alguém como “sacerdote para sempre à maneira de Melquisedec” e não “de Aarão”?

se traduz, como no latim, ‘segundo a ordem de Mel-quisedec’, mas isso pode induzir a um mal-entendido. À diferença de Aarão e sua linhagem, Melquisedec não constituiu ‘ordem’ sacerdotal alguma; seu ‘modo’ de ser sacerdote consiste precisamente na sua unicidade” KONINGS, Hebreus, p. 18.

12. Melquisedec aparece dez ve-zes em Hebreus: 5,6.10; 6,20; 7,1.6.10.11.15.17.21.

13. Em Hb 5,10, o autor anuncia o sacerdócio de Jesus, sacerdócio “à ma-neira de Melquise-dec”. No capítulo 7 há longa descrição desse sacerdócio.

14. Cf. Hb 5,1-10: nesses versículos encontramos a força da argumentação em favor do sa-cerdócio de Jesus como sendo mais completo que o sacerdócio levítico.

15. Melquisedec, etimologicamente,

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460 A mudança no sacerdócio supõe uma mudança na Lei, pois começa a vigorar uma realidade nova. O personagem de quem se diz que é “sacerdote para sempre à maneira de Melquisedec” não é da tribo de Levi (conforme era exigido em Israel), mas de outra tribo, onde nunca não houve sa-cerdote. Em Hb 7,14 o autor revela, por meio da expressão “nosso Senhor”, que está pensando em Jesus, que é descen-dente da tribo de Judá, tribo que não foi mencionada por Moisés quando falou dos sacerdotes, logo podemos dizer que Jesus é sacerdote fora do âmbito da Lei de Moisés.

“[...] Eis que faço novas todas as coisas”O autor da Epístola aos Hebreus, com sua argumentação

genial, mediante uma série de confrontos, demonstra a su-perioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdó-cio levítico.

Os sacerdotes levíticos eram transitórios, pois eram todos mortais, por esse motivo deveriam ser numerosos.18 Jesus Cristo ressuscitado por Deus Pai não morre mais, é eterno, por isso seu sacerdócio é único.

Os sacerdotes levíticos, antes de oferecerem sacrifícios de expiação para o pecado do povo, deveriam, como seres hu-manos que eram, oferecer sacrifícios pelos próprios peca-dos. Jesus Cristo não tem necessidade de oferecer sacrifício a Deus pelos seus próprios pecados, porque ele é santo, puro e imaculado.

Os sacerdotes levíticos ofereciam sacrifícios de animais todos os dias. Tal reiteração demonstra que aqueles sacrifí-cios eram ineficazes e, de fato, não serviam para expiar os pecados. Jesus Cristo, ao contrário, com um só sacrifício, o de sua pessoa, doada por amor, obteve o eterno perdão para todos os pecados. Não se faz mais necessário, portan-to, a oferta de novos sacrifícios provenientes do sangue de animais.

Os sacerdotes levíticos oficiavam o culto no templo ter-reno, construído por mãos humanas. Jesus Cristo, ao ofe-recer seu sublime sacrifício, entrou no templo celeste, no

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quer dizer “rei de justiça”.

16. Rei de Salém, etimologicamente, significa “rei da paz”.

17. KONINGS, Hebreus, p. 23.

18. VALDÉS, Cosa sappiamo della Bi-bbia?, p. 108: “[...] no tempo de Jesus havia mais de 8000 sacerdotes reve-zando-se no ofício realizado no Tem-plo de Jerusalém”.

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462 dos pecadores, condenando a prática pecaminosa, mas não a pessoa pecadora, e desse modo demonstrou que o sacer-dócio não fora instituído para “salvar”, em primeiro lugar, os direitos de Deus, mas sim para salvar a vida dos seres humanos.

Todo cristão é sacerdote da própria vidaPelo que vimos até aqui, pode-se constatar em que sen-

tido o sacerdócio de Cristo é diferente do sacerdócio dos levitas no Antigo Testamento, o qual se caracterizava pelo sacrifício de animais, cujo sangue seria oferecido a Deus. Tratava-se de uma sombra de um outro sacerdócio prepara-do por Deus, que é o sacerdócio de Cristo. O novo sacerdó-cio inaugurado por Jesus Cristo não consiste mais no ato de oferecer a Deus a vida de animais, nem sangue, mas na ofer-ta da própria vida. O novo sacerdócio se pratica e se “oficia” por meio da prática do amor, para que a humanidade inteira seja plena de Deus, da sua justiça e da sua paz. Nada disso poderia ser alcançado por meio do sangue de animais.

Hb 10,1-18 argumenta que Jesus torna supérfluos os an-tigos sacrifícios. Muitas vezes, ainda hoje, se entende este e outros textos similares do Novo Testamento na linha de Jesus ser a vítima oferecida em nosso lugar. Tal interpreta-ção é infeliz, pois pode levar a crer que Deus talvez tivesse se sentido tão ofendido pelo pecado da humanidade que necessitou de sangue para ficar satisfeito e, mais do que isso, só lhe serviria o sangue inocente de seu Filho único. Ora, se assim fosse, seríamos obrigados a concluir que nosso Deus se assemelharia a um vampiro ou a uma espécie de Drácula que precisaria ser alimentado com sangue.20

No Novo Testamento,21 mas também no Antigo Testa-mento, encontramos vários textos nos quais é muito claro o fato de os sacrifícios sangrentos não serem os que satisfazem a Deus.22

Jesus substitui, sim, os sacrifícios antigos, e o faz não por meio do sangue material em si, mas tornando supérfluo o próprio sistema dos sacrifícios.23 Ele faz isso sendo fiel à sua

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20. Cf. KONINGS, Hebreus, p. 29.

21. Cf. Mt 9,13; Mc 12,33.

22. Cf. Os 6,6; Sl 50(49), 8-15; 51(50),18; Am 5,22 – entre muitos outros textos.

23. KONINGS, Hebreus, p. 29.

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463missão de concretizar no nosso meio o amor de Deus até a cruz. Nós, seus seguidores, estamos isentos de oferecer sacrifícios de animais, mas necessitamos unir-nos a Jesus na fé, na escuta da sua palavra e na prática do amor, do serviço ao próximo (cf. Hb 4,16).

De fato, a vida e a morte de Jesus foram o único sacrifício agradável a Deus, porém não por ter sido um sacrifício san-grento, não é uma espécie de “pagamento” a Deus, mas sim uma oblação total que substitui para sempre os sacrifícios e as vítimas imoladas.

Cada batizado a partir de Jesus Cristo é, portanto, sacer-dote da própria vida24 a ser doada como única “vítima” que ele deve sacrificar a Deus, mediante uma entrega de amor e serviço em favor dos(as) irmãos(as).

Um sacerdócio para todosO sacerdócio cristão atual compreende, por meio do Ba-

tismo, a todos(as) os(as) cristãos(ãs) no assim denominado “sacerdócio comum dos fiéis”.

Aos presbíteros compete exercer o sacerdócio ministerial, que não deve jamais se caracterizar como uma espécie de privilégio, tampouco superioridade, mas sim um serviço prestado sempre em sintonia com a comunidade eclesial.

A missão do novo sacerdócio inaugurado por Jesus Cristo não é mais aquela de isolar-se no interior de um templo e ali praticar determinados rituais, mas sim tem a sublime missão de colaborar na transformação da sociedade, favorecendo que a mesma possa ir convergindo cada vez mais a Deus.

Trata-se, portanto, de um sacerdócio capaz de participar da nova aliança, nova vida edificada com base na fraterni-dade, na solidariedade e no amor.

Oxalá um dia todos(as) os(as) cristãos(ãs) pratiquem seu próprio sacerdócio nos moldes intuídos pelo autor da Epís-tola aos Hebreus, isto é, vivendo em consonância com a fé em Deus e, simultaneamente, no serviço aos outros, pois foi assim que Jesus Cristo praticou o seu sacerdócio.

24. VALDÉS, Cosa sappiamo della Bib-bia?, p. 110.

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464 Somente o sacerdócio tal como foi inaugurado por Jesus Cristo constitui o culto por excelência que agrada a Deus, uma vez que é, pelo menos para os(as) cristãos(ãs), o único por meio do qual se pode colaborar na construção de um mundo melhor em vista da realização do Reino de Deus.

Questões para ajudar a leituraindividual ou o debate em comunidade1. Qual é o único texto do Novo Testamento que dá

a Jesus o título de sacerdote?2. Que diferença havia entre o sacerdócio levítico e o

de Melquisedec?3. Quais eram as dificuldades para se afirmar o sacer-

dócio de Jesus de Cristo?

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