Quadro Programático da CRB DEZEMBRO 2010-2013 · de Bento XVI na missa que ele presidiu por...

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Quadro Programático da CRB 2010-2013 HORIZONTE Em meio aos grandes desafios do mundo complexo e plural, da realidade da Igreja e da Vida Religiosa Consagrada, a Palavra de Deus nos impulsiona a avançar com os “olhos fixos em Jesus” (Hb 12,1-3), movidos/as pelo Espírito que o consagrou e enviou a anunciar a Boa-Nova (Lc 4,18). Provocados/as por uma nuvem de testemunhas (Hb 12,1), reafirmamos nossa identidade místico-profética e reaviva- mos a paixão pelo Reino, defendendo e promovendo a vida, assu- mindo a causa dos empobrecidos e construindo relações humanas, fraternas e solidárias. PRIORIDADES 1. Redescobrir o sentido profundo da VRC, revitalizando a paixão por Jesus e seu Reino mediante a escuta da Palavra de Deus, a oração encarnada, a contemplação sapiencial da realidade, o compromisso discipular-missionário, a convivência como ir- mãos e irmãs e a comunhão com toda a criação. 2. Avivar a dimensão profético-missionária da VRC, atuando nas novas periferias e fronteiras, intensificando a opção pelos em- pobrecidos, e fortalecendo o compromisso com as grandes cau- sas sociais, econômicas, políticas e ambientais. 3. Qualificar as relações na VRC e em seu espaço de inserção, em diálogo com as diferenças pessoais, culturais, étnicas, religio- sas, geracionais e de gênero. 4. Ampliar o diálogo com as novas gerações em seus anseios e inquietações, e buscar novas metodologias para a animação vo- cacional. 5. Aprofundar o conhecimento da realidade juvenil e intensificar a presença e ação junto às juventudes. 6. Buscar maior leveza e agilidade institucional da VRC e ampliar as fronteiras congregacionais por meio da intercongregaciona- lidade, da partilha do carisma com outras pessoas e grupos de redes e parcerias. CONVERGÊNCIA DEZEMBRO 2011 • XLVI • 447 É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa? Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia Teologia, economia e Vida Religiosa hoje Entrevista com Frei Carlos Mesters

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Quadro Programático da CRB2010-2013

HORIZONTEEm meio aos grandes desafios do mundo complexo e plural, da

realidade da Igreja e da Vida Religiosa Consagrada, a Palavra de Deus nos impulsiona a avançar com os “olhos fixos em Jesus” (Hb 12,1-3), movidos/as pelo Espírito que o consagrou e enviou a anunciar a Boa-Nova (Lc 4,18). Provocados/as por uma nuvem de testemunhas (Hb 12,1), reafirmamos nossa identidade místico-profética e reaviva-mos a paixão pelo Reino, defendendo e promovendo a vida, assu-mindo a causa dos empobrecidos e construindo relações humanas, fraternas e solidárias.

PRIORIDADES1. Redescobrir o sentido profundo da VRC, revitalizando a paixão

por Jesus e seu Reino mediante a escuta da Palavra de Deus, a oração encarnada, a contemplação sapiencial da realidade, o compromisso discipular-missionário, a convivência como ir-mãos e irmãs e a comunhão com toda a criação.

2. Avivar a dimensão profético-missionária da VRC, atuando nas novas periferias e fronteiras, intensificando a opção pelos em-pobrecidos, e fortalecendo o compromisso com as grandes cau-sas sociais, econômicas, políticas e ambientais.

3. Qualificar as relações na VRC e em seu espaço de inserção, em diálogo com as diferenças pessoais, culturais, étnicas, religio-sas, geracionais e de gênero.

4. Ampliar o diálogo com as novas gerações em seus anseios e inquietações, e buscar novas metodologias para a animação vo-cacional.

5. Aprofundar o conhecimento da realidade juvenil e intensificar a presença e ação junto às juventudes.

6. Buscar maior leveza e agilidade institucional da VRC e ampliar as fronteiras congregacionais por meio da intercongregaciona-lidade, da partilha do carisma com outras pessoas e grupos de redes e parcerias. CONVE

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011 •

XLV

I • nº 4

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■ É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?

■ Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia

■ Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

■ Entrevista com Frei Carlos Mesters

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Sumário

EditorialMais um ano se vai ................................................................................................... 601

Palavra do PapaHomilia do Papa Bento XVI durante a missa aos representantes das realidades eclesiais para a Nova Evangelização ...............................................................................................605

InformeSeminário Pan-Amazônico: “Escutemos a Deus onde a vida clama”Confederação Latino-ameriCana e Caribenha de reLigiosos e reLigiosas – CLAR .................................................................................................................................611

EntrevistaFrei Carlos Mesters ....................................................................................................615

Arte e culturaO celular está tocando!PLutarCo aLmeida .............................................................................................................621

ArtigosÉ possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?Sergio MonteS rondon .......................................................................................................627

Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia. Dimensão teológicaVera iVaniSe BoMBonatto .....................................................................................................637

Teologia, economia e Vida Religiosa hojeCéSar thiago do CarMo alVeS .............................................................................................648

DIRETORA RESPONSÁVELIr. Márian Ambrosio, dp

REDATOR RESPONSÁVELPe. Plutarco Almeida, sjMTb 2122

CONSELHO EDITORIAL:Ir. Helena Teresinha Rech, sstIr. Vera Ivanise Bombonatto, fspPe. Cleto Caliman, sdbPe. Jaldemir Vitório, sjPe. Roberto Duarte Rosalino, cmf

DIREÇÃO, REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃOSDS, Bloco H, n. 26, sala 507Ed. Venâncio II70393-900 - Brasília - DFTel.: (61) 3226-5540Fax: (61) 3225-3409E-mail: [email protected] na Divisão de Censura e Diversões Públicas do PDF sob o n. P. 209/73

Projeto gráfico:Manuel Rebelato Miramontes

Revisão:Cirano Dias Pelin e Sandra Sinzato

Impressão:Gráfica de Paulinas Editora

Ilustração da capa:Pe. José Maria Fernandes Machado, sj

CRB

CONVERGÊNCIARevista mensal da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRBISSN 0010-8162

Os artigos assinados são de responsabilidade pessoal de seus autores e não refletem necessariamente o pensamento da CRB como tal.

Assinatura anual para 2012: Brasil: R$ 89,00Exterior: US$ 89,00 ou correspondente em R$ (reais)

Números avulsos: R$ 8,90 ou US$ 8,90

ASSINATURAS 2012

1) Novo preço: Brasil: R$ 89,00 – Exterior: US$ 89

Um pouco depois do início de 2011 os nossos custos (gráfica, transporte, correios etc.) tiveram um expressivo aumento. Contudo, a CRB resolveu não aumentar o preço da revista e assumiu o impacto desses custos.

Para 2012, entretanto, faz-se necessário um reajuste mínimo a fim de que possamos, por um lado, continuar a merecer o apoio dos nossos assinantes e, por outro, cobrir as despesas da Convergência.

2) Quando e como renovar a assinatura?

A maioria das assinaturas vence em 31 de dezembro. Caso haja dúvida, por favor, entre logo em contato conosco, se possível antes do vencimento, pelo e-mail <[email protected]>.

A renovação pode ser feita de dois modos:• Através do site <crbnacional.org.br>, no link “Revista Convergência”,

colocando o CNPJ ou CPF, imprimindo o boleto e pagando no banco.• Via depósito bancário direto (BANCO DO BRASIL, AG 1230-0, C/C

306.934-6). É necessário depois passar por fax ou e-mail o comprovante devidamente identificado.

Atenção!Ao acessar a nossa página na internet, se a sua Congregação/Ordem/Instituto

possui várias casas/obras com o mesmo CNPJ, é necessário conhecer o código de assinante. Este código vem impresso todo mês na etiqueta do envelope da revista.

Por favor, GRAVE-O! Isto vai facilitar o nosso relacionamento depois.

3. Novas assinaturas

Envie os dados completos (Congregação/Ordem/Instituto, endereço, CNPJ ou CPF, telefone etc.) para o e-mail <[email protected]>. Em seguida, mandaremos o boleto para pagamento.

Observação: para adiantar o processo, faça o depósito na conta-corrente mencionada acima e mande, via fax ou e-mail, o comprovante juntamente com os dados completos.

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EDITORIAL

Mais um ano se vai

Faz um ano que assumimos, com a ajuda de Deus e o apoio dos nossos leitores e leitoras, a edição da revista Con-vergência. Nesse período, tentamos seguir o rumo traçado principalmente pela nossa querida Irmã Juçara. Não inven-tamos muita coisa, não. Ao longo deste ano de 2011, as li-nhas mestras, o foco principal da revista, o estilo etc., foram objeto de uma criteriosa avaliação por parte do nosso Con-selho Editorial, que confirmou a caminhada já feita e deu o seu aval para que seguíssemos em frente.

Então, se por um lado 2011 foi um ano de consolidação desta caminhada, foi também um ano de ampliação, ainda que muito modesta, é claro, especialmente das estruturas administrativas. Assim, por exemplo, os assinantes da Con-vergência passaram a ter a possibilidade de renovar as suas as-sinaturas através do site da CRB Nacional, o que sem dúvi-da facilitou bastante a vida de muita gente. O nosso Cadas-tro Geral de Assinantes também foi modernizado e algumas falhas que atrapalhavam a relação entre a revista e os seus leitores fixos foram corrigidas. Apesar de ainda não termos um atendimento realmente à altura dos nossos assinantes, este serviço mereceu atenção especial, tanto assim que hoje temos uma funcionária exclusiva na sede em Brasília para dialogar com os assinantes da revista. Considerando-se as limitações de pessoal que a CRB Nacional tem, em função do grande número de serviços que ela presta, acreditamos que o atendimento melhorou bastante ao longo deste ano.

Um outro fato que consideramos positivo foi a manuten-ção do preço da assinatura ao longo de todo o ano, apesar

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Mais um ano se vai

do aumento dos custos logo no começo de 2011. Conse-guimos segurar o mesmo valor até agora e o preço novo vai valer só para as assinaturas de 2012.

A edição que está em suas mãos, querido irmão, querida irmã, traz diversas matérias interessantes que poderão ajudar as Comunidades Religiosas no sentido de uma maior ade-são ao Projeto de Jesus Cristo, com todas as exigências daí decorrentes. Esta sempre foi, e se Deus quiser continuará sendo, a missão principal da nossa revista.

Iniciamos com a Palavra do Papa reproduzindo a homilia de Bento XVI na missa que ele presidiu por ocasião do en-contro sobre a Nova Evangelização e que recebeu o título “Novos evangelizadores para a Nova Evangelização”.

Sob a rubrica “Informe”, a Convergência oferece aos seus leitores a mensagem final do Seminário Pan-Amazônico, promovido pela Conferência Latino-Americana e Caribe-nha de Religiosos e Religiosas (CLAR), em parceria com a CRB Nacional. Esse seminário aconteceu no período de 7 a 9 de outubro de 2011, em Manaus-AM, reunindo Reli-giosas e Religiosos provenientes dos vários países da grande Amazônia.

O Frei Carlos Mesters, é claro, dispensa apresentações. Foi com muito carinho, e também com um profundo sen-timento de admiração, que o entrevistamos. E sem nos restringirmos aos assuntos ligados ao Movimento Bíblico, sua especialidade, fizemos perguntas sobre diversos temas atuais, seja com relação à Igreja, à VRC, à sociedade etc. Vale a pena conferir a sabedoria que emana de suas palavras, sempre revestidas de uma encantadora simplicidade.

Na seção “Arte & Cultura”, propomos uma reflexão so-bre a presença cada vez mais acentuada do telefone celular, um equipamento tecnológico que em geral todas as pessoas, mesmo as Religiosas e os Religiosos, julgam ser simples-mente imprescindível nos dias atuais. O que representa, de fato, o uso do celular em termos da comunicação ou da in--comunicação interpessoal e por isso mesmo quais as inter-rogações que ele coloca para a sociedade é algo que precisa

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

603ser estudado. A VRC certamente não está fora desse proces-so nem alheia a tal realidade.

Por sua vez, o bloco de artigos começa com um texto ex-tremamente provocante do Padre Sergio Montes Rondon, jesuíta boliviano, formador e pastoralista inserido numa pa-róquia rural de Cochabamba. Ele fala sobre o tema que é uma das prioridades da CRB para o triênio 2010-2013, ou seja, a leveza institucional (Prioridade 6):

O peso da institucionalidade de nossas Congregações, assim

como as Instituições que temos criado, talvez sejam o obstácu-

lo do qual tenhamos de desprender-nos para um serviço mais

itinerante.

O artigo do Padre Rondon poderá nos ajudar, quem sabe, a encaminhar de forma serena, mas também forte e decidi-da, uma discussão sobre as grandes (e pesadas) estruturas or-ganizacionais/institucionais que de alguma forma hoje em dia atrapalham o desenvolvimento da VRC como um todo. Oxalá possa surgir daí o início de um processo corajoso de discernimento comunitário que nos auxilie a mudar o que se faz mais necessário e mais urgente mudar.

A Irmã Vera Ivanise Bombonatto, fsp, da Equipe de Re-flexão Teológica (ERT) da CRB, foi uma das assessoras do Seminário Pan-Amazônico, ao qual já nos referimos, e produziu um texto muito interessante sobre dois assun-tos que sempre estão na pauta de discussão, com maior ou menor intensidade e frequência: “interinstitucionalidade e intercongregacionalidade”. Debruçando-se sobre a realida-de amazônica, a autora propõe um enfoque teológico, pois, segundo ela,

o discurso teológico “como inteligência da fé” que ilumina a

“práxis libertadora” não pode ignorar as dores de parto da Mãe

Terra e os gemidos que brotam do seio da Amazônia. Antes, no

processo do fazer teológico, a realidade concreta, os clamores e

as esperanças, as dores e as alegrias constituem o momento primei-

ro, do qual a elaboração teológica é o momento segundo.

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604 Em seguida, publicamos um artigo do jovem Irmão César Thiago do Carmo Alves, da Congregação dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos), no qual propõe uma refle-xão sobre a relação entre economia, teologia e VRC. Ao “deus do mercado” tão presente em nossa sociedade con-sumista e hedonista o cristão deve contrapor o Projeto do Deus de Jesus. Para os empobrecidos, sempre as maiores vítimas dos ídolos cultuados hoje pela economia mundial, o Evangelho é a única esperança de libertação. Assim, para o Irmão César,

A vontade de Deus é que os pobres tenham vida plena. Des-sa forma, vai na contramão da lógica da “religião econômica”, que prima pelo dinheiro, que é colocado em primeiro plano, enquanto o ser humano fica em segundo. Para o Deus cristão, o contrário é que é o verdadeiro. A vida humana sempre está acima de quaisquer coisas materiais.

A divulgação deste texto do Irmão César Thiago nos en-che de alegria e satisfação porque está em sintonia com um dos propósitos editoriais da Convergência, que é justamente o de prestigiar os jovens teólogos, filósofos, psicólogos, so-ciólogos etc. que estão entrando agora na VRC. E a revista vai continuar aberta à participação e à colaboração desses novos valores.

Então, só nos resta desejar a vocês uma boa leitura e um excelente proveito, e pedir a Deus Nosso Senhor que nos acompanhe com a sua Graça ao longo desta nova jornada que já começamos.

Mais uma vez, obrigado pelo apoio, pelas críticas, pela compreensão, e, sobretudo, pelo grande amor que você, leitor(a), dedica a esta humilde revista.

Padre Plutarco almeida, sj

Mais um ano se vai

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

605Homilia do Papa Bento XVIMissa aos representantes

das realidades eclesiais para a Nova Evangelização

Encerramento do encontro “Novos evangelizadores para a Nova Evangelização. A Palavra de Deus cresce e se difunde”

Basílica Vaticana Domingo, 16 de outubro de 2011

Venerados IrmãosEstimados irmãos e irmãsÉ com alegria que celebro hoje a Santa Missa para vós,

que estais comprometidos em muitas partes do mundo, nas fronteiras da nova evangelização. Esta Liturgia é o encerra-mento do encontro que ontem vos chamou a confrontar--vos nos âmbitos de tal missão e a ouvir alguns testemunhos significativos. Eu mesmo quis apresentar-vos alguns pensa-mentos, enquanto hoje parto para vós o pão da Palavra e da Eucaristia, na certeza – compartilhada por todos nós – que sem Cristo, Palavra e Pão de vida, nada podemos fazer (cf. Jo 15,5). Estou feliz por este encontro se inserir no contexto do mês de outubro, precisamente uma semana antes do Dia Missionário Mundial: isto evoca a justa dimensão universal da nova evangelização, em harmonia com a da missão ad gentes.

Dirijo uma saudação cordial a todos vós, que aceitastes o convite do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. Em particular, saúdo e agradeço ao Presi-dente deste Dicastério, de recente instituição, D. Salvatore Fisichella, bem como aos seus colaboradores.

PALA

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606 Comentemos agora as leituras bíblicas, nas quais hoje o Senhor nos fala. A primeira, tirada do Livro de Isaías, diz--nos que Deus é um só, é único; não existem outros deuses fora do Senhor, e até o poderoso Ciro, imperador dos per-sas, faz parte de um desígnio maior, que só Deus conhece e faz progredir. Esta leitura apresenta-nos o sentido teológico da história: as revoluções epocais, o suceder-se das grandes potências encontram-se sob o domínio supremo de Deus; nenhum poder terreno pode colocar-se no seu lugar. A teo-logia da história é um aspecto importante, essencial da nova evangelização, porque os homens do nosso tempo, depois da nefasta época dos impérios totalitários do século XX, têm necessidade de reencontrar um olhar abrangente sobre o mundo e o tempo, um olhar verdadeiramente livre, pací-fico, aquele olhar que o Concílio Vaticano II transmitiu nos seus Documentos, e que os meus Predecessores, o Servo de Deus Paulo VI e o Beato João Paulo II, explicaram com o seu Magistério.

A segunda leitura é o início da Primeira Carta aos Tes-salonicenses, e já isto é muito sugestivo, porque se trata da carta mais antiga que chegou até nós do maior evangeli-zador de todos os tempos, o apóstolo Paulo. Ele diz-nos, antes de tudo, que não se evangeliza de maneira isolada: com efeito, também ele tinha como colaboradores Silvano e Timóteo (cf. 1Ts 1,1), além de muitos outros. E ime-diatamente acrescenta outro elemento muito importante: que o anúncio deve ser precedido, acompanhado e seguido pela oração. Com efeito, escreve: “Damos graças a Deus por todos vós, lembrando-nos sem cessar de vós nas nos-sas orações” (v. 2). Depois, o apóstolo diz que está bem consciente de que os membros da comunidade não foram escolhidos por ele, mas por Deus: “fostes escolhidos por ele” – afirma (cf. v. 4). Cada missionário do Evangelho deve ter sempre presente esta verdade: é o Senhor que sensibiliza os corações com a sua Palavra e com o seu Es-pírito, chamando as pessoas à fé e à comunhão na Igreja. Enfim, Paulo deixa-nos um ensinamento muito precioso, tirado da sua própria experiência. Ele escreve: “O nosso

Homilia do Papa Bento XVI

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

607Evangelho não vos foi pregado somente com palavras, mas também com poder, com o Espírito Santo e com convic-ção” (v. 5). Para ser eficaz, a evangelização tem necessida-de da força do Espírito, que anime o anúncio e infunda em quem o traz aquela “plena convicção” de que o apóstolo fala. Este termo “convicção”, “plena convicção”, no origi-nal grego, é pleroforía: uma palavra que não exprime tanto o aspecto subjetivo, psicológico, quanto sobretudo a ple-nitude, a fidelidade, a integridade – neste caso, do anúncio de Cristo. Anúncio que, para ser completo e fiel, deve ser acompanhado por sinais e gestos, como a pregação de Jesus. Portanto, Palavra, Espírito e convicção – assim en-tendida – são inseparáveis e concorrem para fazer com que a mensagem evangélica se difunda com eficácia.

Meditemos agora sobre o trecho do Evangelho. Trata-se do texto sobre a legitimidade do tributo a pagar a César, que contém a célebre resposta de Jesus: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Mas antes de chegar a este ponto há uma passagem que se pode referir a quantos têm a missão de evangelizar. Com efeito, os interlocutores de Jesus – discípulos dos fariseus e hero-dianos – dirigem-se a ele com uma apreciação, dizendo: “Sabemos que és sincero e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, sem te preocupares com ninguém” (v. 16). É precisamente esta afirmação, embora suscitada pela hipocrisia, que deve chamar a nossa atenção. Os discípu-los dos fariseus e os herodianos não acreditam naquilo que dizem. Afirmam-no como uma captatio benevolentiae, para se fazerem ouvir, mas o seu coração está muito distante da-quela verdade; aliás, eles querem fazer cair Jesus numa ar-madilha, para o poder acusar. Para nós, ao contrário, aquela expressão é preciosa e verdadeira: com efeito, Jesus é sincero e ensina o caminho de Deus segundo a verdade, sem se preocupar com ninguém. Ele mesmo é aquele “caminho de Deus”, que nós somos chamados a percorrer. Aqui podemos evocar as palavras do próprio Jesus, no Evangelho de João: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (14,6). A este pro-pósito, é iluminador o comentário de Santo Agostinho:

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608 Era necessário que Jesus dissesse: “Eu sou o caminho, a verdade

e a vida” porque, uma vez que se conhecia o caminho, ainda era

preciso conhecer a meta. O caminho conduzia para a verdade,

levava para a vida... E nós, para onde vamos, senão para ele, e

por que via caminhamos, senão através dele? (In Ioh 69, 2).

Os novos evangelizadores são os primeiros que são cha-mados a percorrer este Caminho, que é Cristo, para fazer conhecer aos outros a beleza do Evangelho que dá a vida. E por esta senda nunca caminhamos sozinhos, mas em com-panhia: uma experiência de comunhão e de fraternidade é oferecida a quantos encontramos, para lhes comunicar a nossa experiência de Cristo e da sua Igreja. Assim, o teste-munho unido ao anúncio pode abrir o coração de quantos procuram a verdade, a fim de que possam alcançar o sentido da própria vida.

Uma breve reflexão também sobre a questão central do tributo a César. Jesus responde com um surpreendente realismo político, vinculado ao teocentrismo da tradi-ção profética. O tributo a César deve ser pago, porque a efígie na moeda é sua; mas o homem, cada homem, traz em si mesmo outra imagem, a de Deus, e portanto é a ele, e somente a ele que cada um é devedor da própria existência. Os Padres da Igreja, inspirando-se no fato de que Jesus faz referência à efígie do imperador, gravada na moeda do tributo, interpretaram este trecho à luz do conceito fundamental de homem-imagem de Deus, con-tido no primeiro capítulo do Livro do Gênesis. Um autor anônimo escreve:

A imagem de Deus não está gravada no ouro, mas no gênero

humano. A moeda de César é ouro, a de Deus é a humanidade...

Portanto, concede a tua riqueza material a César, mas conserva

para Deus a inocência singular da tua consciência, onde Deus é

contemplado... Com efeito, César pediu que a sua imagem fosse

gravada em cada moeda, mas Deus escolheu o homem, que ele

mesmo criou, para refletir a sua glória (Anônimo, Obra incom-

pleta sobre Mateus, Homilia 42).

Homilia do Papa Bento XVI

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

609E Santo Agostinho recorreu várias vezes a esta referência nas suas homilias: “Se César reclama a própria imagem im-pressa na moeda – afirma – não exigirá Deus do homem a imagem divina esculpida nele?” (En. in Ps., Salmo 94,2). E ainda: “Do mesmo modo que se devolve a moeda a César, assim se restitui a Deus a alma iluminada e impressa pela luz do seu rosto... Com efeito, Cristo habita no homem inte-rior” (Ibid., Salmo 4,8).

Esta palavra de Jesus é rica de conteúdo antropológico, e não pode ser reduzida unicamente ao âmbito político. Por-tanto, a Igreja não se limita a recordar aos homens a justa distinção entre a esfera da autoridade de César e a de Deus, entre o âmbito político e o religioso. A missão da Igreja, como também a de Cristo, consiste essencialmente em fa-lar de Deus, fazer memória da sua soberania, recordando a todos, especialmente aos cristãos que perderam a própria identidade, o direito de Deus sobre aquilo que lhe pertence, ou seja, a nossa vida.

Precisamente para dar um renovado impulso à missão de toda a Igreja, de conduzir os homens para fora do deserto em que muitas vezes se encontram, rumo ao lugar da vida, da amizade com Cristo que nos dá a vida em plenitude, gostaria de anunciar nesta Celebração eucarística que decidi proclamar um “Ano da Fé”, que poderei explicar mediante uma especial Carta apostólica. Este “Ano da Fé” começa-rá no dia 11 de outubro de 2012, no 50o aniversário da inauguração do Concílio Vaticano II, e terminará a 24 de novembro de 2013, Solenidade de Cristo Rei do Universo. Será um momento de graça e de compromisso para uma conversão a Deus cada vez mais completa, para fortalecer a nossa fé nele e para o anunciar com alegria ao homem do nosso tempo.

Amados irmãos e irmãs, vós estais entre os protagonistas da nova evangelização, que a Igreja empreendeu e faz pro-gredir, não sem dificuldades, mas com o mesmo entusiasmo dos primeiros cristãos. Em conclusão, faço minhas as ex-pressões do apóstolo Paulo, que ouvimos: dou graças a Deus por todos vós, e asseguro-vos que vos conservo nas minhas

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610 orações, recordando o vosso compromisso na fé, a vossa di-ligência na caridade e a vossa esperança constante em nosso Senhor Jesus Cristo. A Virgem Maria que não teve medo de responder “sim” à Palavra do Senhor e, depois de a ter concebido no seu seio, se pôs a caminho cheia de alegria e de esperança, seja sempre o vosso modelo e a vossa guia. Aprendei da Mãe do Senhor e nossa Mãe a ser humildes e ao mesmo tempo corajosos; simples e prudentes; mansos e fortes, não com o vigor do mundo, mas com a força da verdade. Amém!

Bento XVi

Homilia do Papa Bento XVI

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

611Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos

e Religiosas – CLAR“Escutemos a Deus onde a vida clama”

Seminário Pan-Amazônico

Manaus, Brasil, 7 a 9 de outubro de 2011

Mensagem

Nós religiosos e religiosas, “Na escuta a Deus onde a vida clama”, estivemos reunidos em Manaus, Brasil, nos dias 7 a 9 de outubro de 2011, para o Seminário da Vida Reli-giosa Consagrada, promovido pela CLAR (Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos/as). Éramos religiosas e religiosos da Pan-Amazônia: colombiana, equa-toriana, boliviana, peruana, venezuelana e Amazônia brasi-leira. Tendo como tema: Amazônia: importância, desafios e missão e o lema: A Pan-Amazônia geme em dores de parto (cf. Rm 8,22), o seminário tratou ainda da Intercon-gregacionalidade e a Interinstitucionalidade como temáticas transversais.

Além da VRC, participou do seminário o Cardeal Dom Cláudio Hummes, Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia, da CNBB. Estiveram também presentes Ir. Paulo Petry, Presidente da CLAR e Ir. Marian Ambrósio, presidente da CRB Nacional, bem como representantes de outras instituições que atuam na Amazônia.

Iniciamos o seminário vivenciando fortemente nossa fé no Deus da Vida e sofremos os impactos causados na Pan- -Amazônia pelos que adoram os ídolos geradores de mor-te. Assim como as águas que compõem uma bela sinfonia de gotas, chuvas e orvalhos, que seguem seu percurso de

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612 igarapés, corredeiras e rios, vencem barreiras e se entregam ao fascínio do oceano, assim a VRC necessita encontrar-se, munir-se de novas sensibilidades, compor a sua sinfonia, fazer o seu percurso histórico, vencer obstáculos e entregar--se ao fascínio do Absoluto de Deus que nos quer geradora de vida.

SENTIMOS a terra sagrada deste chão, que fluía na sen-sível experiência de pisar, com pés descalços, na terra re-gada pela preciosa água da vida. As fibras de nosso ser se comoviam pela ritmada cantoria dos pássaros e nossa pele se estremecia na brisa leve, sob as sombras protetoras das árvores frutíferas. A contemplação do homem e da mulher, na singularidade de cada um e na pluralidade que a Criação nos proporcionava, nos comovia e nos levava ao abraço da acolhida sagrada.

Sentimos também a ausência de tantas e tantos que se so-mariam neste sonho comum de contemplar a “Amazônia em sua importância, em seus desafios e em sua missão”.

OUVIMOS, em diversos idiomas e sons, o Deus que a nós se revela de formas tão variadas. O cantar dos pássaros, o ruído das águas, os sons das florestas, tudo reconhece seu criador. A Criação é o grande lugar teológico da Amazônia. Ouvimos sua Palavra escrita, proclamada pela vida entre-gue, pelo serviço gratuito e pela partilha de saberes.

Ouvimos também o clamor da vida ameaçada, da flores-ta tombada, da motoserra em melodia fúnebre. Ouvimos a Pan-Amazônia gemendo em dores de parto.

VIMOS uma Vida Religiosa e uma Igreja movida por grande paixão pela causa do Reino de Deus e pela defesa da vida. Vimos o sonho por novas relações entre os seres humanos e com toda a criação a partir do coração que opta pela Vida e que aprende a proclamar o essencial dentro da complexidade que a conjuntura atual apresenta.

Vimos também a mercantilização da vida, da fé, das re-lações. Vimos sangue derramado, rios poluídos, lágri-mas desesperadas, indígenas e ribeirinhos absolutamente desrespeitados.

CLAR – “Escutemos a Deus onde a vida clama”

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

613TESTEMUNHAMOS a beleza de vidas doadas, de op-ção por serviços nos lugares geográficos e sociais dos empo-brecidos, assumindo o destino dos excluídos e construindo juntos o sonho comum de uma outra Amazônia possível. Testemunhamos também a presença viva e atuante do Espí-rito de Deus que fecunda nossas vidas e nossa missão e que se fez sensível em nossas intuições e proposições.

Testemunhamos forças e fragilidades de nossa VRC. Há belas experiências missionárias comunitárias, movidas por uma paixão pelo Reino da vida. São experiências peque-nas, significativas, mas faltam-nos mudanças institucionais e culturais, maior incidência nas urgências do Reino procla-mado por Jesus, maior repercussão em nossas Congregações e Instituições.

INDIGNAMO-NOS muito com a ganância e a cobiça que assola nossa Mãe Terra. Estremece-nos o ruído ensur-decedor das motoserras, das escavadeiras nas mineradoras, das perfuradoras nas petroleiras e o avanço do agronegó-cio. Assustam-nos os planos governamentais, a invasão do capital estrangeiro, a implantação dos grandes projetos, a construção das inúmeras barragens, tais como Belo Mon-te – “grande monstro”, megaprojetos que desarmonizam a sintonia do “charango” e dos demais instrumentos musi-cais e que matam a musicalidade de todos os seres vivos do planeta.

Indignamo-nos, outrossim, com nossa pouca ousadia pro-fética, com nossas esperanças fragilizadas, com nossas ações fragmentadas.

SOLIDARIZAMO-NOS com tantos rostos desfigurados pela fome, pela desesperança, pela injustiça. São rostos de homens e mulheres indígenas que acreditam na terra, na água, na vida, que sonham com “Bem Viver”, em harmo-nia com seu meio ambiente. Rostos também de ribeirinhos, agricultores, marginalizados urbanos, ameaçados de exclu-são radical.

Solidarizamos também com missionárias e missionários perseguidos, incompreendidos, martirizados. Unimo-nos

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614 em solidariedade cúmplice com todas as lideranças que não se deixam seduzir pelas sedutoras propostas do deus da morte.

OUSAMOS afirmar que ser missionários na Amazônia é ser hoje missionários do mundo, pois a Amazônia deixou de ser “fundo de quintal” para se tornar “praça central do mundo”. A cobiça mundial sobre a Amazônia nos obriga a tomar consciência de nossa imensa responsabilidade como missionários e missionárias neste chão. É hora de não deixar cair a profecia, de fortalecer a esperança, de articular ações, de deixar-nos conduzir por novos paradigmas. A intercon-gregacionalidade e interinstitucionalidade nos convocam a uma outra interpretação da realidade. O paradigma ecoló-gico nos fará mergulhar em nova experiência do sagrado, resgatando o olhar sacramental sobre a realidade que nos cerca.

LEVAMOS... nossas cuias leves e ligeiras, itinerantes e despojadas, carregadas de sonhos e de esperanças, compro-metidas com a luta sócio-ambiental.

Levamos a convicção de que “quanto mais difícil os tem-pos, mais deve ser forte a esperança” (Pedro Casaldáliga).

Levamos também desafios de superar fronteiras geográfi-cas e simbólicas, de gerar um novo pensar teológico-espiri-tual, de tecer uma leitura bíblico-profética contextualizada, de promover uma liturgia viva e inculturada.

Além de nossas cuias, levamos paneiros e redes, tecidas de sonhos e de desejos, ocupando brechas que abrem novos rios de vida abundante para todos e todas.

Participantes do Seminário da Pan-Amazônia.

CLAR – “Escutemos a Deus onde a vida clama”

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

615Entrevista com o Frei Carlos Mesters*

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* Entrevista conce-dida ao editor da revista Convergência, via e-mail, em outubro de 2011. Carlos Mesters é religioso carmelita, biblista e assessor de diversos mo-vimentos bíblicos populares no Brasil e na América Lati-na. Endereço do entrevistado: Rua Nossa Senhora do Carmo, 475, CEP 38610-000, Unaí--MG. E-mail: [email protected]. Também: [email protected].

Convergência – O que a Palavra de Deus tem a dizer à Vida Religiosa Consagrada nestes tempos tão complexos?

Frei Carlos Mesters – Desde o início, a meditação orante e constante da Palavra de Deus sempre foi o eixo central da Vida Religiosa Consagrada. O Projeto Palavra-Vida, pro-movido pela CRB nos anos 1980-1990, ajudou-nos muito para relançar a Lectio Divina como o centro da Vida Reli-giosa Consagrada. A leitura diária da Bíblia funciona como as gotas de colírio no olho da gente. Vai melhorando, lenta e imperceptivelmente, nosso olhar sobre a vida, sobre a re-alidade, sobre a situação complexa do mundo. Como dizia Santo Agostinho: a leitura orante da Bíblia devolve-nos o olhar da contemplação e ajuda-nos a decifrar o mundo. Em épocas complexas como a nossa, é importante voltar à sarça ardente, às origens da vocação, para poder redimensionar nossa vida e manter o rumo da busca de Deus e do serviço ao povo.

Convergência – Como o senhor avalia o Movimento Bíblico Po-pular no momento atual da Igreja no Brasil?

Frei Carlos Mesters – A palavra Igreja vem do grego (eklesia). Significa convocada pela Palavra de Deus. A escuta orante da Palavra é a fonte de onde a Igreja nasce e renasce, cada vez de novo, sem parar. Escutando Jesus falar, o povo dizia: “Ele fala com autoridade, diferente dos escribas” (cf. Mc 1,22). A fala de Jesus comunicava consciência crítica com relação à religião oficial da época e, como tal, tornava-se fonte de

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616 renovação. O mesmo acontece com o Movimento Bíblico Popular no momento atual da Igreja no Brasil. Ajuda a per-ceber as falhas e as deficiências tanto na vida pessoal de cada um de nós como na vida comunitária, seja da Igreja, seja da sociedade. A troca de experiências em torno da Palavra de Deus que acontece nos encontros e círculos bíblicos refaz o relacionamento humano na base. Reconstrói o tecido da convivência humana, ou, como dizia a profecia de Mala-quias, “reconduz o coração dos pais para os filhos e dos filhos para os pais” (cf. Ml 3,23-24; cf. Eclo 48,10). Nos últimos cinquenta anos, o Movimento Bíblico Popular, in-centivado pelas conferências de Medellín e Puebla, foi, sem dúvida alguma, uma das principais fontes da renovação da Igreja na América Latina.

Convergência – O senhor acha que de certa forma, no Brasil, as novas comunidades, sobretudo aquelas ligadas ao movimento caris-mático, empobrecem uma vivência mais libertadora da Palavra de Deus?

Frei Carlos Mesters – Existe uma afirmação curiosa na Pri-meira Carta aos Coríntios em que Paulo diz o seguinte: “Sobre os dons do Espírito, irmãos, não quero que vocês fiquem na ignorância. Vocês sabem que, quando eram pa-gãos, se sentiam irresistivelmente arrastados para os ídolos mudos. Por isso, eu declaro a vocês que ninguém, falando sob a ação do Espírito de Deus, jamais poderá dizer: ‘Aná-tema, Jesus!’” (cf. 1Cor 12,1-3).

O simples fato de Paulo fazer tal advertência significa que de fato havia pessoas na comunidade que se diziam anima-das pela ação do Espírito para afirmar “Anátema, Jesus”. Tratava-se de grupos ou pessoas que diziam: “Depois que Jesus veio, não precisamos mais do Antigo Testamento”. E: “Depois que Jesus ressuscitou e se tornou o Cristo, não pre-cisamos mais nem de Jesus de Nazaré, basta o Cristo da fé que vive em nós pelo Espírito”. Eles não queriam mais saber (anátema) do Jesus da história que andava com os pobres, queriam ficar só com os dons do Espírito. Provavelmente, sem se darem conta, eles eram influenciados e enganados

Entrevista com o Frei Carlos Mesters

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617pelo movimento gnóstico que crescia muito fortemente na segunda metade do primeiro século. Desse modo, eles em-pobreciam a vivência da Boa-Nova de Deus que Jesus nos trouxe. Hoje há movimentos que sofrem a mesma tentação de deixar de lado a prática dolorosa e controvertida de Je-sus junto aos excluídos e marginalizados. São, sobretudo, como você diz, algumas das novas comunidades, aquelas ligadas ao movimento carismático. Elas empobrecem a vi-vência mais libertadora da Palavra de Deus. Elas apreciam os dons do Espírito. E isso está certo! Mas deveriam apreciar com o mesmo entusiasmo e vigor a análise crítica tanto da sociedade como da Igreja que nos vem das Palavras e atitu-des de Jesus de Nazaré. Quando se esquece Jesus de Nazaré que andava com os pobres, empobrecemos a mensagem. O apóstolo Tomé só aceitava o Jesus ressuscitado que tivesse no corpo os sinais da tortura e da morte violenta na cruz (cf. Jo 20,25). O Cristo da fé é Jesus de Nazaré, que até hoje traz os sinais da tortura em seu corpo por causa da sua fidelidade ao Pai e aos pobres.

Convergência – De que forma as Religiosas e os Religiosos podem contribuir para que a Palavra de Deus seja de fato o centro da vida cristã na Igreja e na sociedade de hoje?

Frei Carlos Mesters – Nós, Religiosos e Religiosas, temos muitas comunidades e grupos espalhados Brasil afora no meio do povo. Acho que deveríamos aproveitar todas as ocasiões e oportunidades para aprofundar em nós e irradiar para os outros a ação da Palavra de Deus. Pelo testemunho de vida e pela maneira de servir ao povo, devemos mostrar que a Palavra de Deus é de fato o centro, o eixo da vida cristã. Devemos aprender a lição da história recente. Olhan-do a história nossa dos últimos sessenta anos, podemos dizer que a renovação, proclamada pelo Concílio Vaticano II e atualizada pelas conferências episcopais de Medellín e Pue-bla, não teria obtido o resultado que teve se não fossem as comunidades religiosas inseridas no meio dos pobres. Nes-tes anos todos, nós aprendemos dos pobres a retomada da leitura orante da Bíblia. Naquela época terrível da ditadura,

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618 eles vinham a nós pedir como entender este ou aquele texto da Bíblia. Assim, eles nos ajudaram a retomar a leitura da Bíblia. A definição mais bonita de uma comunidade inse-rida no meio do povo foi a que ouvi de uma senhora que dizia: “As irmãs são o rosto de Deus para nós”. Ser o rosto de Deus para o povo, como Jesus procurava ser o rosto do Pai: “Quem me vê, vê o Pai!”.

Convergência – O que dizer desses movimentos sociais e até re-ligiosos que usam a Bíblia para justificar, por exemplo, o homosse-xualismo e o aborto?

Frei Carlos Mesters – Para completar esta pergunta, deve-ria afirmar também o contrário. Há movimentos que em nome da Bíblia condenam o homossexualismo e condenam qualquer forma de aborto como pecado. Uns condenam e outros justificam, e tudo em nome da Bíblia! Quem tem razão? Será que a Bíblia serve para tudo? Não podemos ma-nipular a Bíblia nem para um, nem para o outro lado. No tempo da Bíblia havia problemas, hoje temos outros pro-blemas, que nem sempre correspondem aos de antigamen-te. Para o discernimento das coisas, é importante perceber o contexto geral em que o povo da Bíblia se posicionava diante dos problemas da época. É importante descobrir se certas tomadas de posição, por exemplo, diante do homos-sexualismo, eram uma expressão cultural ou uma expressão da revelação. Mais importante ainda é ter a honestidade de reconhecer que nem sempre a Bíblia serve para condenar ou justificar esta ou aquela posição. O que a Bíblia quer é a de-fesa da vida. Para saber o que hoje serve para a defesa da vida não basta selecionar alguns textos da Bíblia, mas devemos analisar o problema à luz das conclusões da ciência de hoje, à luz da cultura, da medicina e, sobretudo, do bom senso e do amor à vida, não só da criança, mas também da mãe grá-vida. A defesa da vida deve ser o eixo central em tudo que orientava a prática de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” ( Jo 10,10). Urgente é um estudo exegético profundo para saber exatamente o que a Bíblia afirma a respeito do homossexualismo. Tomadas ao

Entrevista com o Frei Carlos Mesters

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619pé da letra, certas afirmações da Bíblia parecem condenar o homossexualismo como abominável diante de Deus. Por causa disso, muitas pessoas que nasceram assim se sentem abandonadas por Deus e condenadas sem culpa. Isso é uma injustiça gritante que exige reparação e esclarecimento.

Convergência – O Brasil assiste a uma explosão de Igrejas adep-tas da chamada “Teologia da Prosperidade”, onde a Bíblia é usada para fazer o povo mais empobrecido acreditar que dando dinheiro aos “pastores” obterá a solução de todos os seus problemas, inclusive o financeiro. O que dizer desta interpretação da Palavra de Deus?

Frei Carlos Mesters – Já no Antigo Testamento havia gente adepta da “Teologia da Prosperidade” e havia uma atitude muito forte da parte dos profetas e de alguns livros sapien-ciais contra este tipo de interpretação da Palavra de Deus. O Livro de Jó, por exemplo, ajuda a perceber como a imagem que as pessoas têm de Deus repercute na organização eco-nômica, social, política e religiosa da sociedade. O ensino oficial dizia: “Sofrimento e pobreza são castigo de Deus” (cf. Jó 4,7; 8,1-4). Essa maneira de representar o relaciona-mento entre Deus e o ser humano falsificava o sentido da vida, beneficiava a elite e dava aos pobres um complexo de culpa e de inferioridade. O Livro de Jó verbaliza a tensão que estava nascendo entre o ensino oficial da elite e a in-cipiente consciência rebelde dos sofredores. Os três amigos representam a visão tradicionalista, que eles defendem com unhas e dentes. Jó representa os sofredores, cuja consciên-cia estava começando a se rebelar. A cabeça de Jó, formada pelo catecismo da tradição dominante, dizia: “Você sofre e é pobre porque é pecador! Deus o está castigando!”. Mas o coração, a consciência, lhe dizia: “Deus é injusto comigo! Não pequei! Quero brigar com ele para me defender”. Jó critica os três amigos, que identificavam a presença de Deus com o nível econômico das pessoas: “Vocês usam mentiras e injustiças para defender a Deus!” (cf. Jó 13,7). A frase fi-nal do Livro de Jó traz a luz que esclarece o problema em torno da imagem de Deus. Jó se dirige a Deus e diz: “Eu te conhecia só de ouvir falar de ti, mas agora meus olhos

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620 te viram. Por isso me retrato e me arrependo sobre pó e cinza” (cf. Jó 42,4-6). Jó descobriu que a sua luta não era contra Deus, mas sim contra aquela imagem de Deus que falsificava a consciência das pessoas e destruía a convivência humana. É a rebeldia profética da tradição sapiencial que não quer ser enquadrada e que até hoje critica e denuncia a assim chamada “Teologia da Prosperidade”.

Entrevista com o Frei Carlos Mesters

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621O celular está tocando!

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* Padre Plutarco Almeida é jesuíta, jornalista, editor da revista Convergência. Blog: plutarcoalmeida.blogspot.com. Celular: (61) 8165 2905. Obs.: Não atende depois das 20h.

Plutarco almeida, sj*

No aviãoO avião acabou de pousar e logo aparece a voz suave da

chefe das comissárias: “Pedimos aos senhores passageiros que permaneçam sentados, com seus cintos de segurança afivelados até o completo estacionamento da aeronave”. Tudo bem, mas, assim que as pessoas percebem que já po-dem se levantar de suas apertadíssimas poltronas, quase que instintivamente lançam mão dos aparelhos celulares e se põem a fazer chamadas para “A”, “B” e “C” num ritmo frenético. “Fulano, cheguei”, “Sicrano, estou no avião” etc. Os telefones, que permaneceram caladinhos durante toda a viagem, são novamente ativados e os seus usuários querem voltar a utilizá-los com urgência e avidez. Todo mundo pa-rece desesperado para falar com alguém, como se estivesse saindo de um isolamento de anos e anos, apesar de a viagem ter demorado talvez uma ou duas horas e o avião estar com-pletamente lotado!

A cena é uma das mais comuns hoje em dia em qualquer aeroporto, seja qual for o voo, o horário ou o destino de quem chega ou de quem parte. O que temos aqui, na ver-dade, é um ritual mesmo. E quem ficar observando (tem sempre alguém curioso em meio à multidão) vai perceber que o gesto de ligar o aparelho e começar a falar qualquer coisa com alguém é instantâneo, quase automático. Talvez seja até estranho o fato de que algum passageiro não esteja com celular no avião ou desembarque sem o ter ligado. Não submeter-se, então, ao ritual, parece ser algo realmente fora de propósito.

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622 A impressão que se tem é que a necessidade de entrar em contato com alguém, ainda que seja para falar bobagens ou coisas inúteis, é alguma coisa de extrema necessidade, que não dá para esperar cinco ou dez minutos até que a pessoa chegue ao portão de desembarque e retome as suas ativida-des no solo. A lógica é mais ou menos esta: acabei de sair do isolamento total e agora preciso entrar em comunicação com alguém, seja lá quem for e por que motivo for. Estou de volta ao planeta Terra afinal! Sou um ser humano/social como todo mundo! E por aqui ninguém vive sem tal apare-lhinho colado ao ouvido.

Por outro lado, este apego exagerado, esta sede quase in-saciável de estar falando o tempo todo ao celular aponta também para uma forte dose de exibicionismo existente na sociedade atual. Exibir, portanto, um aparelho moderno (e caro, se possível) no meio da rua ou em qualquer ambiente público é sinal de status social e de poder econômico, em-bora todo mundo saiba que com as facilidades do crediá-rio grande parte da população pode adquirir tais novidades tecnológicas.

A escova de denteÉ claro que o tema é tão recente quanto complexo, por

isso talvez daqui a pouco os sociólogos, antropólogos e psi-cólogos possam nos oferecer análises mais apuradas que aju-dem a decifrar ou a decodificar este fenômeno aparente-mente simples, mas que revela traços importantes da cultura atual. Aqui se abre um campo vastíssimo de pesquisa para esses e outros especialistas.

Mas a história do avião é apenas um dos exemplos possí-veis. No meio da rua, na fila dos bancos, dentro do metrô ou do ônibus, até mesmo nas igrejas, os mais variados (e às vezes enjoativos e irritantes) tipos de toques se fazem ouvir o dia inteiro. Outro dia presenciei, um tanto quanto escandalizado, confesso, um padre que presidia a celebração eucarística interromper a missa para desligar o celular que tocava num volume tão alto que toda a assembleia ouviu.

O celular está tocando!

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623Em celebrações de casamento religioso nem se fala, aliás se fala (e muito) ao celular!

Não se pode negar que tal aparelhinho hoje reina absoluto em qualquer canto de qualquer cidade, pequena ou grande, e já faz parte, digamos assim, da paisagem urbana e da vida “normal” que vivemos. O celular é utilizado não apenas pelos adultos ou por aquelas pessoas que realmente precisam manter contatos em função de suas profissões (o motorista de táxi, o médico, o motoboy, por exemplo). Creio que di-ficilmente encontraremos por aí um ser humano, indepen-dente da idade, profissão, cor, sexo, religião, que não traga no bolso, na bolsa ou na orelha um celular.

O telefone celular, que surgiu faz mais ou menos vinte anos, expandiu-se de tal forma que virou uma verdadeira febre. No Brasil, os números indicam que dentro de pouco tempo teremos em média um celular para cada habitante. Ter (e usar muito) um celular hoje em dia é a mesma coisa que ter a carteira de identidade, o RG, uma coisa tão co-mum que já se incorporou definitivamente aos hábitos e costumes de todo mundo, inclusive de Religiosos e Reli-giosas. Trata-se de um aparelho pertencente ao nosso dia a dia, incorporado de forma natural às rotinas do cotidiano, como a escova de dente, um “gênero de primeira necessida-de”, talvez. Aliás, acho que é mais fácil alguém viver uma semana sem a escova do que ficar um ou dois dias sem o ce-lular. E tem gente que tem dois, três e até quatro aparelhos. De quebra, não deixam de dar uma espiadinha nas vitrines para ver se chegou algum modelo novo. Ora, dificilmente alguém vai ao supermercado ou à farmácia em busca de no-vos modelos de escova de dente, não é mesmo?

“Quem não se comunica se trumbica” (Chacrinha)

Não vou repetir aqui o que suponho que todo mundo já sabe. Muito menos vou escrever e gastar tinta, papel e tam-bém a paciência dos leitores da Convergência dizendo que o tempo atual é o tempo da informação e da comunicação

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624 etc. Isso é fato consumado. Precisamos cada vez mais de informações para sobreviver e municiar os nossos proces-sos comunicativos. A frase do grande apresentador de TV (que, infelizmente, não chegou a conhecer o celular e usa-va apenas uma simples buzina...) nunca fez tanto sentido. Desconfio, porém, que a necessidade que as pessoas têm de manter-se sempre informadas e em permanente “estado de comunicação” pode estar chegando perigosamente bem perto da obsessão. Ao menos para algumas pessoas. Fala-se de tudo o dia todo. Leva-se o celular para todo canto, vinte e quatro horas por dia! E as conversas são intermináveis (ou até se acabarem os créditos do telefone). É como se o fato de termos de ficar em silêncio por alguns minutos em meio aos diversos barulhos que nos rodeiam contrariasse de alguma forma a nossa natureza humana, sei lá! Há fortes indícios de que aquela coisa de “ouvir a voz do silêncio” já era. Entre-tanto, nem sempre as informações são usadas a serviço da defesa e da promoção da vida, nem sempre a nossa comu-nicação interpessoal “ao vivo” é das melhores. Depois de termos passado o dia todo falando ao celular, quem sabe ainda tenhamos dificuldade em escutar as pessoas que estão em casa...

Nós também estamos nessa?Quem já não foi interrompido no decorrer de uma reu-

nião pelo som de um telefone celular tocando? Mesmo que isso demonstre simplesmente uma tremenda falta de educa-ção, é um fato que está se tornando corriqueiro na VRC. Também Religiosos e Religiosas estão andando para cima e para baixo com os seus aparelhinhos colados no ouvido. Tudo bem, os provinciais, por exemplo, precisam entrar em contato com muita gente todos os dias, então o celular ajuda bastante. Mas onde será que termina o limite entre as reais necessidades de informar-se e de comunicar-se e aquela es-pécie de obsessão de que falei acima?

Pelo amor de Deus, não estou criticando as irmãs, os irmãos e os padres que possuem telefone celular, mesmo

O celular está tocando!

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625porque, se fosse esse o caso, teria de criticar talvez 90% da VRC na Igreja hoje. Ter um celular não é um problema, tampouco o problema. Manter-se bem informado e comu-nicar-se com as pessoas com o auxílio da tecnologia nos dias de hoje é mais do que necessário, é fundamental mesmo. Ora, se os novos aparelhos tecnológicos facilitam o nosso trabalho a serviço do Reino e a comunicação que constrói fraternidade entre nós, que bom, glória a Deus!

Apesar disso, é forçoso reconhecer que algumas questões, a meu ver bastante graves e outras até urgentes, se apre-sentam neste momento e ainda carecem de respostas mais aprofundadas. Tenho a impressão de que estamos de alguma maneira sendo levados pela correnteza tecnológica da so-ciedade atual sem nos darmos conta do que isso implica em termos de acréscimo ou decréscimo qualitativo, sobretudo da nossa comunicação interpessoal.

Que tal, então, tentarmos responder, individual e comu-nitariamente, a estas e outras perguntas:

1) De que forma estamos usando as informações, ou qual a verda-deira utilidade que estamos dando a esta avalanche de informações que obtemos no dia a dia?

Se as informações recebidas não nos ajudam a melhorar a nossa qualidade de vida, sobretudo a vida dos destinatários do nosso serviço, de que adiantam? E eu falo aqui não ape-nas da vida material, mas também da vida espiritual, por que não?

2) Em que medida as novas tecnologias, e o telefone celular em particular, estão servindo realmente para melhorar os nossos pro-cessos comunicativos diários, seja na comunidade religiosa, seja nos ambientes de trabalho pastoral?

É triste (e preocupante) perceber que muitos(as) Religiosos(as) sabem usar/manipular perfeitamente o apa-relho celular, mas às vezes a sua comunicação “face a face”, aquela comunicação corriqueira dentro da Comunidade Religiosa, deixa muito a desejar.

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626 3) O silêncio para nós ainda é um valor ou quando ficamos cala-dos (com o telefone desligado...) sofremos demais?

Eu me refiro àqueles casos em que o(a) Religioso(a) não consegue fazer dez minutos de silêncio dentro da capela, ou, o que é pior, retira-se apressado para atender... ao celu-lar! E ai do superior se reclamar depois! Isso para não citar as histórias de Religiosos e Religiosas que adquirem aparelhos caríssimos, muitas vezes sem necessidade pastoral alguma, apenas para exibi-los por aí. Absurdo? Tenho certeza de que o(a) prezado(a) leitor(a) conhece algum caso semelhante.

Desligando o celularDepois de fazermos esta pequena e despretensiosa refle-

xão, talvez seja o caso de desligar o celular, nem que seja por alguns instantes, quem sabe algumas horas. E não apenas para fazer silêncio e ouvir o que Deus nos fala através da oração e da contemplação, mas também para ouvirmos as vozes das pessoas que convivem conosco, sentindo o calor dessas vozes, captando o sentido profundo de tudo aquilo que cada um e cada uma tem a nos dizer.

Creio que esse exercício de liberdade cristã diante dos ri-tuais quase obsessivos que a sociedade tecnologizada quer nos impor poderá resultar num crescimento humano e es-piritual nosso e da VRC em geral.

O celular está tocando!

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627É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?1

1. Artigo publi-cado na Revista da CLAR, ano XL-VIII, n. 4, out./dez. 2010.* Padre Sergio Montes Rondon é jesuíta, coorde-nador da Pastoral Vocacional da Companhia de Jesus na Bolívia, membro da Equipe Teo-lógica da CLAR e pároco numa paróquia rural indígena (Quechua) em Cochabamba, Bolívia. Endereço do autor: Calle 64, n. 10-45, piso 5, Caixa Postal 56804, Bogotá-D.C., Co-lombia. E-mail: [email protected].

sergio montes rondon, sj*

Numa época de grandes mudanças, a Vida Religiosa na América Latina e no Caribe poderia pensar em remodelar sua institucionalidade atual. Nossos Institutos e Congre-gações respondem à realidade atual? Não será que as es-truturas que temos construído em torno do carisma já não promovem a Vida e apenas mantêm o verniz do religioso? É possível uma Vida Religiosa que perdeu sua mística por conservar suas formas? Diante dessas perguntas afloram al-gumas intuições.

Numa época de mudanças na Vida Religiosa, na América Latina e no Caribe, pode-se pensar na re-formulação da sua atual institucionalidade. Os nossos Institutos e Congrega-ções respondem hoje à realidade e às instituições do Espí-rito? Não será que as estruturas que construímos em torno do carisma já não promovem a Vida Religiosa e apenas têm um tamis do religioso? É possível uma Vida Religiosa que perdeu sua mística para conservar a forma? Diante dessas perguntas surgem sugestões.

Certamente alguns estarão esperando um artigo como os de sempre, com as formalidades que o caso merece e um acúmulo de citações e notas para fundamentar tudo o que, em certo sentido, tem um artigo mais teológico. Contudo, resisto a escrever algo assim, principalmente porque desejo que seja mais do que um escrito inerte, um instrumento de diálogo com a leitora e o leitor, como duas pessoas que par-tilham um tema comum, uma conversa livre de formalida-des e aberta à expressão autêntica e franca, que me conceda o benefício da dúvida sobre tudo o que se fez.

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628 Por outro lado, é bom advertir desde o início que não pretendo nem posso oferecer o que muitas(os) esperam: orientações claras sobre o tema que o título anuncia, sim-plesmente porque acredito profundamente que neste tempo há menos certezas, respostas e definições do que dúvidas, interrogações e sugestões.

O marco em que se escreve este artigo é o da crise das Instituições, em todos os níveis, e que afeta necessariamente as Instituições religiosas, a religião no seu conjunto e a cada Congregação e Instituto em particular.

Isto significa que a mudança (a crise) começou a se pro-duzir faz tempo, e que dentro de mais algum tempo (ainda indefinido) poderemos ver que orientação irá seguir. Con-tudo, não pode resultar demasiado passiva, como se a mu-dança não fosse o resultado de nossas ações. Por isso me atrevo a propor algumas sugestões do que representará uma mudança real e radical da Vida Religiosa.

Os questionamentos fundamentais.

Acredito, do fundo do coração, que é necessária uma des-institucionalização da VR. Isso significaria a desconstru-ção (não a destruição) das formas institucionais que temos criado com o tempo. É evidente que não se pode conceber que a refundação da VR ou o voltar às fontes implique imitar, copiar modelos ou repetir as formas primitivas, porque cada uma nasceu num contexto concreto e como reação profé-tica ao mesmo. Entretanto, é urgente que se construa um novo (ou novos) estilo(s) de VRC, significativa não apenas para o presente imediato, mas também como visão de futu-ro. Na atualidade, parece que o ciclo da atual institucionali-dade da VR chegou a seu fim, deu o que tinha de dar, e nos convida criativamente a re-fazer as coisas. Num estilo mais romântico, convida-nos a sonhar e plasmar nossos sonhos em realidades. É um forte chamado a crescer na liberdade interior para buscar o que Deus quer e o que nós desejamos. A dificuldade são as ataduras por todos os lados.

É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?

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629a) Nossa mentalidade de cristandade, que não se explicita no discurso (às vezes até revolucionário), mas aparece numa série de atitudes e de atividades. Porventura não falamos de números de assistentes às missas, convivên-cias, retiros, vocações etc.?

Inconscientemente, queremos seguir vendo multidões, co-munidades cheias ou pelo menos não vazias de religiosas(os). Sem deixar de ser normal o sentimento de tristeza e inquie-tude por esta realidade, atrás dela se esconde uma tentação: “voltemos ao Egito”, “antes era melhor”, “o problema é da juventude que não se compromete”.

Porventura não estamos mais dispostos a reduzir certas exigências contanto que a pessoa fique na VR? Não que-remos e procuramos que toda pessoa boa e engajada se faça religiosa? As normas constitucionais e estruturais da auto-ridade não têm um peso mais forte do que as experiências que Deus suscita no seio de nossas Congregações?

Definitivamente, agrada-nos mais ver uma Igreja e uma VR gloriosa, no centro da sociedade, ainda que resultem numerosas infidelidades ao Reino proclamado por Jesus de Nazaré, do que uma Igreja simples, ao modo do Nazareno.

b) Dentro desta Igreja de cristandade tem-se configurado uma forma de colonialismo interno, uma mentalidade de conquista, de dominação e de conluio com o poder po-lítico e econômico. Temos assimilado a ideia de que a Igreja é uma superestrutura temporal e eterna capaz de orientar os destinos (até as mínimas ações) dos povos.

A ruptura que significou o Concílio Vaticano II ficou a meio caminho e preferiu dar marcha a ré, A VR carece de grandes ideais, como o conjunto das sociedades Pós--Modernas, mas continua oferecendo os ideais já esgotados. Diante disso surge a tarefa necessária de descolonizar nos-sas mentes e corações para não impedir a realização plena da humanidade seguindo a Jesus Cristo, modelo da Nova Humanidade.

c) A desinstitucionalização da VR. Como processo de descons-trução, a saber, de nova construção, gera em muitos(as) o

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630 medo do desconhecido e resistência à mudança. Custa internar-se nas névoas, pois as seguranças são menores, a visão de longo alcance é reduzida e o fantasma de errar está onipresente.

Portanto, é melhor não se aventurar à mudança, consolar--se com a ideia de que o mau momento logo passará e é melhor permanecer onde estamos. Que atitude tão pouco profética! Quão longe estamos dos ensinamentos dos após-tolos e de nossas(os) fundadoras(es). Não foi fácil para Jesus quebrar estruturas do seu tempo, não ficou parado diante das estruturas que produziam morte a título de dar culto “ao Deus verdadeiro”.

d) É evidente que algo está errado na situação em que nos encontramos. Quanta liberdade interior temos, fruto de uma experiência de oração e vida próxima a Jesus? É hora de re-fundar as coisas, gerar novos projetos e derrubar as Instituições que já não respondem à ação do Espírito. Por que nos custa tanto desprender-nos das coisas constituídas e já estabelecidas quando vemos que não podem dar mais de si? Não será que as temos absolutizado, que temos colocado nelas nosso coração, nosso tesouro, mas só nosso e não o de Jesus Cristo? Com frequência convertemos em fins o que não são mais do que meios para construir o Reino.

Por outro lado, também temos de ser conscientes de que a mudança implica violência, uma comoção que gere conver-são... e precisamente é isso que nos molesta, porque temos de mudar, deixar de viver na segurança das estruturas que nos ofe-rece a Instituição. Talvez haja pessoas ansiosas por um estilo de vida mais radical e de sinal místico-profético, porém estamos bem como estamos e melhor é que ninguém nos mude em nada? Ou talvez desejamos que as mudanças se realizem sem dor, sem purificação, sem exigências? Talvez estejamos dispos-tos a certos sacrifícios (daqueles que não compliquem a vida), mas não tanto como para viver uma verdadeira revolução.

As instituições entram em crise quando já não desem-penham a finalidade para que foram criadas. Não é que a Igreja não seja relevante neste mundo, nem que a VR tenha de desaparecer para dar lugar a outros carismas. O problema

É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?

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631está em saber que mais cedo ou mais tarde a Instituição é capaz de matar o carisma fundacional e sobrepor-se a ele, considerando-se mais importante e necessário do que a ins-piração do Espírito.

Por que apareceram os monges? Qual é a pertença das Ordens da vida apostólica fora dos conventos? A Instituição se deve ao Espírito que promoveu o carisma ou o Espírito deve adequar-se à Instituição que aprisiona o carisma? O interessante é ver que rios de tinta têm corrido para justifi-car o segundo, não menos do que meios normativos e um sem-fim de ações repressivas às(aos) contestatárias(os). As-sim funcionam os mecanismos da Instituição para reprimir questionamento à ordem estabelecida.

Despertar à mística!Quero partilhar algumas pistas não nascidas da simples

paixão por um nova Vida Religiosa, mas de conversas lon-gas com religiosos(as), assim como da oração e contempla-ção: para onde podemos caminhar?

Já que não há caminhos nem trilhas nas novas formas de VR que se possam começar a gerar, o importante é começar a caminhar. Acaso não tocou viver essa experiência Maria, José, Jesus e cada um(a) dos discípulos? Sinto que, às vezes, queremos um mapa. A estrada asfaltada e a segurança de que não nos equivocamos de caminho. Mas sinto também que é muito emocionante iniciar um novo caminho; internar--se na noite escura e seguir acreditando, com mais fé ainda, que Deus caminha conosco. Tal decisão surge de uma VR místico-profética, verdadeiramente mística e profética.

Poderíamos pensar em ser uma VR mais itinerante, mais dinâmica com relação ao mundo, que, a cada 25 minutos, muda e avança. Uma VR mais companheira de caminho do que somente guia e que não diz o que fazer. O testemunho que podemos oferecer à humanidade tem de estar de acordo com o ritmo em que ela caminha, recordando-lhe o que realmente é importante, sendo apoio nas suas dificuldades e companhia da humanidade em suas alegrias.

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632 O peso da institucionalidade de nossas Congregações, assim como as Instituições que temos criado, talvez sejam o obstá-culo do qual tenhamos de desprender-nos para um serviço mais itinerante. Jesus de Nazaré caminhava com seus discí-pulos, ia aos lugares em que as pessoas trabalhavam, comia com elas, não esperava que fossem à sua casa. “O Filho do homem não tem onde reclinar a sua cabeça...” Um convite para que a VR se mostre em mutirões de vizinhos (só como bons vizinhos). Participe das celebrações (como um con-vidado mais), comprometa-se politicamente (como um[a] cidadão[ã]) com sentido crítico.

Assim como a Igreja teve de abrir as janelas para que en-trem novos ares, graças ao Concílio Vaticano II, é preci-so que como religiosas(os) abramos as portas ao mundo, se não o temos feito, ou as abramos se estamos tentadas(os) a fechá-las. Temos o temor inconsciente da contaminação do mundo e não nos temos decidido a ver as grandes oportuni-dades que este nos pode oferecer para um maior serviço. O linguajar do mundo vai por um lado e o linguajar religioso vai por outro. Não será por isso que não nos entendemos? Não partilhamos nossas intuições sobre o Reino de modo que os que as escutam possam, de fato, entender?

O caminho da escuta fiel ao Espírito que suscita os caris-mas na Igreja deve levar-nos a caminhar constantemente, se nos mantemos fiéis ao que ele inspira, na medida em que mudam as circunstâncias, porque podemos chegar a con-cluir que, mantendo-nos parados, assim como teve origem a Congregação, manteremos a fidelidade, e aí precisamente pode estar o erro. Fidelidade não é sinônimo de imobilis-mo. Não podemos acreditar que o Espírito esteja preso nas instituições, nas formas de vida, e que cada Instituição nossa obedeça à sua inspiração. Temos de acreditar na liberdade interior por meio do discernimento.

Um outro elemento a construir será o de uma VR mais simples, humilde e significativa. Esclareçamos os termos: simples porque busca não outra coisa a não ser servir ao Senhor; humilde porque capaz de mostrar-se não a par-tir da glória do mundo, mas desde a posição de quem se

É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?

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633reconhece feliz no serviço que oferece. Ao longo do tempo, convertemo-nos em religiosos(as) com muito poder, e mui-tas pessoas não reconhecem em nós os seguidores do Naza-reno, mas pessoas acomodadas, que não têm de correr riscos na vida, estando amparadas nas suas Instituições.

Por outro lado, a significatividade deve ser entendida no sen-tido de ser sinal do Reino, interpelante da sociedade que vive desde o “anti-Reino”. Não quer dizer que tenhamos de man-ter nosso prestígio, nosso protagonismo, ou ser reconhecidos por nosso labor. Que diz ao mundo, hoje, a VR na Amé-rica Latina e Caribe? Se os que sustentam o poder político, econômico e religioso injusto nos louvam muito e auspiciam nosso protagonismo, pode ser que sejamos seus cúmplices.

Temos de ser proféticos, porém com sabedoria. Precisa-mos do dom de sabedoria para discernir as ações proféti-cas, não se pode pretender ser um profeta que só anuncia e denuncia, temos de saber como e quando toca agir. A profecia está mais vinculada à crítica, enquanto a sabedoria nos oferece critérios para o agir profético. Onde está, hoje, a sabedoria das(os) religiosas(os)? Nós a reduzimos a conhe-cimentos e a um linguajar de tradições? Onde estão, hoje, os profetas que no meio da noite escura sabem guiar-se pela intuição, que pode ser inspiração do Espírito?

A escuta ao Espírito nos permitirá gerar uma VR que favo-reça a vivência em plenitude de nossa humanidade consagrada. Uma série de estruturas (de promoção vocacional, formação, missão, comunitárias, de governo etc.) pode afogar essa vivên-cia. Se a VR não nos tornar mais autenticamente humanos, e é isso o que podemos testemunhar ao mundo, para que con-tinuar com ela? É a hora de examinar toda a estrutura para discernir se responde ou não ao chamado primordial de Deus: a vocação humana, tornar-nos realmente pessoas. Finalizando este tópico, há um elemento fundamental no caminho: descons-truir a institucionalidade para abrir-nos a uma nova experiência de Deus, volver a conhecê-lo e não acreditar que já o conhe-cemos, pois pode ter-se convertido num objeto de museu. É da mística que necessita a VR, mística que não seja adquirida

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634 por uma série de práticas de devoção. Sem mística verdadeira a corrupção da Instituição está garantida.

Acreditas pessoalmente que vives uma experiência nova de Deus nas circunstâncias atuais? Sem a máscara e o apoio das instituições, o povo de Israel teve de caminhar no êxodo e no exílio. Jesus de Nazaré não se refugiou no templo ou na sina-goga, mas viveu a experiência de Deus no deserto, nas ruas, na solidão, nas margens do lago com os pescadores, nas comidas com publicanos e pecadores, na proximidade da mulher que lavou-lhe os pés com lágrimas e perfume. Perdemos a mística?

A lição que temos que aprender: voltar-se para Deus

Conversando com alguém, eu lhe partilhava minha pre-ocupação, porque de tudo isso que mencionamos aqui se escreve e fala tanto, mas as coisas não mudam muito, as coisas caminham. Muitos assentimos a favor, mas não há real conversão. Não obstante, ainda que mudanças se deem desde a base até a periferia e aos círculos não tradicionais, confio que não seja demais aportar algumas intuições. Há alguns temas estruturais institucionais a desconstruir.

a) Mais democracia na VR e na Igreja. O modelo de cris-tandade (por conseguinte, as formas de organização hie-rárquica das estruturas religiosas) surgiu a partir de mo-delos políticos, monárquicos, e se dedicou a defendê-los, protegê-los e abençoá-los. Hoje, quando vivemos em modelos democráticos, não deveríamos assumir alguns elementos que a democracia nos oferece?

b) A identidade religiosa não está brigada com identida-des citadinas. Temos de refletir sobre nossos direitos e obrigações como cidadãos dentro de diferentes Estados e sociedades, sem buscar privilégios, tratos preferenciais ou condições de exceção. Por que será que nós fazemos uso de tudo isso, afinal?

c) No tempo presente, e em coerência com o Concí-lio Vaticano Il, o espelho a partir do qual deveríamos

É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?

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635construir a nossa identidade e missão deveriam ser os jovens e os laicos, eles nos ajudam a orientar o futuro da Igreja, por isso, a partir de nossa posição dentro dela como religiosos(as), pedimo-lhes suas opiniões ou os desqualificamos porque eles não conhecem a nossa vida – acaso nossa vocação não é mais laical que clerical?

Algo que reflita nossa mística: nosso rosto reflete feli-cidade? Ou as atividades nos esgotam e nos impedem de sorrir? Certa obsessão pelas atividades atrofia nossa felicidade, porque temos de responder mais à instituição do que ao carisma?

d) É urgente a desclerização e desparoquialização da VR. Par-ticipar como dirigentes dessas formas desnatura nossa vocação e ajuda a manter estruturas caducas.

f ) Outros temas a considerar seriam: questão de gênero na VR; a vivência dos direitos humanos no interior de nossas Instituições e a justiça que praticamos; o diálogo com a cultura, a diversidade e outras religiões e espiritualidades; a colaboração na construção de novas relações ecológicas; e uma opção renovada pelos pobres e marginalizados.

Definitivamente, temos de repensar nossas Instituições vi-sando ao futuro e não só ao imediatismo do presente, menos ainda à imobilidade do passado. Postos a sonhar, podería-mos imaginar uma VR que:

Vive mais na realidade das praças, mercados, festivais,

Não caminha por estes espaços com o convento em cima,

Não desumaniza suas relações para garantir seus votos.

Ser mais cidadãos como o resto das pessoas e não pretender privilégios.

Lutar pelo Reino e não pelas Instituições, que são funcionais para o Reino

e não este pelas Instituições.

Caminhar pela noite sem ver fantasmas e demônios,

Ainda que não saibas para onde vais, e somente seguir a Jesus Cristo.

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636 Deixar de pensar o que os outros (leigos) devem fazer e como devem ser,

Pois os leigos não são nossos clientes, somos solidáriosCom eles no Batismo e na construção do Reino.Não hipotecar a vocação nas coisas que se faz.

Porque, quando deixas de fazê-las, perdes seu sentido da vida.Deixar de procurar o passado para recuperá-lo,

Deixar de pensar que as gerações jovens têm de ser à tua imagem e semelhança,

Vivendo como se aqui e agora não houvesse nada de bom que viver.

Fundamentar-se mais no Espírito de Jesus e não nas Normas institucionais. Saber discernir.

Não temas cometer erros, como todos, mais pelo medo do castigo do que pela Fidelidade.

Apaixonar-se com o que Deus se apaixona,Saber caminhar na noite, viver no deserto,

Sonhar acima das nuvens e acampar com a humanidadeSeguindo a Jesus Cristo.

Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade1. Quais os medos e as angústias que uma possível

desinstitucionalização da VR, enquanto processo de desconstrução, a saber, de nova construção, poderia gerar em nossa Congregação/Ordem/Instituto?

2. Uma certa obsessão pelas atividades (ativismo) es-taria de algum modo atrofiando a nossa felicidade na VRC? Por que temos de responder sempre mais à Instituição do que ao carisma?

3. O que, efetivamente, a VRC tem a dizer, hoje, à América Latina e ao Caribe? Qual a sua verdadeira significatividade nos tempos atuais?

É possível des-institucionalizar a Vida Religiosa?

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637Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia.

Dimensão teológica1

1. Texto da palestra apresentada no Seminário Pan--amazônico da CLAR, realizado nos dias 7 a 9 de outubro, em Manaus (AM).* Irmã Vera Ivanise Bombonatto pertence à Congregação das Irmãs Paulinas. É doutora em Teologia Dogmática, membro da Equipe de Reflexão Teológica da CRB/Nacional e da CLAR.

Vera iVanise BomBonatto, fsP*

Pensar a presença missionária na Amazônia, à luz do pro-jeto de Deus e na perspectiva da intercongregacionalidade e da interinstitucionalidade, constitui um enorme desafio para a reflexão teológica atual. Esta é, sem dúvida, uma questão de fronteira, para a teologia e para a Vida Religiosa Consa-grada, que necessita ser abordada com sabedoria e ousadia profética. Esta breve reflexão quer ser apenas o início de um aprofundamento que se faz necessário.

No projeto missionário pan-amazônico, a intercongre-gacionalidade e a interinstitucionalidade podem ser conside-radas um cenário emergente que requer lucidez e coragem, mística e profecia dos(as) consagrados(as), discípulos(as) missionários(as), pois trata-se de atualizar, no hoje da nossa história, os ensinamentos e a prática de Jesus.

O discurso teológico “como inteligência da fé” que ilu-mina a “práxis libertadora” não pode ignorar as dores de parto da Mãe Terra e os gemidos que brotam do seio da Amazônia. Antes, no processo do fazer teológico, a rea-lidade concreta, os clamores e as esperanças, as dores e as alegrias constituem o momento primeiro, do qual a elaboração teológica é o momento segundo.

A teologia, como todos os campos do saber humano, vive um profundo e doloroso processo de mudanças, motivado pelas transformações históricas, socioculturais, econômicas e políticas. Na sua missão de ser luz e guia para o nosso seguimento de Jesus, ela nos convoca e provoca a realizar al-gumas tarefas inadiáveis. Dada a brevidade do tempo, limi-tamo-nos a quatro tarefas significativas:

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638 1. Percorrer o caminho de busca de um novo paradigma interpretativo e explicativo da realidade vigente.

2. Realidade “crística” da criação e o corpo cósmico.

3. Contemplar a terra como lugar teológico e corpo de Deus.

4. Aprofundar a relação entre opção pela terra e opção pe-los pobres.

5. Avançar rumo a uma Vida Religiosa transfigurada.

O caminho de busca de um novo paradigmaUm dos grandes desafios atuais e, sem dúvida, também

para a intercongregacionalidade e a interinstitucionalidade, é a ne-cessidade de romper com os dois grandes paradigmas pre-sentes na história da humanidade: o paradigma teocêntrico, predominante no período medieval, segundo o qual Deus é concebido nos seus atributos infinito, eterno, todo-po-deroso e criador do céu e da terra; alguém distante de nós, de quem cultivamos uma imagem abstrata e ao redor da qual gravitam todas as realidades criadas; o paradigma antro-pocêntrico, característico da Modernidade, para o qual o ser humano é o centro de todas as coisas. Ele é senhor de tudo o que existe, concebido como ser separado da natureza e chamado a “dominar” sobre os demais seres criados.

A reflexão teológica atual busca revisitar a relação ser hu-mano-natureza-Deus e situa-se no contexto de um novo modelo de relações: o paradigma ecológico, baseado na experi-ência do reencantamento com o mundo e, por conseguinte, numa nova experiência do sagrado. A partir da consciência da estreita e complexa ligação entre os seres criados, orien-ta-se na direção da ecoteologia, isto é, da reflexão que resgata a unidade da experiência cristã e de sua formulação, requer a reelabo-ração da teologia da criação, na perspectiva da interdependência e à luz da Trindade.

Entende-se aqui por ecologia mais do que uma simples pre-ocupação com esgotamento dos recursos naturais ou um movimento verde que procura preservar as espécies em

Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia

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639extinção. É uma rede de relações interdependentes entre os seres criados. É uma nova cosmovisão que diz respeito à totalidade da vida.

Ecologia é a relação, inter-ação e dialogação de todas as coisas

existentes (viventes ou não) entre si e com tudo o que existe,

real ou potencial. A ecologia não tem a ver apenas com a na-

tureza (ecologia natural), mas principalmente com a sociedade

e a cultura (cultura humana, social etc.).2 Portanto, ecologia é

um saber de relações, interconexões, interdependências e inter-

câmbios de tudo com tudo, em todos os pontos e em todos os

momentos.3

Entendida dessa maneira, a ecologia abrange – segundo Leonardo Boff – quatro grandes formas de realização:

• ecologia ambiental: diz respeito à relação entre o ser hu-mano e o meio natural, preocupa-se com as questões relativas à agressão ambiental, tais como desmatamento, preservação da flora e da fauna nativas;

• ecologia social: trata da interação entre os sistemas socio-econômicos e meio ambiente, considera a existência de um vínculo inseparável entre problemas sociais e de-gradação ambiental. Trata de temas como o acesso aos recursos naturais das populações pobres, aquecimento global e a fome nos países subdesenvolvidos;

• ecologia mental: representações interiores, mentais, ener-gias psíquicas, arquétipos e padrões de comportamento que influenciam na nossa relação com a natureza;

• ecologia profunda: incorpora a contribuição das outras três, apresenta uma perspectiva holística e de totalidade e busca discernir a questão de fundo presente na crise ecológica: o horizonte de sentido, isto é, o modelo de relações e nosso sentido de existência.

Por conseguinte, o paradigma ecológico reconhece a existên-cia de uma conexão intrínseca entre todos os seres criados e convida a integrar sinergias, articular energias e valori-zar cada centelha do universo, até mesmo as minúsculas e

2. BOFF, Leonardo. Ecologia, mundializa-ção e espiritualidade. p. 15.

3. BOFF, Leonar-do. A opção-Terra. p. 101.

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640 ocultas; convoca a estender pontes entre os diferentes: as diferentes culturas, os diferentes carismas, as diferentes Ins-tituições, buscando a plenitude da vida, de acordo com o projeto de Jesus, que afirmou: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” ( Jo 10,10).

O paradigma ecológico é cosmocêntrico, pretende harmoni-zar os direitos dos seres humanos com os direitos dos demais seres, estabelecendo entre eles um pacto baseado em uma religação não opressora nem dominadora e excludente.

Para o paradigma ecológico, o ser humano não é um rival da natureza, mas está em atitude de diálogo e comunica-ção simétrica com ela. Sua relação é de sujeito a sujeito e não de sujeito a objeto. O ser humano e o universo formam uma ampla rede de relações multidirecionais, carcaterizada mais pela interdependência do que pela autossuficiência.

Os seres humanos são intrinsecamente interdependen-tes entre si e com os demais seres do cosmo. Sem ar só resistem alguns minutos, sem água só alguns poucos dias, sem plantas algumas poucas semanas. Paradoxalmente, os seres humanos são os que mais poder destrutivo possuem. Mas a relação de interdependência muda a função do ser humano no mundo. O ser humano deixa de ser centro de tudo, do cosmo, do Estado, da política, da economia, da religião, para tornar-se ser em religação, deixa de “do-minar” para “cuidar-se”. Isso leva a mudar os hábitos e padrões, a superar o estilo de vida consumista e a assu-mir um estilo de vida comprometido com o futuro da humanidade.

No paradigma ecológico, a solidariedade cósmica e a frater-nidade/sororidade sem fronteiras são as leis que regem as relações entre a humanidade e a natureza e, por conseguin-te, também a intercongregacionalidade e a interinstitucio-nalidade. À luz desse paradigma, é possível pensar teologi-camente na perspectiva da intercongregacionalidade e da interinstitucionalidade, tendo como horizonte a realidade “crística” da criação e o corpo cósmico.

Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia

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641Realidade “crística” da criação e o corpo cósmico

Cristo é o “primogênito de toda a criação” (Cl 1,15). Cada ser criado carrega em si as marcas do Filho amado do Pai, pois “tudo foi feito por ele e nada foi feito sem ele” (cf. Jo 1,3). Nele a criação, expressão de amor do Criador de Deus, está envolta no mistério da salvação. Pelo mistério pascal o mundo inteiro foi redimido pelo sangue de Cristo.

Sentindo-nos filhos(as) do mesmo Pai do Céu, trazendo em nós os vestigios do rosto do Filho, e irmanados entre nós e com todas as realidades criadas somos impelidos a per-ceber-nos como parte de um todo e a mudar nosso modo de viver e de agir: passar da solidão e da individualidade à comunhão e ao agir inter-relacional.

Cristo é a “cabeça do corpo” (cf. Ef 1,20-21), cujos mem-bros somos todos nós que formamos a comunidade cósmica. Como no corpo humano cada membro tem sua função e todos estão relacionados entre si, assim, na multiplicidade dos membros do corpo do Cristo cósmico cada qual tem sua função e todos dependem um do outro e são necessá-rios para o crescimento do todo. Esse crescimento acontece à medida que seus membros permanecem unidos à cabeça que é o próprio Cristo.

No paradigma ecológico, a imagem do corpo nos ajuda a compreender a necessidade e a importância da intercongre-gacionalidade e da interinstitucionalidade. As Congrega-ções, cada qual com seu carisma, são células que formam um único corpo vivo, o “corpo cósmico”. Somos todos res-ponsáveis pelo seu crescimento, por sua preservação e ple-nitude de vida.

Na diversidade dos carismas congregacionais, dons do Es-pírito para o bem da humanidade, cada Congregação é con-vocada e provocada a dar continuidade ao projeto de Jesus: que todos tenham vida e a tenham em abundância (cf. Jo 10,10). A partir dessa perspectiva, nasce uma nova visão da terra e, nela, da Pan-Amazônia.

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642 Terra, lugar teológico e corpo de Deus

A Mãe Terra, e nela a Amazônia, com a exuberância de suas águas e peixes, florestas e pássaros, na multiplicidade de suas cores e sons, se transforma em lugar teológico, morada do ser humano, amada e respeitada, aconchego no qual Deus se revela.

O cosmo e a natureza são expressão da bondade, da sa-bedoria e da beleza de Deus Criador. O universo sinaliza a glória de Deus e canta seus louvores. Do corpo humano (microcosmo), frágil e efêmero, à imensidão das galáxias (macrocosmo), toda a criação se reveste de sacramentali-dade, enquanto sinal visível do ser invisível do Criador. Os astros e a terra, os oceanos e as águas, os corpos e o tempo se tornam epifania do insondável mistério divino, lugar de revelação amorosa de Deus.

É necessário e urgente resgatar o olhar sacramental sobre a realidade que nos cerca. Onde muitos só veem recursos naturais para serem explorados e transformados em capital, onde outros descobrem a natureza para ser manipulada, a teologia convida a perceber o vestígio de Deus, a Criação como um imenso cenário sacramental que convoca para a unidade cósmica.

O olhar sacramental leva a recuperar o valor sagrado do corpo e da matéria, a resgatar a dimensão simbólica da vida cotidiana das pessoas e a superar a cisão irreparável entre o ser humano e o cosmo, resgatando a realidade do cosmo como epifania de Deus. Readquirir um olhar con-templativo, extasiado, para ver no mundo, na realidade, em todos os seres viventes, a marca comum de criaturas de Deus.

Além de lugar teológico, a terra é também “corpo de Deus”, que sintetiza em si a imanência enquanto expressa a relação íntima entre Deus e o mundo; e a transcendência en-quanto considera Deus como a origem de toda a realidade, a fonte da vida, e o universo como reflexo do ser divino, glória de Deus e sacramento de sua presença.

Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

643Aprofundar a relação entre a opção pela terra e opção pelos pobres

À luz da ecoteologia, o grito que brota do seio da terra e o grito angustiante dos pobres não são dois gritos separados, mas um só grito expresso de diferentes modalidades. Como afirma Leonardo Boff, a Teologia da Libertação e a ecologia

partem de duas feridas sangrentas: a primeira, a da pobreza e da

miséria, rompe o tecido social de milhões e milhões de pobres

no mundo inteiro. A segunda, a agressão sistemática à Terra,

desestrutura o equilíbrio do planeta ameaçado pela depredação

praticada a partir do modelo de desenvolvimento proposto pelas

sociedades contemporâneas e hoje mundializadas.4

É impossível desvincular a situação de miséria de milhões de pessoas da sua interação com a terra. No Antigo Testamento, os pobres – viúvas, órfãos e estrangeiros – tinham algo em comum que os caracterizava como pobres: não possuir a terra.

Existe uma relação, profunda e íntima, entre a opção pela terra e a opção pelos pobres. A terra é mãe fértil, mas está oprimida e crucificada, clama por salvação, é chamada à ressurreição. A terra grita, clama aos céus, e este clamor é escutado por Deus. Os pobres são parte da criação ameaça-da; eles não têm o necessário para viver dignamente, cla-mam por salvação e são chamados a ressuscitar. Seu clamor é ouvido pelo Criador.

A realidade de pobreza em que vivem milhares de pessoas está vinculada à falta de acesso aos bens da terra. Optar pela terra é optar por tudo o que nela existe, pelo ser humano que sofre e luta com as consequências de uma ordem mun-dial injusta. A opção pela terra é global e inclusiva, é opção pelo sujeito chamado à libertação, à promoção, à dignifi-cação. A opção pela terra é opção pela vida, é opção pelo Evangelho, é seguimento de Cristo.

O projeto pan-amazônico tem diante de si o desafio de dar continuidade às opções pastorais traçadas pela Igreja do continente, de Medellín a Aparecida.

4. SUSIN, Luiz Carlos; SANTOS, Joe Marçal G. dos. Nosso planeta, nossa vida. p. 115.

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644 Rumo a uma Vida Religiosa transfiguradaPara concretizar a presença missionária na Amazônia, à

luz do projeto de Deus e na perspectiva da intercongregaciona-lidade e da interinstitucionalidade, a Vida Religiosa Consagra-da sente-se desafiada a avançar em três dimensões signifi-cativas: recriar as relações, tornar as estruturas mais ágeis e viver na dinâmica da Transfiguração.

Recriar as relações

Como pessoas consagradas, somos parte da humanidade ferida, que anseia pela salvação. Essa percepção gera em nós a consciência da fragilidade do nosso ser criaturas, amadas por Deus Trindade, vocacionadas à comunhão e formando um só corpo, em Cristo. Essa é a lição que o(a) religioso(a) aprende no seguimento radical de Jesus. Ele assumiu a nossa humanidade e “humilhou-se até a morte e morte de cruz”. No testemunho definitivo do amor que Deus manifestou na cruz de Cristo, todas as barreiras de inimizade foram derru-badas (cf. Ef 2,12-18). Vivendo a vida nova em Cristo Jesus, as diferenças raciais e culturais não são motivo de divisão.

A mística profética, iluminada pela ecoteologia, recria as nossas relações com nós mesmos, com os outros seres, com a natureza e com Deus, apontando para a superação da cultura da morte. Só a partir de experiências comunitárias profundas será possível construir a cultura da vida. Apesar de todas as contradições, é preciso continuar apostando na vitória da vida, conquistada tendo a força do amor como estratégia evangélica, e a radicalidade do testemunho como caminho a ser percorrido.

Testemunhar a fé no Deus da vida é perder o medo da morte e viver já como ressuscitados. Do testemunho dos mártires se aprende a liberdade de viver plenamente o dia a dia e de confiar que de toda a situação, mesmo a mais nega-tiva, sempre sairá algo positivo, pois “tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8,28).

Dessa forma, a espiritualidade se transforma em dinamis-mo de vida e a mística em plenitude de comunhão com

Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia

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645o mistério de amor crucificado e ressuscitado. A teologia bebe da sua essência, do poço da espiritualidade que brota da práxis de solidariedade com os empobrecidos, com as vítimas da crise ambiental. Espiritualidade e teologia são indissociáveis.

Tornar as estruturas mais ágeis

A intercongregacionalidade e a interinstitucionalidade, vividas à luz do projeto de Jesus, pedem um corajoso discer-nimento em relação às estruturas da Vida Religiosa Consa-grada. Muitas delas se tornaram obsoletas e pesadas.

Jesus foi muito exigente com as estruturas religiosas do seu tempo. Ele não se refugiou no templo ou na sinagoga, mas viveu a experiência de Deus no deserto, nas calçadas, nas ruas, à beira da praia com os pescadores, comendo com os publicanos e pecadores, na proximidade com a mulher que lavou seus pés com lágrimas e perfume.

A situação atual é uma convocação e uma provocação para a Vida Religiosa Consagrada ser mais companheira e menos solitária, mais servidora e menos autoridade, mais signifi-cativa no sentido de ser sinal do Reino e menos poderosa.

Viver a dinâmica da Transfiguração

A Transfiguração de Jesus é o prelúdio de sua dolorosa morte na cruz e antecipação de sua gloriosa ressurreição. Tem um duplo objetivo: fortalecer a fé dos discípulos e pre-pará-los para viver o drama da cruz e, ao mesmo tempo, confirmá-los na certeza da filiação divina de Jesus, por meio da sua ressurreição.

É um evento-revelação do mistério trinitário: a voz do Pai revela a identidade de Jesus: “Este é meu Filho amado, escutai-o”; Jesus mostra sua divindade; o Espírito Santo, representado na nuvem luminosa, cobre Jesus.

O transfigurado do monte Tabor aparece desfigurado na cruz e nos faz enxergar os rostos desfigurados de tantos ir-mãos e irmãs, pobres e sofredores, que clamam por justi-ça e paz. Faz-nos ver também a desfiguração do planeta,

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646 projetado com tanto carinho e amor pelo Criador e destruí- do por causa da ganância e do poder.

O episódio da Transfiguração abarca, numa visão de con-junto, os traços essenciais da Vida Consagrada, particular-mente a dimensão contemplativa, na referência à oração de Je-sus na montanha; a dimensão ativa, enquanto revela a glória de Jesus e prepara para enfrentar o drama da cruz.5

Diante dos desafios dos novos cenários que configuram o contexto socioeconômico, político, cultural, religioso e eclesial, e dos sujeitos emergentes, a Vida Religiosa latino--americana coloca-se na escuta da realidade histórica e do “Filho amado do Pai” (cf. Mt 17,5), tendo como meta no-vos rostos de Vida Religiosa.

Para continuar a reflexão: avançar no caminho da colaboração intercongregacional e interinstitucional

A complexidade da situação e a complementaridade dos saberes está transformando em necessidade o que até pouco tempo era uma opção. O atual processo de transformação que estamos vivendo e a emergência de um novo paradig-ma teológico está impondo os parâmetros da sinergia e das relações. Podemos afirmar que vivemos um tempo caracte-rizado pela sinergia e pelas relações.

A globalização coloca novos desafios, aos quais é difícil responder de modo significativo pelas Instituições isola-damente. É chegado o momento de percorrer o caminho da intercongregacionalidade e da interinstitucionalidade. Projetar iniciativas de evangelização que possam oferecer respostas mais significativas aos múltiplos desafios que o mundo de hoje apresenta. Algumas experiências já atestam a potencialidade dessa escolha.

Essa nova realidade implica uma reflexão sobre a interação dos diferentes carismas pessoais e institucionais, de modo a garantir a identidade e a pertença a determinado Institu-to e, ao mesmo tempo, a integração com outros Institutos.

5. JOÃO PAULO II. Vita Consecrata, n. 14. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_fa-ther/john_paul_ii/apost_exhortations/documents/hf_ jp--ii_exh_25031996_vita-consecrata_po.html>.

Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na Amazônia

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647Requer uma nova organização comunitária e apostólica. Exige mais clareza na concretização dos projetos, com pro-cessos de discernimento constante.

Essas novas experiências enriquecerão o patrimônio teo-lógico e espiritual dos Institutos, tornarão sinais mais cla-ros e compreensíveis a mensagem que somos enviados a comunicar.

O resultado será, sem dúvida, um novo impulso missioná-rio da Vida Religiosa Consagrada.

Referência bibliográficaBAPTISTA, Paulo Agostinho N. Libertação e ecologia; a teologia

teoantropocósmica de Leonardo Boff. São Paulo: Paulinas. 2011.

BOFF, Leonardo. A opção-Terra. Rio de Janeiro: Record, 2009.______. Ecologia, mundialização e espiritualidade. São Paulo: Ática,

1993.CRUZ, Eduardo R. da (org.). Teologia e ciências naturais; teologia

da criação, ciência e tecnologia em diálogo. São Paulo: Pau-linas, 2011.

MAÇANEIRO, Marcial. Religiões & ecologia; cosmovisão, valores, tarefas. São Paulo: Paulinas, 2011.

SUSIN, Luiz Carlos; SANTOS, Joe Marçal G. dos. Nosso planeta, nossa vida; ecologia e teologia. São Paulo: Paulinas, 2011.

Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade1. O que se entende por paradigma ecológico e quais

suas características e implicações?2. Que relação existe entre opção pela terra e opção

pelos pobres?3. O que podemos fazer para avançar no caminho da in-

tercongregacionalidade e da interinstitucionalidade?

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648 Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

* Irmão César Thiago do Carmo Alves pertence à Congregação dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos). É graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino, especialista em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e estudante de Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Endereço do autor: Rua Dias Toledo, 99, CEP 30380-670, Bairro Vila Paris, Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected].

1. “[...] o interesse individual integra--se na imensa má-quina do universo, favorecendo a ordem econômica e a prosperidade coletiva, graças ao ser divino que desde toda a eter-nidade planejou o mundo e o conduz

césar thiago do carmo alVes, fmi*

Introdução

A proposta deste artigo é refletir sobre teologia e econo-mia. Na verdade, trata-se de um ensaio. Muitas questões poderiam ser aprofundadas, pois é um tema bastante amplo, mas por uma questão de escolhas metodológicas não serão.

A economia é uma ciência que se desenvolveu ao lon-go dos séculos. Alguns pensadores foram fundamentais no processo de elaboração dessa ciência, entre os quais: John Locke, que operou a emancipação do econômico em rela-ção ao político; Quesnay, que tinha a ideia de que a ordem do universo se refletia no plano econômico; Mandeville, que operou a emancipação do econômico em relação à mo-ral; e Adam Smith, com a teoria da “mão invisível”.1

A teologia, sobretudo na América Latina, a partir da Teo-logia da Libertação, buscou oferecer elementos de crítica da economia. Alguns teólogos se aventuraram nesse trabalho e buscaram perceber qual(is) o(s) elemento(s) teológico(s) inerente(s) à economia. Constataram que era a idolatria. Então, a partir desse dado estabeleceram a crítica.2

Nesse ensaio, a temática será abordada da seguinte manei-ra: primeiramente, trarei à luz considerações sociológicas e políticas sobre a economia; no segundo momento abordarei a temática “as Escrituras e a economia”; a questão da idola-tria do capital e a fé no Deus vivo e verdadeiro será o assun-to da terceira parte; e por fim buscarei verificar como a Vida Religiosa Consagrada se insere no debate com a economia.

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

649Considerações sociológicas e políticas sobre a economia

Na sociedade contemporânea, a economia de mercado ocupa um lugar central. Em última análise, é ela que dita as leis de formatação da sociedade. Prova disso se manifesta no fato de que a própria política de países cujo sistema eco-nômico é o capitalismo está preocupada com o crescimento econômico, com o PIB (Produto Interno Bruto), com as transações comerciais, com as bolsas de valores etc.

No decorrer da história, pode-se perceber uma vincula-ção entre capital e trabalho. Um dependia do outro. Isso significa que para que ambos permanecessem vivos era ne-cessário que os donos do capital tivessem a capacidade de continuar comprando trabalho. Por sua vez, os donos do trabalho “tinham que permanecer alertas, saudáveis, fortes e suficientemente atraentes para não afastar os compradores e não sobrecarregá-los com os custos totais de sua condição”.3 Nesse processo o Estado tinha um papel fundamental. Con-sistia em manter os capitalistas aptos para comprar trabalho. Visto desse modo, os desempregados que existiam eram, na verdade, um grupo de reserva de trabalho. Esse grupo deveria estar sempre a postos se, porventura, fossem cha-mados para oferecer o seu serviço. Essa fase do capitalismo é chamada por Bauman de “capitalismo pesado”, fruto da “Modernidade sólida”. Afirma ele:

A Modernidade sólida era, de fato, também o tempo do capi-

talismo pesado – do engajamento entre capital e trabalho forti-

ficado pela mutualidade de sua dependência. Os trabalhadores de-

pendiam do emprego para sua sobrevivência; o capital dependia

de empregá-los para sua reprodução e crescimento.4

Contudo, passou-se da “Modernidade sólida” para a “lí-quida”. Nela também a reflexão acerca do capital se faz presente, embora seja diferente daquela que se pode cons-tatar na “Modernidade sólida”. Nessa fase do capital não há uma ruptura entre ele e o trabalho. Entretanto, há,

com benevolência e sabedoria, a fim de produzir a maior quantidade possível de felicidade. Esta integração se faz por meio da ‘mão invisível’, que leva o interesse do indi-víduo a beneficiar a sociedade, mesmo que esta não seja a sua intenção.” LIMA, Luís Corrêa. Teologia de mercado; uma visão da eco-nomia mundial no tempo em que os economistas eram teólogos. Bauru: Edusc, 2001. p. 200.

2. Nesse sentido, a obra que melhor expressa essa feliz tentativa é a da Coleção Teolo-gia e Libertação: ASSMAN, Hugo; HINKELAM-MERT, Franz. Idolatria do mercado; ensaio sobre eco-nomia e teologia. Petrópolis: Vozes, 1989.

3. BAUMAN, Zygmunt. Moder-nidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 167.

4. Ibid., p. 166.

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650 indubitavelmente, um enfraquecimento. Isso se justifica pelo fato de que “a reprodução e o crescimento do capi-tal, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer com-prometimento local com o trabalho”.5 Sua força poderosa, mesmo não se divorciando dele, causou transformações no mundo do trabalho. Duas são as transformações que se po-dem destacar. São elas: a crise do movimento sindical e a redução do contingente dos operários industriais. A crise do movimento sindical é constatada na diminuição dos sindi-calizados e na perda da força do sindicalismo.

Quanto à redução numérica da classe operária, resultante do

desenvolvimento das forças produtivas sob o comando do capital,

ela tem sido utilizada frequentemente para sustentar o “fim do

trabalho” e, na mesma linha argumentativa, afirmar a “morte

do sujeito revolucionário”, posto que, historicamente, as pro-

postas mais consequentes de transformação socialista da socie-

dade tenham visto no proletariado a classe capaz de promover a

supressão do capitalismo.6

O capital se tornou extraterritorial. Sua mobilidade es-pacial é “na maioria dos casos suficiente para chantagear as agências políticas dependentes de território e fazê-las se submeterem a suas demandas”.7 O capital é veloz e as políti-cas dos poderes locais ainda são lentas. Por esse motivo elas são submetidas a ele. Portanto, sua dependência não pro-vém mais do Estado, que outrora tinha como função a sua manutenção. Agora o capital depende dos consumidores. Tal dependência é em decorrência de sua competitividade, eficácia e lucratividade. Nessa lógica, o desejo do consumi-dor é seu aliado. Por isso ele se adapta, a fim de permanecer vivo. Essa é uma estratégia para que possa manter sua so-berania. Desse modo, no mercado de consumo os produtos duráveis são geralmente ofertados por um chamado “perí-odo de teste”. Nesse período, se o consumidor não estiver satisfeito com o produto, é-lhe prometida a devolução do dinheiro.

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

5. Ibid., p. 171.

6. BRAZ, Marcelo; NETTO, José Pau-lo. Economia política; uma introdução. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2008. v. I, p. 219.

7. BAUMAN, Modernidade líquida, p. 172.

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

651Não é mais tarefa para ambos os parceiros “fazer com que a

relação funcione”, “na riqueza e na pobreza”, na saúde e na do-

ença, trabalhar a favor nos bons e maus momentos, repensar, se

necessário, as próprias preferências, conceder e fazer sacrifícios

em favor de uma união duradoura.8

Esse tipo de relação estabelecida pelo capital na verdade deriva de sua fluidez.

Com sua fluidez o capital consegue monopolizar prati-camente a dinâmica de várias áreas, tais como a telecomu-nicação, o entretenimento, o turismo, o lazer, o esporte, a publicidade, a educação, os serviços médico-hospitalares etc.9 Assim, a concentração de poder econômico gera, por sua vez, a concentração de poder político. Quem faz essa política não são os parlamentos, as assembleias legislativas, mas uma elite do grande capital composto por empresários, executivos, analistas, cientistas e engenheiros. Esse grupo realiza a sua “política, tomando decisões estratégicas que afetam a vida de bilhões de seres humanos, sem qualquer conhecimento ou participação destes”.10 A concentração do poder econômico gera, por sua vez, desigualdades sociais, uma vez que poucos são os que o detém e pensam politi-camente a seu favor. Faz-se necessário recordar que foi jus-tamente a partir da década de 1970 que a política dirigida por essa elite começou a ser operacionalizada por institui-ções, agências e entidades de caráter supranacional, como, por exemplo, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e organismos vinculados à Organização das Na-ções Unidas.

As Escrituras e a economia

A Palavra de Deus ilumina a vida humana e tudo aquilo que faz parte dela. De igual modo, pode-se refletir sobre a perspectiva econômica à luz dos textos bíblicos, embora os mesmos não elaborem um tratado sobre economia. Por isso se buscará verificar, tanto no Antigo como no Novo Testa-mento, elementos para essa reflexão.

8. Ibid., p. 188.

9. BRAZ; NETTO, Economia política; uma introdução, v. I, p. 220.

10. Ibid., p. 225.

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652 No Antigo Testamento, pode-se perceber um duplo po-sicionamento acerca da questão econômica e da riqueza. A primeira diz respeito ao apreço em relação aos bens mate-riais considerados necessários para a vida; a segunda se refe-re à não condenação dos bens econômicos e da riqueza em si, mas tão somente o seu mau uso.11

Na tradição sapiencial, a pobreza é vista como fruto da preguiça. Isso é expresso em Pr 10,4 – que afirma que “mão preguiçosa produz a indigência, a mão dos diligentes adqui-re a riqueza” –, entretanto também é vista como um fato natural. Nesse sentido, afirma o mesmo Livro dos Provér-bios (22,2): “O rico e o pobre se encontram: a ambos, o SENHOR é quem os fez”.

Na tradição profética, como é próprio dos profetas, há a denúncia de toda e qualquer forma de injustiça. Em Is 58,3-11, a questão gravita em torno do jejum. Lá há o questiona-mento daqueles que jejuam sobre o porquê Deus não vê e não toma conhecimento de sua prática. A resposta é simples: “[...] Acontece que, mesmo no dia de jejum, só cuidais dos vossos interesses e continuais explorando os trabalhadores” (v. 3). Em nome da riqueza não há a preocupação com o ser humano. Mq 2,1-2, nessa linha da denúncia, diz:

Ai dos que vivem maquinando a maldade, planejando seus gol-

pes, deitados na cama. É só o dia amanhecer, vão executar, por-

que está ao seu alcance. Se desejam um terreno, roubam-no,

querem uma casa, ficam com ela. Tomam posse da casa e do

dono, do terreno e do proprietário.

Aqui há uma clara denúncia acerca da “opressão e o acú-mulo de riquezas mediante processos ilegais”.12 Em Am 2,6-7, o que está em jogo é a conduta de Israel em relação às pessoas. Diz o profeta:

Assim diz o SENHOR: “Não perdoarei Israel por seus três cri-

mes e, agora, por mais este: vendem o justo por dinheiro, o

indigente, por um par de sandálias, esmagam a cabeça dos fracos

no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível. Filho

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

11. Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 323. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html>.

12. ASENSIO, Victor Morla et al. Comentário ao An-tigo Testamento. São Paulo: Ave-Maria, 2004. v. II, p. 346.

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

653e pai procuram a mesma mulher, cometendo profanação ao meu

nome.

Há nessa denúncia profética o não salvaguardar o direito do pobre em detrimento da riqueza por parte do rico. O que é prioridade é o dinheiro e não a vida do indefeso. Os 4,1-2 trata da corrupção geral. Essa corrupção é fruto da infidelidade e do desamor. Por causa disso há “perjúrio e mentira, assassínio e roubo, adultério e violência” (cf. v. 2).

Tendo presente essas perspectivas apresentadas pelo Antigo Testamento, faz-se necessário observar que “ tais tradições, mesmo considerando um mal a pobreza dos oprimidos, dos fracos, dos indigentes, neles vê também um símbolo da situ-ação do homem diante de Deus; dele provêm todos os bens como dom a ser administrado e a ser partilhado”.13

No Novo Testamento, a partir de Jesus, é possível ler e retirar daí pistas para uma reflexão sobre a economia. Com relação à questão dos bens econômicos, da riqueza e da po-breza, ele assume toda a tradição veterotestamentária, porém confere a ela uma plenitude. Isso é perceptível em algumas passagens. No discurso inaugural de Mateus, Jesus aponta que não é possível servir a dois senhores. Se servir, sempre amará a um mais do que a outro, ou, ainda, apegar-se-á a um e a outro desprezará. Nessa lógica, conclui afirmando que “não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (6,24). É necessário fazer a escolha. Ainda em Mateus (13,22), na explicação da parábola do semeador, Jesus irá denunciar que a sedução da riqueza sufoca a Palavra e ela se torna, assim, infrutífera. No Terceiro Evangelho, também no discurso inaugural, a catequese lucana afirma as bem-aventuranças dos pobres, dos famintos, dos que choram, dos odiados por causa do Filho do Homem e, ao mesmo tempo, proclama as maldições dos ricos, dos saciados, dos que riem.

Os pobres são pessoas que sofrem de privações graves; no setor

econômico: os que têm fome; no plano afetivo: os que choram;

no plano social: os que são rejeitados (v. 22). É, de novo, a re-

cordação dos “excluídos”. [...]. Aqui os ricos dessas antíteses o

13. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, Compêndio da Dou-trina Social da Igreja, n. 323.

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654 são economicamente enquanto “saciados”; afetivamente, enquanto

riem; socialmente, enquanto são aqueles dos quais “se fala bem”,

os “bem pensantes”, objetos de alta consideração.14

Em Lc 12,15-21, Jesus narra uma parábola. Ela é sobre a preocupação do rico com a abundância de seus bens. A solução encontrada por ele, que consistia em construir um celeiro para guardar os bens, permitiria dizer a si mesmo “descansa, come, bebe, goza a vida” (v. 19). Tais expressões mostram “a perversão dos dons de Deus, representada pelo acúmulo e pela não partilha”.15

Em 1Tm 6,10 há uma denúncia importante, uma vez que o apego ao dinheiro pode vir fazer mal à fé. Assim diz: “Na verdade, a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por se terem entregue a ele, alguns se desviaram da fé e se afligem com inúmeros sofrimentos”. Desse modo, o ser hu-mano fica escravo do dinheiro.

Portanto, “à luz da Revelação, a atividade econômica deve ser considerada e desenvolvida como resposta reconhecida à vocação que Deus reserva a cada homem. Ele é colocado no jardim para cultivá-lo e guardá-lo, usando-o dentro de limites bem pre-cisos (cf. Gn 2,16-17)”.16

A idolatria do capital e a fé no Deus vivo e verdadeiro

“A religião econômica” e sua teologia

Toda religião tem aquilo que fascina, isto é, o mistério. Esse é importante e necessário. Ele conduz à mística. No Cristianis-mo, esse mistério é Deus, em seu infinito amor, bondade e do-ação. Contudo, ao pensar no capitalismo como uma religião, qual é o mistério inerente nele que conduz à mística? Esse é o desejo. No entanto, esse mistério é revelado como sistema de mercado. Desse modo, vale dizer que essa religião é chamada tão somente de economia pelos simples motivo de ser

uma religião econômica que não admite transcendência – nem

dos valores nem dos desejos que transcendem o mercado – [...].

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

14. L’EPLATTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 1993. p. 72-74.

15. Ibid., p. 125.

16. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTI-ÇA E PAZ, Compên-dio da Doutrina Social da Igreja, n. 326.

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

655Assim tem a vantagem de possuir uma “essência” religiosa que

gera relações devocionais com as pessoas e, ao mesmo tempo, a

vantagem de não sofrer críticas de ser herdeira de uma religião

pré-moderna.17

Essa religião tem em si uma teologia. É a idolátrica. “As teologias idolátricas se reduzem, basicamente, a um único modelo fundamental, embora admitam variações de acordo com o ‘material histórico’ que configura a sua proposta”.18 A teologia idolátrica permite uma dupla forma de experiên-cia religiosa. Elas são diferentes, separadas e sem relação. A primeira é a mais importante. Consiste na devoção ao ídolo. No caso da “religião econômica”, esse ídolo é o dinheiro. A segunda se refere à adoração a outros deuses. Contudo, eles têm de ser totalmente a-históricos, uma vez que o ídolo é histórico. Sendo assim, a teologia idolátrica deixa aberta a possibilidade de uma vivência religiosa de forma paralela à “religião econômica”.

Há também uma soteriologia presente na “religião eco-nômica”: quem salva é o capital. Do mesmo modo que no Cristianismo pensa-se na soteriologia numa perspectiva tri-nitária, isto é, o Pai oferece o Filho pelo Espírito, também se pode pensar “trinitariamente” na soteriologia capitalista: o sistema econômico oferece o capital através do mercado. O que se exige dos devotos é o ato de fé nessa trindade ca-pitalista. Desse modo, eles serão salvos, pois fora do capital não há salvação. Fora dele todos estão condenados à perdi-ção eterna e, assim, não farão parte do paraíso prometido.

Elemento importante a se destacar é o aspecto do sacri-fício, uma vez que em seu interior a “religião econômica” abarca uma teologia sacrifical. O sacrifício operado por essa religião é de pessoas, todavia não de qualquer pessoa, mas uma categoria específica: os pobres. Desse modo,

os sofrimentos e as mortes dos pobres, na medida em que são

considerados como o outro lado da moeda do “progresso re-

dentor”, são interpretados como “sacrifícios necessários” para

o progresso. [...]. Quem compartilha da esperança utópica do

17. MO SUNG, Jung. Teologia e economia; repen-sando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 217-218.

18. ASSMAN; HINKELAM-MERT, Idolatria do mercado; ensaio sobre economia e teologia, p. 341.

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656 mercado, interpreta a morte de milhões de pessoas como “sa-

crifícios necessários”.19

Contudo, há também outras manifestações do sacrifício idolátrico, como, por exemplo, a destruição da natureza em nome do deus dinheiro. A respeito disso, observa Assman:

A incorporação da ciência e da tecnologia na trama de interes-

ses do grande capital, a disseminação de práticas de terrorismo

econômico e governamental e a ação ideológica de política do

empresariado transnacional, eis alguns acessos fundamentais,

lamentavelmente ainda pouco explorados, a incríveis demons-

trações reais dessa lógica sacrifical. A destruição mais insana da

natureza, a poluição ambiental desenfreada e outros atentados

brutais à saúde de grandes massas humanas foram revelando,

ao longo de muitos debates entre economistas e ecologistas, o

quanto a ciência econômica é refratária a qualquer questiona-

mento sério nesses assuntos.20

Os direitos humanos, conquista importante no processo de evolução da sociedade, que busca assegurar a integridade da pessoa e o seu valor, na lógica da teologia do sacrifício do mercado estão sendo, paulatinamente, eliminados. Afinal, o mais importante e necessário são os direitos do mercado. “Os direitos do mercado substituem os direitos humanos. Isto explica por que nossa sociedade continua falando tan-to e com tanta intensidade dos direitos humanos. De fato, agora se trata quase exclusivamente de direitos do mercado e no mercado”.21

A teologia idolátrica da “religião econômica”, além de apresentar um falso deus, também coloca o ser humano como secundário, de modo particular os pobres. A vida humana fica relegada a segundo plano em detrimento do capital.

O Cristianismo e sua teologia

Não se pode dizer que no Cristianismo há uma úni-ca teologia, mas teologias. No entanto, todas elas estão

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

19. MO SUNG, Jung. Desejo, merca-do e religião. Petró-polis: Vozes, 1998. p. 30-31.

20. ASSMAN; HINKELAM-MERT, Idolatria do mercado; ensaio sobre economia e teologia, p. 294.

21. HINKELAM-MERT, Franz. A economia no atual processo de globa-lização dos direitos humanos. RIBLA, Petrópolis, n. 30, p. 9[209]-17[217], 1998. Aqui, p. 13[213].

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657fundamentadas na fé no Deus vivo e verdadeiro. É a partir desse dado que será apresentada a perspectiva cristã.

No Cristianismo, a teologia não é idolátrica, uma vez que professa a fé num Deus verdadeiro. Seu fundamento é a fé trinitária. Professa-se a fé num Deus uno e trino que se re-vela como Pai, Filho e Espírito Santo. Esse Deus é Relação Absoluta e o Absoluto da relação.

O Pai é origem sem princípio. Ele é o princípio da Trin-dade. Gera o Filho e o Espírito procede dele pelo Filho. Vale ressaltar que “o Pai, como Deus, gera o Filho de sua substância, mas o gera como Pai, não como substância ou natureza”.22 Característica sua é ser criador. Ele, desde a eternidade, desejou o mundo, pois não quis comunicar-se somente consigo mesmo, mas quis comunicar-se também com o seu outro. “Por isso é que, no amor do Pai para com o Filho, já está contida a ideia do mundo”.23 Não é um Deus apático, mas sim alguém que tem paixão e sofre.24 É um Deus que ama.

O Filho é em referência ao Pai. No Novo Testamento, esse Filho é Jesus. Ele revela quem é o Pai e é ao mesmo tempo objeto primeiro de seu amor, porque o Pai o gera. Além dis-so, Jesus é sua imagem e Palavra. Isso se torna perceptível à luz de sua existência concreta. Sua vida está na dinâmica da total gratidão e disponibilidade ao projeto do Pai. Por isso mesmo ele “não proclamou seu reino, mas o do Pai”.25 A salvação do gênero humano faz parte de sua missão. Faz-se necessário observar que esse Filho é consubstancial ao Pai, como proclamou o Concílio de Niceia em 325 d.C.,26 bem como também a nós, como afirmou o símbolo de união en-tre Cirilo de Alexandria e os bispos da Igreja de Antioquia em 433 d. C.,27 e definiu o Concílio de Calcedônia em 451 d.C.28 ambas as consubstancialidades. Assim, Jesus revela o que significa ser ser humano e, ao mesmo tempo, convida a humanidade a conformar-se a ele no Espírito.

O Espírito Santo procede de forma eterna do Pai, “mas não procede ao mesmo tempo do Filho, pois nesse caso o Filho seria o segundo Pai, e haveria duas diferentes ‘fontes de divindade do Espírito’”.29 Ele é o Deus que santifica. É

22. LADARIA, Luis F. O Deus vivo e verdadeiro; o mis-tério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. p. 303.

23. MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus; uma contribuição para a teologia. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 119.

24. Cf. ibid., p. 35-74.

25. LADARIA, Luis F. O Deus vivo e verdadeiro; o mis-tério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. p. 322.

26. Cf. DENZIN-GER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola/Paulinas, 2007. n. 125.

27. Ibid., n. 272.

28. Ibid., n. 301.

29. MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus; uma contribuição para a teologia. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 177.

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658 também distinto do Pai e do Filho. Na vida trinitária, ele sela a união existente entre o Pai e o Filho. A relação de amor existente entre as duas primeiras pessoas da Trindade só pode ser entendida mediante o amor que tem no Espírito Santo. “Ele é o dom mesmo de Deus, o amor pessoal, co-municado ao homem; em virtude do Espírito, pela media-ção de Cristo, temos acesso ao Pai (cf. Ef 2,18)”.30

O Deus trindade professado pela fé cristã não abre espa-ços para adoração a outros deuses. A fidelidade a ele é algo fundamental. Os sacramentos da iniciação cristã marcam, indubitavelmente, uma adesão à fé nesse Deus único. É ex-pressão da aliança. Todo o resto é falso, portanto idolatria.

A teologia cristã é anti-idolátrica. Ela tem duas vertentes. A primeira vertente diz respeito ao rechaço da teologia ido-látrica propondo um discurso sobre o Deus vivo e verdadei-ro. Tal discurso consiste na sua arma de combate à idolatria. Sua tarefa será “destacar a des-inversão dos princípios teoló-gicos ou doutrinários, que a perversa teologia idolátrica in-verteu (conceito do amor a Deus e ao próximo, concepção histórica do ser humano, etc., etc.)”.31 Já a segunda vertente é caracterizada por quatro aspectos: 1) identificação da ido-latria e rechaço; 2) vivências alternativas da fé e da relação com Deus; 3) fomento de esperanças relativas a um “outro mundo”; 4) não articula uma fonte alternativa de critérios teológicos de forma relacionada com o nexo corporal entre os homens e a transformação possível desse mundo.32

Esse segundo modelo de teologia anti-idolátrica tem muitos

flancos desguarnecidos, é objeto de fácil cooptação, não oferece

uma teologia alternativa acerca das relações sócio-históricas en-

tre os homens e, portanto, tampouco elimina, de raiz, perversas

teorias sacrificais.33

Todavia, tanto numa como noutra vertente há de se re-conhecer a possibilidade de brotações de resistências anti--idolátricas. Isso é um elemento positivo na luta contra um sistema cujo deus é o capital. Essa resistência é fruto da fé no Deus vivo e verdadeiro.

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

30. LADARIA, Luis F. O Deus vivo e verdadeiro; o mis-tério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. p. 333.

31. ASSMAN; HINKELAM-MERT, Idolatria do mercado; ensaio sobre economia e teologia, p. 349.

32. A caracteri-zação em quatro aspectos da teologia anti-idolátrica da segunda verten-te se encontra na obra de ASSMAN e HINKELAM-MERT Idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia, p. 350.

33. Ibid., p. 351.

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659O Deus cristão é um Deus que faz opção preferencial pe-los pobres. Eles não são os que devem ser sacrificados, ao contrário, são os pobres que mais necessitam de atenção, cuidado e amor. Se Jesus revela o Pai, em suas ações narra-das nos Evangelhos essa opção fica evidente. Sacrificá-los é não agradar a Deus e ir contra a sua vontade. A vontade de Deus é que os pobres tenham vida plena. Dessa forma, vai na contramão da lógica da “religião econômica”, que prima pelo dinheiro, que é colocado em primeiro plano, enquan-to o ser humano fica em segundo. Para o Deus cristão, o contrário é que é o verdadeiro. A vida humana sempre está acima de quaisquer coisas materiais.

Teologia e economia

A economia de mercado tem sua teologia. Esta precisa ser evidenciada. O risco que há consiste em acreditar que, ao tratar da temática teologia cristã e economia, pode-se pensar que ambas são separadas e que nenhuma pode inter-ferir no campo da outra. Teologia e economia nem sempre precisam estar em oposição. Para falar sobre isso a partir do lugar da teologia, faz-se necessário que a economia seja humana. A humanização da economia se dá quando ela se coloca a serviço de todos e não somente de uma parcela pe-quena da sociedade, excluindo os mais pobres.

Moral e economia não são elementos irrelacionáveis:

A relação entre moral e economia é necessária e intrínseca: ati-

vidade econômica e comportamento moral se compenetram

intimamente. A distinção entre moral e economia não implica

uma separação entre os dois âmbitos, mas, ao contrário, uma

importante reciprocidade.34

Portanto, distinção não é sinônimo de separação, ou, ain-da, de exclusão. Há uma reciprocidade entre esses dois cam-pos que deve colaborar para que os seres humanos tenham uma vida digna, longe da exclusão, da miséria e da fome. Ainda sobre essa relação, afirma Pio XI na encíclica Qua-dragesimo Anno:

34. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, Compêndio da Dou-trina Social da Igreja, n. 331.

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660 [...] pois ainda que a economia e a moral “se regulem cada uma no seu âmbito, por princípios próprios” (cf. Conc. Vatic., sess. 3, c. 4), é um erro julgar a ordem econômica e a moral tão alheias entre si, que de modo nenhum aquela dependa desta. Com efei-to, as chamadas leis econômicas, deduzidas da própria natureza das coisas e da índole do corpo e da alma, determinam quais os fins que a atividade humana se não pode propor, e os que pode procurar no campo econômico, bem como os meios que deve usar para os conseguir, e a razão mostra claramente, da mesma natureza das coisas e da natureza individual e social do homem, o fim imposto pelo Criador a toda ordem econômica.

Por sua parte, a lei moral manda-nos prosseguir tanto o fim supremo e último em todo exercício da nossa atividade, como nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins parti-culares impostos pela natureza, ou melhor, por Deus, autor da mesma, subordinando sempre estes fins àquele, como pede a boa ordem.35

A economia deve estar a serviço do ser humano. Esse é o critério fundamental para perceber a sua validade ou não. Portanto, inverte-se o paradigma, uma vez que a avaliação da economia no sistema capitalista é feita tão somente por números, sem considerar as pessoas. Aqui vale dizer que a economia está para a pessoa e não a pessoa para a economia de mercado. Dito desse modo, quando, ao analisar, se torna perceptível que a economia basta em si mesma, então ela está percorrendo o caminho idolátrico. Essa é a teologia que emerge de um tipo de sistema.

Alguns são os princípios necessários que precisam reger a economia. Tais princípios são iluminados pelo Evangelho, uma vez que o Evangelho é Boa-Nova de libertação de to-das e quaisquer formas de opressão. Esses princípios são a solidariedade, o cuidado, a gratuidade e a verdade.

A solidariedade para com os pobres, os preferidos de Deus, implica em dois aspectos: 1) compaixão e misericór-dia na maneira de ver e acolher o mundo dos mais fragi-lizados pelas injustiças, sobretudo a social; 2) reconhecer os fragilizados como sujeitos de direitos iguais e capazes

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

35. PIO XI. Qua-dragésimo Anno. Petrópolis: Vozes, 1962. n. 42-43. Cf. <http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/docu-ments/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo--anno_po.html>.

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661de reabilitação.36 Em última análise, a solidariedade visa, diante de um sistema econômico que exclui e sacrifica os pobres, colaborar para que eles possam ser restituídos de sua dignidade humana. Assim sendo, solidariedade é o sinôni-mo de caridade cristã. “A caridade estabelece uma relação com Deus e os seres humanos.”37 Portanto, ao ser solidário, isto é, ao agir de forma caritativa com o pobre, evidencia--se uma abertura radical para a relação, ou, ainda, para a manutenção da relação com Deus e com os seus preferidos. Nesse sentido, a solidariedade pode tomar um tom proféti-co, denunciando todas e quaisquer formas de injustiças que impedem o pobre de viver com dignidade. Indubitavelmen-te, a economia de mercado será também alvo, se não um dos principais alvos, uma vez que é ela que, em última análise, dita as leis que devem reger a sociedade. É a profecia contra a idolatria do capital.

O aspecto do cuidado é necessário para pensar uma eco-nomia a serviço da vida. O sistema capitalista idolátrico não consegue abarcar verdadeiramente esse aspecto. Assim, é preciso pensar uma economia alternativa que seja, de fato, sustentável. Essa não poderia ser dentro do sistema, mas sim algo fora. “Uma economia alternativa não se tira da natu-reza mais do que a natureza é capaz de repor a longo prazo. Numa economia alternativa, a velocidade da produção ma-terial tem de diminuir para ajustar-se à velocidade da repro-dução da natureza”.38 O verdadeiro respeito à natureza faz parte da economia não capitalista, haja vista que a capitalista a destrói, quer de forma velada, quer não. Evidentemente, a preservação ambiental é vista em relação à vida humana e não somente numa perspectiva de ecologismo. Desse modo, o ser humano é reconduzido à sua função na obra criadora de Deus, isto é, ser administrador da criação (cf. Gn 1,28) e não dono.

A gratuidade consiste num outro elemento para uma eco-nomia humana. Ela e justiça social caminham juntas. Nesse sentido, afirma Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate, ao enfrentar a temática da vida econômica: “[...] hoje é pre-ciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer

36. Esses dois as-pectos da solidarie-dade se encontram em: CALLEJA, José Ignácio. Moral social samaritana I; funda-mentos y nociones de ética económica cristiana. Madrid: PPC, 2004. [Ed. bras.: Moral samari-tana I; fundamentos e noções de ética econômica cristã. São Paulo: Paulinas, 2010.]

37. LONG, Ste-phen. Divine Eco-nomy; Theology and the Market. New York: Routledge, 2000. p. 234.

38. DIERCKX-SENS, Wim; SIL-VA, Sílvia Regina de Lima. Solidarie-dade e cuidado: em busca de uma eco-nomia em função da vida. RIBLA, Petrópolis, n. 51, p. 9[241]-16[248], 2005. Aqui, p. 14[246].

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662 realizar a justiça”.39 Ela se fundamenta na lei do amor evan-gélico. Isso vai na contramão do sistema capitalista, pois a lei do amor abre espaço para a relação com o outro na gra-tuidade. Tal concepção é execrável para o mercado, mesmo que isso não seja expresso de forma explícita por ele. Uma vez que sua teologia é a idolátrica, a tendência é o fecha-mento em si mesmo.

Por fim, faz-se necessário observar o aspecto da verda-de. Numa economia idolátrica, a inverdade faz parte de sua dinâmica de funcionamento. Já começa pelo objeto de sua adoração: um falso deus, que na economia é o capital. O contrário deve ser a lógica de uma economia cristã, haja vis-ta que os cristãos professam a fé no Deus vivo e verdadeiro. “Esta exigência da verdade constitui, de tal modo, um dos imperativos mais altos de uma prática ética, e a fortiori cristã, da economia”.40

Vida Religiosa Consagrada e a economiaOs cristãos são chamados a vivenciar a sua fé no Deus vivo

e verdadeiro. Essa vivência, enraizada na experiência de Deus, não cede espaço para adorar um falso deus e, assim, cometer a idolatria. No caminho eclesial, a Vida Religiosa Consagrada é um testemunho da vivência radical do batis-mo. Ela aponta para a realidade de uma fé fundamentada no Deus trindade. Por estarem no mundo, os consagrados precisam considerar os elementos que os circundam, sejam eles religiosos, políticos e também econômicos.

Pensando a partir da perspectiva econômica, o que a VRC tem a dizer? Essa é uma questão que precisa ser enfrenta-da, uma vez que no caminho de Igreja ela é uma realidade que aponta para o mistério do amor de Deus. Para os(as) consagrados(as), por força da opção de viver radicalmente o batismo, e por isso mesmo o Evangelho, a opção pre-ferencial pelos pobres torna-se algo inerente a essa forma de vida. Tal opção feita vai na contramão do sistema ca-pitalista. Nesse sentido, ela é profética, pois anuncia que a vida humana está acima do capital. Que a solidariedade,

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

39. BENTO XVI. Caritas in Veritate, n. 38. Disponí-vel em: <http://www.vatican.va/holy_father/bene-dict_xvi/encycli-cals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html>.

40. FALISE, Michele. Una pratica cristiana dell’economia. Roma: Herder, 1987. p. 195.

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663o cuidado, a gratuidade e a verdade são necessários para que o pobre, excluído e sacrificado pelo atual sistema eco-nômico, seja restituído em sua dignidade. Nesse sentido, o Horizonte do projeto trienal da CRB (2010-2013) pontua a reafirmação da identidade místico-profética e o reaviva-mento da paixão pelo Reino, a fim de defender e promover a vida, “assumindo a causa dos empobrecidos e construindo relações humanas, fraternas e solidárias”. Nas Prioridades (n. 2), evidencia a dimensão do “avivar a dimensão pro-fético-missionária da VRC, atuando nas novas periferias e fronteiras, intensificando a opção pelos empobrecidos, e fortalecendo o compromisso com as grandes causas sociais, econômicas, políticas e ambientais”. Esse é o convite feito a cada consagrado(a) e Congregação, no intuito de que sejam testemunhas do Reino e não do capital.

O voto de pobreza diz algo sobre a não centralidade no capital. Ele, de certa forma, o coloca como secundário:

O segredo do voto de pobreza, no contexto da pós-modernidade,

está em nossa capacidade de ir além do aspecto econômico. Ou

seja: não é a quantidade de coisas o critério para medir a pobreza.

Uma pessoa não é pobre ou rica porque tem poucas ou muitas

coisas. O que define a autenticidade da nossa pobreza é o uso

que fazemos das coisas.41

Esse voto mostra que até mesmo, e sobretudo, o dinheiro está para ser usado de forma humana, não o colocando como algo central, portanto no lugar de Deus. O lugar de Deus é ocupado por ele mesmo e por ninguém mais. Assim, ele é, indubitavelmente, o Absoluto. O voto de pobreza tam-bém aponta para uma resposta a “um materialismo ávido de riqueza, sem qualquer atenção pelas exigências e sofrimentos dos mais débeis, nem consideração pelo próprio equilíbrio dos recursos naturais”.42 Essa resposta consiste justamente na solidariedade para com os mais pobres. Desse modo, a VRC está praticando a verdadeira religião (cf. Tg 1,27) em detrimento da “religião econômica”.

41. OLIVEIRA, José Lisboa M. Viver os votos em tempos de pós-modernidade. São Paulo: Loyola, 2001. p. 133.

42. JOÃO PAULO II. Vita Consecrata, n. 89. Disponí-vel em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_exhortations/do-cuments/hf_ jp-ii_exh_25031996_vita-consecrata_po.html>.

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664 A solidariedade com os pobres abre espaço para a denún-cia do sistema idolátrico provocado pelo capital. Já que esse sistema idolátrico desconhece a relação com o pobre, o re-conhecimento do pobre e a abertura para uma relação com ele se torna em si uma dimensão profética de denúncia e, ao mesmo tempo, de testemunho para a sociedade por parte da Vida Religiosa Consagrada.

Os pobres não são confirmados por nenhum sistema de sabe-

doria predominante. Reconhecê-los testemunha a natureza da

verdadeira religião, ou seja, a religião que relaciona as pessoas

a um sistema de significado que é mais abrangente do que o

de sua cultura. Esta relação deveria iluminar os valores da vida

apesar das trevas da cegueira dos indivíduos e da sociedade43.

A partir da solidariedade, a VRC luta por justiça. O siste-ma idolátrico capitalista é injusto. Prova disso é que a maior parte das riquezas está sob o poder de uma parcela pequena da sociedade, fazendo com que a maioria das pessoas, sobre-tudo os mais vulneráveis socialmente, sofra com a pobreza e até mesmo com a miséria, chegando por vezes a conhecer a fome. Solidariedade e justiça constituem um binômio impor-tante para os consagrados que professam a fé num Deus que ama os pobres. São valores diferentes dos valores anunciados pelo capitalismo, para o qual valor é sinônimo de moedas.44

Portanto, no caminho de uma verdadeira religião que professa a fé no Deus vivo e verdadeiro em oposição a uma “religião econômica” que professa a fé na “trindade” capi-talista, a Vida Religiosa Consagrada torna-se um elemento importante de denúncia de tudo aquilo que privilegie o di-nheiro em detrimento da vida humana. Assim sendo, viver a radicalidade do batismo a partir da pobreza significa rene-gar todas e quaisquer formas de idolatria do capital.

Considerações finais

A observação do fenômeno de idolatria é, indubitavelmen-te, o ponto de partida para uma articulação entre teologia

Teologia, economia e Vida Religiosa hoje

43. MERKLE, Judith A. O com-promisso da escolha; a vida religiosa nos dias atuais. São Paulo: Loyola, 2007. p. 69-70.

44. Cf. ALVES, César Thiago do Carmo. Vida Reli-giosa Consagrada: um sinal de Deus na modernidade líqui-da. Convergência, Brasília, n. 427, p. 776-791, dez. 2009. Aqui, p. 777.

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665e economia. Dele não se pode abdicar. O confronto desse fenômeno com a fé no Deus vivo e verdadeiro estabelece critérios para pensar uma economia a serviço da vida e que não exclua nem sacrifique os pobres, preferidos de Deus. A vivência cristã de denúncia profética do sistema idolátrico capitalista se faz necessária e deve ser cultivada pela Igreja e, sobretudo, pela Vida Religiosa Consagrada.

Teologia e economia ainda é um campo de debate em aberto. Como dissemos no início, muitos outros aspectos poderiam ter sidos abordados. Dessa forma, não se esgota a reflexão acerca dessa temática tão importante e que a refle-xão teológica deve continuar a enfrentar. Esquivar-se de tal debate não seria saudável para a teologia, sobretudo para os teólogos que pensam a partir do viés da libertação.

Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade1. Na minha comunidade há espaço para adoração do

capital ou somente para adoração do Deus vivo e verdadeiro?

2. Concretamente, como estou fazendo a opção pre-ferencial pelos pobres?

3. Como vivencio o voto de pobreza como testemu-nho anti-idolátrico?

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666 Índice anual/2011

Editorial

N./MÊS PÁG. TÍTULO AUTOR(A)

438/Jan-Fev 1 Ano novo, mesmo olhar! Plutarco Almeida

439/Março 73 Fraternidade e a vida no planeta Plutarco Almeida

440/Abril 137 A vida é o que nos interessa! Plutarco Almeida

441/Maio 185Saudade, espiritualidade,

modernidadePlutarco Almeida

442/Junho 241 No Coração de Cristo Plutarco Almeida

443/Jul-Ago 313 Alegria e esperança! Plutarco Almeida

444/Setembro 385 Ler, reler, provocar e motivar Plutarco Almeida

445/Outubro 465 Vida Religiosa e missão hoje Plutarco Almeida

446/Novembro 537 Leve, mas muito forte Plutarco Almeida

447/Dezembro 601 Mais um ano se vai Plutarco Almeida

Mensagens e Entrevistas

N./MÊS PÁG. TÍTULO AUTOR(A)

438/Jan-Fev 5Entrevista com a Presidente da CRB

Nacional, Irmã Márian Ambrosio, idp

Plutarco Almeida

439/Março 77

Celebração das Vésperas na Festa da Apresentação do Senhor por

ocasião do XV Dia Mundial da Vida Consagrada

Papa Bento XVI

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

667

82Irmã Dorothy, uma sagrada herança a

ser defendida!

Zenilda Luzia Petry, ifsj

442/Junho 251Entrevista com

Dom João Braz de AvizPlutarco Almeida

447/Dezembro 615 Entrevista com Frei Carlos Mesters Plutarco Almeida

447/Dezembro 605Homilia durante a Missa aos

representantes das realidades eclesiais para a Nova Evangelização

Papa Bento XVI

Informes CRB

N./MÊS PÁG. TÍTULO AUTOR(A)

438/Jan-Fev 8Espiritualidade bíblica como

dinamismo para as animadoras de comunidades religiosas

Ângela Cabrera

25II Encontro Internacional de Revistas de Vida Religiosa

Plutarco Almeida

439/Março 84Fé, política e ecologia em meio aos

excluídos Antonio Cechin

93CRB e CNBB, sobre o tema

Juventudes: parceria ou aliança?Rubens Nunes da

Mota

440/Abril 140O trabalho com os catadores do

Parque Santa RosaLuiz Araújo Gomes

Pinto Júnior

146Missionárias e missionários

Scalabrinianos: solidariedade para com o povo do Haiti

Gelmino, Valdecir e Moacir

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668

148Mensagem da Irmã Márian por

ocasião do envio de três novas irmãs missionárias para o Haiti

Márian Ambrosio

150Uma teologia a caminho: Seminário Internacional de Vida Consagrada

Apostólica

Vera Ivanise Bombonatto

441/Maio 188 Ano Mariano MaristaGrupo de trabalho “Ano Mariano” e

Lúcio Gomes Dantas

196Projeto Igreja Solidária do Brasil e

Igreja do Haiti. Páginas desta históriaAntonia

Mendes Gomes

200“E agora José?” – Homenagem ao

Padre José Comblin Edegard Silva Júnior

442/Junho 244Mensagem final à Vida Religiosa Consagrada na América Latina

CLAR

248A Serviço da Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica

Centro de Renovação

Espiritual – CERNE

443/Jul-Ago 317 Bem-aventurada Dulce dos PobresAdriana da Costa

Guilherme

323 Encontro anual da Região das ÁguasCRB da Região

Amazônica

326 Na esquina do Amazonas Pedro José Conti

444/Setembro 389Caminhos de Espiritualidade Bíblica

na Vida Religiosa ConsagradaZenilda Luzia Petry

398Na escola dos povos da floresta

e das águasElisa Maria Bisol

Índice anual /2011

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

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445/Outubro 469Homenagem a Irmã Therezinha

CavichiAmélia Maria Nunes

472São Guido Maria Conforti, fundador

dos XaverianosAlfiero Ceresoli

446/Novembro 54245ª Assembleia da CRB Regional

Salvador (Bahia e Sergipe)Edgard Silva Junior

551Irmãs da Providência de Gap – Um

Projeto – Um Carisma – Uma Família (1762 – 2012)

Loreta Cosme Lima

553Testemunho de estima e esperança,

Dom Paulo Evaristo Arns, ofmAntonio Abreu

447/Dezembro 611Seminário Pan-Amazônico:

“Escutemos a Deus onde a vida clama”

CLAR

Arte e Cultura

N./MÊS PÁG. TÍTULO AUTOR(A)

399/Março 101 A rede social Plutarco Almeida

440/Abril 152Da necessidade do lazer na Vida

ReligiosaPlutarco Almeida

441/Maio 206 As redes sociais: risco e possibilidade Plutarco Almeida

442/Junho 258 Filmes que recomendamos Plutarco Almeida

443/Jul-Ago 329A música popular brasileira: da glória

ao lixoPlutarco Almeida

444/Setembro 409 Nós e a TV Plutarco Almeida

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445/Outubro 474O cultivo da arte na Vida Religiosa

ConsagradaPlutarco Almeida

446/Novembro 556Consciência Negra e Indígena na

Vida ReligiosaMárcio Benevides

José Bispo de Souza

447/Dezembro 621 O celular está tocando! Plutarco Almeida

Artigos

N./MÊS PÁG. TÍTULO AUTOR(A)

438/Jan-Fev

2740 anos de Teologia da Libertação:

ontem e hojeJoão Batista Libanio

43Vida Religiosa e laicato: identidade

e relações Afonso Murad

56Sonhos e desafios da Vida

Consagrada hoje

Henrique Cristiano José Matos

Marcus Alexandre Mendes de Andrade

Vinicius Augusto Ribeiro Teixeira

439/Março106 Lixo: enfoque ecológico Sinivaldo S. Tavares

120 Água e meio ambiente Roberto Malvezzi

440/Abril

156Biotecnologias: desafios éticos e

teológicos da gestão técnica da vidaJosé Roque Junges

170Amor, louvor, dom total da vida ao Pai pelo Filho no Espírito Santo

Carlos Josaphat

Índice anual /2011

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CONVERGÊNCIA – Ano XLVI – Nº 447 – dezembro 2011

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441/Maio209

O acompanhamento espiritual: seus desafios e possibilidades hoje

Adelson Araújo dos Santos

222 Novas mídias e vida comunitária Gildásio Mendes

442/Junho

261Vida Religiosa Consagrada e

espiritualidade litúrgicaLisaneos Prates

280Espiritualidade e teologia do Sagrado

Coração de Jesus: uma leitura atualizada

Eileen FitzGerald

298Laborem Exercens (O trabalho):

30 anosBernard Lestienne

443/Jul-Ago

333Como propor a Vida Contemplativa

aos jovens de hoje?Martha Lúcia

Ribeiro Teixeira

347 Evangelizar a partir do eremitério Salvio Romero

357Capitalismo, a grande

(e intransponível?) fronteiraÉlio Estanislau Gasda

373 Espiritualidade e inter-religiosidade Faustino Teixeira

444/Setembro

416Luzes e sombras da Vida Religiosa

Consagrada nos dias de hojeCarlos Palácio

442Experiência de Deus que gera

Projeto de VidaRubens Nunes da

Mota

455 Um sacerdócio diferente José Abel de Souza

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445/Outubro

480Leveza institucional para a missão: “Membros do mesmo corpo que

tem Cristo por Cabeça” (1Cor 12)

Fernando López e Arizete Miranda

507Missão Profética da Vida Religiosa

num mundo pluralVictor Codina

519As Missões Populares no Brasil à luz

do Concílio Vaticano IIGelson Luiz Mikuszka

446/Novembro

546Jubileu Somasco 2011-2012 - 500 anos de um carisma na Igreja e na

SociedadeFranco Moscone

574Viver segundo o Espírito de Jesus

Cristo – Espiritualidade como seguimento

Francisco de Aquino Júnior

560A paixão por Deus vivida na com-paixão pelas vítimas – Essência da

Vida ReligiosaMartha Zechmeister

593 Vida Religiosa e Vida Afetiva Victoriano Baquero

447/Dezembro

627É possível des-instititucionalizar a

Vida Religiosa?Sergio Montes

Rondon

637Intercongregacionalidade e interinstitucionalidade na

Amazônia. Dimensão teológica

Vera Ivanise Bombonatto

648Teologia, economia e Vida

Religiosa hojeCésar Thiago do

Carmo Alves

Índice anual /2011