PUPO - O Lúdico e a Construção Do Sentido

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181 O lúdico e a construção do sentido M aria Lúcia de Souza Barros Pupo O Maria Lúcia de Souza Barros Pupo é professora titular do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP. exame do fenômeno teatral à luz da di- mensão lúdica ganha densidade quando recorremos a autores como Johan Huizin- ga (1971) e Roger Caillois (1967). Ao tra- tarem da natureza e do significado do jogo na vida humana ao longo de diferentes épocas e culturas, esses pensadores produziram ensaios que certamente abrem pistas férteis para aque- les que hoje se voltam para a reflexão em torno de processos de aprendizagem teatral. Assim, Huizinga e Caillois descrevem o jogo como sendo uma atividade livre, gratuita, regrada, de caráter incerto, que cria ordem e é ordem, estabelecendo intervalos na vida cotidi- ana, ao mesmo tempo em que – característica especialmente relevante – abre espaços para a metáfora e para a ficção. Como se pode obser- var, essa caracterização da dimensão lúdica sem dúvida apresenta pontos de contato com o pró- prio teatro. Com efeito, a noção de jogo, intrínseca ao próprio acordo tácito que une atores e pú- blico durante a representação teatral, ganha contornos especialmente marcantes no teatro ocidental contemporâneo. Sobressaindo-se em relação ao projeto da mimesis, e por vezes até opondo-se a ele, a valorização do lúdico em cena se faz presente, de um modo ou de outro, na obra de homens de teatro tão relevantes e diferentes entre si como Pirandello, Brook ou Mnouchkine. Em consonância com essa ênfase na capacidade de jogo, que, sob as mais diver- sas formas, vem sendo cultivada no teatro atu- al, encontramos em nossos dias várias modalida- des de improvisação teatral que se caracterizam justamente por serem procedimentos de caráter lúdico. Uma delas é o jogo teatral – theater game sistematizado como tal por Viola Spolin nos EUA durante os anos sessenta, importante refe- rência dos grupos de vanguarda da época. Am- plamente disseminado em inúmeros países nes- sas últimas décadas, através de diferentes esferas de atuação que cobrem desde a formação de ato- res profissionais até a atuação junto a crianças de comunidades carentes, o sistema de Viola Spolin caracteriza-se como uma abordagem da improvisação teatral cercada por regras precisas, entre as quais se destacam o acordo grupal, o foco, a instrução e a avaliação. Nela, a fábula e o enredo deixam de ser o fio condutor dos jo- gadores, em favor da ênfase em outro eixo: a contínua problematização dos diferentes ele- mentos constitutivos da cena.

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    O ld ico e a construo do sent ido

    Maria Lcia de Souza Barros Pupo

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    Maria Lcia de Souza Barros Pupo professora titular do Departamento de Artes Cnicas da ECA-USP.

    exame do fenmeno teatral luz da di-menso ldica ganha densidade quandorecorremos a autores como Johan Huizin-ga (1971) e Roger Caillois (1967). Ao tra-tarem da natureza e do significado do jogo

    na vida humana ao longo de diferentes pocas eculturas, esses pensadores produziram ensaiosque certamente abrem pistas frteis para aque-les que hoje se voltam para a reflexo em tornode processos de aprendizagem teatral.

    Assim, Huizinga e Caillois descrevem ojogo como sendo uma atividade livre, gratuita,regrada, de carter incerto, que cria ordem e ordem, estabelecendo intervalos na vida cotidi-ana, ao mesmo tempo em que caractersticaespecialmente relevante abre espaos para ametfora e para a fico. Como se pode obser-var, essa caracterizao da dimenso ldica semdvida apresenta pontos de contato com o pr-prio teatro.

    Com efeito, a noo de jogo, intrnsecaao prprio acordo tcito que une atores e p-blico durante a representao teatral, ganhacontornos especialmente marcantes no teatroocidental contemporneo. Sobressaindo-se emrelao ao projeto da mimesis, e por vezes atopondo-se a ele, a valorizao do ldico em

    cena se faz presente, de um modo ou de outro,na obra de homens de teatro to relevantes ediferentes entre si como Pirandello, Brook ouMnouchkine. Em consonncia com essa nfasena capacidade de jogo, que, sob as mais diver-sas formas, vem sendo cultivada no teatro atu-al, encontramos em nossos dias vrias modalida-des de improvisao teatral que se caracterizamjustamente por serem procedimentos de carterldico.

    Uma delas o jogo teatral theater game sistematizado como tal por Viola Spolin nosEUA durante os anos sessenta, importante refe-rncia dos grupos de vanguarda da poca. Am-plamente disseminado em inmeros pases nes-sas ltimas dcadas, atravs de diferentes esferasde atuao que cobrem desde a formao de ato-res profissionais at a atuao junto a crianasde comunidades carentes, o sistema de ViolaSpolin caracteriza-se como uma abordagem daimprovisao teatral cercada por regras precisas,entre as quais se destacam o acordo grupal, ofoco, a instruo e a avaliao. Nela, a fbula eo enredo deixam de ser o fio condutor dos jo-gadores, em favor da nfase em outro eixo: acontnua problematizao dos diferentes ele-mentos constitutivos da cena.

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    Modalidade bastante semelhante, o jogodramtico jeu dramatique comea a se con-figurar na Frana dos anos trinta atravs deCharles Dullin e Lon Chancrel, entusiastasdiante da perspectiva de utilizar a ao impro-visada de carter ldico como alavanca para adinamizao da arte teatral de sua poca. O con-ceito de jogo dramtico ganhou novos contor-nos de l para c, graas, entre outros, ao traba-lho do professor e diretor teatral Jean-PierreRyngaert, hoje uma referncia de relevo no quetange s esferas educacionais e de ao culturalnos pases de lngua francesa, assim como noque diz respeito aos desafios inditos que a dra-maturgia recente vem lanando encenao. Demodo anlogo ao jogo teatral, o jogo dramticona acepo francesa do termo visa a fazer comque participantes de qualquer idade adquiramconscincia sobre a significao no teatro e pos-sam, atravs dele, emitir um discurso sobre omundo.

    Ambos, jogo teatral e jogo dramtico,fundamentam-se na idia de que a depuraoesttica da comunicao teatral indissociveldo crescimento pessoal do jogador. Ambos tmna platia interna ao grupo de jogadores umelemento essencial para a avaliao dos avanosconquistados pelos participantes. Prescindem danoo de talento ou de qualquer pr-requisitoanterior ao prprio ato de jogar e apresentampropostas de carter estrutural, derivadas da lin-guagem do teatro, que permitem a formulao,pelo prprio grupo, das situaes, temas, dese-jos, que quer trazer tona. Quando se lana emum jogo teatral ou dramtico, o jogador con-vidado a formular e a responder a atos cnicosmediante a construo fsica de uma fico com-posta por ao, espao, fala, entre outros ele-mentos possveis. Essa construo ocorre atra-vs de relaes que o jogador produz aqui e agoracom seus parceiros e com o ambiente, relaesessas que implicam intencionalidade, mas inclu-em tambm, necessariamente, fatores aleatrios.

    Nas ltimas dcadas, a anlise de comose produz a significao, ou as significaes noteatro, vem ganhando um impulso particular a

    partir da configurao gradativa de um novocampo de conhecimento, a semiologia teatral.Autores do porte de Ubersfeld e Pavis, entreoutros, imprimiram uma promissora orientaoaos estudos teatrais contemporneos, ao de-monstrarem que o fenmeno da cena no podeser tratado como simples transposio de umtexto; ele no equivale a um texto e mais algu-ma coisa. Aprendemos com aqueles autoresque a cena constituda por uma complexa ar-ticulao entre diferentes sistemas de signos queno tm sentido absoluto em si mesmos, mass adquirem significado uns em relao aos ou-tros. Assim, sabemos hoje que um signo teatral,presena que representa algo, comporta umsignificante seus elementos materiais umsignificado seu conceito e um referente, ob-jeto ao qual remete na realidade.

    Essa distino entre significado e signi-ficante, no entanto, longe de ser um atributoexclusivo da situao teatral, j aparece em tor-no do segundo ano de vida, em uma atividadecomum a crianas de toda e qualquer cultura econdio social: o brinquedo de faz-de-conta.Ao deslocar uma lata fazendo bi-bi..., ou aoandar na ponta dos ps como quem usa saltosaltos, a criana opera uma distino entre o sig-nificado (carro, sapatos de saltos altos) e o signi-ficante (lata, ps elevados). Tal distino indicaque ela est sendo capaz de operar com a noode representao, ou seja, j capaz de tornarpresente algo que no est diante de si. O faz-de-conta e a aquisio da linguagem constituem asprimeiras manifestaes da funo simblica,que, ao longo do desenvolvimento, ir se am-pliando em direo ao pensamento abstrato.

    Anos mais tarde ainda durante a infn-cia, na adolescncia ou na idade adulta essaarticulao promovida pelo signo vai constituiro eixo de uma aprendizagem da linguagem tea-tral vivida em moldes ldicos. O crescimentoda comunicao, tanto entre os jogadores,quanto entre eles e a platia, tem papel relevan-te nesse processo. O grande interesse dessaaprendizagem situa-se no fato de que o signoteatral, ao mesmo tempo em que remete a algo

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    no mundo, tambm elemento de uma prticasignificante objetivada na performance do jo-gador. Essa peculiaridade permite que se possaequacionar uma prtica pedaggica que permi-ta ao jogador elaborar teatralmente uma rela-o com o mundo.

    A substncia da expresso dos signos tea-trais, como se sabe, bastante heterognea e oexame da articulao entre eles nos auxilia acompreender o funcionamento da dimenso l-dica em cena. Contrariamente ao cinema, ondetodos os signos so emitidos atravs de um ni-co suporte, a fita, o acontecimento teatral nosoferece signos manifestados mediante diferen-tes materialidades, configurando aspectos todiversificados quanto a iluminao, o cenrio,o movimento do corpo do ator, o que ele diz, ossons que se fazem presentes e assim por diante.

    No que diz respeito, por exemplo, du-rao da sua presena, os signos teatrais tambmso bastante variveis. Alguns podem permane-cer do incio ao final da representao, comoaqueles ligados espacialidade. Outros, comoaqueles vinculados gestualidade do ator, ten-dem a ter carter efmero. Assim, um mesmosignificado, ponte, pode ser concretizado emcena atravs de diferentes significantes: telopintado, dispositivo de tipo praticvel, posturado jogador no espao, msica, etc. Inversamen-te, o teatro de nossos dias tem sabido tirar par-tido do fato de um mesmo significante poderremeter a vrios significados: uma caixa de pa-pelo em cena pode significar tanto um arm-rio, quanto uma gruta, ou um barco. A dimen-so ldica do teatro evidencia-se aqui com todoseu carter potencialmente transgressor.

    Ao longo destas pginas, gostaramos demostrar de que maneira abordagens ldicas daimprovisao teatral possibilitam aos atuantesum mergulho na construo da significao emcena. Ao trazerem para o primeiro plano desafi-os relativos ao significante, essas abordagensldicas tornam possvel a tessitura gradativa deuma rede de sistemas de signos, ao mesmo tem-po em que permitem problematizar aquela cons-truo. Destacaremos como os jogos teatrais e

    dramticos conduzem articulao de signosrelativos ao espao, aos objetos, alm de outrosmais diretamente inscritos na performance dojogador.

    Espao

    Quando se tem em mente o princpio de que a partir do corpo do jogador que se irradia oespao cnico, caem por terra equivocadas ne-cessidades de espao adequado para a ocorrn-cia do teatro. ele, jogador, quem ocupa, mo-difica, e, no limite, cria a rea da representao.A escolha de espaos que permitam diferentesrelaes entre as esferas de quem atua e de quemassiste, ou, at mesmo, que cheguem a pulveri-zar a distino entre elas, torna-se assim alta-mente significativa.

    Nessa perspectiva, o palco italiano passaa ser encarado como apenas uma modalidadehistoricamente adotada para a representao te-atral, dentro de um leque que em nossos dias composto por muitas outras alternativas poss-veis. Pode decorrer da ou a busca de espaosdiferenciados, menos sobrecarregados, tenden-do ao vazio mas portadores de um carter sim-blico forte, ou opes nas quais o ilusionismo banido e a prpria teatralidade colocada vista, atravs da exposio de dispositivos cni-cos, bastidores, paredes do edifcio. Entre as en-cenaes recentes de nosso panorama teatral,podemos citar, no primeiro caso, as ltimas re-alizaes do grupo Teatro da Vertigem: Apoca-lipse 1,11, dentro de uma priso, e O livro deJ, em um hospital desativado. A montagem deSanta Joana dos Matadouros pela Companhia doLato, na qual o pblico instalado por mo-mentos numa caixa cnica praticamente nua,ilustra a segunda tendncia.

    Dentro dessa vertente de contestao aoilusionismo, com freqncia a encenao oci-dental contempornea opta pela criao de arte-fatos que apenas remetam realidade atravsde procedimentos como a metfora e a meto-nmia ao invs de pretender imit-la. Quan-do Antunes Filho coloca em cena o significante

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    escada para designar o balco que serve aos en-contros entre Romeu e Julieta, a diferena deplanos em que se encontram os amantes me-taforicamente tratada, engendrando assim umadimenso ldica.

    No mbito dessas tendncias, as aborda-gens ldicas da improvisao teatral colocamradicalmente em xeque distines rgidas entreo espao de quem joga e o espao do especta-dor. A partir de propostas precisas do coorde-nador (professor ou diretor), que sugere deter-minada rea a ser explorada, o grupo de joga-dores pode ser convidado a transform-la emsignificante de um lugar fictcio (cf. Ryngaert,1985). Faz parte das regras o respeito s carac-tersticas fsicas do espao em questo, que nopodem ser alteradas e devem ser colocadas a ser-vio da emergncia do universo ficcional pre-tendido pelos atuantes. Assim, uma rampa es-treita comprimida entre duas paredes transfor-ma-se em abismo sobre o qual se deslocamselvagens homens primitivos. Uma montanhasagrada surge a partir de uma escadaria ngre-me, cujo topo alcanado com dificuldade pe-los personagens, fiis sditos de um monarcadesptico. Ao passar ritualmente sob o vo deuma mesa, jogadores mostram a travessia doportal de uma cidade antiga. Um banheiro co-letivo engendra uma nave espacial composta pordiferentes cubculos nos quais viajam astronau-tas instalados verticalmente e situaes de peri-go so designadas pelo rudo das descargas.

    Improvisaes desse porte acarretam in-variavelmente modalidades inesperadas de con-tato entre jogadores e platia. Com freqncia,a cena acaba envolvendo inclusive pessoas que,a priori, no constituam um pblico e acabamsendo interpeladas por uma representao queno tinha se feito anunciar. A proximidade en-tre quem joga e quem assiste, assim como oenvolvimento do pblico na fico, instauramrelaes surpreendentes entre uns e outros,abrindo novos caminhos para a construo dosentido.

    A prtica de jogos teatrais e dramticosgera situaes nas quais se apreende que a di-

    menso espacial no pode ser concebida comoadereo da representao. O jogador adquireconscincia de que o espao constitudo porsignos que conformam e estruturam o sentidodaquilo que se faz na rea da representao. Di-ante da necessidade de assegurar a presena deuma cabine telefnica em cena, por exemplo,poderamos destacar diferentes solues poss-veis. Uma delas seria a formulao da cabineatravs de dois corpos entrelaados em torno deum terceiro jogador fazendo s vezes de telefo-ne. Outra soluo seria trazer para a rea da re-presentao a rplica de uma cabine ou at mes-mo o prprio equipamento. A preferncia poruma delas em detrimento de outras ir necessa-riamente gerar diferentes conotaes dentro dacena improvisada ludicamente.

    Objeto

    Figurvel e manipulvel pelo jogador, o objetoconstitui uma materialidade concreta que reme-te a algo que est no mundo. Sua configuraopode ou no se confundir com a de seu referen-te, e a escolha entre essas alternativas nunca deveser tida como fortuita. O significado metralha-dora, por exemplo, poder emergir atravs dediferentes significantes, tais como a rplica deplstico de uma metralhadora real, um guarda-chuva preto, ou a gestualidade do jogador. Op-tar por um ou outro, evidentemente acarretaimplicaes no tocante s conotaes que serolidas pela platia.

    Tal como ocorre com o espao, no tocan-te ao objeto tambm a dimenso ldica da rela-o entre significante e significado vem sendoressaltada em nosso teatro mais recente. Doms-ticas, dirigido por Renata Mello, vale-se de trsbancos pintados de branco para tornar palp-veis em cena um ponto de nibus, o corredorinterno de um veculo de transporte coletivo,um parapeito de janela e um balco de cozinha.

    Mais comprometidos com a ludicidadedo que com qualquer pretenso mimtica, osjogos teatrais e dramticos lanam mo de doisprocedimentos principais para a construo de

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    signos relativos ao objeto. Por um lado essaconstruo pode se valer de uma relao meta-frica entre significante e significado. Por ou-tro, pode recorrer utilizao de significanteimaginrio.

    A metfora diretamente focalizada quan-do o jogo parte da proposta de utilizao de umobjeto como significante de outro. Retoma-sedesse modo, com outra envergadura, a prticasimblica que j se fazia presente no faz-de-con-ta infantil. Assim, em funo da escolha dos jo-gadores envolvidos em um processo de traba-lho teatral, um pedao de corda se transformaem serpente ou microfone, uma tampa de pa-nela se metamorfoseia em direo de caminhoou chapu. Metamorfoses como essas podemservir como ponto de partida para a realizaode novas improvisaes de carter ldico, nasquais aspectos mais complexos, como por exem-plo a definio de papis, lugares e ao, even-tualmente estejam tambm envolvidos.

    Por outro lado, o sistema de jogos teatraisenfatiza muito a construo de significantesimaginrios atravs do incentivo reiterado fisicalizao do objeto. Individualmente, ouatravs da relao entre os participantes, o desa-fio de tornar real um objeto, sem o auxilio dequalquer suporte material, pode constituir umimportante aspecto do desenvolvimento daconscincia sensorial, a ser constantemente re-tomado e aprofundado ao longo do processo deaprendizagem teatral.

    Signos intrinsecamente vinculados performance do jogador

    A figura do ator-jogador est na interseo demltiplos cdigos, tais como o lingstico, ofnico e o gestual. De modo freqentementeinseparvel de sua figura, apresentam-se nossapercepo os signos relativos a seu corpo, a tudoo que o envolve figurino, maquiagem, msca-

    ra assim como os movimentos e gestos queproduz.

    O jogador sempre o enunciador de umdiscurso que resulta de signos provenientes demltiplas fontes, signos esses que se combinamna atuao improvisada, caracterstica do jogoteatral. Alguns deles so emitidos em funo daprpria deliberao de quem atua. Outros sosignos oriundos do desejo de outro jogador, mash tambm signos provenientes de fatores alea-trios, que se manifestam ao longo do ato dejogar.

    Se gesto e entonao, por exemplo, po-dem ser caracterizados como fruto de uma in-teno deliberada, Anne Ubersfeld (1996a)1salienta a existncia de signos de carter invo-luntrio, como o timbre de voz, os traos fisio-nmicos, ou a estatura.

    Da a complexidade dos fenmenos comos quais nos defrontamos ao propor aprendiza-gens mediante processos ldicos. Da relaoentre o corpo real do jogador e a figura imagi-nria que ele delineia atravs de seu corpo, sur-ge a fico concretizada cenicamente.

    H sem dvida uma srie de sistemas designos que esto a tal ponto intrinsecamentevinculados ao jogador, que a tarefa de isol-lospara efeito de anlise se apresenta como extre-mamente complexa.

    As falas emitidas em situao de improvi-sao, apesar de no serem previsveis quandoresultam to somente das relaes estabelecidasao longo do jogo, designam, sem dvida, orde-nao referente a alguma espcie de textualidade.No entanto, falas podem se constituir tambmem um frtil ponto de partida para o ldico; oque ocorre quando fragmentos de textos pr-es-tabelecidos deflagram dentro de improvisaes.

    Em ambos os casos, aquilo que se fala, ouseja, o texto presente no jogo, constitui um con-junto de signos lingsticos que se desdobramde modo diacrnico. Uma vez articulados si-multaneamente a signos de outra natureza so-

    1 Cf. o captulo IV, Travail du comdien.

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    noros, relativos iluminao, ao deslocamentono espao, gestualidade vo engendrar dife-rentes significados.

    Sempre cabe lembrar que o ato teatral nopode ser encarado como tributrio da nooequivocada de fidelidade ao texto, pois no seconstitui traduo desse ltimo. Dentro dacena, o texto um dos componentes, entre ou-tros. Nela, diferentes sistemas de signos se arti-culam e se modificam entre si, de modo a gerarsignificado.

    Assim, no que se refere aos signos relati-vos ao texto, uma srie de pesquisas recentes, noBrasil e no exterior, mostram como, atravs deprocedimentos de carter ldico, possvel des-cobrir que eles podem ter seu significado multi-plicado em funo de diferentes fatores. Umamesma frase ganhar conotaes diferenciadasem funo de eventuais combinaes com dife-rentes aes ou modalidades gestuais, em fun-o da diversidade de seus emissores ou destina-trios, ou ainda a partir das variaes para-lingsticas atravs das quais ela for enunciada.

    Essa ltima categoria diz respeito a umasrie de signos ligados linguagem, vinculados orientao fsica da palavra em direo a umdestinatrio, que se manifestam durante a emis-so do material textual. Recentemente passarama ser agrupados como componentes do dom-nio paralingstico (Ubersfeld, 1996b, p. 63),cobrindo portanto a voz, a intensidade, a arti-culao, o ritmo e o fraseado. Os jogos teatraisque focalizam a chamada blablao colocamem relevo exatamente essa importante dimen-so da fala em cena, permitindo a descoberta,pelos participantes, de que nenhum texto trazem si um significado inequvoco a ser traduzi-do pelo jogo. Pelo contrrio, so os signos queemergem a partir do ato de jogar que tm a pro-priedade de iluminar uma determinada leituradaquele texto, dentre muitas outras possveis. Apartir da, evidentemente, caberia levantar aquesto da pertinncia: qual dessas leituras in-teressaria mais ao grupo aprofundar?

    No que se refere indumentria, seria in-teressante destacar um jogo teatral especfico

    que exemplifica uma articulao interessanteentre significante e significado. Trata-se do jogoem que, a partir de um fragmento de figurino,esboa-se individualmente a construo de umpersonagem. Inicialmente, esse fragmento chapu, gola de casaco, capa apenas um ob-jeto externo, escolhido pelo participante. Pou-co a pouco, o ato ldico promove uma espciede fuso entre a sua materialidade cor, textu-ra, peso, forma e o aqui e agora do jogador.Desse processo surge o signo metonmico deum figurino, inseparvel da constituio de umpersonagem que ele, jogador, pouco a pouco,faz nascer. Do contato com um bon esgaradoapareceu o personagem de um garoto cortadorde cana. Luvas brancas transparentes ativadaspelo jogo de algum em determinadas circuns-tncias, engendram uma domadora de circotodo-poderosa.

    Cabe ainda destacar um aspecto impor-tante da aprendizagem teatral. Trata-se da cola-borao entre quem faz e quem assiste, ou, emoutras palavras, da funo da platia. Signosproduzidos em um primeiro momento podemser precisados e depurados mediante retomadasde jogo, a partir da incorporao de sugestesdaqueles que observam.

    Dentro do processo dos jogos teatrais, orelevo dado avaliao, sempre estreitamentevinculada soluo de problemas de ordem te-atral a serem resolvidos por quem atua, assegu-ra tambm uma outra importante aprendiza-gem: a da leitura da representao.

    Assim, a descoberta do funcionamentodos cdigos que configuram a significao emcena, d-se no somente atravs da construo,mas tambm da decodificao dos signos. A di-nmica entre essas duas dimenses poder con-tribuir, e muito, para trazer para o primeiro pla-no os modos atravs dos quais se d a signifi-cao no teatro. Estaro assim reunidas ascondies para a formao de um espectadorparticular.

    Ele ser capaz de apreender no somenteaquilo que se conta em cena, ou seja, aquilo que representado, o enredo em ultima anlise, mas

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    grande parte de seu prazer vai residir em exami-nar como executada essa complexa operaoatravs da qual uma fico concretizada diantede ns. Mediante a experimentao de procedi-mentos ldicos nos quais se evidencia a noo

    de signo, ele ser capaz de pensar a significaoem cena. Esse espectador, em suma, estar emcondies de compreender de que modo espe-cfico a arte teatral pode contribuir para que seamplie nosso conhecimento sobre o homem.

    Referncias bibliogrficas

    CAILLOIS, R. Les Jeux et les hommes. Paris, Gallimard, 1967.

    HUIZINGA , J. Homo ludens. So Paulo, Ed. Perspectiva, 1971.

    RYNGAERT, J-P. Jouer, rpresenter. Paris, Cedic, 1985.

    UBERSFELD, A. Lire le thtre II. Lcole du spectateur. Paris, Belin, 1996 (a).

    _______. Les mots-cls de lanalyse du thtre. Paris, Seuil, 1996 (b).