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QUADRINHOS BRASILEIROS : NARRATIVAS GRÁFICAS DE UM BRASIL Sávio Queiroz Lima 1 Resumo: O artigo apresentado tem como pretensão a formulação de reflexões históricas diante das produções artísticas e literárias em formato de quadrinhos elaboradas e editadas pelo ítalo-brasileiro Angelo Agostini entre o fim de século XIX e início do século XX. Foco principal, ambas as histórias sequenciadas apresentam elementos visuais de costumes, vestimentas, instrumentos, veículos, entre outros, e a narrativa descreve o modo de se viver nas cidades e no interior, e as relações sociais e culturais desses dois espaços humanos. As obras em quadrinhos servem como fontes de informações sobre o período de transição na História do Brasil definidos como Império e República. Palavras-chaves: História do Brasil, Brasil Império, Brasil República, História em Quadrinhos, documento histórico. Introdução Praticamente todas as obras sobre quadrinhos ocidentais buscam definir seu momento de nascimento. Uma tendência compreensível e que sempre remete a uma disputa um tanto que meramente ideológica. Como se a efetivação da comprovação de uma data, de um ano, de uma obra qualquer em quadrinhos, pudesse legitimar a vanguarda deste ou daquele país. Conflitos de ego à parte, as origens dos quadrinhos perdem-se derradeiramente em seus elementos construtivos mais significativos, como a sequência lógica de seus quadros a serem lidos, a relação de coexistência e cumplicidade entre a imagem e o texto, e, por fim e foco de nossa atenção, o surgimento do balão de fala. Mais que qualquer outro elemento estrutural da forma de comunicação chamada quadrinhos, o balão de fala é a estrutura emblemática que gera a discussão da origem dos quadrinhos. Justamente por definir, mesmo que não unanimemente, uma versão da origem dos quadrinhos como pioneirismo dos norte-americanos. Para amenizar o peso da responsabilidade auto-proclamada, compreende-se essa origem não como do quadrinho em geral, mas do quadrinho moderno, o divisor de águas entre a produção reinante no século XX e sua transitoriedade no século XIX. Ainda assim, somente uma estrutura não legitima sua origem, bem como a rotulação de uma garrafa não o faz enquanto a existência do vinho. Os europeus foram, inegavelmente, os precursores de quase todos os elementos estruturais 1 Autor da pesquisa, graduado em História - Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Católica do Salvador.

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QUADRINHOS BRASILEIROS : NARRATIVAS GRÁFICAS DE UM BRASIL

Sávio Queiroz Lima1

Resumo: O artigo apresentado tem como pretensão a formulação de reflexões

históricas diante das produções artísticas e literárias em formato de quadrinhos elaboradas e editadas pelo ítalo-brasileiro Angelo Agostini entre o fim de século XIX e início do século XX. Foco principal, ambas as histórias sequenciadas apresentam elementos visuais de costumes, vestimentas, instrumentos, veículos, entre outros, e a narrativa descreve o modo de se viver nas cidades e no interior, e as relações sociais e culturais desses dois espaços humanos. As obras em quadrinhos servem como fontes de informações sobre o período de transição na História do Brasil definidos como Império e República.

Palavras-chaves: História do Brasil, Brasil Império, Brasil República, História em Quadrinhos, documento histórico.

Introdução

Praticamente todas as obras sobre quadrinhos ocidentais buscam definir seu momento de

nascimento. Uma tendência compreensível e que sempre remete a uma disputa um tanto que

meramente ideológica. Como se a efetivação da comprovação de uma data, de um ano, de uma obra

qualquer em quadrinhos, pudesse legitimar a vanguarda deste ou daquele país.

Conflitos de ego à parte, as origens dos quadrinhos perdem-se derradeiramente em seus

elementos construtivos mais significativos, como a sequência lógica de seus quadros a serem lidos,

a relação de coexistência e cumplicidade entre a imagem e o texto, e, por fim e foco de nossa

atenção, o surgimento do balão de fala. Mais que qualquer outro elemento estrutural da forma de

comunicação chamada quadrinhos, o balão de fala é a estrutura emblemática que gera a discussão

da origem dos quadrinhos.

Justamente por definir, mesmo que não unanimemente, uma versão da origem dos

quadrinhos como pioneirismo dos norte-americanos. Para amenizar o peso da responsabilidade

auto-proclamada, compreende-se essa origem não como do quadrinho em geral, mas do quadrinho

moderno, o divisor de águas entre a produção reinante no século XX e sua transitoriedade no século

XIX. Ainda assim, somente uma estrutura não legitima sua origem, bem como a rotulação de uma

garrafa não o faz enquanto a existência do vinho.

Os europeus foram, inegavelmente, os precursores de quase todos os elementos estruturais

1 Autor da pesquisa, graduado em História - Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Católica do Salvador.

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do quadrinhos e germinaram essas estruturas ao longo de suas experimentações. Desde o período de

produção massiva da literatura subversiva francesa, provavelmente apreendido dos trabalhos de

painéis medievais, esses elementos vinham sendo experimentados e lapidados.

Evitando-se aprofundar demasiadamente no passado em busca das diversas cooperações

entre texto escrito e imagens, como são casos já trabalhados por diversos autores que remetem às

pinturas rupestres e os grandes painéis egípcios, são compreendidas essas duas fontes: os painéis

medievais e a literatura subversiva da frança do século XVIII pelos seus objetivos informativos.2

Mas as grandes contribuições dos europeus para a produção de quadrinhos como os

entendemos está, não na série de imagens em sequência pintadas magistralmente à óleo por Goya e

nem nas incontáveis ilustrações que acompanhavam livros, cartazes e panfletos, mas nas produções

ilustrativas e narrativas de Thomas Rowlandson e Rudolph Topffer, de 1798 e 18273. Alguns

pesquisadores acrescentam, justamente, Wilhelm Busch com sua criação Max und Moritz, de 1865,

na lista de autores pioneiros na forma de comunicação da narrativa gráfica.

De forma igualmente importante é preciso acrescentar no hal dos pioneiros na construção

da mídia quadrinhos as obras do ítalo-brasileiro Angelo Agostini não somente pelas datas de suas

publicações como pela importância do ineditismo do empreendimento do autor. Suas obras fizeram

parte de sua extensa produção em charges, caricaturas e desenhos diversos. Seus dois personagens

principais retratam, juntamente com sua ambientação explícita e implícita, a realidade do Brasil

transitório no final do século XIX e começo do século XX.

As duas obras estão completas no volume 44 das edições do Senado federal. Organizada

pelo pesquisador Athos Eichler Cardoso, a edição ainda trás textos norteadores e um glossário

utilíssimo tanto ao pesquisador quanto para o leitor sedento por conhecimento e entusiasta da

respeitabilidade das obras no cenário da História das histórias em quadrinhos.

Quadrinhos: Documento Histórico e Pioneirismo

Toda delimitação espacial e temporal é um olhar mais aprofundado, mais detalhista, sobre

um desenho complexo chamado História. Uma observação mais minuciosa dos detalhes pequenos

de preenchimento definem que ponto pode oferecer na compreensão do todo. E são exatamente

desenhos que fornecem uma infinidade quase inesgotável de informações sobre a trajetória do

artista e inegavelmente ainda mais sobre a sociedade que o inspirou. Angelo Agostini, jornalista e 2 Álvaro de Moya, no primeiro capítulo do livro SHAZAM, Era uma vez um Menino Amarelo, Apresenta uma série de circunstâncias que presenciam elementos posteriormente usados pelos quadrinhos modernos. 3 Thomas Rowlandson com o personagem Dr Sintaxe em 1798 e Rudolphe Topffer com Monsieur Viex Bois em 1827, como apresentam os pesquisadores Álvaro de Moya, Carlos Patati e Flávio Braga.

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artista ítalo-brasileiro, produziu uma quantidade generosa de charges, caricaturas e quadrinhos que

documentaram o Brasil no seu período Imperial e seguiu na efetivação política de uma Revolução

que culminou com a proclamação da República em 1889.

Quando chegou ao Brasil, com probabilidade de ter sido em 18594, o artista encontrou um

cenário bastante diferente de sua terra européia. O país sul-americano encontrava-se num regime

político Imperial, o espaço de tempo convencionalmente chamado de Segundo Reinado. O Primeiro

Reinado é demarcado pela Independência do Brasil e o governo do Imperador Pedro I, que ficou no

país quando a Família Real retornou para Portugal por pressões populares. Com a Família Real e o

Rei D. João VI de volta à Portugal, a situação administrativa de Reino Unido perdia-se e ameaçava

o Brasil a voltar a ser colônia.

Com a sociedade brasileira radicalmente desgostosa de tal situação, a saída encontrada por

Pedro I, Príncipe Regente do Brasil, foi proclamar a Independência e evitar uma generalização do

processo que já acontecia na cidade de Salvador, na Bahia, iniciado aproximadamente em julho de

1822 e culminando em julho de 1823, de guerra e expulsão de portugueses. A Independência

proclamada por Pedro I acalmou temporariamente os ânimos, o Imperador enfrentou resistências

militares de portugueses e uma crise econômica. Num processo árduo e complexo, o Primeiro

Reinado encerrou-se com a Abdicação de Pedro I em 1831.

O herdeiro do trono imperial encontrava-se infante, sem idade suficiente para exercer sua

função de imperador, o que provocou a alternação do poder em diversos mecanismos políticos

regenciais, ou seja, que cediam poder para outros enquanto o pretenso imperador não atingia

maioridade. Esse conturbado período foi marcado por crises e insatisfações diversas que

fomentaram revoltas como a Cabanagem (entre 1835 à 1840) no Pará, a Sabinada em Salvador (de

1837 à 1838), a Balaiada (de 1838 à 1841) no Maranhão e a emblemática Guerra dos Farrapos

(iniciada em 1835, durou 10 anos) nas províncias de Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

A maioridade de D. Pedro II configura, convencionalmente, o início do Segundo Reinado,

onde Angelo Agostini encontrou o Brasil. O Estado Imperial consolidava-se em suas estruturas com

um parlamentarismo singular onde o imperador, diferente do caso britânico, ainda era o poder

excelso. A crise econômica amenizava-se diante da produção agrária para exportação e a Revolução

Farroupilha encerrava-se em 1845. Porém, a persistência da escravatura e a participação do Brasil

na Guerra do Paraguai, de 1864 à 1870, causavam descontentamento popular. Entre tantas queixas,

o império era ainda mais mal visto.

No ano de 1864 o exército do Império brasileiro uniu forças com o Uruguai com vasta

4 A pesquisadora Isabel Lustosa propoe, diante de sua intimidade com as fontes, essa data em diversos artigos.

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infantaria. Juntamente com a Argentina, confrontaram unidos o Paraguai. As motivações da Guerra,

além das habituais motivações históricas, estavam em disputas de poder internos, delimitações

fronteiriças e a livre navegação nos rios das regiões contidas. Foi um ano, também, de diversas

falências em empresas brasileiras provocadas pela forte crise econômica.

Foi o ano, entretanto, em que Angelo Agostini começou a galgar seu sucesso, participando

ainda de forma branda no jornal paulistano Diabo Coxo. Durou apenas um ano, mas foi suficiente

não só para esboçar uma discrição fidedigna da provinciana cidade de São Paulo e da sociedade

desse momento do período Imperial.

A experiência vivida no jornal Diabo Coxo lhe proporcionou viés suficiente para fundar

sua revista O Cabrião em setembro de 1866. Em ambos os periódicos paulistas o artista produziu

uma infinidade de charges e caricaturas, oferecendo sátiras diversas que rapidamente se

popularizaram e destacaram seu ímpeto de crítica social. Essas artes estão inegavelmente presentes

em muitas obras que buscam apresentar elementos visuais do Brasil na segunda metade do século

XIX e não por menos são trabalhos mais facilmente difundidos, mesmo que tão poucos

profissionais em História saibam sua real importância além de entreter o olhar do leitor.

Seu alvo principal foi a Guerra do Paraguai, evento histórico que muito norteou suas

seqüências satíricas ricamente trabalhadas com caricaturas dos personagens reais, muitos facilmente

reconhecíveis através de um traço mais realista, vinculados aos fatos. Os populares conheceram as

fisionomias de militares e políticos através dessas caricaturas. Foi assim que tornaram-se

costumeiras as presenças faciais de D. Pedro II, Duque de Caxias, Deodoro da Fonseca e Solano

Lopes, entre tantos outros figurões da época5.

O periódico O Cabrião não se limitou ao político, fazendo diversas críticas à sociedade,

desde acadêmicos que eram desacreditados por boticários, mulheres trajadas com roupas francesas e

que em muitos casos eram comparadas figurativamente com galinhas, e, por fim, porém não menos

importante, seu ardido anticlericalismo presente tão exaustivamente que causava desconfortos. Fato

explicado, porém, com a questão natal do Agostini: Italiano à favor da unificação da nação italiana

em oposição ao poder da igreja e de seu representante, o Papa.

O ferino periódico atacou a elite local e rendeu uma miríade de olhares odiosos para o

artista que prontamente deixou a cidade de São Paulo para residir no Rio de Janeiro. Agostini já

estivera na cidade do Rio de Janeiro anos antes, antes mesmo de suas aventuras mordazes nos

periódicos paulistas em questão. Trabalhou como capataz na obra que construiu a estrada de

5 O período Republicano vislumbrou uma diversidade de artistas que buscavam na sátira gráfica o mecanismo popularesco e divertido, verdadeiros bobos da corte, eventualmente intocáveis por sua peculiar permissividade, para criticar a política. O autor Marco A. da Silva, em sua obra Caricata República: Zé Povo e o Brasil, faz um apanhado utilíssimo para o pesquisador que se aventurar nessa temática.

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rodagem entre o terminal ferroviário de Mauá-Raiz da Serra à Juiz de Fora. A vida que levou,

viajando e conhecendo o interior do estado de Minas Gerais, ele contou em sua obra em quadrinhos

As aventuras de Nhô Quim, ou impressões de uma viagem à Corte, que será tratada mais adiante.

No Rio de Janeiro, em pleno Segundo Reinado, Angelo Agostini retratou a sociedade local

quando entrou para a produção da revista Arlequim, em 1867. Seu traço ainda captava sinais

da Guerra do Paraguai, tão presente, com governantes, militares de alta patente em suas faces

bastante caricaturadas pelos seus desenhos. A fotografia ainda engatinhava na época, sendo pouco

utilizada pelo luxo que requeria sua produção e especialização, deixando a cargo de Agostini e

outros desenhistas da época o papel de decodificadores imagéticos da realidade.

No ano seguinte, a revista sofreu alterações editoriais que chegaram a mudar seu nome,

tornando-se A Vida Fluminense, que durou de 1868 à 1875. Numa sociedade onde o café sustenta a

economia e mudanças políticas viam-se surgir no horizonte, a impressa foi o abre-alas ou comissão

de frente dessa nova etapa da vida brasileira. As idéias liberais e republicanas encontravam nas

mazelas as desculpas para a mudança que pretendiam.

As idéias abolicionistas estavam ainda mais fortes, então, com produções importantes e

diversas, como é o caso de Antônio de Castro Alves, poeta e figura importante na política baiana,

lançara suas duas obras: Vozes d´África e Navio negreiro. A questão abolicionista arrastava-se

enfadonhamente. Desde a Revolta dos Malês, em 1835, passando pelas leis Eusébio de Queiroz

datada em 1850, que abolia o tráfico marítimo de escravos negros trazidos do continente africano, e,

posteriormente ao momento em questão, a lei do Ventre Livre de 1871, que tornou livres os negros

nascidos à partir dessa data, bem como a lei do Sexagenário de 1885, legitimando a libertação do

escravo ao completar 65 anos, até chegar na abolição total e geral da escravidão do negro no Brasil

em 18886.

Passa a ser proibido por decreto a exposição de escravos ao público em 15 de setembro de

1869, bem como a separação de conjugues escravos e de seus filhos com menos de 15 anos por

venda7. Jornais liberais e republicanos brotavam aos montes neste ano, como são os casos paulistas

de O Operário e O Areiense (município de Areais), o jornal de Recife A Consciência Livre, e a

fundação do órgão liberal Sentinelas da Liberdade no Rio de Janeiro. E entre manifestos liberais e

fundações de organismos republicanos Angelo Agostini colaborou com desenhos, charges e

caricaturas para O Mosquito, seguindo a receita dos trabalhos anteriores.

Foi exatamente com esse histórico e essa bagagem que o Angelo Agostini começou seu

6 Todo esse processo se arrastou de forma lenta de indecisa, quase arrastada por estar segura de um lado por seus entusiastas e de outro pelos seus opositores. O autor Olavo Leonel Ferreira em seu trabalho 500 anos de História do Brasil, lançado pelo Senado Federal, trás a relação de datas desses eventos e seu árduo decurso. 7 Como estão no trabalho de Olavo Leonel Ferreira.

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trabalho em duas vanguardistas histórias em quadrinhos no final do século XIX. A primeira delas

retratando a viagem interessantíssima de um caipira mineiro à corte, ou seja, ao Rio de Janeiro. A

segunda obra, muito mais extensa, tratando das aventuras e desventuras de um senhorio carioca,

vivendo confusões na cidade do Rio de Janeiro e até adentrando território indígena.

A primeira obra saiu no periódico Vida Fluminense em 30 de janeiro de 1869, com o título

de As Aventuras de Nhô Quim, ou impressões de uma viagem à Corte. Contou a divertida trajetória

de um jovem mancebo mineiro de nome Nhô Quim em direção à cidade do Rio de Janeiro a mando

de seu pai por ter se engraçado com uma rapariga pobre na região. Seu primeiro dramalhão ocorre

com seu contato com o transporte ferroviário, seguindo problemas desde dentro do trem, com uma

marcante cena de escuridão provocada por passagem de um túnel, até sua parada na estação de

Campo de Santa Ana8. Confusões na Rua do Conde e conhece em detalhes a Rua do Ouvidor. E

assim, entre prisões e conflitos, Nhô Quim descreve a cidade do Rio de Janeiro, suas ruas e

peculiaridades, em chacotas.

Sequências como o jantar no restaurante francês e as “terríveis consequências de uma

indigestão”, como o próprio Agostini dá título, são emblemáticas na definição da natureza literária

humorística da obra em quadrinho. Um trecho específico, no capítulo XIII, apresenta, por exemplo,

a diferença de qualidade em roupas que eram vendidas na Rua do Ouvidor para as de inferior

qualidade encontradas na Rua do Hospício, mostrando o quanto que a obra em quadrinho tem a

oferecer em informações.

Foram 14 capítulos sem um desfecho concreto, sendo os 5 últimos capítulos continuados

por seu sucessor na revista Vida Fluminense, o desenhista Cândido de Aragonês Farias. A

interrupção ocorreu em 8 de janeiro de 1870, foi continuada por Farias em 6 de janeiro de 1872 e

voltou a ser interrompida, agora definitivamente, em 12 de outubro do mesmo ano. O azarado Nhô

Quim apresentou a elite local e a sociedade em geral, de oportunistas à autoridades atrapalhadas,

com trejeitos e modas da época. O antagonismo entre o espaço urbano e o espaço rural fica evidente

até ao leitor despretensioso.

Nhô Quim surpreende-se com a cidade grande, a cidade do Rio de Janeiro do fim do século

XIX, com um tílburi causou estardalhaço por entrar pelo lado errado e acabar sendo preso. Quando

em liberdade, choca-se com o que vê em sua volta e, percebe que seus trajes caipiras chocam aos

transeuntes, buscar ficar à moda carioca, por que não, à moda francesa. Trajado à caráter, com 8 Segundo a narrativa da obra em quadrinhos, o Campo de Santa Ana, Campo de Sant´Ana ou Campo de Santana, era com se chamava a região onde hoje está localizada a Praça da República no Rio de Janeiro. Seu nome original está vinculado à existência de uma Igreja, a Igreja de Santa Ana, demolida em 1854. A Igreja deu espaço para a Estação Ferroviária de Dom Pedro II. Com o advento da Proclamação da República, o Campo de Santana tornou-se Praça da República em 1880 e a Estação Ferroviária alcunhou-se Central do Brasil em 1941. Mas por muito tempo ainda foi chamada de Campo de Santa Ana pela sociedade carioca.

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chapéu e óculos, ainda assim, age por sua origem matuta. Toda tentativa de fuga dos problemas lhe

acarretam novos problemas, sempre sendo ludibriados por tantos que querem prejudica-lo. Móveis,

objetos, costumes, vestimentas, tudo isso serve de alegoria informativa para o leitor atento.

A segunda obra em quadrinhos do Angelo Agostini, As Aventuras do Zé Caipora, narra

diversos episódios vividos pelo personagem Zé Caipora, conhecido posteriormente como José

Corimba, primeiro na Revista Ilustrada em 27 de janeiro de 1883 os 24 capítulos iniciais, seguindo-

se para as revistas Don Quixote em primeiro de junho de 1901 com 11 capítulos inéditos e por fim

na revista O Malho de 28 de dezembro de 1905 com inéditos 40 capítulos. Houveram

encadernações e reedições que comprovam seu sucesso com o público.

Uma leitura criteriosa, como feita pelo pesquisador Athos Eichler Cardoso, copilador das

duas obras, permite perceber as mudanças temáticas que a história em quadrinhos sofreu durante os

anos de publicação. Num primeiro momento segue a temática utilizada em Nhô Quim, de um

personagem de comédia, vivendo situações vergonhosas, como os incidentes do personagem

anterior, tratando de situações engraçadas envolvendo o costume de espremer limões e se jogar água

nas pessoas no período carnavalesco em sua trajetória, e durante o jantar na casa de sua pretendida,

onde comete gafes diversas. De confusões com um bloco de Zé Pereira até seus frustrantes planos

de fingir um afogamento para conquistar a atenção da amada. Do hilário ao emocionante.

A temática, entretanto, mudou quando Zé Caipora, depois de diversas ocorrências

embaraçosas, sugerido pelo médico à apreciar os ares do interior, promove sua viagem à Minas

Gerais. Deste ponto, a comédia abre espaço sutilmente para o teor de aventura que Zé Caipora

experimentou e, por não voltar ao conceito anterior, fundamenta-se ao gosto popular. Zé Caipora

enfrenta uma leva de situações pitorescas com animais selvagens e perseguições extensas de

raivosos índios.

A fauna e a flora9 brasileiras são apresentadas para um leitor urbano, mostrando uma

variedade de animais e a rica paisagem vegetal e mineral de uma mata atlântica. As influências do

estilo literário Romantismo, seus apegos sentimentais, o rebuscado idealismo de seus símbolos,

ação dos heróis, com forte presença do elemento indianista. Bem como alguns elementos do

9 O Rio de Janeiro já abarcava em seu terreno o Jardim Botânico, inicialmente Jardim da Aclimação fundado por Dom João por decreto de 13 de junho de 1808. Em 11 de outubro do mesmo ano foi ampliado e estruturado e definido como Real Horto, protegendo e aclimatando uma extensa vida vegetal, principalmente as plantas que produziam as especiarias, mas sua área e preservação convidavam diversos espécimes animais. O primeiro Jardim Zoológico do Brasil só veio a existir em 1888, fundado pelo Barão de Drumond, grande apreciador da vida animal. Para manter o espaço, promovia um jogo de adivinhação onde um animal era ocultado e apostas eram abertas para adivinhar a espécie. Assim nasceu o Jogo do Bicho, tão popular nas décadas seguintes. Com a proclamação da República, o jogo organizou-se em loteria. Hoje, o jogo do Bicho é contravenção na Lei das Contravenções Penais, número 3.688 de 3 de outubro de 1941. no capítulo das Contravenções Relativa a Polícia de Costumes, artigo 58.

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Realismo, resposta direta ao Romantismo, com a realização de uma temática mais séria e

verdadeira, um afastamento proposital da fantasia de antes, também vivido na existência da obra,

são facilmente encontradas. Não só essa história em quadrinhos, além da literatura da época,

sofreram mudanças no desfecho de sua editoração. O Brasil muda.

A obra em quadrinho permeou o momento mais ativo do pensamento republicano e

culminar no período histórico da proclamação da República no Brasil, em 15 de novembro de 1889,

o que não foi registrado na obra em quadrinhos, mas não escapou de ser imortalizado de diversas

formas em suas publicações no formato de charges caricatas. O importante no frisar dessas duas

obras em quadrinhos é seu vanguardismo, colocando o Brasil, pelo ítalo-brasileiro Angelo Agostini,

na lista dos países que foram palcos das primeiras experimentações nos quadrinhos. E nunca é

muito acordar o olhar crítico para questões como essas, principalmente quando a informação é

ainda pouco divulgada.

Conclusão

A importância mais imediata do trabalho, talvez até entrando numa leve redundância de

objetivos, já que a seleção do pesquisador Athos Eichler Cardoso já apresenta esse ponto relevante,

é de objetivar a fundamentação da antiguidade das duas obras em quadrinhos. Apenas com

convenções históricas, essas duas obras são inegavelmente mais antigas que as produções

consideradas pela historiografia dos quadrinhos americanos.

O elemento que não está presente e que pode ser usado como foco de contradição dessa

afirmativa é o balão de fala, presente na obra Menino Amarelo de OUTCAST em 9999, que não

está presente em nenhuma das duas obras em quadrinhos do Angelo Agostini. Mas como já foi

trabalhado em diversas teses, a ausência ou presença do balão de fala não se configura o ponto de

partida do instrumento de comunicação que é o Quadrinho.

Entretanto, muito mais importante que definir o pioneirismo explícito das duas obras na

construção da História dos Quadrinhos, é compreender o quanto que esse pioneirismo abriu espaço,

também, para uma vasta rede de informações históricas. São obras aparentemente despretensiosas

que fornecem uma infinidade de informações sobre o período de seu autor, como acontece

rotineiramente com a convencional produção literária.

As obras do Agostini demonstram o quão útil o documento quadrinho pode ser ao

historiador que busque documentos fontes da época a ser estudada. No caso dos obras citadas, uma

amplitude de questionamentos e de aprendizados podem ser retiradas de suas imagens e de seus

textos, aliando-se à um leque bibliográfico de respeito na produção de definições a cerca do

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transitório Brasil entre Império e República, ente os anos de 1869 e 1883, centradas na fervilhação

dos pensamentos republicanos. Esse fato seguiu adiante em sua produção de caricaturas e charges

que assistiu a proclamação da República no Brasil.

Uma série de documentos históricos de grande importância, definitivamente bem

estabelecida enquanto pioneira na história dos quadrinhos, as duas obras falam da sociedade

brasileira, seu dia-a-dia está estampado nesta comunicação diária, viva e latente. A importância

dessa vivência, como acontece em jornais e periódicos diversos de uma época, define uma

metodologia específica ao pesquisador. São nas informações cadenciadas e experimentadas de

sociabilidade, mesmo que do ponto de vista do grupo republicano, do qual faz parte o Angelo

Agostini, que se encontram as falas dos homens e mulheres do tempo a ser escutado.

As histórias em quadrinhos dizem coisas em muitas falas, dentro de seu texto pré-

determinado e no texto saltado de suas imagens. Está no que grita quando o pensamento é exposto

em sua fala mais direta ou mesmo quando sussurra ao leitor mais atento, nas entrelinhas, sobre o

homem de sua época. As ruas, praças, pessoas marcantes e profissões apontadas, tudo que aparece

na sequência de quadros das duas histórias do Agostini falam de um Brasil sem enfeites(que não

sejam o usual para atender ao humor ou à aventura), de um Rio de Janeiro que existiu, de um

interior não só romantizado como vivenciado.

As obras de Angelo Agostini podem, sem nenhum incomodo, fazer parte do panteão de

documentos históricos literários e visuais. Sua arte descreve fielmente o mundo físico e social que o

cercou, bem como fizeram Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas com suas produções

artísticas. Sua fala, seu texto, posiciona o homem de sua época, republicano, abolicionista, crítico de

sua sociedade e indiscutivelmente presente à ela.

Um dos resultados dessa pesquisa é fortalecer a idéia de que o historiador deve utilizar-se de

diversas fontes, aparentemente discrepantes, buscar ler antes mesmo de aprofundar-se o quanto de

informações essas fontes podem atribuir-lhe ao trabalho de pesquisa. Compreender que a

investigação histórica se dá na leitura da amplitude de informações encontradas em provas e fontes

distintas, fazendo o encaixe das informações e aprofundando a leitura dos objetos.

O papel do historiador, além de tudo, é o de decodificador do que ouve do passado, a

conversa com seus mortos e a leitura de seus escritos, e tudo isso deve ser feito com critério e

empenho. É compreender sua linguagem, sua fala, aquilo que puderam utilizar para perenizar

qualquer informação possível, mesmo que sejam produtos aparentemente mudos. Não há nada

mudo na história.

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Bibliografia:

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